Universidade Estadual de Campinas
Instituto de Artes – Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação
Gabriel Oliveira Pereira
Agosto, 2013
A história de quando matei meu irmão gêmeo que nunca existiu:
fotografia, jogo e manipulação
“Existe John / existe João / existe / Apesar de tudo / é muito leve / Apesar de muito / é
tudo leve” (Walter Franco)
Qual deve ser a função do fotógrafo no mundo contemporâneo? Neste mundo onde as
imagens substituem a realidade, segundo o fotógrafo catalão Joan Fontcuberta, o fotógrafo não
deve se furtar de perguntar: “se vamos morar nas imagens, como sobreviver?”. Eu senti que,
como uma forma de continuação da minha pesquisa sobre autorretrato, deveria produzir uma
exposição fotográfica que, através do jogo e da manipulação, colocassem em xeque o estatuto de
verdade que é atribuído á fotografia, instigando a reflexão sobre esta questão.
Mal sabia eu, no entanto, no que eu estava me metendo. Sempre tive na minha cabeça
mortes sensacionalistas, como a da menina Isabela Nardoni. A exibição das imagens das câmeras
de segurança sempre me pegaram de jeito. Como me relacionar com aquelas imagens? Sempre
me senti tentado a pensar: e se fosse a minha morte? Como seria noticiada? Será que as pessoas
sairiam às ruas com camisetas com meu rosto em protestos? Esta angústia quase egoísta foi uma
das faíscas para o pensamento que começou a me mover: como retratar a morte da realidade?
Comecei então a elaborar a história de um irmão gêmeo (meu duplo), que teria se
suicidado. Antes de seu suicídio, porém, ele teria produzido junto a mim retratos posados de
1 suicído (autorretratos?) todos diretamente ligados a grandes obras da pintura e da fotografia.
Cada um desses tableaus tinha sua razão de ser. A interpretação de Ofélia feita por nós, por
exemplo, estaria lá devido a toda a aura de dúvida que é atribuída à sua morte. Havia ela morrido
suicidada? Ou teria apenas caído de um tronco? Alvo de diversas interpretações por pintores
renomados, seria a de Millais que seria a escolhida.
Porém a história de meu irmão João (clara referência ao inspirador Joan Fontcuberta) não
se restringiria a isto. Ele teria ficado obcecado com a nossa produção fotográfica e, em busca de
um realismo que ali não estava, teria se suicidado e fotografado a sua ação, utilizando-se de uma
câmera com timer. Das supostas centenas de fotos produzidas, 20 teriam sido selecionadas e
expostas, em formato de mosaico (de modo a sugerir a narratividade temporal). Além disto, a
exposição contaria também com notícias relativas ao caso de João, que teriam saído na mídia e
também de fotos de infância em álbuns. Tudo isto surigiria a partir de manipulação digital.
Ao longo de aproximadamente dois meses me dediquei, então, à produção efetiva de todo
este material. Cuidadosamente escaneei fotos da minha infância e photoshopei-as, alterei notícias
de portais on-line, visitei o estúdio do Departamento de Multimeios para me fotografar como um
cadáver witkiniano, etc. Tinha a crença de que poderia construir toda essa história, porém não
sabia como seria exatamente a reação das pessoas. Imaginei que a maioria delas não iriam
acreditar em tudo aquilo, mas que entenderiam o que a história de João, sua relação com a
imagem, a fotografia e a morte buscava trazer à tona.
Terminadas as imagens era hora de imprimi-las. No meio da correria daquela semana de
preparação da exposição, cheguei a uma gráfica perto da minha casa para imprimir as notícias
“inventadas” que fariam parte da exposição. Ao ver aqueles papéis com notícias de sites
ampliadas sendo impressas, o funcionário tentou lê-las brevemente, impulsionado por uma
curiosidade banal. Ao notar, no entanto, que se tratava de uma notícia de um suicídio em Barão
Geraldo, olhou para mim e disse que não tinha ouvido falar desta história. Eu, confuso sobre
como reagir, disse a ele que, na verdade nada daquilo tinha acontecido e que isto seria parte de
uma exposição de fotografia que “inventava” aquela história. Não deixei, no entanto de
perguntar para ele como se sentia em relação àquilo. Ele, um pouco confuso, me respondeu: “É
boa fé, né? A gente é enganado o dia todo e nem fica sabendo...”. Bingo.
2 Montei a exposição com a ajuda perfeccionista da Isabela Moura e da Lygia Pereira na
segunda-feira. Convidei algumas pessoas para verem a exposição antes de abrí-la no dia
seguinte. Ao chegarem para ver a exposição, fiquei chocado pois, diferentemente da minha
expectativa, quase todas elas acreditaram no que viram. Esperava que, no entanto, pelo menos
uma boa parte das pessoas mantivessem uma dúvida razoável e se questionassem se aquilo era
ou não verdade. Inspirei-me em “Fauna” exposição fotográfica de Joan Fontcuberta onde as
pessoas ficavam em dúvida quando viam o que viam. Teria eu feito algo de muito diferente?
Quais seriam as implicações disto na minha obra? Seria o fato das pessoas saírem sem
entenderem que aquilo era uma mentira um problema muito grande para a obra?
