ISSN 0102-0625
Ano XXVIII • N0 294 • Brasília-DF • Abril - 2007
R$ 3,00
Javaé
agronegócio
e invasores
ameaçam a vida
DESTE rio e de
seus povos
Páginas 4 e 5
Mobilização pela vida do
São Francisco e contra
a Transposição
Criança da Aldeia Txoudé no rio Javaé – Foto: Kariny Teixeira – Cimi GO/TO
Páginas 8 e 9
Povo
Potiguara
retoma
terras na
Paraíba
Página 11
Opinião
Porantinadas
A LUTA E O SONHO AMADURECEM
O Cimi e seus 35 anos
P
é na estrada. Talvez essa pudesse ser a melhor imagem
do Cimi caminhante, com a
radicalidade e certeza na frente,
fazendo a história avançar. A luta, o sonho,
a ternura e a beleza do Brasil de todos
os povos como obstinação. Os povos
indígenas como inspiração e razão de
nossa mística militante. O testemunho
guerreiro e aguerrido dos que tombaram
na luta. Um caminho com muitas pedras,
em cujas margens semeamos alimentos,
flores e esperança. Ficaram marcos fortes
como Y-Juca-Pirama, o índio aquele que
deve morrer, vários artigos na Constituição
de 1988, centenas de terras demarcadas,
inúmeros jeitos das comunidades/aldeias e
povos se unirem, articularem, organizarem
para lutar pelos seus direitos.
Porantim na luta. Em forma de memória, arma e remo fomos criando nossas
ferramentas. Não hesitamos em denunciar
profeticamente as violações dos direitos
históricos, sagrados, consuetudinários e
constitucionais dos primeiros habitantes
deste continente. Buscamos criativamente
espaços e formas de visibilidade à dura re-
alidade enfrentada pelos povos indígenas
– Semana dos Povos Indígenas, Campanha
da Fraternidade, Assembléias Indígenas,
Cursos de Formação e Informação, Encontros desde o nível local até continental.
Alimentamos nossa utopia com a Missa
da Terra Sem Males, com inúmeros cantos
e encantos.
Lutamos por um Brasil para todos, a
partir dos mais espoliados, discriminados
e oprimidos: os povos indígenas. E isso
exige um compromisso radical com a
transformação social, política, econômica
e religiosa. Pela ditadura militar fomos
acusados de subversivos e comunistas;
pelos conservadores, de agitadores e
radicais; pelos negociadores, de instransigentes e isolacionistas. Porém não nos
deixamos intimidar em nossa missão, de
santos e pecadores. Não deixamos de
acreditar e nos engajar na construção
de um outro Brasil e mundo possíveis e
necessários, porém jamais sem a participação e contribuição importante dos
povos indígenas.
Sentimos que amadurecemos ao fazer
caminho. Os cabelos brancos, como entre
Limpeza pós-Bush
os povos indígenas, não significam acomodação, mas sabedoria para enfrentar com
ousadia e radicalidade a luta pela liberdade
e pela vida.
Ao olharmos para o caminho andado
nesses 35 anos, de uma coisa temos certeza: amamos profundamente essa causa,
procuramos, a partir de nossa fé, ser
coerentes em nosso compromisso e testemunho. Isso significou muitas vezes remar
contra a correnteza, quebrar correntes,
mostrar os dentes, mas principalmente
sorrir, construir felicidade, amadurecer
entre a luta e o sonho.
Não poderia deixar de dedicar essa
memória dos 35 anos aos povos indígenas
que tanto nos ensinaram e inspiraram, aos
que deram a vida pela causa, indígenas e
missionários, aos que com tanta abnegação e generosidade dão seu testemunho
radical e solidário junto aos povos indígenas. Temos uma multidão de pessoas
queridas que poderíamos lembrar com
muita gratidão, mas que a história e nossa
memória haverão de lembrar sempre.
Egon Heck
Cimi/MS
MARIOSAN
O ambiente ficou carregado depois
que o presidente dos Estados Unidos,
George W. Bush, visitou a pirâmide Iximche, na Guatemala, em 14 de março.
Para limpar espiritualmente o lugar, dois
sacerdotes maya fizeram uma purificação
com velas e um tambor cerimonial.
“Não, senhor Bush, o senhor não
pode pisar e degradar a memória de
nossos ancestrais”, disse o líder maya
Rodolfo Pocop em uma entrevista coletiva. Os Estados Unidos apoiaram o
governo militar durante a guerra civil
entre 1960 e 1996, quando vilarejos dos
maya foram destruídos e quase 250 mil
pessoas morreram.
Heróis de Lula:
usineiros
Lula atendeu os interesses dos usineiros do Brasil ao fechar acordos com
George Bush para aumentar a produção
de biodiesel e álcool etanol. Mas, não era
suficiente. O presidente quis demonstrar
todo seu apreço pelos usineiros de cana
que, segundo o próprio Lula, há dez anos,
eram “bandidos do agronegócio”. Disse
Lula: “Estão virando heróis nacionais”.
O presidente também lembrou que
eles são heróis, por que há políticas no
governo que vão garantir o suprimento de
álcool ao mercado internacional. Só não
lembrou que essa produção é feita à base
da morte de centenas de bóias-frias, que
trabalham em condições semi-escravas
nos canaviais por todo o país.
Heróis 2: ministros
Outros que entram na categoria de
“heróis de Lula” são os ministros. Ao
dar posse a novos integrantes de seu
ministério, o presidente disse que eles
eram “heróis” por aceitarem receber tão
pouco: em torno de R$ 7 e 8 mil reais.
“Alguns pagam para serem ministros”,
disse Lula.
Mas o heroísmo vai diminuir. Foi
aprovado um aumento no salário dos
ministros, que será de quase R$ 11 mil.
Será que ainda é pouco?
ISSN 0102-0625
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Abril-2007
Na língua da nação indígena
Sateré-Mawé, PORANTIM
significa remo, arma, memória.
Priscila D. Carvalho
Editora
RP 4604/02 DF
Editoração eletrônica:
Licurgo S. Botelho
Desenvolvimento
Foto: Flávio Cannalonga
Conjuntura
Paulo Maldos
Assessor Político do Cimi
O
presidente Luis Inácio Lula da
Silva iniciou seu segundo mandato
colocando ênfase no esforço pelo
desenvolvimento econômico. Esta
seria a marca de seu atual governo. Para
tanto, deu ordens para que ministros, particularmente a da Casa Civil, Dilma Roussef, e o
da Fazenda, Guido Mantega, se dedicassem à
concretização de um pacote desenvolvimentista, que veio a ser chamado de PAC – Plano
de Aceleração do Crescimento.
Depois de anunciar tal Plano, ainda em
janeiro de 2007, Lula se dedicou a montar
seu Ministério. Nele, coube uma boa fatia ao
PMDB, partido tradicionalmente vinculado
às oligarquias regionais e correia de transmissão de grandes interesses econômicos,
como empreiteiras e outras empresas de
grande porte.
O perfil do Ministério, tal como ficou
definido, tornou-se uma espécie de contraface política da decisão de cunho econômico
consubstanciada no PAC e no discurso
desenvolvimentista.
A questão central que se coloca aqui é:
qual desenvolvimento se busca? Para quem?
Com quais objetivos? Com quais métodos?
Com participação de quem? Com benefícios
para quem?
O PAC já nasceu revelando a radicalidade
da sua matriz ideológica: sem nenhuma participação da área social do governo federal,
ou mesmo da área ambiental, o que seria
óbvio numa visão de desenvolvimento com
responsabilidade social e ambiental. Não
teve também participação do Ministério
do Desenvolvimento Agrário – que seria
fundamental numa perspectiva da Reforma
Agrária como alavanca para a inclusão de
milhões de famílias do campo ao processo
de desenvolvimento do país. Por último,
mas não menos importante, o PAC não teve
ouvidos para os impactos de seus projetos
nos territórios indígenas e quilombolas
nem para os “efeitos colaterais” na vida das
comunidades que neles vivem. Ou seja, o PAC
obedece a um modelo de desenvolvimento
de corte totalmente econômico, refletindo
direta e exclusivamente os interesses do
grande poder econômico.
As análises do PAC, feitas por especialistas, vão desde enaltecer sua importância e
futuras vantagens, passam por valorizar tal
Fotos: Arquivo Cimi
Explorar ou
emancipar?
plano como uma carta de boas intenções
bem arrumada, mas ainda sem substância,
e vão até negar qualquer importância,
qualificando-o como um ajuntamento de
projetos das iniciativas privada e estatal já
existentes.
A crítica necessária
Com que postura devemos construir
nossa análise crítica desta iniciativa do
governo Lula?
Em primeiro lugar, comprometidos com
os setores populares e os povos indígenas.
Em segundo lugar, com uma visão de conjunto do PAC e buscando compreender sua
essência econômica.
Economia é política concentrada, segundo uma máxima marxista. Ou seja,
o processo econômico desenvolvido em
eventual PAC revela toda uma visão política
sobre a sociedade brasileira. O PAC, como
foi apresentado, revela um capitalismo concentrador e dependente, de nenhum modo
se propõe democratizante e, muito menos,
transformador. É um plano que objetiva
reproduzir a sociedade brasileira em suas
desigualdades sociais, projetando no futuro
o mesmo país injusto e excludente, que
conhecemos há mais de 500 anos.
Neste “plano estratégico” estão reservados 11 bilhões de reais para a transposição
do rio São Francisco, projeto repudiado
pelos trabalhadores rurais, ribeirinhos,
quilombolas e povos indígenas a serem
atingidos e com os quais não houve um
debate sobre seus impactos negativos e
sobre alternativas social e ambientalmente
sustentáveis. O governo Lula se comprometeu a debater com a sociedade nacional
e com aqueles diretamente afetados pela
obra, mas isto foi esquecido, sendo mantido
o projeto original, de cunho autoritário,
elitista e tecnocrático.
Neste “plano estratégico” estão também reservados 275 bilhões de reais para
obras de energia, vinculadas a petróleo e
hidrelétricas. Entre estas, as usinas de Belo
Monte, no rio Xingu, no Pará; Santo Antônio
e Jirau, no rio Madeira, em Rondônia. Prazos previstos para o licenciamento destas
usinas já foram revistos diversas vezes, em
função de falhas nos Estudos de Impacto
Ambiental (EIA) e questionamentos feitos
pelo Ministério Público. Tais hidrelétricas
atingem diretamente comunidades tradicionais, ribeirinhos e povos indígenas, mas
estes não são considerados pelos projetos,
mas vistos apenas como “entraves”, como
disse o presidente Lula para representantes
do agronegócio.
Fora da órbita direta do PAC, mas como
parte da mesma concepção capitalista e
mercantil de desenvolvimento, temos o
empenho do atual governo em aprovar um
projeto de lei sobre mineração em terras
indígenas, separado do Estatuto dos Povos
Indígenas. Tal empenho revela, uma vez
mais, o interesse do governo federal e das
grandes empresas de mineração em saquear
as riquezas existentes nas terras indígenas
e não em respeitar os direitos históricos
destes povos sobre seu patrimônio.
O Abril Indígena
vai discutir o
desenvolvimento
que interessa
aos povos.
Nas imagens,
grandes obras
que, em nome
do progresso,
afetam terras
indígenas e
devassam a
natureza
Modelo alternativo de desenvolvimento
Qual seria o modelo de desenvolvimento que poderíamos propor e defender,
a partir do compromisso com os setores
populares e com os povos indígenas?
