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PREFÁCIO
Marco Antonio Coutinho Jorge
O que seria de nós, se não fosse o amor, estaríamos à deriva de nossas pulsões? –
perguntava-se Freud numa de suas maravilhosas cartas a um de seus íntimos. A resposta a esta
pergunta de Freud é tributária do fato de que há, na estrutura, uma verdadeira antinomia entre
amor e pulsão. O amor tempera o furor irreprimível das pulsões em sua busca imperiosa de
satisfação e, se Freud o alça à posição de rival das pulsões, é porque ele é forte. Poder do amor
afirmado já no Cântico dos cânticos, aonde se lê que “o amor é forte, é como a morte”. Ao
conjugar o simbólico e o imaginário, o amor produz sentido e exclui precisamente o real em jogo
no cerne do movimento pulsional. O amor estabiliza, produz homeostase: não se diz que, para
aquele que ama, a vida tem sentido? Mas o amor não quer saber do real, da falha, da perda, da
falta, da ruptura - em suma, da separação.
Amor ódio reparação, lançou Melanie Klein. Amor ódio separação, pontuou Maud Mannoni.
E na vez de Lacan, outra conclusão: amor ódio ignorância. Estranha seriação que, junto aos
afetos, inclui algo ligado à dimensão do saber: ignorância. O que será que ela tem a ver com o
amor e com o ódio? Tudo. E nada. Mas principalmente: nossa divisão. Nossa suposição de saber é
a primeira brecha pela qual entra, se insinua o amor que se dirige ao saber: esta é, para Lacan, a
definição da transferência. Se a maiêutica socrática sustenta o amor da verdade, na psicanálise
esta só surge nos rastros deixados pelo amor.
Amor e ódio são as duas faces da mesma moeda cuja efígie se chama ignorantia. “A
verdadeira amor” (sim, no feminino, pois o amor implica a posição discursiva feminina)
desemboca no ódio, diz Lacan, pois se o amor é suposição de saber, o ódio é sua violenta
dessuposição. Amor e ódio constituem carreiras infinitas e em profunda conexão, uma
representando aquilo que a outra deixa para trás... A ignorância, não. Ela não se acha neste
mesmo eixo do amódio (tradução do neologismo lacaniano, hainamoration), ela é “neutra” de
afeto, digamos assim, ou melhor, de aspiração: ela não quer corrigir o passado, nem prefigurar o
futuro.
A reparação implica em olhar para o passado. A separação, para o futuro. Já a ignorância,
esta dirige o olhar para algo difícil de perceber - o presente. Entenda-se que o inconsciente é
tempo e a fantasia o fio que, segundo Freud, une as três dimensões temporais. Por isso, a
fantasia é sempre, no fundo, em alguma medida, fantasia erótica. Aspiração de completude. De
plena realização. De algo desejado no passado e evocado no presente.
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Em Amor, ódio e ignorância, Nadiá Paulo Ferreira toma a tripartição lacaniana como o fio
que a conduz no interior de seu elemento de pesquisa de muitos anos – o amor na literatura e na
psicanálise. O que lhe permite percorrer os meandros mais complexos da teoria com elegante
fluência, mapeando sua geografia conceitual e levando o leitor até regiões distantes, que passam,
desde
então,
a
ser
imediatamente
reconhecidas:
enseadas
do
amor,
desfiladeiros
das
identificações, furnas da transferência, arquipélagos do gozo, dédalos da pulsão e do desejo,
nascentes dos discursos, angras do sujeito, escarpas da angústia...
A escritora portuguesa Ana Hatherly - seu romance O mestre e o volume de poemas em
prosa Tisanas - é privilegiada por Nadiá como guia nessa viagem em que o matema se associa ao
poema e o fulcro da letra é flecha zen, certeira: tudo nos é trazido através de uma suave erudição
literária que evoca, por exemplo, elementos dos bastidores do Banquete com os quais a leitura do
seminário lacaniano da transferência ganha em sabor e inteligibilidade. O literário é conjugado ao
analítico ou, para ser mais preciso, o literário é ensinamento que funda o analítico: o mito de
Aristófanes é lido como mito da reprodução sexuada; a natureza humana, uma mutilação - a
perda de uma de suas metades; sua cura, o amor, único passível de - ao fazer de dois, um restaurá-la.
Freud e Lacan sublinharam continuamente o quanto o psicanalista aprende com a
literatura: o poeta e o escritor são aqueles que avançam rapidamente em certas regiões que o
psicanalista leva muito tempo até poder conquistar. “A interpretação já vem pronta do Outro”,
disse Lacan, ao nos indicar o clarão do poeta. Psicanalista e literata, Nadiá encarna em seu
trabalho essa conversa entre visionários, dando densidade e autenticidade a seu diálogo: o
psicanalista ganha ao conquistar o terreno da literatura e, nesse desbravamento, o que ele
descobrirá - na letra - é o ensinamento vital da psicanálise.
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