OS DESCONHECIDOS TERRITÓRIOS DA SUBJETIVIDADE:
um corpo febril e a descoberta de si em
“Uma italiana na Suíça”, de Clarice Lispector
Samarkandra Pereira dos Santos Pimentel
Doutoranda em Letras pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB
Samara Inácio da Silva
Universidade Regional do Cariri (URCA).
Mestre em Letras pela Universidade Federal do Ceará - UFC.
Palavras-chave: corporeidade. gênero. narrativa.
Abstract
A remarkable trait in Clarice Lispector's work is the inner
investigation that reflects on the problems of the human condition. In
“An italian in Switzerland”, a narrative published in her collected
writings “Para não esquecer”, she follows her own rule. In this story,
we get to know Rosa who, after some hard inner discoveries, when
wandering by the dominions of an unknown subjectivity, finds
herself a woman, revealing secrets of a prior abulic body. Therefore,
in analizing the constituent elements in this narrative, we shall make
use of the theories that discuss the subjectivity and the relationship
of the subject with his own body, that is thus understood as a territory
full of emotions and feelings. In order to proceed with this analisys, it
shall be of great importance the work of Garcia, Nunes, Xavier and
Birman.
Keywords: corporeity; gender; narrative.
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Traço marcante na obra clariceana é a sondagem interior que
reflete acerca dos problemas da condição humana. Em 'Uma
Italiana na Suíça', crônica publicada na coletânea Para não
esquecer (1978), a autora não foge à regra. Nesta história,
conhecemos Rosa que, após algumas difíceis descobertas íntimas,
ao trilhar os territórios de uma subjetividade desconhecida,
descobre-se mulher, desvelando os segredos de um corpo antes
abúlico. Assim, analisando os elementos que compõem esta
narrativa, acercar-nos-emos também das teorias que buscam
debater a subjetividade e a relação do sujeito com seu próprio
corpo. Este é assim compreendido como território fértil de emoções
e sentimentos. Para tanto, será de grande valia recorrermos a
Garcia, Nunes, Xavier e Birman.
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Resumo
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“O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome,
e para mencioná-las era preciso apontá-las com o dedo”.
Gabriel Garcia Márquez
Considerações preliminares
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A abordagem que norteia este breve estudo acerca da crônica “Uma
Italiana na Suíça”, de Clarice Lispector, leva-nos a recorrer às teorias que
trabalham a narrativa da autora sob o ponto de vista filosófico-literário, como a de
Nunes (1995), em que as estratégias da linguagem são debatidas para estabelecer
o caráter, por vezes, existencial das obras clariceanas. De certa forma, tal ponto de
vista tem-se tornado comum entre os estudiosos ou admiradores da escritora, o
que não implica a invalidação dessa atitude crítica.
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No entanto, tendo em vista que a abordagem literária se constrói a partir
de um pensamento pretensamente “interdisciplinar” à crítica literária, juntaremos
os trabalhos que têm sido desenvolvidos em torno da consistente relação que se
apresenta entre os sujeitos e seus corpos. A idéia de corpo nos remete a uma
compreensão que o apreende, enquanto território a ser descoberto e mapeado,
evidenciando, assim, a necessidade de promover um encontro entre o sujeito e seu
próprio corpo, como forma de travar conhecimento com o mundo e consigo. Daí a
necessidade de dialogarmos com Garcia (2006), que nos proporciona a percepção
das trajetórias do corpo em face do mundo, da época, da identidade e da
territorialidade. Caminho semelhante segue Xavier (2002-2004), quando se
propõe a discutir o tratamento dispensado ao corpo, percurso traçado desde os
gregos até a contemporaneidade e que se divide em dois momentos de extrema
importância em nosso trabalho: o corpo invisível e o corpo subalterno.
À crítica literária e aos estudos acerca do corpo, contudo, é necessário
relacionar os trabalhos desenvolvidos por Birman sobre o feminino, investigação
de base freudiana e que nos fornece subsídios para observar de que maneira se
apresenta o feminino na crônica clariceana, o que indubitavelmente nos leva a
considerar os estudos sobre gênero como elemento complementar na
fundamentação discursiva que empreendemos sobre o estatuto do feminino em
“Uma Italiana na Suíça”.
Portanto, compreendemos que a reflexão teórica somada ao texto
literário é fundamental para o andamento de nosso trabalho, haja vista a relevância
que se tem dado aos territórios da subjetividade, ao (re) conhecimento do corpo
como conhecimento de si e ao embate travado entre o estatuto do feminino em face
da sociedade.