No fundamental, o modelo teria que;
1.considerar as experiências históricas e as propostas dos setores populares
e dos povos indígenas, no que diz respeito à melhoria de suas condições de
existência;
2.partir da premissa básica do respeito
integral aos direitos dos povos indígenas,
quilombolas, comunidades tradicionais
e ribeirinhos aos seus territórios, ao seu
patrimônio e a suas formas de produção e de
relacionamento com a natureza;
3.pressupor a participação organizada
destes setores na própria concepção do
modelo de desenvolvimento, na sua implementação, acompanhamento, avaliação
sistemática, possíveis mudanças e eventual
redirecionamento e
4.contemplar, em sua matriz ideológica,
a junção do saber tradicional dos setores
populares e dos povos indígenas com o saber
científico, na busca por um desenvolvimento
centrado na integralidade das pessoas, das comunidades e da natureza, projetando um país
politicamente democrático, economicamente
justo, socialmente eqüitativo e solidário,
culturalmente plural e ambientalmente sustentável.
Aos setores populares e aos povos indígenas interessa um modelo de desenvolvimento que signifique sua real emancipação
econômica, social e política, baseada em seu
protagonismo e numa concepção radicalmente
democrática de sociedade e de controle sobre
o Estado e suas instituições.
Abril-2007
Março-2007
A realidade que
ninguém quer ver
Fotos: Kariny Teixeira e Wellington Antenor
Ilha do Bananal
Avanço do agronegócio, uso irregular dos rios e invasores
ameaçam as terras indígenas e a biodiversidade da região
Cimi- Regional GO/TO
ontam os Javaé e os Karajá que os aruanãs
eram peixes que viviam nos lagos
profundos. Um dia Hariwa, um
jovem Aruanã, nadou mais distante
e encontrou um raio de luz. Koboi
dizia que todos deviam evitar este raio
porque ele levava ao sofrimento, ao perigo
e à morte. Mas, naquele dia Hariwa sonhou
com estranhas regiões e ao acordar retornou
ao raio de luz. Ao chegar na superfície,
ficou fascinado com o ambiente cheio de
luz e calor, com árvores frutíferas, lagos,
pássaros...
O jovem nadou por um riacho e chegou
ao rio. Lá, encontrou uma praia. Depois
Hariwa voltou para água virando novamente
aruanã. Ao ouvir o relato da viagem do jovem, Koboi ficou indignado e lembrou que
Kynyxiwe iria lhes retirar a imortalidade e
que iriam conhecer a morte, o sofrimento e
o perigo. Mesmo assim, um grupo de aruanãs
resolveu subir à superfície, transformandose em gente. Transformaram-se em Javaé e
Karajá e passaram a viver naquela linda terra,
chamada hoje de Ilha do Bananal.
Banhada pelos rios Araguaia e Javaé, a
maior ilha fluvial do mundo tem cerca de
2 milhões de hectares e fica no Tocantins,
fazendo divisa com o Pará, Mato Grosso e
Goiás. É habitada pelos povos Karajá, Javaé,
Avá-Canoeiro e por um povo sem contato
chamado de ‘Cara Preta’.
Por muito tempo, foram preservadas
na Ilha, localizada na faixa de transição
entre a floresta amazônica e o cerrado, as
riquezas naturais e a expressiva cultura dos
Javaé e Karajá, com seus rituais de Aruanã
e Hetohokã, e suas elaboradas pinturas
corporais. No entanto, a biodiversidade da
Ilha e a integridade física e cultural de seus
habitantes tradicionais estão ameaçados
pela devastadora expansão do agronegócio
e pela presença de grandes fazendeiros
que ainda permanecem dentro do Parque
Indígena do Araguaia.
C
Agronegócio devasta
Abril-2007
Ao norte da Ilha, na margem esquerda
do rio Javaé, estão a terra indígena Ynawebohonã (Boto Velho) e o Parque Nacional do
Araguaia (área de preservação ambiental). Na
margem direita, a Fazenda Dois Rios que,
após investimento de 32 milhões de dólares,
Ilha do Bananal está invadida por criadores de gado e ameaçada por grandes plantações.
Canalização do rio Javaé para irrigação afeta terra indígena e não foi aprovada pelo Ibama
colhe sua primeira safra de arroz, plantada
em 7.600 hectares. A previsão é que a
plantação atinja 20.000 ha em quatro anos.
Este é um dos empreendimentos que
se consolidou na região nos últimos anos.
O agronegócio, atraído pelos incentivos
fiscais, localização estratégica e qualidade
das terras, invadiu o estado do Tocantins,
expulsando posseiros e pequenos agricultores de suas propriedades. A monocultura da
soja e do arroz impõe suas regras e atropela
leis que, ao contrário dela, estão a serviço
de todos. Ou deveriam estar.
Por toda a costa da Ilha, encontram-se
projetos de monocultura que usam indiscriminadamente e, muitas vezes, irregularmente as águas dos rios Javaé e Formoso para
irrigar sua produção.
A Fazenda Dois Rios, que tem investidores brasileiros e norte-americanos, é um projeto totalmente irregular. Seu licenciamento
é de competência do Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente (Ibama), pois impacta
uma unidade de conservação ambiental e
duas terras indígenas. Além dos Javaé em
Ynawebohonã, a plantação também afetará
os Krahô-Kanela. Porém o Ibama recusou-se
a emitir o licenciamento, delegando-o para
o Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins), órgão que foi acusado, em março, de
práticas ilícitas, o que levou a exoneração
do seu presidente.
O projeto assusta pela grandiosidade de
sua abrangência e de seus impactos. A Fazenda
Dois Rios, como o nome diz, se loca­liza na
confluência dos rios Formoso e Javaé. Seus
Gestão Compartilhada
A relação entre o Ibama e a comunidade indígena na Ilha do Bananal sempre
teve um ponto de tensão: a sobreposição de unidade de conservação ambiental
em terra indígena. Os Javaé constantemente denunciavam que eram proibidos pelo
órgão ambiental de exercerem suas atividades culturais, como a pesca, a caça e a
coleta de matérias primas.
Em 2006, a Terra Ynawebohonã foi homologada, mas o dilema não terminou,
pois o Decreto de homologação estabeleceu a ‘gestão compartilhada da área’. Na
prática, ainda não ficou claro como isto funciona.
Assim, permanece o temor dos Javaé de terem cerceados seu direito de usufruto
do território. Ao mesmo tempo, questionam a omissão deste órgão diante de projetos
hidroagrícolas que afetam as terras indígenas e o Parque Nacional do Araguaia.
A Funai também se omite, assumindo um papel de cobrar do Ibama atitudes
concretas referentes à fiscalização do território indígena, como se este não fosse
seu papel.
proprietários já construíram dois grandes
canais de irrigação interligando os rios acima
mencionados – o que, certamente, alterará
todo o ecossistema local, causando impactos
ambientais irreversíveis, além dos impactos
culturais sobre as comunidades indígenas.
Em agosto de 2006, os Javaé denunciaram a situação ao Ministério Público
Federal e solicitaram que se investigassem os
licenciamentos dos projetos hidroagrícolas
no entorno da Ilha do Bananal, entre estes,
o da Fazenda Dois Rios. No documento, os
indígenas ressaltam a importância dos rios
Javaé e Araguaia e a inconstitucionalidade
destes projetos, que afetam diretamente sua
organização sócio-cultural e econômica: “A
Constituição garante que o povo indígena
viva de acordo com seus costumes e tradições; e, faz parte da tradição do povo Javaé
a relação direta com o rio, que é a fonte da
nossa alimentação e da nossa história mítica
(...) Como estamos num processo de buscar a
viabilidade de projetos econômicos sustentáveis para nosso povo, precisamos garantir
a integridade do rio e da terra indígena.” O
rio Javaé, mesmo sendo central para a vida
do povo, ficou de fora da área demarcada.
No rastro de destruição do agronegócio,
vem o discurso da necessidade de investimentos em infra-estrutura para o transporte
da produção. Assim, reacende a discussão
em torno da Hidrovia Araguaia-Tocantins, da
construção de estradas cortando a terra indígena, da ampliação da Ferrovia Norte-Sul...
Os indígenas têm consciência dessa
amplitude e denunciam: “Estes projetos
pressionam a construção e pavimentação
de estradas para transporte dos grãos, o
que vem ameaçar nossa terra, pois já existe
campanha no estado do Mato Grosso pela
construção da Transaraguaia, ligando este
estado ao Tocantins, cortando a Ilha do
Bananal; o que está causando conflito entre
indígenas, pois uns são convencidos a aceitar
e outros, não.”
Diante de tantas irregularidades, o Ministério Público Federal do Tocantins entrará,
em abril, com uma Ação Civil Pública solicitando que o Ibama assuma o licenciamento e
que haja audiências com as comunidades da
região. Também solicitará que o Congresso
Nacional seja ouvido antes da aprovação
dos projetos de aproveitamento de recurso
hídrico (irrigação), pois há terras indígenas
afetadas.
R
Demarcado há 30 anos,
Parque Indígena do
Araguaia continua invadido
isso com o conhecimento da Funai. Este
grupo chegou a apreender um arsenal de
armas em uma das fazendas. A partir de
então, a Funai, junto com a Polícia Federal,
orientou os indígenas a esperarem a justiça
concluir a desocupação, pois estariam
correndo risco.
As lideranças, no entanto, não acreditam
na disposição da Funai: “Nós queríamos tirar
os fazendeiros... tinha muito armamento
pesado lá dentro... a Funai disse que tomava
conta, que não precisava de índio tirar fazendeiro (...) Nós queremos a terra. Já fizemos
várias reuniões sobre os fazendeiros... o
procurador garantiu que ninguém tira nossa
terra, mas os fazendeiros estão investindo
na estrutura... A Funai não fala nada, só diz
que a justiça é demorada”
Criação de gado aumenta no Parque, enquanto
processo de desintrusão está parado
N
a parte sul da Ilha do Bananal, vivem os Javaé e os Karajá, no Parque
Indígena do Araguaia, demarcado
na década de 1970. Entretanto, até
hoje permanecem lá 211 fazendeiros invasores com seus rebanhos de gado bovino. O
processo de desocupação do Parque já dura
mais de 10 anos. Há dois anos, um processo
que contesta a desocupação aguarda julgamento no TRF1.
A invasão do Parque por não indígenas
começou na década de 1950. As extensas planícies com pastagem nativa atraíram os criadores
de gado. A intensa ocupação levou a criação
de dois povoados dentro das terras indígenas:
Porto do Piauí e Barreira do Pequi.
Segundo relato dos indígenas, a Funai
facilitou esta ocupação, extinguindo pequenas aldeias e concentrando os indígenas no
posto indígena de Canuanã (aldeia javaé),
sob o argumento de que seria preciso concentrar a população indígena para facilitar
a assistência. O órgão passou, então, a
arrendar a terra indígena, alegando que os
recursos provenientes do arrendamento
seriam revertidos em benefícios para os
povos da Ilha do Bananal.
A Funai administrou os recursos do
arrendamento por mais de duas décadas (até
o final dos anos 1980), e, sem pensar numa
política de sustentabilidade viável, manteve
uma assistência paternalista, estimulando a
prática do arrendamento como única alternativa econômica para os indígenas.
“Acostumaram o índio a dar tudo nas
mãos. Hoje a Funai atua na área só olhando;
não tem projeto de sustentação familiar nas
comunidades indígenas. Então, qual é o papel da Funai dentro da terra indígena?”, disse
uma liderança da Aldeia Barra Verde.
Atualmente, a população não indígena
da Ilha do Bananal chega a 4.500 pessoas,
Para os Javaé
e Karajá,
os parentes
que ainda
vivem nos
rios ajudam
a resolver os
problemas
enfrentados
na terra
A situação atual
principalmente em áreas arrendadas. Segundo dados da Agência de Defesa Agropecuária
do Tocantins, o número de cabeças de gado
na Ilha dobrou no último ano: em 2005 eram
45 mil cabeças e em 2006, 95 mil (50 mil
dos fazendeiros e 45 mil cabeças nos retiros
arrendados).
