A Síndrome da China
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CLAUDIO MANO
Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Souza” da UFJF.
Bacharel em Filosofia pela UFJF.
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Em 1978, dez anos após sua deslumbrante aparição como “Barbarella”, e sete anos
depois de viver nas telas a prostituta Bree Daniels – que lhe valeu o Oscar de melhor atriz por
sua atuação no filme “Klute” –, Jane Fonda, acompanhada por Michael Douglas e Jack
Lemmon, nos apresentam um momento inesquecível da arte cinematográfica, tanto pela
profunda reflexão que nos causa, quanto pela premonição que em seguida se materializa.
Trata-se da “Síndrome da China”. A estória se dá em torno de um acidente em uma
usina nuclear, onde por uma questão de segundos, o núcleo radioativo deixou de ser exposto,
o que levaria a sua fusão, gerando uma liberação de energia tal, que a própria estrutura que o
sustenta se derreteria, afundando então o reator em meio ao lago de magma que ele próprio
criara, até “ir parar no outro lado do mundo”, ou seja, na China.
Como nos explicam no filme, na verdade esse percurso seria muito mais curto, pois ao
alcançar o lençol freático, uma grande explosão devolveria boa parte do material radioativo
para a atmosfera, causando uma catástrofe de dimensões incalculáveis.
Embora nosso texto não verse sobre o mundo cinematográfico, escolhemos esse
caminho, principalmente para podermos apresentar um momento particularmente didático do
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Columbia Pictures (1978)
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filme, quando Jane Fonda, que interpreta uma jornalista, questiona Jack Lemmon, que faz –
brilhantemente – o papel do técnico executivo da usina, se em algum momento, durante o
evento de pane na instalação atômica, a população havia corrido algum risco.
Vejamos uma síntese da resposta de Jack: “essas usinas são projetadas de tal forma
que todas as falhas imagináveis são levadas em conta. Cada componente é testado várias
vezes, todos os circuitos possuem uma cópia reserva – backup – e às vezes até mesmo a
reserva do reserva (...) um conceito de ‘proteção total’. Mas em tudo que o homem exerce sua
atividade existe um elemento de risco (...), mas o sistema funcionou, apesar de um relé
defeituoso que deu uma indicação errônea aos operadores, apesar de uma válvula emperrada
(...) não houve vazamento, o sistema funcionou”.
Até o momento, nosso engenheiro é um fiel discípulo do “sistema”; o criador curvado
diante da grandiosidade de sua criatura. Mas naquele tempo – ao menos nos roteiros – havia
espaço para a integridade de caráter de um homem prevalecer, assim é que, movido por uma
dúvida que de início instigava mais sua curiosidade que sua consciência, ele passou a
investigar a fundo o incidente, acabando por se deparar com um conjunto de ações
irresponsáveis, fraudes, interesses econômicos gigantescos, que se por um lado não dão causa
direta ao acidente na usina, por outro, impediam que fosse tomado conhecimento dos riscos à
operação da mesma, e assim, uma possível ação preventiva. Ao final do filme, as balas da
‘SWAT’ dão conta de calar não apenas a voz do idealista embriagado por valores éticos,
quanto o clamor público, remetendo a avaliação de todo o ocorrido ao crivo do julgamento
técnico circunscrito a quatro paredes.
O filme é lançado no início de 1979; alguns dias depois, a realidade teima em imitar a
ficção, e acontece o evento de “Three Mile Island”2 – até o acidente ocorrido agora no Japão,
o segundo maior desastre em usinas atômicas conhecido; o mais grave ainda é ‘Chernobil’, na
Ucrânia (1986) –, que salvo a parte conspiratória, nos remete ao filme de forma assustadora.
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http://www.lemonde.fr/planete/article/2011/03/14/un-accident-nucleaire-dune-ampleur-historique_1492753_3244.html
http://www.irsn.fr/FR/base_de_connaissances/Installations_nucleaires/La_sur
ete_Nucleaire/Les-accidents-nucleaires/three-mile-island-1979/Pages/Laccident-de-Three-Mile-Island.aspx?dId=c64d2d86-5f28-4517-8b40445805ca9bae&dwId=ccfa8ce8-8e94-4bf5-ab02-ad9c8eebaaf7
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Em agosto de 2002, a opinião pública japonesa é surpreendida pela notícia de que por
25 anos, documentos vinham sendo falsificados visando “encobrir pelo menos três incidentes
nas centrais de ‘Fukushima’ e de ‘Kashinazaki-Karina’, em um total estimado de 200
eventos” 3. A usina de ‘Fukushima’ possui seis reatores, instalados a partir de 1970, sendo que
no momento em que escrevemos este artigo, três deles correm o risco de não resistir ao
processo de fusão parcial de seus núcleos, e assim lançar no meio ambiente material
radioativo, com conseqüências imprevisíveis.