Todos estes elementos estão estrategicamente dispostos na narrativa
clariceana, explícita e intrinsecamente, pois a personagem que protagoniza a
crônica em estudo é construída a partir da ausência dolorosa do conhecimento,
confrontando-se consigo. Assim, a autora, ao construí-la, pressupõe que sua
necessidade de conhecimento de si - mesmo que tardiamente - avulta como
elemento indispensável. Já a felicidade, por sua vez, não poderia ser alcançada,
não em virtude de seus quarenta anos de idade, mas, sobretudo, pela ineficiência
de saber que se é.
O mundo obscuro de Rosa
As obras de Clarice Lispector integram a geração de 45 do Modernismo
brasileiro e se situam naquilo que se convencionou chamar de corrente intimista, o
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que proporciona uma análise sempre voltada para a investigação do “ser”, do “eu”;
o viés de exame se constrói sob a ótica filosófica ou filosófico-literária, em que,
muitas vezes, o elemento literário é ofuscado em virtude de estudos que
supervalorizam apenas um dos caminhos percorridos pela autora na concepção de
seus escritos. No entanto, a 'falha' da crítica não diminui o valor de suas obras
literárias que dignificam a perscrutação interior da corrente intimista, quando a
sondagem circula pelo íntimo das personagens, procurando descrever seus
estados de alma e suas angústias.
Seu cotidiano cinzento pode ser apreendido tanto pela ambiência da
crônica quanto pelo título que a ficcionista escolhe em que se confrontam Itália e
Suíça, isto é, cria-se uma oposição entre o clima da Itália, nem sempre de
atmosfera fria, e o clima suíço, quase sempre gélido.
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A narrativa se inicia mostrando o suplício de Rosa, uma italiana na Suíça,
conforme indica o título da crônica, cuja angústia logo é explicitada: “Rosa perdeu
os pais quando era pequena. Os irmãos se espalharam pelo mundo e ela entrou
para o orfanato de um convento. Lá levava uma vida sóbria e dura com as outras
crianças” (Lispector, 1999, p. 88). Além da tentativa de mostrar o cotidiano da
protagonista, esta passagem demonstra a semelhança entre Rosa e as outras
crianças, pressupondo que ela não se destacava, não era “diferente” de nenhuma
outra, fazendo com que a similaridade entre os seres do orfanato denotasse um
dado cruel, já que subverte as questões referentes à subjetividade e à
individualidade.
Órfã muito cedo, ela foi morar num convento, longe dos outros irmãos,
fator que nos coloca frente a um profundo estado de solidão, porque esta mesma
similaridade entre os seres também delibera um estado de isolamento. Sobre a
“orfandade”, assevera-nos Pellegrino (1988):
“Há uma orfandade das coisas e dos seres, no mundo de hoje.
E entre coisas e seres órfãos vagueia o homem órfão, pois só
se conquista a plena pertinência ao mundo na medida do
consentimento às coisas para que existam, no esplendor de
sua graça” (Pellegrino, 1988, p.191).
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A assertiva de Picchio vai ao encontro do discurso de Auerbach (2004)
quando de suas observações sobre To The Lighthouse, romance de Virginia Woolf,
em que se percebe claramente a alusão às cenas “miniaturizadas”, isto é, aos
acontecimentos sem importância na narrativa, como o momento em que Mrs.
Ramsay mede o comprimento das meias no filho caçula, James. Acerca disso,
afiança-nos Auerbach (2004): “Neste episódio totalmente carente de importância
são entretecidos constantemente outros elementos, os quais, sem interromper o
seu prosseguimento, requerem muito mais tempo para serem contados do que ele
duraria na realidade” (Auerbach, 2004, p. 477). Assim, tanto Picchio quanto
Auerbach tocam em pontos decisivos da prosa clariceana, porque os
acontecimentos cruciais da narrativa são gestados através das (des) importantes
cenas ou falas que compõem a história de Rosa.
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Segundo Stegagno Picchio (1997), o estilo da autora é compacto e pode
ser percebido nas suas coletâneas de contos, em que “o encontro entre o quotidiano
cinzento e os atos de rebelião vem celebrado de ceninhas familiares, miniaturizadas
e cruéis” (Stegagno Picchio, 1997, p. 612). Nós acrescentamos as crônicas de
Clarice Lispector, porque estas também perseguem, na maioria das vezes, o
mesmo desejo de desvendamento do eu e, principalmente, os aspectos elencados
acima são plenamente percebidos na crônica “Uma Italiana Suíça”, sobretudo
quando se ressalta a aparente ingenuidade da personagem, que nem por isso se
priva de sair em busca do “conhecimento”.