Processo de desocupação
Na década de 1990, iniciaram-se as
discussões para retirada dos não indígenas
e seu gado da Ilha do Bananal. Foi instituído
um Grupo de Trabalho Interistitucional – GTI,
com a participação de diversas entidades e
órgãos do governo, para montar um plano
de desocupação do Parque Indígena do
Araguaia, que reassentasse os invasores e
indenizasse suas benfeitorias.
A partir daí, foram cinco anos de lutas,
para retirar os invasores de forma pacífica e
gradativa, mas, fazendeiros e políticos com
interesses na terra indígena apresentaram
forte resistência. Ao longo do processo,
houve muitos impasses, pois o Instituto de
Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a
Funai não cumpriam, em tempo hábil, suas
obrigações: ao órgão indigenista cabia a desapropriação e indenização das benfeitorias
de boa-fé e ao Incra o reassentamento das
famílias carentes.
Em dezembro de 1995, a Funai iniciou
o pagamento das indenizações. Entretanto,
211 fazendeiros permanecem em território
indígena, utilizando-se inclusive de influências junto a parlamentares em Brasília para
retardar o processo de desocupação. Desde
2004, estes fazendeiros entraram na justiça
alegando que a Funai cometera irregularidades no pagamento de indenizações durante
a desocupação do Parque.
Diante da paralisia da Justiça, em
1998, os caciques e lideranças Javaé e Karajá
decidiram formar um grupo de guerreiros
para retomar a área ainda invadida. Fizeram
Enquanto o processo está parado na
justiça os fazendeiros continuam a degradação da área com formação de pastagens
e retirada de madeira. A morosidade da
Justiça aliada à pressão dos fazendeiros e à
ausência de fiscalização da área agravaram
este problema. Pois, além de aumentar o
número de fazendeiros na Ilha, cresceu a
prática do arrendamento. Apesar de recente
portaria proibindo esta atividade, não há o
comprometimento da Funai em fiscalizar
e coibir esta prática, pois isso implicaria
em apoiar e viabilizar novas formas de
sustentabilidade econômica para o povo.
Hoje, este é um dos maiores desafios para
as comunidades indígenas.
A Funai (Regional Gurupi) alega estar
tomando as medidas cabíveis para resolver
a questão da desocupação. Informa que
esteve em Brasília, em janeiro, reunida com
a 6ª Câmara do MPF e a Advocacia Geral da
União para discutir este assunto e apresentar
a documentação necessária para a retirada
dos fazendeiros. Mas, até o momento nada
caminhou.
A comunidade indígena expressa muita
preocupação e desejo de ver os não-indígenas fora da Ilha do Bananal. A demora deste
caso faz aflorar sentimentos de revolta e
indignação nos indígenas, que temem ver
reduzido seu território. A tensão se torna
crescente na medida em que o tempo passa
e a comunidade se vê ‘acuada’ por interesses
alheios aos seus direitos e à inércia dos
órgãos competentes. (K. T. e A. C. R.)
Abril-2007
Os casos João
Hélio e Galdino e a
barbárie midiática
Fotos: Arquivo Cimi
Homenagem - Galdino
Uma reflexão sobre o papel dos meios de comunicação
Jorge Vieira
Missionário do CIMI-NE e Jornalista
U
m dos primeiros ensinamentos que o
estudante de comumicação aprende
na faculdade é sobre o papel que
a mídia exerce, sua importância na
formação da sociedade, o direito da população em ter uma informação de qualidade,
independente de raça, credo religioso e situação econômica e o respeito aos direitos
fundamentais da pessoa.
Em fevereiro, a população brasileira ficou
chocada e atônita com a veiculação do bárbaro
assassinato do menino João Hélio, de 6 anos,
praticado por cinco jovens, dentre eles um
menor de 18 anos.
Este fato merece uma profunda análise, sem
a agitação emocional própria de uma situação
como essa. Até porque, basta dar uma olhada
para trás, que se percebe que outros fatos
recentes tiveram o mesmo enfoque da mídia
e reação semelhante da maioria da população.
Por exemplo, o assassinato dos pais de Suzane
von Richthofen, praticado por ela e os irmãos
Cravinho e, também, do casal de jovens namorados que foram mortos, em São Paulo. Entre os
culpados deste último caso, também estava um
menor, denominado de Champinha.
Dentre os noticiários desta natureza,
destaca-se o crime hediondo praticado contra
o líder indígena Galdino Pataxó Hã-Hã-Hãe,
44 anos, da área Caramuru/Paraguassu, sul
da Bahia, que se encontrava em Brasília,
tratando da demarcação de sua terra. O fato
ocorreu dois dias depois das comemorações
do Dia do Índio, em abril de 1997. Chegou
tarde à pensão onde estava hospedado e
não o deixaram entrar. Cansado, dormiu num
banco de uma parada de ônibus. Às 5 horas
da manhã, acordou ardendo numa grande
labareda de fogo. Um grupo de cinco jovens
de classe média alta, entre eles um menor de
idade, jogarem combustível em Galdino e, em
seguida, atearam fogo.
Os criminosos foram presos e confessaram
o ato monstruoso. Aí a estupefação: os jovens
disseram que “queriam apenas se divertir” e
“pensavam tratar-se de um mendigo, não de
um índio”, o homem a quem incendiaram.
Crimes iguais –
tratamento desigual
Abril-2007
Do ponto de vista da comunicação, podese levantar várias questões para reflexão.
Dentre elas, o diferente tratamento dado pela
imprensa aos casos do menino João Hélio e o
do índio Galdino Pataxó, que é o objeto central
dessa reflexão. Chama-nos a atenção o enfoque
dado pela mídia, considerando algumas semelhanças no que se refere à barbárie dos fatos,
de como foram praticados pelos respectivos
atores e a fragilidade das vítimas. E, como
conseqüência, o desdobramento político dado
pelos meios de comunicação e os partidários
de plantão.
O que há de semelhança? Primeiro, a
forma bárbara como as vítimas foram mortas.
Por mais frio que seja um ser humano, não conseguirá ficar indiferente aos acontecimentos. O
menino, arrastado ao longo de mais de 7 km e
o índio queimado vivo, uma tocha humana! Os
dois, indefesos: um preso ao cinto de segurança do carro e o outro, dormindo num ponto de
ônibus. Nas duas situações, o sofrimento das
vítimas não sensibilizou seus algozes!
Esta realidade desperta, antes de qualquer análise jornalística, a necessidade
de identificar a situação social, política,
econômica e étnica das duas vítimas e de
seus respectivos assassinos. De antemão é
importante deixar claro que, os dois casos,
assim como qualquer outro ato violento,
merecem veemente repúdio.
Entretanto, por ironia histórica, as vítimas
eram de classes sociais e origem étnica diferentes: João Hélio, de classe média e cor branca;
Galdino, pobre e indígena. Politicamente, o
primeiro inofensivo ao sistema, enquanto o
segundo se encontrava lutando pela terra e
tinha como inimigos os produtores de cacau
e o senador baiano, Antônio Carlos Magalhães,
invasores de seu território tradicional.
As diferenças também acontecem com os
atores dos referidos crimes. Os de João Hélio
são pobres, moradores de favela e quase todos
negros. Os de Galdino são brancos, filhos de
pais de classe média-alta, inclusive membros
do poder judiciário, educados nos melhores
colégios da capital federal e moradores de
áreas com bem-estar social avançado. Um
detalhe relevante: nos dois grupos um dos
integrantes era menor de 18 anos!
Responsabilidade da
imprensa
Aí se encontram as diferenças na cobertura
jornalística: o caso João Hélio, como é do
conhecimento de todos, tomou repercussão
e conseguiu provocar uma comoção nacional.
Em cada esquina o tema estava na boca das
pessoas. Enquanto o caso Galdino, pelo contrário, quase não era noticiado pela grande
mídia. Se não fossem as entidades indigenistas,
o caso não passaria de uma nota de rodapé nos
jornais locais.
Ora, pelo que se observa nas matérias,
colunas e comentários da imprensa nacional,
ao contrário do caso João Hélio, em nenhum
momento o caso Galdino suscitou a discussão
de pena de morte, diminuição da maioridade
penal e coisas semelhantes. Será que a atrocidade de um é diferente do outro caso? E o
menor de classe alta não cometeu a mesma
barbárie? E porque a mídia não levantou o
debate de mudança da legislação? O exemplo
Os Pataxó
Hã-Hã-Hãe
ainda lamentam
o assassinato
de Galdino, que
morreu lutando
por sua terra
Em 1997,
protesto pela
morte de
Galdino
mais completo dessa comoção nacional foi o
comentário apresentado pela Miriam Leitão,
na Rede Globo, defendendo a mudança na
legislação quanto à diminuição da idade penal
e insinuando a pena de morte.
O porquê da ação militante dos meios de
comunicação no caso João Hélio e omissão no
caso Galdino é algo que suscita uma análise,
quanto ao papel dos meios de comunicação
como formadores de opinião. Qual sociedade
está por trás da linguagem dos comunicadores?
Não seria o momento de estes fazerem uma
autocrítica quanto ao conteúdo veiculado, a
exemplo do individualismo exacerbado, personalismo narcisista, concentração de renda nas
mãos de uns poucos, exploração dos trabalhadores, promoção do capital privado, destruição
da escola e saúde públicas, venda da riqueza
nacional para o capital internacional? Por quê
escamoteiam a realidade social, política e econômica geradora das desigualdades sociais? Por
quê tratam com desdém os pequenos, pobres,
a mulher, o negro e o índio e com comoção aos
ricos? O que está em jogo nesse posicionamento
parcial e equivocado da mídia?
Pode-se apontar que a barbárie dos
assassinos é promovida 24 horas pela barbárie midiática, considerando que é negado
à maioria da população o acesso aos bens
necessários a uma vida digna e à cidadania.
Por outro lado, nos condomínios fechados
formam-se concepções individualistas e de
segregação social, enquanto que as pessoas
não são despertadas para pensar num projeto
de sociedade includente e solidário.
Fotos: Arquivo Cimi
Galdino - dez anos depois: a violência
contra os povos indígenas persiste no Brasil
Os Pataxó Hã-Hã-Hãe
continuam lutando para
recuperar suas terras,
enquanto os assassinos de
Galdino já estão soltos
Paulo Maldos
Assessor Político do Cimi
N
a madrugada do dia 20 de abril de
1997, Galdino Jesus dos Santos, 44
anos, do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, da
Bahia, dormia num ponto de ônibus
de Brasília. Tinha ido à capital do país com uma
delegação de oito lideranças de seu povo buscar
apoio para a luta que travam para recuperarem
suas terras tradicionais, invadidas por fazendeiros. A terra dos Pataxó Hã-Hã-Hãe, denominada
Caramuru-Catarina Paraguaçu, possui 53.400
hectares e foi demarcada em 1934.
Naqueles dias, uma marcha nacional do
MST havia chegado à cidade. Galdino participou da recepção aos sem-terra e de reuniões
destes com autoridades, inclusive com o
presidente da República da época, Fernando
Henrique Cardoso, para colocar também as
reivindicações indígenas. Galdino dormia no
ponto de ônibus porque chegou tarde das
reuniões na pensão onde estava hospedado.
A dona da pensão se recusou a abrir a porta
para ele.
Eram cinco horas da manhã quando
Galdino acorda completamente em chamas.
Socorrido por jovens que voltavam de uma
festa, foi levado para o hospital. Tinha queimaduras em noventa e cinco por cento do
corpo. Entrou logo em coma e faleceu às duas
horas da manhã do dia 21 de abril de 1997.
Antes de ficar inconsciente, perguntava para
os médicos que o atendiam: “Por que fizeram
isso comigo?”
Essa pergunta, até hoje é difícil de ser
respondida. Essa pergunta sacudiu a sociedade
brasileira na época, chocada com o horror da
crueldade que ciclicamente nos atinge, às víti-
mas em primeiro lugar e, em seguida, a todos
nós, em nossa auto-imagem de humanidade
e civilização.