Como nos ensina o filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau, “o homem suporta
pacientemente a necessidade das coisas”, e assim, a convivência com abalos sísmicos é algo
inerente a se viver sobre a Terra – em algumas regiões, sabidamente mais que em outras –.
Mas certamente ser soterrado por toneladas de concreto, ou afogado sob um mar de radiação,
é obra exclusiva do engenho humano. Rousseau certamente nos diria que neste último caso, o
quadro de horror que presenciamos não demanda nenhum tipo de resignação, e sim que nos
remete a pensar em uma profunda injustiça, pois é fruto da “má vontade dos outros”.
Acreditamos que nos próximos dias e meses, passado o impacto inicial da catástrofe e
conhecidas suas reais dimensões, veremos uma torrente de números, estatísticas, relatos
passionais, denuncias das mais diversas – tanto verdadeiras quanto falsas – visando abolir ou
sustentar o uso pacífico da energia nuclear; e não importa a poeira que seja levantada, o
resultado dessa contenda é passível de previsão: A energia atômica será aprovada com
“restrições”, pois afinal, o “homo urbanus” se alimenta de eletricidade.
Um efeito colateral da tragédia de ‘Fukushima’, foi diminuir a participação, ou mesmo
afastar dos meios de comunicação de massa, assuntos que antes estavam em evidência. Seria
possível ao regime líbio se recuperar ante às forças rebeldes, caso o bombardeio da mídia
cerrasse sobre ele toda sua força? Estaríamos aqui no Brasil assistindo já ao próximo caso de
corrupção programado pela rede televisiva, ou as denuncias sobre a “máfia dos radares” ainda
ocupariam as manchetes?
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http://www.lefigaro.fr/sciences/2011/03/14/01008-20110314ARTFIG00568quand-le-geant-du-nucleaire-japonais-cachait-des-incidents.php
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O caso dos radares vale uma avaliação mais cuidadosa, e embora a ligação não pareça
existir, justamente por termos nossas próprias usinas nucleares, localizadas no município
fluminense de Angra dos Reis. O noticiário nos revela, que visando favorecer a venda de seus
produtos, fabricantes de “aparelhos para a justificação de emissão de multas” – é isso que os
radares são – passam “comissões” a elementos ligados aos órgãos de governo encarregados de
sua compra. Os radares são equipamentos eletrônicos que a partir da leitura de sensores,
calculam a velocidade de um veículo, e a partir daí, comparando com a que foi estabelecida
como limite máximo, acionam um mecanismo fotográfico que registra a infração.
A dúvida que nos ocorre é a seguinte: porque em um ambiente onde prevalece a
corrupção, a falta de caráter e o desrespeito à lei, à integridade do funcionamento do
equipamento será mantida, enquanto um pequeno “desajuste” do radar pode significar um
acréscimo substancial na arrecadação? Será que uma aferição efetuada em um determinado
momento da vida do equipamento pode garantir seu correto funcionamento posterior? Vale
lembrar que esse tipo de máquina, nada mais é que um computador, funciona de acordo com
um programa que é feito por seres humanos. Por que esperar honestidade dos que cuidam da
produção quando os que promovem as vendas desconhecem os limites da ética e da moral? Se
as autoridades compactuam de alguma forma com um processo irregular de compra de
equipamento, por que esperar delas o zelo e o respeito ao cidadão na hora de sua utilização?
Vale lembrar que não existe forma de se invalidar a evidência da infração registrada em foto;
mesmo que ela não tenha sido cometida.
Para finalizar conclamamos a todos, que a nosso exemplo, “rezem” todos os dias para
que os homens do governo, que administram o setor nuclear em nosso país, possuam uma
formação moral mais sólida que aqueles que os noticiários nos mostram quase que
diariamente; que prevalecendo de seus cargos e funções, buscam auferir vantagens pessoais,
não importa a que preço.
No Brasil, milhares de pessoas são mortas por trafegarem em estradas depauperadas,
cujo volume de tráfego já há dezenas de anos exige duplicação, quiçá triplicação. A cada
feriado, após a constatação da tragédia anunciada, as autoridades vêm a público
responsabilizar diretamente as vítimas, estampar o recorde de multas aplicadas – por radares –
para ressaltar a imprudência e assim justificar o placar estarrecedor. Mas quando efetuaremos
os urgentes investimentos necessários à manutenção e ampliação de nossa infra-estrutura?
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Tudo indica que ficarão a ver navios. “Rezemos” então todos os dias, para que os técnicos que
cuidam do funcionamento de nossas usinas nucleares, a exemplo do engenheiro vivido por
Jack Lemmon, possuam a integridade moral e a postura ética que sua ocupação exige, para
que, se necessário, venham a público exigir as verbas e as ações necessárias à manutenção de
nossa segurança. Que correspondam à confiança que lhes depositamos, e que não é pouca,
pois trata-se da vida de milhares, senão de milhões de brasileiros.
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