A orfandade de Rosa se complementa com o status de “estrangeira” da
personagem, que não havia perdido somente os pais, mas também sua Pátria, o
que inviabiliza a conquista da “plena pertinência” mencionada por Pellegrino.
Também vale lembrar que, de certa forma, os órfãos irmanam-se na
elaboração diária de uma solidão acompanhada. Deste modo, sem vaidades, a
vida da protagonista passa a girar em torno de pequenos e permitidos prazeres
como o simples gosto pelo clima outonal, haja vista seu cotidiano, antes da saída
do convento, resumir-se ao ora et labora:
“Ela lavava roupa, varria os quartos, costurava. Enquanto isso
as estações se sucediam. Com a cabeça raspada e o longo
vestido de fazenda grosseira, às vezes, com a vassoura na
mão, espiava pêlos vidros da janela. O outono era a estação de
que mais gostava porque não era preciso sair para vê-lo: atrás
dos vidros as folhas caíam amareladas no pátio, e isso era o
outono”. (Lispector, 1999, p. 89)
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Como todo convento, não havia a presença de homens, porém, neste, o
sexo masculino representava o impuro, tanto que “quando um homem pisava no
patamar, lavava-se o chão e queimava-se álcool em cima” (Lispector, 1999, p. 88).
Novamente, a similaridade de gênero entre as internas do convento ressalta a
solidão, evidenciando o ausente conhecimento do corpo, enquanto instrumento
sexual. Acerca do tema, Bernell (2002) afirma:
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“[...] o período de internação em ambiente especial constitui
parte significativa do período vital total do indivíduo. Esse
lapso de tempo no qual o indivíduo vive confinado pode deixar
marcas profundas na subjetividade e se configura enquanto
tema de estudo apropriado em si mesmo. A condição de
internado, seja num hospital geral, num hospital psiquiátrico,
numa prisão, num colégio interno, num convento ou seminário,
nos parece em si mesma como um assunto que merece ser
estudado e compreendido” (Bernell, 2002, p. 02)
Ora, as marcas aludidas por Bernell podem ser percebidas na narrativa
através, por exemplo, do gosto pelo outono, que, em princípio, Rosa admira
“porque não era necessário sair para vê-lo” (Lispector, 1999, p. 89), sugerindo, de
início, que o hábito de ficar sempre dentro do convento já fazia parte da própria
subjetividade da personagem e demonstra o desconhecimento acerca do mundo e
de outros indivíduos; entretanto, o outono adquire certo valor para a protagonista:
“atrás dos vidros as folhas caíam amareladas no pátio, e isso era o outono”
(Lispector, 1999, p. 89). Chevalier; Gheerbrant (1997), acerca do simbolismo que
há em torno da folha, afirma: “un bouquet ou une liasse de feuille désignent
l'ensemble d'une collectivité, unie dans une même action et une même pensée”
(Chevalier; Gheerbrant,1997, p. 438). Era isso que Rosa conhecia: uma única
ação, um mesmo pensamento, a coletividade do convento.
Apesar de ter sido publicado como crônica, percebemos que Rosa destoa
das personagens de Clarice Lispector, sempre apontada como criadora de
personagens de ampla densidade psicológica e indecifrável complexidade. Não
obstante ser diferente de personagens como G. H. e Joana há certa fidelidade no
tom narrativo também comum à autora:
“Clarice Lispector se manteria fiel às suas primeiras conquistas
formais. O uso intensivo da metáfora insólita, a entrega ao
fluxo de consciência, a ruptura com o enredo factual têm sido
constantes do seu estilo de narrar que, na sua manifesta
heterodoxia, lembra o modelo batizado por Umberto Eco de
“opera aperta”. Modelo que já aparece, material e
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semanticamente, nos últimos romances, A Paixão Segundo G.
H. e Uma Aprendizagem ou O livro dos Prazeres.” (Bosi, 1994:
p. 424) [grifos do autor].
Apesar dos traços do perfil de Rosa serem simplórios e dos problemas
próprios de quem descobre o mundo, o que acentua a admiração adolescente da
protagonista diante de suas descobertas, a fidelidade ao insólito permanece assim
como o fluxo de consciência, o que demonstra a profunda necessidade da autora
em criar personagens que desconstruam a visão corriqueira da vida e das coisas.