Os autores da barbárie foram cinco jovens
de classe média-alta brasiliense, um deles
menor de idade. Numa noite vazia, resolveram
atear fogo numa pessoa que dormia indefesa
para, segundo declarou o menor, se divertirem.
Cometido o crime, fugiram, mas um outro
jovem que passava por ali, um chaveiro, anotou
o número da chapa do carro dos assassinos e
o entregou à polícia.
Depois da brutalidade, os criminosos
foram para casa dormir, como se nada tivessem
feito. Foram identificados e presos. Diante da
comoção nacional ainda quiseram se defender,
com o seguinte argumento: “Não sabíamos
que era um índio, pensávamos que era só um
mendigo.” Por que fizeram isso?
Podemos olhar para este crime dez anos
depois, e nos interrogar novamente: “Por
que fizeram isso com ele?” Continua difícil
responder a pergunta - e os crimes bárbaros
não cessaram.
Foram inúmeros os mendigos assassinados
com uso de fogo em praças e ruas das nossas
cidades nos últimos dez anos. Suspeitos foram
vários: policiais, seguranças, comerciantes,
jovens... Identificados e punidos? Nem um
sequer nos vem à memória.
Desde 1984, temos notícias de moradores
de rua agredidos e assassinados por grupos
que atuam em todo o Brasil. Entre os dias 19
e 22 de agosto de 2004, sete moradores de
rua de São Paulo foram assassinados enquanto
dormiam. Os principais suspeitos foram policiais que trabalhavam fornecendo segurança
para comerciantes do centro da cidade. Em
2006, moradores de rua de Belo Horizonte
foram agredidos com fogo. No dia 21 de
março de 2007, em Garanhuns, no agreste
pernambucano, um adolescente ateou fogo em
dois moradores de rua, enquanto dormiam na
varanda de uma casa abandonada: um jovem
de 16 anos e um adulto de 38 anos foram
internados com ferimentos graves.
O caso Galdino e o drama
indígena
Os assassinos de Galdino encontram-se
em liberdade condicional desde o final de
2004. O menor não chegou a ser internado.
Os maiores Tomás Oliveira de Almeida, Eron
Chaves Oliveira, Max Rogério Alves e Antonio
Novely Cardoso trabalharam na prisão e
conseguiram abreviar a pena. Trabalharam e
estudaram fora do presídio, mesmo estando
em regime fechado, privilégio concedido
pela Justiça, embora totalmente ilegal. Muitas
vezes foram vistos nas noites de Brasília,
bebendo com amigos, quando deveriam estar
encarcerados.
Desde aquele abril de 1997, foram assassinados 257 indígenas em todo o país, segundo
dados do Cimi. Entre estes, temos crianças,
jovens, adultos e idosos. Temos lideranças
assassinadas em lutas pelo território. Temos
indígenas assassinados por outros indígenas.
Temos idosos assassinados por seguranças
de fazendas. Temos jovens assassinados por
jagunços a mando de fazendeiros. Temos
adultos assassinados em brigas na cidade.
Temos crianças assassinadas por crueldade.
Temos mulheres violentadas e assassinadas
por brancos.
Este número representa um grande e
secular drama: o dos povos indígenas no
Brasil, composto por muito sofrimento, vivido
por muitos povos e por muitas comunidades
indígenas.
Muitas dessas mortes foram parecidas com
a de Galdino. Numa cidade do Rio Grande do
Sul, assassinos, encobertos pela noite, causaram a morte violenta de um idoso indígena. Na
área rural do Mato Grosso do Sul, na beira de
uma estrada, um tiro covarde dado à distância,
por seguranças de fazenda, atingiu um líder
indígena, sem nenhuma condição de defesa.
Todos esses crimes seguem rigorosamente
impunes.
Depois de dez anos, a situação da terra
Caramuru-Catarina Paraguaçu, pela qual lutava Galdino, encontra-se parada no Supremo
Tribunal Federal. Há 25 anos, os Pataxó HãHã-Hãe aguardam o julgamento de uma ação
de nulidade de título dos fazendeiros que
invadiram suas terras com a conivência do
Governo da Bahia.
Dona
Minervina,
mãe de
Galdino,
perto de onde
o filho foi
enterrado.
Desde aquele
abril de
1997, foram
assassinados
257 indígenas
no Brasil
Povos Indígenas e Povo
da Rua
A morte do índio Galdino enlaça dois
dramas: o dos povos indígenas e o do povo
da rua. Esses povos possuem em comum sua
radical humanidade, sua característica frágil,
excluída de toda utilidade para um sistema
onde apenas a mercadoria e o “ser mercadoria” contam. Como não cabem no sistema do
Capital, este tenta eliminá-los, quer seja pelos
“seguranças” urbanos, quer seja pelos “seguranças” e jagunços rurais. Quer seja, também,
pelo preconceito, ódio e desprezo, enraizados
pelo mesmo sistema em parte da população
brasileira e que se manifestam em nosso cotidiano, em múltiplas formas de violência.
O desafio colocado para todos nós é
compreender o que acontece de tão grave
em nossa sociedade, para que seres humanos
sejam submetidos sistematicamente à violência
e à morte com características de barbárie.
Torna-se urgente mudar o destino de
nossa sociedade, rompendo com um sistema
econômico e com uma ideologia que sacrificam
aqueles que não cabem na lógica do Capital.
Torna-se necessário construir uma outra
sociedade, onde todos possamos viver integralmente, livremente, nossa humanidade
comum.
*Este artigo foi originalmente publicado na
revista Fórum na edição de abril.
Abril-2007
Ibama aprova licença para o início das obras, mas
ribeirinhos, quilombolas e indígenas atingidos
continuam lutando contra a transposição
Priscila D. Carvalho
A
Repórter
frase “Não à transposição, conviver
com o semi-árido é a solução” estava escrita em uma das faixas levadas
pelos manifestantes do acampamento “Pela vida do Rio São Francisco e
do Nordeste, contra a transposição”
nas caminhadas até as audiências, reuniões e
manifestações, realizadas em órgãos públicos
na Esplanada dos Ministérios, em Brasília.
A mobilização reuniu, entre 12 e 16 de
março, cerca de 600 pessoas. Foram indígenas
– dos povos Truká, Tingui-Botó, Pankararu,
Kiriri, Atikum e Tuxá -, quase uma centena de
quilombolas, além de pescadores, ribeirinhos,
trabalhadores membros de sindicatos e estudantes. Pessoas que convivem diariamente com
o rio São Francisco e que afirmam não estarem
sendo levadas em conta nos planos da obra de
transposição. Durante a coletiva à imprensa
realizada na abertura do acampamento, um
jornalista perguntou sobre a extensão do rio.
Marcos Sabaru, do povo Tingui-Botó, respondeu: “O rio não é a sua extensão, a água. O rio
é o próprio pescador, o indígena. As caras do
rio são pretas, têm penas, são de pescadores,
de lavadeiras”.
Alternativas mais
baratas e revitalização
O discurso dos acampados enfatizou as
alternativas à transposição, a necessidade de
revitalizar o rio, e ressaltou as experiências de
convivência com o semi-árido.
As lideranças destacaram um recente estudo que aponta 530 obras, descentralizadas
em 1112 municípios do São Francisco, como
solução para o problema de abastecimento
de água no Nordeste. Estas obras custariam
a metade dos recursos previstos para a transposição. O estudo é da Agência Nacional de
Águas (ANA).
“A transposição só poderá oferecer uma
água cara. E os custos altos serão cobertos
pela própria população sedenta”, questionou
Rubem Siqueira, da Comissão Pastoral da
Terra (CPT). “O objetivo dela é levar água para
setores empresariais, de grandes projetos de
irrigação. Ela não vem para resolver a falta de
água do Nordeste. Na região, há água suficiente
para o desenvolvimento regional. O que falta
é um programa de gestão, gerenciamento e
distribuição da água. A solução é conviver
com o que há de água lá”, afirmou Alexandre
Gonçalves, da CPT, durante audiência com o
ministro do Supremo Tribunal Federal (STF),
Ricardo Lewandowski.
Diálogo impossível
Nos primeiros dias do acampamento, as
falas focavam a necessidade de construir um
diálogo entre governo e as populações que
vivem perto do rio e questionam a obra.
Diálogo já tinha sido a palavra central no
compromisso firmado entre o presidente Lula
e o bispo Dom Luiz Cappio, que em 2005 fez
greve de fome por 10 dias para questionar o
projeto de transposição e pedir a revitalização
do rio. O acordo resultou na criação de uma
comissão de diálogo com representantes das
Falta de consentimento dos povos indígenas afetados poderá ser entrave legal à obra
Abril-2007
Fotos: Maristela Vitória/CPT
Acampamento pela vida do rio São
e contra a transposição
entidades, do Governo, do Ministério Público e
do comitê da Bacia do São Francisco. Também
houve um seminário em Brasília, em julho
de 2006. Mas as tentativas de diálogo não
passaram disso.
A perspectiva de os acampados dialogarem
com o governo ficou mais distante quando o acampamento não
foi recebido por Lula nem por
seus assessores diretos.
Os ânimos em relação ao
governo federal ficaram piores
ainda quando, em 13 de março
– segundo dia do acampamento
- o Ministério da Integração Nacional publicou, no Diário Oficial
da União, um aviso de licitação
pública da primeira etapa do
projeto de transposição do rio
Governo federal não quis diálogo, mas movimento foi ouvid
Sã o Francisco, que prevê obras
em Pernambuco, Ceará, Paraíba
e Rio Grande do Norte.
Outros caminhos para
A publicação do edital levou os manifesbarrar o projeto
tantes a realizarem ato em frente ao prédio do
Ministério da Integração Nacional no dia 15 de
A agenda dos participantes do acampamenmarço. Durante a manifestação, houve um vidro to não incluiu apenas visitas ao governo fedequebrado. O manifestante acusado pelo ato foi ral, mas também a outras instâncias públicas
detido e depois liberado pela polícia.
que podem tomar decisões sobre a obra.
Parte importante da luta contra a transpoLicença do Ibama:
sição acontece no poder Judiciário, responsável
más notícias
por fiscalizar a aplicação das leis no país. A
Na audiência que fez com os acampados, obra é alvo de 12 ações no Supremo Tribunal
a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, já Federal.
A mais nova ação judicial foi apresentada
tinha dito que seu Ministério apoiaria a decisão do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente no último dia do acampamento. Os militantes
(Ibama), órgão responsável pela avaliação dos entraram com uma nova ação popular, baseada
impactos ambientais da transposição e pela em uma das irregularidades apontadas pelo
liberação da licença ambiental, que permite o Tribunal de Contas da União, que avalia que o
número de beneficiários pelo projeto será bem
início das obras.
Apesar das críticas sobre a falta de consis- menor do que o divulgado pelo Ministério da
tência dos estudos ambientais em relação aos Integração Nacional.
Algumas das outras ações usam argumenimpactos da obra, a licença veio rápido: foi
tos diretamente ligados aos povos indígenas,
anunciada em 23 de março.
O início das obras depende do cumprimento como a falta de autorização do Congresso
de 51 condicionantes. As principais, de acordo Nacional para aproveitamento de recursos hícom o Ibama, referem-se à priorização da con- dricos em terras indígenas; a falta de identificatratação de mão-de-obra local e a apresentação ção de impactos sobre o patrimônio histórico,
de um plano de ação solicitado pela Fundação arqueológico, artístico, cultural e arquitetônico
Nacional do Índio (Funai). O Ministério da Inte- e sobre as populações tradicionais da Bacia do
gração terá que assinar um acordo com a Funai São Francisco.