Admito que entrei numa espécie de crise. Decidi adiar em um dia a abertura da exposição
e conversar com o meu sempre atento orientador Prof. Fernando de Tacca. Levei-o para ver a
exposição. Animado, ele me disse que eu não deveria me preocupar, pois eu havia ido além do
que pensava. Se eu estava me preocupando com alguma espécie de função pedagógica da minha
obra que levasse as pessoas a pensarem isto, meu orientador acreditava que eu havia ido além. A
crença das pessoas naquilo tudo era o ápice do funcionamento de uma obra de manipulação. Mas
eu me sentia ainda como se tivesse caído na minha própria armadilha: queria mostrar a força e o
poder das imagens mas desde o começo desacreditei da força que as minhas imagens teriam.
No fim das contas, decidi por adicionar um pequeno texto de Joan Fontcuberta em que
ele associa a fotografia à escritura das aparências à apresentação. Se alguém reclamasse pelo
menos poderia dizer: “Sua mãe não te ensinou que as aparências enganam?”. Abri a exposição e
me surpreendi que, para além dos amigos, colegas e professores que apareceram, algumas
pessoas, instigadas pelos cartazes ou pelo chamado de amigos, decidiram conhecê-la também.
Estas pessoas, que me desconheciam completamente geraram conversas bastante
interessantes, apresentando visões bem legais. Um garoto, por exemplo, chegou à exposição com
seu amigo. Após ambos verem a exposição e me verem sentado do lado de fora, se aproximaram
de mim. Saudei-os e perguntei o que haviam achado da exposição, ao que, ainda sem ar, me
responderam que acharam muito forte. Comecei a questioná-los sobre o quanto aquilo tudo era
verdade até que eles, num estalo, entenderam que aquilo tudo era mentira. Trocamos mais
algumas palavras e nos despedimos. Ao chegar em casa, no entanto, encontrei uma mensagem de
um dos rapazes: “ei, vi hj a exposição no centro cultural do iel e esqueci de perguntar uma coisa
3 vc tem um irmão gêmeo msm ou tbm não é vdd?”. Ele havia, após a conversa comigo,
desacreditado da história que eu havia contado, mas ainda acreditava nas imagens e na sua
relação direta com a realidade. Sem querer, havia me tranquilizado: a força da exposição estava
nas imagens e não somente na história contada.
Outro dos mais interessantes visitantes ficou na exposição por quase 40 minutos. Eu, que
tomava conta da exposição do lado de fora, comecei a ficar preocupado com o rapaz. Teria ele se
emocionado com algo e estaria chorando lá dentro? Teria lembrado de algum parente que havia
se suicidado? E o pior: ele saiu rapidamente da exposição, não dando qualquer chance de eu
poder conversar com ele. Passei o dia preocupado e pensando nos limites do que eu tinha feito.
Estava sentado pensando nisso tudo aguardando meu lanche da noite numa cantina do campus
quando o tal rapaz chegou para conversar comigo. Ele pediu licença para caso tivesse errado,
mas que tinha gostado muito do modo como havia me utilizado da manipulação para construir
toda aquela história. E que de fato, embora João não existisse, ele existia mais do que se existisse
simplesmente. Tivemos uma conversa muito interessante sobre verdades, mentiras e dúvidas
razoáveis.
Mas, se eu objetivava através da minha autoficção questionar este mundo pós-moderno
onde a fotografia é metafísica e onde esta ainda não é entendida como escrita das aparências, foi
outra história que me chamou mais atenção. Duas garotas viram a exposição rapidamente e, na
saída, uma delas preencheu um formulário. Perguntei, curioso, que formulário era aquele. Ela me
disse que participava de uma matéria onde era obrigada a ir em um certo número de eventos
culturais. Precisava de um carimbo, no entanto. Expliquei a ela que carimbo não tinha, mas que
se quisesse, poderia dar o meu autógrafo. Ela disse que não bastaria. Sua colega sugeriu que
tirasse uma foto registrando sua presença e a mostrasse ao professor. A garota disse, confusa, que
não sabia se a foto bastaria ao professor. Decidiu, então, que voltaria para tirar a foto se, em
conversa com o professor, o mesmo decidisse autorizar. Ela nunca voltou. Acho que, se elas não
entenderam a exposição o professor entendeu.
No fundo, o que queria dizer é que devemos tomar cuidado com este mundo onde
realidade e ficção se imbricam, onde as imagens substituem o mundo. Este mundo onde João e
Gabriel são, na verdade a mesma pessoa. Onde verdade e mentira se equivalem. Espero que este
4 trabalho tenha servido para instigar a discussão sobre isto e que abra caminho para outras visões
e outros trabalhos sobre isto.
Imagem 1 – Fotografia da exposição vista de fora
5 Imagem 2 – Fotografia da Exposição da porta (Textos de Apresentação e Fotos Encenadas)
Imagem 3 – Foto da Exposição (Ao fundo, notícias e mosaico de fotos do suicídio “real” e, no
centro da sala, caixa com álbuns de infância)
6 Imagem 4 – Foto da Exposição (Texto de Apresentação e Foto de apresentação)
Imagem 5 – Foto da Exposição (Fotos encenadas)
7 Imagem 6 – Foto da Exposição (Notícias e Mosaico)
Imagem 7 – Foto da Exposição (Caixa com fotos de infância)
Imagem 8 – Foto da Exposição (Caixa com fotos de infância)
8 Imagem 9 – Foto da Exposição (Mesa com guestbook)
Imagem 10 – Foto da Exposição (Vidro com cartaz e aviso)
9 Imagem 11 – Foto da Exposição (Exposição vista de fora)
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