Os acampados solicitaram encontros com
garantindo o desenvolvimento das comunidades
indígenas Truká, Tumbalalá, Pipipã e Kambiwa, os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal
(a mais alta instância da Justiça no Brasil).
segundo informou a Agência Brasil.
Francisco
Em encontro,
indígenas
reafirmam críticas
à Transposição
E
ntre os dias 16 e 18 de março, os povos
Kambiwá, Xukuru, Kapinawá, Pipipã,
Pankararu, Truká, Tumbalalá, Tupã e
Tuxá, que vivem em regiões próximas ao rio
São Francisco e poderão ser afetados pelas
obras da transposição, fizeram uma reunião
para aprofundar o debate sobre o tema. A
reunião aconteceu em Ibimirim, Pernambuco.
Na carta que divulgaram no final do encontro,
eles dizem que a transposição “não atende
às verdadeiras necessidades dos povos do
Nordeste e aos interesses do povo brasileiro,
em especial aqueles que vivem na bacia do
rio São Francisco”.
Alguns dos pontos criticados pelo grupo
foram a instalação de usinas e barragens,
o desrespeito à opinião das comunidades
quilombolas, ribeirinhas, fundo de pasto, pescadores artesanais e indígenas, e a maneira
autoritária como o governo tem tratado o
projeto da transposição.
Foto: Marcy Picanço
O São Francisco é
personagem vivo
das memórias
das lutas de
quem vivem nas
margens do rio.
Eles alertam para
conseqüências
das grandes obras
que já viram
do no Congresso, no MPF e nas ruas
Cabe a eles confirmar ou refutar a decisão do
ministro Sepúlveda Pertence, que derrubou, em
dezembro de 2006, as liminares que impediam
o licenciamento ambiental da obra de transposição. Os manifestantes foram recebidos
por 5 dos 11 ministros e apresentaram suas
propostas e preocupações.
Os acampados também foram recebidos
no poder Legislativo, pelos presidentes do
Senado e da Câmara. E participaram de
Audiência Pública na Comissão de Meio
Ambiente da Câmara.
De volta pa ra casa
Apesar da impossibilidade de qualquer
diálogo com o governo federal, os acampados
voltaram para casa convencidos da necessidade
de manter as mobilizações contra as obras.
D. Luiz Cappio participou do ultimo dia
do acampamento e afirmou que ainda acredita
ser possível barrar o projeto. “A organização
dessas pessoas é uma prova de que podemos,
sim, impedir essa obra desvairada, insana, e
mostrar ao Brasil e ao mundo a força que o
povo tem”.
Em fala no final do acampamento, o
Tingui-Botó, Marcos Sabaru, emocionou-se ao
dizer que a população não se dobrará frente à
tentativa de transpor o rio, e completou: “Se
o governo continuar teimando, nós vamos
continuar acampando, quantas vezes forem
necessárias”.
Foto: Priscila D. Carvalho
Seu Toinho
A
vida do São Francisco é a vida dos
pescadores, ribeirinhos, quilombolas,
indígenas. Foram estas pessoas que
vieram ao acampamento em Brasília. E as
histórias das vidas delas têm muita coisa
em comum.
Carlos Alberto Gomes vive em Sítio
do Mato, Bahia, no Quilombo Mangal Barra
Vermelho, que tem 140 famílias e conseguiu
o título da terra em 2002. “Foi uma luta muito
grande. Retomamos terras e açudes. Em outros quilombos, teve gente que morreu. Nossa
terra foi desapropriada pra gente dentro da
reforma agrária e como comunidade negra
rural. O reconhecimento trouxe habitação,
projeto, investimento”.
Seu Carlos conta que já enfrentaram
muito preconceito. “Chamavam a gente de
macaco, negro, feio”. Hoje, os quilombolas
também lutam pela educação diferenciada.
“Os professores antes eram das vilas. Hoje são
da comunidade, conhecem nossa história”.
Cada comunidade quilombola tem também suas festas e religiões: Nossa Senhora
da Conceição e do Rosário, São Gonçalo,
candomblé, jurema. Muitas delas são ligadas
Carlos Alberto
Histórias do Velho Chico
ao São Francisco, o que dá pra notar até pelo
nome: tem a lenda do Nego D´água e as festas
de Marujo.
Por que a transposição afeta vocês?
Todo ano, plantamos na vazante do rio. Com
a transposição, tenho certeza de que não vai
mais banhar as terras, e o sustento da gente
é esse, da vazante. Sem o rio, vamos ter que
plantar de seis em seis meses, e isso se for
ano bom de chuva.
Antônio dos Santos, “Seu Toinho”, é um
dos fundadores da Pastoral dos Pescadores e
vive em Penedo, Alagoas. Está nos movimentos
sociais desde 1969, quando apareceu a Comunidade Eclesial de Base em sua cidade. Foi convencido a começar a participar por sua esposa.
“Lutamos muito para que as nossas propostas
sobre a pesca fossem para a constituinte, e elas
se tornaram o artigo 8º da Constituição. Antes,
as colônias de pescadores eram administradas
pela marinha, por almirantes e tenentes, não
pelos pescadores”.
Por que a transposição afeta vocês?
Sabemos o prejuízo que deram os grandes
projetos. Tive nove filhos, adotei outros dois
e criei todos pescando no rio são Francisco.
Hoje, meu filho tem uma filha e não sustenta,
porque o rio não tem peixe. Os projetos que
mais afetaram foram as barragens. O peixe
diminuiu depois de Sobradinho, em 1979, e
piorou depois da barragem de Xingó. Passamos 12 anos sem cheia e com isso não teve
piracema. Só melhorou em 2004, porque as
chuvas caíram em Pernambuco e Sergipe. Aí
teve piracema de curimatã, piau e piranha.
O rio era navegável, tinha grandes embarcações. Quando acabou peixe, as coisas
ficaram ruins. O povo foi saindo para as
grandes cidades, para capitais. Mesmo sem
pegar muito peixe, hoje corre de novo pra
pescar. Não tem mais arroz, tem cana no lugar.
Não tem mais industria têxtil, de arroz, de
sabão, emprego nos barcos de pesca. Agora é
só trabalhar nas usinas, e uma máquina corta
cana por 100 homens.
Do que o rio precisa? Precisa de saneamento básico, de estações de tratamento
de água, de reforma agrária ampla, de investimento em tecnologia para que o povo se
firme em terra.
Antes, tinha dia de pegar 100 quilos de
peixe.
Abril-2007
Justiça
Supremo atendeu a reivindicação
feita durante Acampamento
Terra Livre 2006. Mas casos
destacados seguem sem decisão
Crédito: Divulgação STF
STF julga 118 processos de interesses indígenas
Marcy Picanço
Dentre os processos julgados, está o
caso conhecido como Massacre de Haximu
– o assassinato de 12 Yanomami por garimpeiros em 1993. No dia 3 de agosto do ano
passado, o Plenário do Supremo Tribunal
Federal reafirmou que o crime conhecido
foi um genocídio e que é válida a sentença
da Justiça Federal que condenou garimpeiros
a 19 anos de prisão por crime de genocídio
em conexão com outros delitos, como contrabando e garimpo ilegal.
Povo Pataxó Hã-Hã-Hãe aguarda
julgamento sobre nulidade dos títulos
de fazendeiros (ao lado). Massacre
de 12 Yanomami foi julgado
Crédito: Arquivo Cimi
Supremo Tribunal Federal (STF)
cumpriu o compromisso assumido
com os povos indígenas no Acampamento Terra Livre de 2006 de
priorizar o julgamento de ações que afetam
os povos indígenas. Entretanto, três dos quatro casos específicos para os quais se pediu
prioridade ainda aguardam decisão.
Em 6 abril de 2006, durante as mobilizações do Abril Indígena, a presidente do STF,
ministra Ellen Gracie, recebeu uma comissão
de lideranças indígenas e se comprometeu a
tratar como prioridade os processos ligados
às questões indígenas. Na ocasião, as lideranças pediram que se priorizasse os processos
relativos à terra Nhande Ru Marangatu, do
povo Kaiowá-Guarani, no Mato
Grosso do Sul; à terra Jacaré de
São Domingos, do povo Potiguara,
na Paraíba; à terra Raposa Serra do
Sol, em Roraima; além da terra dos
Pataxó Hã-Hã-Hãe.
De fato, em 18 de maio de 2006,
o Supremo oficializou a decisão
inédita, dentre os órgãos da Justiça,
de dar preferência aos casos que envolvem interesses indígenas. Ainda
no primeiro semestre, a Assessoria
de Gestão Estratégica do STF identificou 166
ações e recursos deste tipo que tramitavam
no órgão. E, segundo levantamento do STF
encaminhado ao Fórum de Defesa dos Direitos Indígenas, 118 processos de interesses
indígenas foram julgados até março de 2007.
Este levantamento também informa que tramitam no órgão 148 processos que afetam os
povos indígenas, incluindo nesse número os
novos processos que chegaram ao Supremo a
partir do segundo semestre de 2006.
Foto: Adalberto Lopez
O
Editora do Porantim
Indefinição
Dos processos para os quais foi solicitada prioridade, foi julgado o que pedia a
fixação da competência da Justiça Federal
para o julgamento de ações possessórias
relativas à Raposa Serra do Sol. Mas, apesar
do empenho do Supremo, os três outros
casos ainda aguardam uma decisão. Esta
indefinição aumenta a tensão nas áreas
indígenas afetadas.
Os Kaiowá – Guarani expulsos,
em dezembro de 2005, de sua terra
já homologada Ñande Ru Marangatu,
aguardam, à beira de uma estrada,
uma decisão do mandado de segurança contra essa homologação. No
STF não existe um único precedente
no qual se tenha desconstituído um decreto
de homologação de demarcação de terra
indígena. Espera-se que esse entendimento
seja mantido também nesse caso.
No mês de abril, as lideranças de povos
e organizações indígenas retornam a Brasília
para uma nova mobilização. Novamente,
tentarão se reunir com a presidente do STF,
ministra Ellen Gracie, para conversar sobre o
que já foi feito e reafirmar a esperança de que
os processos sejam julgados.
Nove indígenas presos há um ano serão soltos
O
s nove Guarani-Kaiowá de Passo
Piraju detidos no Mato Grosso do
Sul desde abril de 2006 devem
agora ser soltos, após decisão do
Superior Tribunal de Justiça (STJ). A 5a Turma
do Tribunal acompanhou o voto da ministra
Laurita Vaz e, por unanimidade, decidiu
que é da Justiça Federal a competência para
julgar o caso do assassinato de dois policiais
civis pelos indígenas.
Até agora, o caso tramitava na Justiça
Estadual. Com a decisão, o decreto de prisão
Março-2007 10 preventiva, da Justiça Estadual, é anulado.
O processo será encaminhado à Justiça
Federal em Dourados, MS. O julgamento de
Habeas Corpus ocorreu no dia 27 de março,
em Brasília
No julgamento, o advogado Paulo Machado Guimarães, da assessoria jurídica do
Cimi, realizou a sustentação oral do Habeas
Corpus. Os advogados da entidade atuam na
defesa dos nove indígenas.
Guimarães defendeu a competência da
Justiça Federal nos casos em que há disputa
pela posse de terra e quando o processo
está relacionado à condição étnica do grupo,
posição que contou com parecer favorável
do Ministério Público Federal. O advogado
questionou também os motivos apresentados
pela Justiça Estadual para a prisão preventiva.
“A prisão preventiva baseia-se no sentimento
de comoção que foi gerado na cidade após as
mortes. Não há sentido na manutenção da prisão preventiva de pessoas que têm residência
fixa, são agricultores, e em uma situação em
que os interesses da comunidade estão em
litígio na Justiça Federal”, afirmou.
Em seu voto, a ministra Laurita Vaz
acatou os argumentos apresentados pela
defesa. O primeiro deles, de que os crimes
de homicídio em questão tiveram como
motivação declarada a defesa da terra pelos
indígenas. “A ação conflituosa praticada por
grupo traduz aparente esforço para a proteção da terra. O cenário indica estreita ligação
com a disputa pela posse de terra entre
índios e os proprietários”, afirmou Vaz. Ela
salientou que os policiais não estavam identificados e que, pela maneira como agiram,
foram confundidos com fazendeiros. “Há, na
região, permanente conflito entre indígenas
e fazendeiros”, disse a ministra.
De Volta À Vida
A luta Potiguara contra
a indústria canavieira
Fotos: Cimi-NE
Retomada
Povo retoma áreas invadidas por usineiros na Paraíba
Otto Mendes
Cimi-NE
C
ansados de esperar pela demarcação de suas terras, os Potiguara,
no município de rio Tinto, Paraíba,
retomaram parte de sua terra, que
estava invadida por uma usina canavieira.
Cerca de 50 famílias – 150 pessoas
– estão acampadas desde o dia 19 de março
e trabalham na construção de casas e a
abertura de roças. A retomada começou
em fevereiro, sem a ocupação humana. Os
indígenas arrancaram a cana-de-açúcar e
plantaram alimentos como feijão, macaxeira,
inhame, milho e verduras.
Desde a década de 1970, as
terras Potiguara foram invadidas
por plantações de cana de açúcar,
usada para a produção de álcool
e açúcar nas usinas que se instalaram na região, incentivadas
pelo programa Próalcool.
Naquela época, junto com as
promessas de emprego, as usinas trouxeram desmatamento,
diminuição das áreas de roça,
degradação do solo, envenenamento dos manguezais onde a
comunidade coletava mariscos e
carangueijos para se alimentar e vender.
A retomada Potiguara se consolidou na
mesma semana em que o presidente Lula
– que tem apresentado o biodiesel como
o “novo” grande produto do país para
exportação - chamou produtores de cana
de “heróis”.
A grande esperança do presidente
brasileiro é uma formula que há mais de
quinhentos anos é aplicada no Brasil: a
monocultura e a grande propriedade. Nunca
deu certo. Só trouxe desigualdade e exclusão.
Mas, Estados Unidos, Europa, Japão e China
querem o etanol e o biodiesel brasileiro, com
o argumento de que isso vai trazer melhorias
sociais para o Brasil. Governo e a mídia estão
exultantes. Porém, como um modelo que
continua mantendo o país no esgoto, há
quinhentos anos, pode funcionar?
Lula já deixou claro qual é o lado que
ele ocupa nesta história: o lado do mercado
financeiro, do neoliberalismo, do latifúndio e
do crescimento a qualquer custo. Poucos estão refletindo sobre o custo social embutido
na fabricação de etanol e de biodiesel, que,
para atender a demanda apresentada, precisará produzir mais de um trilhão de litros por
Comunidade unida contra cana que invade terra de
Monte-Mor. Acima, protesto dos Potiguara em 2004,
contra uma reintegração de posse dada por juiz estadual
ano. Para isso, as terras necessárias para a
monocultura de cana-de-açúcar passariam
dos atuais sete milhões de hectares para 30
milhões, sem contar as áreas destinadas a
outros produtos (soja, mamona, dendê...)
As conseqüências desta situação terrível
serão o aumento da concentração fundiária;
a ameaça à soberania alimentar; o êxodo
de homens e mulheres para as cidades,
aumentando a favelização da população; a
destruição do meio ambiente por causa das
queimadas e derrubada das matas e do uso
excessivo de agrotóxico.
Luta Potiguara e o
biodiesel
O povo Potiguara, que vive no extremo norte da Paraíba, conhece a tragédia
provocada pela monocultura canavieira.
Há décadas, usinas da região invadem suas
terras. A degradação ambiental deixa muitos
Potiguara sem trabalho nas aldeias e os três
municípios (Rio Tinto, Marcação e Baía da
Traição) onde está a área indígena não têm
como absorver esta mão-de-obra ociosa. A
fome e a desesperança caíram sobre o povo
Potiguara, que muitas vezes para levantar
uma roça em suas próprias terras tinham
que pedir permissão para as usinas!
Entretanto, nos últimos anos, eles
resolveram fortalecer a luta contra as
usinas invasoras. Em agosto de 2003, a
usina Japungu, para aumentar sua área de
canavial, resolveu passar um trator por cima
das roças dos Potiguara, que se revoltaram
e retomaram aquela área, chamada por eles
de aldeia Três Rios.
Desde então, uma mudança na qualidade de vida daqueles homens e mulheres
aconteceu, pois eles mudaram a cana-deaçúcar pela policultura, plantando feijão,
macaxeira, inhame, tomate, mangabeiras,
goiabeiras, cajueiros, mangueiras, mandioca,
pimentão, pimenta e outros produtos, além
de poderem voltar a recolher alimentos nos
mangues, pois sem a cana não havia mais
veneno.
Casas foram construídas, eles têm luz e
água e estão felizes, pois a vida voltou para
quem estava quase morto. A Aldeia Três Rios
virou uma espécie de vitrine para o povo,
o exemplo a ser seguido e um argumento
incontestável contra a monocultura de cana,
que só trouxe desgraça para os Potiguara.
Agora, seguindo o exemplo de seus
parentes, os Potiguara do município de Rio
Tinto, resolveram lutar por seus direitos e
expulsar os invasores de suas terras. Já existe
um pedido de reintegração de posse, mas a
situação na retomada está tranqüila.
As indústrias canavieiras já começaram
a usar o argumento de que a plantação e
beneficiamento da cana é ponto estratégico
para o país, evitando o debate sobre se o
ganho paga o enorme prejuízo ambiental
e humano.
As novas roças se sobressaem no meio
da monotonia da cana, devolvendo para
aquelas famílias a perspectiva de uma vida
digna, sem fome, sem violência e a alegria
de pisar na sua terra. A luta dos Potiguara
para recuperar suas terras originais e expulsar os invasores é um símbolo da luta que
todos nós vamos enfrentar para podermos
barrar projetos que só beneficiarão poucos em detrimento da maioria e do meio
ambiente.
Os Potiguara podem ser mais um dos
exemplos de que outro mundo e outra
consciência social e econômica não é só
possível: ela já existe!
11 Abril-2007
Fotos: Cimi – MA
País
Afora
Omissão da Funai
incentiva ações violentas
dos invasores
Paralisação do processo de revisão de limites gera
incertezas na comunidade e permite a presença
devastadora dos invasores.
O
Aldeia Guajajara é incendiada e
comunidade expulsa no Maranhão
Na luta pela revisão de limites, aldeia foi incendiada três vezes
e duas pessoas foram assassinadas
Rosimeire Diniz
e Humberto Rezende Capucci
N
Cimi-MA
o dia 22 de fevereiro, em
Grajaú, no centro-oeste do
Maranhão, um grupo armado invadiu a Aldeia Santa
Maria, do povo Guajajara, na terra
indígena Bacurizinho, incendiou
casas e expulsou de lá a comunidade,
com cerca de 30 pessoas.
Ana Rosa Machado Guajajara,
que vivia na aldeia, presenciou
aquela noite de horror. Segundo
ela, os fazendeiros haviam dado um
prazo de quinze dias para que os
indígenas deixassem a área. Quando
faltava um dia para vencer o prazo,
por precaução, a comunidade
deixou a aldeia e se concentrou em
uma única casa que fica um pouco
distante. “Graças a Deus fizemos
isso”, diz Ana Rosa. Tão logo anoiteceu começaram a ouvir tiros e gritos
vindos da aldeia. Os pistoleiros
gritavam perguntando pelos índios
e diziam que matariam qualquer um
que encontrassem. Assustados, os
Guajajara deixaram a casa em que
estavam e correram para se refugiar
na mata, onde ficaram escondidos
sob o frio e a chuva até que o dia
amanhecesse.
Violência
sofrida pelos
Guajajara foi
denunciada à
ONU.
Na foto,
casa onde a
comunidade se
abrigou para
sobreviver ao
incêndio.
Algumas
pessoas que
moravam na
Aldeia Santa
Maria estão
provisoriamente
em outra aldeia
Foi quando foram até a aldeia
e puderam constatar a destruição.
Encontraram roças pisadas, marcas
de tiros e todas as casas incendiadas.
Ana Rosa, que era nora de João
Araújo, cacique assassinado há dois
anos em função de sua luta pela
terra, chora ao lembrar das coisas
que foram queimadas junto com
sua casa. “A gente não tinha quase
nada, mas eles queimaram tudo que
era nosso”.
Ao mesmo tempo em que chora,
ela não esmorece e reafirma sua
decisão de não desistir da terra de
seus antepassados. De forma muito
emocionada afirma: “Ninguém não
vai perder esse lugar aí não! Ninguém é cachorro pra fica morrendo
à toa!... Se não, pra onde é que a
gente vai? Por isso é que a gente está
pedindo que a Funai tome providência, demarque essa terra pra nós. Pra
o índio não morrer mais de graça.
Porque, se não demarcar essa terra,
a gente vai se acabar tudinho!”. De
acordo com as lideranças da comunidade, mesmo depois de insistentes
avisos e pedidos de apoio, nenhum
representante da Fundação Nacional
do Índio (Funai) compareceu ao local
para assistir à comunidade. Segundo
eles, o órgão federal se limitou a
fornecer um caminhão para que os
indígenas desocupassem a área e
fossem para outra aldeia.
Ação dos invasores
Os pistoleiros que incendiaram
a aldeia agem em nome de fazendeiros que invadiram a terra indígena
Bacurizinho e que pretendem fazer
a comunidade desistir do processo
de revisão dos limites da área. A
terra possui originalmente 145 mil
hectares, mas foi demarcada com
82.432 hectares. Assim, aldeias
centenárias localizadas nos 62.568
hectares restantes ficaram de fora
da demarcação.
A exclusão dessa parte da área
tradicional abriu espaço para a ação
de invasores, principalmente para o
corte ilegal de madeira, carvoarias,
plantio irregular de soja, eucalipto e
arroz, que devastam uma das últimas
áreas preservadas do cerrado maranhense. Esses grupos usam de todos
os meios para impedir o andamento
do processo de revisão dos limites
da área, inclusive os mais violentos.
Esse tipo de ação é alimentado pela
impunidade que existe na região. As
violências praticadas nos anos anteriores permanecem sem o julgamento
e condenação dos acusados.
processo de revisão de limites da terra Bacurizinho está
parado. Em 2004, foi entregue à Fundação Nacional do
Índio (Funai) o relatório do Grupo Técnico que identifica
a área reivindicada como indígena, mas a Funai ainda não
aprovou este documento. Em junho de 2006, após ser acionada pelo
Ministério Público Federal (MPF), a Justiça Federal determinou que
a Funai desse andamento ao processo.
A Fundação teria um prazo de 90 dias para retomar o processo
e, em caso de descumprimento, deveria pagar multa diária de cinco
mil reais. A Funai recorreu, pedindo que a decisão fosse suspensa,
mas este recurso foi negado pelo Tribunal Regional Federal. O prazo
da Funai encerrou, portanto, em outubro de 2006.
No dia 21 de março, o Procurador da República em São Luis, Luis
Carlos de Oliveira Junior, recebeu lideranças da terra Bacurizinho e
representantes do Cimi – Maranhão para tratar do caso. Também
estavam presentes na audiência a Administradora Regional da
Funai de São Luis, Elenice Viana Barbosa e o Procurador da Funai,
Dr. Daniel.
As lideranças indígenas questionaram o Procurador sobre o
descumprimento da decisão judicial e relataram a situação de tensão
na região para responsabilizarem a Funai caso haja mais violência. A
administradora da Funai confirmou que o processo administrativo
continua parado em Brasília, na DAF – Diretoria de Assuntos Fundiários da Funai, segundo informações da própria diretora, Nadja
Havt Bindá, contatada naquela manhã.
O Procurador da República se comprometeu a informar à Justiça Federal que sua decisão está sendo descumprida, para que as
providências necessárias sejam tomadas. O MPF se comprometeu
ainda em manter a comunidade informada.
Assassinatos e agressões marcam
a luta pela terra Bacurizinho
O objetivo dos crimes é forçar os indígenas a desistirem do
processo de revisão dos limites da área, homologada na década
de 1980.
1975
u
Conclusão do trabalho antropológico para a demarcação da terra
Bacurizinho.
u cacique Antônio Leão Guajajara foi esquartejado e atirado em
um rio.
u cacique Valdomiro Guajajara foi carbonizado para dificultar a
identificação de seu corpo. Até hoje os dois crimes permanecem
sem solução.
2001
u
início dos trabalhos de revisão de limites da terra
2003
u
O cacique Zequinha Mendes Guajajara foi morto por
atropelamento
2004
u
Um grupo armado invadiu a aldeia Bacurizinho e incendiou sete
casas
2005
u
Abril-2007
12
Um grupo de seis homens armados invadiu a aldeia Kamihaw.
Assassinaram o cacique João Araújo Guajajara, de 70 anos, com
dois tiros no peito.
u O grupo também queimou uma casa, estuprou a jovem D. S., de
16 anos, e feriu Wilson Araújo Guajajara com um tiro na cabeça.
Estas duas vítimas são filhos do cacique Araújo.
u Outro Guajajara, ao fugir dos pistoleiros, levou um tiro na perna.
Duas jovens Oro Wari´morrem
por falta de pré-natal em Rondônia
País
Afora
P
roblemas no coração. Isto teria
levado à morte, em menos de três
meses, duas mulheres de 21 anos
de idade, do povo Oro Wari´, em
Guajará-Mirim, Rondônia. No entanto, o histórico de saúde das jovens indica que a morte
das duas mulheres foi conseqüência da falta
de atendimento pré-natal, que não tem sido
oferecido regularmente por este Pólo-Base às
indígenas grávidas.
As duas jovens faleceram na Unidade de
Tratamento Intensivo de Porto Velho, capital
do estado. As duas tinham uma gravidez de
alto risco. Madalena Oro Mon, da aldeia Lage
Velho, terra indígena Lage, faleceu em 30 de
novembro de 2006, nove dias depois de um
parto normal. Miriam Oro Mon, da aldeia
Ribeirão, terra indígena Ribeirão, faleceu em
27 de fevereiro de 2007, grávida de aproximadamente cinco meses. As duas não receberam
o acompanhamento pré-natal.
Segundo o Agente Indígena de Saúde da
aldeia Ribeirão, Miriam foi encaminhada para
a Casa de Saúde Indígena (CASAI), em GuajaráMirim no início de janeiro para realizar exames
de pré-natal. Aguardou alguns dias sem receber
atendimento e decidiu voltar para aldeia. Em
fevereiro, retornou à cidade com dores abdominal e de cabeça. Faleceu em menos de uma
Foto: Gil de Catheau/Cimi-RO
Desde 2000, comunidade pede à Funasa condições dignas de atendimento às indígenas grávidas
Idosos dormem no chão da CASAI em Rondônia por falta de leitos
semana. No atestado de óbito, consta que ela
faleceu em função de uma cardiopatia valvular.
Essa doença teria sido descoberta se houvesse
consulta médica no pré-natal.
Até 2004, no Pólo-Base de Guajará-Mirim,
somente as gestantes que buscavam o atendimento por conta própria realizavam em parte
o pré-natal. As demais passavam toda gestação
sem atendimento. Por isto, aumentou o número de partos prematuros e de nascimentos
de crianças com doenças congênitas, como
toxoplasmose. Naquela época, a justificativa
dada pela chefia da CASAI é que não era possível trazer as gestantes para a casa por falta
de espaço nas enfermarias.
Grávidas não têm acompanhamento prénatal completo
No Plano Distrital do DSEI de Porto Velho,
aprovado pelo Conselho Distrital de Saúde
Indígena, consta a realização do pré-natal
de acordo com as normas do Ministério da
Saúde, com no mínimo seis consultas, sendo
duas feitas por médico. Com isto, pretende-se
reduzir a mortalidade materno-infantil.
No Pólo-Base de Guajará-Mirim, essa meta
está longe de ser alcançada. No melhor dos
casos, acontece uma consulta de enfermagem,
exames de laboratório e uma ultrassonografia.
Os resultados são avaliados pelo enfermeiro.
Em caso de alteração, os exames são apresentados ao médico da CASAI que, em geral, não
vê a paciente.
Desde 2000, a comunidade solicita melhorias nos recursos materiais (transporte, equipamento, leitos...) e humanos (consultas médicas,
auxiliares de enfermagem nas aldeias...) que
atendem às aldeias do Pólo-Base. Essas reivindicações constam em atas de reuniões do
Conselho de Saúde Indígena e em diversas
denúncias e ofícios encaminhados ao Ministério
Público Federal. Recentemente, o Procurador da
República, Ricardo Martins Batista, convocou
uma Audiência Pública sobre atendimento à saúde indígena de Guajará-Mirim, porém o descaso
e as mortes continuam acontecendo.
A equipe do Cimi em Rondônia, que
convive diariamente com esta realidade,
aponta como responsável por esta situação o
coordenador regional da Funasa do estado de
Rondônia, que atua no cargo desde o ano de
2003. (Equipe Guajará-Mirim/CIMI-RO)
Ministro termina mandato sem
demarcar a terra destes povos no
Espírito Santo
Foto: Zélia Siqueira
Thomaz Bastos devolve processo dos Tupinikim e dos Guarani para a Funai
Geetje van der Pas
Reporter
D
esde novembro de 2006, a demarcação das terras dos Tupinikim
e dos Guarani no Espírito Santo
dependia apenas da assinatura do
ex-ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos. A Presidência da Funai e da Consultoria
Jurídica do Ministério da Justiça (MJ) recomendaram que Bastos assinasse as portarias
de demarcação. No entanto, passados mais
de 120 dias do prazo legal para que ele se
decidisse, o ex-ministro optou por devolver
o processo à Funai para que esta realizasse
estudos e elaborasse uma proposta que
“componha os interesses” dos indígenas e
da empresa Aracruz Celulose, que invade a
terra indígena.
Ao que tudo indica, a intenção de Thomas
Bastos, que deixou o cargo de ministro em
março, é protelar a demarcação das terras para
que a Funai possa rever, ou seja, diminuir os
limites da terra propostos pelo Grupo Técnico
(GT). Se esta sugestão for acatada, MJ e Funai
estarão afrontando à Constituição, pois o
espaço territorial proposto pelo GT contém
Indígenas e quilombolas lutam por suas terras, invadidas pela Aracruz.
Ato no Dia Internacional da Mulher (8 de março)
os elementos de uma terra tradicionalmente
ocupada pelos Tupinikim e Guarani, de acordo
com o que determina a lei.
Segundo a Constituição Federal as terras
indígenas são inalienáveis e indisponíveis.
Ou seja, nem a União, nem mesmo os povos
indígenas, podem fazer transações, ainda que
acordadas, com elas.
Os Tupinikim e os Guarani ficaram indignados com a decisão de Thomaz Bastos. No
dia 3 de março de 2007 eles realizaram uma
Assembléia Geral onde discutiram como vão
continuar a luta pela terra e, após o encontro,
divulgaram uma nota reafirmando a posição da
comunidade. “Não aceitamos qualquer acordo
envolvendo nossas terras, nem que a Funai
realize novos estudos para mudar os limites
já definidos pelo Grupo Técnico da Funai em
1997. Exigimos que o presidente da Funai
devolva os processos para o ministro da Justiça
para a assinatura imediata das Portarias de
Delimitação e promova a demarcação definitiva
das nossas terras.”, diz a nota.
No momento, as comunidades esperam
a confirmação de uma audiência com o novo
ministro da Justiça, Tarso Genro.
Internacional
A Aracruz Celulose perdeu em março
um de seus maiores clientes: a multinacional
Procter & Gamble, que vendeu as marcas
Tempo, Charmin, Bounty & Co. A empresa que
adquiriu as marcas, a sueca Svenska Cellulosa
Aktiebolaget (SCA) informa que não compra
celulose de lugares onde há violação dos
direitos humanos ou dos direitos tradicionais
dos povos indígenas.
Há mais de dois anos, algumas organizações européias (RobinWood, Framtiden
etc) fazem uma campanha contra a Procter
& Gamble. Em maio de 2006, dois representantes dos Tupinikim e Guarani, junto com
as ativistas da RobinWood, bloquearam,
na Alemanha, uma das fábricas desta multinacional.
Histórico
As terras indígenas Tupinikim e Comboios, onde vivem os Tupinikim e os Guarani
no Espírito Santo foram identificadas em
1997 com a dimensão de 18 mil hectares. No
entanto, apenas 7 mil foram demarcadas e
11 mil hectares continuam invadidos irregularmente pela empresa Aracruz Celulose S.A.
Em 2005, por recomendação do Ministério
Público Federal ao presidente da República
e ao ministro da Justiça, a Funai retomou o
procedimento administrativo para demarcação. Os novos estudos realizados pela Funai
confirmaram que os 18 mil hectares são terras
indígenas tradicionais.
13 Abril-2007
A vida dos povos
Ritual dos Praiás Karua em Alagoas
Jorge Vieira
Cimi - NE
T
odo ano, o ritual dos Praiás é celebrado pelo povo Karuazu, de cerca de
250 familias, que vive em Pariconha,
a 360 km de Maceió, Alagoas.
No mês de março, eles realizam, por
quatro finais de semanas consecutivos, a celebração religiosa com os Praiás no terreiro,
o Toré e a penitência da Cansanção, sempre
intercalados com rituais durante as noites.
Fotos: Jorge Vieira/Cimi- NE
Obediência aos encantados e êxtase espiritual
Chegada dos Praiás
As roupas
O ritual começa com a preparação dos
membros da comunidade, orientados pelo
pajé. Todos participam da preparação dos
rituais e do acolhimento dos convidados
indígenas e amigos do povo. O momento de
maior concentração é o da purificação dos
homens e mulheres. Os homens vão para o
Poró – local reservado aos homens –, tomam
banho com águas preparadas com ervas,
fumam sem parar o campiô – cachimbo preparado para o ritual. Nos três dias anteriores
ao ritual, os homens não mantêm relação
sexual, não tomam bebidas alcoólicas e ficam
isolados do mundo dos “brancos”.
Todos envolvidos na escuridão da noite,
por volta das 20 horas, chegam os Praiás.
“Quem veste essa roupa, tem obrigação. Não
faz, ele cobra”, comenta o Karuazu Valdo
Marcolino de Souza, 43, quando os Praiás aparecem no terreiro. “Todo ano nós temos essa
obrigação. A gente participava inicialmente
em Pankararu, a sete léguas (42 km) daqui.
Antigamente nós não valíamos nada aqui;
éramos considerados como cachorros. Hoje
nós somos reconhecidos”, conta Valdo.
As vestimentas dos Praiás, que encobrem todo o corpo, são feitas com cipó e
chegam a pesar cerca de 15 quilos. O preparo
exige muita dedicação: depois de coletar o
material no mato, bate-se com um cacete
até que vire fibra, então, põe-se pra secar
numa corda. As roupas, feitas pelas indígenas
mais velhas, são usadas somente nos rituais
e pelos que estão preparados.
Toré segue noite adentro
O maracá é chamado de bolíva na língua
Karuazu. Ao toque do maracá, puxado pelos
mestres de mesa – os líderes religiosos –,
os Praiás cruzam o terreiro por três vezes,
enfileirados e com o movimento do corpo
em ritmo contínuo e igual, onde os pés
parecem flutuando. Cada vez que cruzam
o terreiro, o movimento é interrompido
para uma reverência dirigida ao puxador do
canto. Em certo momento, um Praiá se desloca da fila e fica tocando o bolíva ao redor
do terreiro, voltando a dançar em direção
contrária à do grupo, em posição de proteção de interferência negativa. Enquanto
isso, duas mulheres, protetoras dos Praiás
(chamadas “donas dos folguedos”), ficam
nas extremidades e seguram os braços das
duplas para dançarem.
À meia-noite, os Praiás se recolhem
no Poró, enquanto a aldeia mantém-se em
silêncio, interrompido apenas por sons de
conversas entre algumas pessoas. Uma hora
depois, os Praiás retornam e começam a
dançar o toré. Toda a comunidade participa,
até surgirem os primeiros raios do sol.
Toda a comunidade deve participar do
ritual. Caso não seja obedecida por algum
dos membros responsáveis pelo Encantado
– entidade religiosa e mística que conduz os
destinos do povo Karuazu –, o pajé, Antônio
José da Silva, 54, sentencia: “à noite chega
um cidadão e diz, ‘caboco’, se você não vier
eu vou te buscar”.
Outro dia de ritual
No dia seguinte, às 9 horas, os Praiás
recomeçam o ritual e seguem até o meio-dia,
quando se dirigem até o local onde as mulheres prepararam a alimentação. Cada um
recebe o prato e, em fila, vão para o Poró.
Por volta das 14 horas, os Praiás dançam
no terreiro por nove vezes, em círculo e em
cruz. Ao término, vão buscar os homens e
mulheres, com corpos pintados com uma
tinta branca extraída de barro da região,
para conduzi-los para o ritual da Cansanção
(tipo de árvore da região que, ao tocar na
pele humana, produz coceira e caroços
no corpo), carregando os galhos sobre os
ombros pintados.
Postos em fila e intercalados entre os
Praiás, os homens e mulheres cruzam o terreiro novamente por três vezes. Depois, com
um grupo de mulheres à frente, carregando
balaios na cabeça cheios de alimentos, os
mestres de mesa puxam o canto e se dirigem
para um segundo terreiro, onde repetem os
mesmos atos religiosos. Depois, seguem
para o final do ritual, em outro local, onde
são coladas as oferendas no chão. E aí começa a penitência, onde os pares passam sobre
os corpos as folhas da cansanção, juntam
os galhos e, com os pés, destroem-nos até
o último pedaço. Em estado de êxtase e
exaustos sob o sol causticante das tardes
sertanejas, dançam três rodas de toré e
voltam cada um para sua casa.
Fotos
do ritual
celebrado
no mês de
março
O
Abril-2007
14
As raízes do povo Karuazu
s antepassados do povo Karuazu migraram
para Alagoas há quase dois séculos. Antes,
eles viviam em Pernambuco, em aldeamento
organizado por missionários católicos e funcionários
do Serviço de Proteção ao Índio. Ali, vive hoje o povo
Pankararu.
Com o aumento da população do aldeamento, diversos grupos migraram em busca de terras para viverem e
praticarem seus rituais em paz.
Os descendentes dos Pankararu são povos que atualmente ocupam quase todo o extremo oeste do sertão alagoano. Em Alagoas, os Karuazu permaneceram anônimos
até o final do século passado. Somente em abril de 2000
eles assumiram para a sociedade a sua identidade étnica
e iniciaram a realização de seu ritual em público.
A relação religiosa entre os grupos foi mantida. Antes
de realizar os rituais em Alagoas, em março, eles participam dos rituais Pankararu, em fevereiro.
Resenha
Ameríndia
Foto: Victorino Tejaxun
Aspectos Fundamentais
da Cultura Kaingang
Obra apresenta o panorama quase completo de uma sociedade indígena
O
livro Aspectos Fundamentais da Cultura
Kaingang é a publicação da dissertação de
mestrado da autora, Juracilda Veiga. Nele
se pode ver um panorama quase completo
de uma sociedade indígena, apresentando aspectos
fundamentais da cultura Kaingang, cuja população
é estimada em cerca de 29 mil pessoas nos estados
de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande
do Sul.
A autora trabalhou como indigenista durante oito
anos entre os Kaingang, com uma presença maior nas
áreas de Xapecó e Chimbangue (SC) e Nonoai (RS). Desse convívio, afirma que, por trás de uma roupagem de
“povo aculturado”, os Kaingang guardam fidelidade à
sua cosmologia e seguem as balizas colocadas por sua
cultura. Somente a pesquisa de documentos históricos
combinados com uma pesquisa bibliográfica não seria
suficiente para a compreensão da cultura desse povo
sem que houvesse uma convivência cotidiana.
O trabalho está dividido em 13 capítulos e aborda
praticamente todos os aspectos da cultura Kaingang,
o registro arqueológico, a organização social, a economia, a história do contato, o sistema de nominação
e os ritos de luto.
Para a análise da organização social dos Kaingang,
a autora tomou como ponto de partida as questões
colocadas pelos pesquisadores dos Jê Centrais e Setentrionais, buscando encontrar pontos de contato e
princípios comuns entre a organização social Kaingang
e as formas de organização dos outros povos Jê. Com
relação a este ponto, vemos um estudo detalhado sob
a denominação “metades clânicas”, para a divisão que
marca a distinção mais importante entre membros na
sociedade Kaingang. Conforme sua orientadora, professora Vanessa Lea, a autora resgata a relevância da
teoria de descendência e da aliança matrimonial e foi
por meio da pesquisa ora publicada que se desvendou
a riqueza e a complexidade da organização do povo
Kaingang e suas feições Jê.
Destacamos a apresentação, em detalhes, do ritual
dos Kaingang de Xapecó, para os mortos, a festa do
Kikikoi, cuja cerimônia pode ser considerada como o
centro de sua vida ritual.
Evento convocou Cúpula de Mulheres Indígenas para 2007
3ª Cúpula Continental de
Povos e Nacionalidades
Indígenas da Abya Yala
E
ntre os dias 26 e 30 de março mais de duas mil pessoas, vindas
de 18 delegações de todo o continente americano (Abya Yala)
se reuniram na terra sagrada Maya ‘Iximche’, na Guatemala, na
3ª Cúpula Continental de Povos e Nacionalidades Indígenas da
Abya Yala. O lema “Da resistência ao Poder” norteou as discussões que
reforçaram a luta pela autonomia e o avanço da organização indígena
no continente.
No documento final, os participantes reafirmaram os princípios milenares da reciprocidade, complementaridade e dualidade e as lutas em
defesa da natureza, pela autonomia e livre determinação dos povos.
Para avançar nessa luta e enfrentar os desafios dos novos tempos,
as organizações indígenas participantes enfatizaram a necessidade de
intensificar as alianças entre os povos e com os movimentos sociais.
Nesse sentido, decidiram constituir a Coordenação Continental das
Nações e Povos Indígenas da Abya Yala, como um espaço de articulação
e intercâmbio.
Em relação às ações locais, os participantes resolveram consolidar os
processos de refundação dos países, construindo Estados plurinacionais
e sociedades interculturais, através de Assembléias Constituintes com
representação direta dos povos indígenas.
O documento final da Cúpula responsabiliza os governos dos países americanos pela extinção dos povos do continente, por manterem
impunes as práticas genocidas das empresas transnacionais, e condena
as nações que não ratificaram a Conveção n.169 da Organização Internacional do Trabalho sobre povos indígenas. A carta tmbém denuncia a
pouca vontade das Nacões Unidas em viabilizar a Declaração dos Direitos
dos Povos Indígenas.
Ao final do evento, foi convocada a Cúpula Continental de Mulheres
Indígenas e Cúpula Continental da Infância, Adolescência e Juventude das
Nações. Além disso, foi chamada a marcha continental dos povos para
salvar a Mãe Natureza, prevista para 12 de outubro de 2007. (Informações
da agência Minga/Movimientos.org)
Aspectos Fundamentais da Cultura Kaingang
Juracilda Veiga
Campinas/SP : Curt Nimuendajú, 2006
254 p.
É importante chamar a atenção para os anexos
da presente publicação com textos sobre mitos dos
índios Kaingang, a lista de nomes e seus respectivos
clãs e seções, assim como um vocabulário e sua
forma ortográfica. Acompanha o livro um CD com as
genealogias Kaingang de Xapecó.
A presente obra marca o surgimento da Editora
Curt Nimuendajú, voltada prioritariamente à publicação de obras relacionadas aos povos indígenas do
Brasil, nas áreas de etnologia, etnografia, história,
lingüística, indigenismo e educação.
Leda Bosi
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15 Abril-2007
N O N O A I
29 anos de luta dos Kaingang
N
onoai, uma das inúmeras terras do
povo Kaingang, no Sul, havia se tornado
símbolo de opressão na década de 70.
Basta lembrar que ali havia cerca de mil
Kaingang e Guarani e 10 mil colonos.
Numa das assembléias indígenas de 1977, o Kaingang
Kandetê denunciava que muitos deles haviam sido
surrados e “tem muito índio que foi morto à pedra,
como meu tio João, que foi morto na estrada. Tem
índio que ficou aleijado.” Outros já estavam beirando
o desespero: “Ou lutamos e botamos os invasores pra
fora ou nos entregamos de vez. Que venham, nos
matem e façam uma grande vala e nos enterrem aí
todos juntos.”
Ia distante o ano de 1848, quando o cacique
Nonoai aceitou, em sua aldeia, indígenas de outras
regiões como Guarita, Guarapuava e Palmas. As
promessas do governo não foram cumpridas e a
criação do Serviço de Proteção ao Índio-SPI, em
1912, só fez agravar a situação. Alegando que havia
“muita terra para pouco índio”, os funcionários
deste órgão passaram a arrendar aos colonos da
APOIADORES
UNIÃO EUROPÉIA
Abril - 2007
16
região parte dos 14.900 hectares, especialmente as
melhores terras. No início, os Kaingang aceitavam
como um fato consumado, sobretudo quando
certas famílias ficaram beneficiadas. De fato, alguns
arrendatários tentavam pagar o combinado, que era
25% da produção, mas dificilmente esse pagamento
chegava às famílias indígenas, ficando na maioria das
vezes nas mãos de algumas lideranças e do chefe do
Posto Indígena.
Foram as Assembléias Indígenas e, sobretudo,
as visitas e encontros apoiadas pelo Cimi, que
despertaram a consciência de seus direitos e a
necessidade da luta.
“Estou vendo que nós não temos direito a coisa
alguma. Vivemos oprimidos e sem direitos”, queixavase Iakam, numa das assembléias. “Os intrusos acham
que têm mais direito de fazer roça do que eu, que sou
índio. Os intrusos são cheios de dinheiro dentro de
minha terra. Mas nós temos o direito à lei e temos
o direito de falar.”
Depois de alguns anos de muita articulação,
os Kaingang resolveram, no final de abril de 1978,
expulsar os invasores. Este movimento iniciou-se em
Guarapuava, no Paraná, espalhando-se pelas terras
indígenas no Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Em
Nonoai, armados com facas, paus e alguns revólveres
velhos, puseram para fora cerca de 530 colonos,
exigindo que abandonassem tudo: plantações,
animais e casas.
O que chama atenção, foi a forma coletiva da
ação, destacando-se apenas uma ou outra liderança,
como Nelson Xangrê, hábil estrategista e corajoso
guerreiro. Prova disso foi a maneira hábil e articulada
de destruir sincronizadamente o que era mais
precioso para os invasores -- as escolas infantis -construídas dentro da terra indígena.
Entretanto os Kaingang nem imaginavam que
aqueles colonos, que ficaram à beira da estrada e se
recusavam ir para Rondônia, formariam o combativo
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra- MST,
que até hoje se impõe como uma grande força de
pressão e organização das lutas camponesas.
Benedito Prezia
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