O mundo recente de Rosa
“Todas as histórias que mencionei tratam direta ou indiretamente
da característica humana da curiosidade. Esta, por seu turno,
leva quase fatalmente ao tema do conhecimento proibido, a um
limite potencial à curiosidade. A curiosidade conduz certos
indivíduos a atos como os de Pandora e de Psique, do Peregrino
de Dante e do Filho do Elefante. No Paraíso Perdido, a
imaginação sonhadora de Eva transforma a curiosidade em uma
forma de subversão lírica. Por medo de perder tudo, a princesa
de Clèves restringe sua ansiedade de descobrir novas
dimensões do amor” (Shattuck, 1998, p. 166).
Ora, Shattuck ressalta algo importantíssimo para nosso estudo, a
curiosidade é uma característica humana, portanto, trata-se de algo inerente aos
indivíduos que se encontram sempre diante do mesmo, no caso específico de
Rosa, a curiosidade se efetiva frente à necessidade de conhecer o diferente: o
mundo e a si.
Acerca da saída de Rosa, a narradora descreve suas palavras que,
mesmo sem ela saber elucidar, afirma e corrobora nossa observação: “O mundo
me pareceu...” (Lispector, 1999, p. 89). Termo bem escolhido, pois, para ela, o
mundo apenas parecia, conhecia a aparência do mundo, a essência ela descobriria
por meio da curiosidade que a levaria à empreitada de afastar-se do convento,
embora fosse também lá fora viver de maneira subalterna.
Com a saída de Rosa, temos a primeira referência ao corpo: “saiu com
sua trouxa pequena, a cabeça raspada, a saia nos calcanhares” (Lispector, 1999,
p. 89). Esta passagem nos direciona à condição subalternizada da protagonista,
quando a autora colore a saída de Rosa com a “trouxa na cabeça” e a “saia nos
calcanhares”, refletindo a categoria a que pertencia, sugerindo que ela não era
apenas interna, porque a narradora a caracteriza como empregada doméstica,
além de atribuir-lhe qualidades de ex-prisioneira que, mesmo a contragosto das
cruéis freiras, havia pago a sua pena.
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A saída de Rosa equivale à primeira tentativa de se descobrir, de saber se
era capaz, como um primeiro passo decisivo para (re) afirmar sua subjetividade
frente ao novo. Assim, este dado leva-nos a considerar que o estado recluso de
Rosa desperta sua curiosidade – mesmo que monótona – , o que, segundo
Shattuck (1998), é uma das temáticas presentes na literatura de todos os tempos:
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Como mencionamos, Rosa sairia do convento que, para ela, em nada
deveria se assemelhar ao paraíso. Assim sendo, aos vinte anos, decidiu partir, a
contragosto das freiras. Foi o primeiro passo dado sozinha: “Era uma vontade
obstinada, monótona, passiva. As irmãs se espantaram, disseram que ela iria para
o inferno. Mas como Rosa não retrucava sequer com um argumento, venceu. Saiu,
foi empregar-se como criada” (Lispector, 1999, p. 89).
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O corpo da personagem, ao sair, ainda estava profundamente marcado
pelo tempo vivido no convento, cujas roupas suscitam o recato, utilizado
indubitavelmente para refrear a subjetividade e a impulsividade sexual das
internas. A saia comprida é a marca levada por Rosa para o mundo de aparências,
de sonhos. Não obstante, ser uma marca criada de forma artificial, assemelha-se
ao que Neto assevera sobre a cicatriz de Ulisses: “o território do corpo é uma carta –
no sentido mesmo cartográfico – a enunciar uma série de experiências que foram
sendo impressas ao longo do tempo e das quais nem sempre se pode fugir ou
apagar” (Neto, 2006, p. 57). Os anos experienciados no convento acarretam uma
nova compreensão da carta/corpo, em que a corporeidade passa a ser constituída
a partir da substancialidade da vivência, não podendo, portanto, ser meramente
esquecida.
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Na nova morada, devido aos costumes adquiridos no convento, ficava
semanas sem pôr o pé fora, pois, segundo ela explicou à narradora, “naquela
época “não sabia sair” (Lispector, 1999, p. 90). Assim, o “novo” ambiente familiar,
em si, não trouxe, inicialmente, a carga semântica esperada, pois, apesar da
mudança de lar, Rosa demonstrou um enraizamento dos costumes adquiridos,
acentuando sua solidão, tão corriqueira no antigo habitat. Porém, graças Cooper, o
“novo”, numa inconsciente e inusitada tarde de ócio, começou a lhe aparecer:
“Numa tarde em que tudo lhe pareceu vasto demais – livre e sem trabalho era
quase pecaminosa – sentiu que deveria se aplicar, ter um sentimento mais
limitado...” (Lispector, 1999, p. 89). Aqui, a literatura representaria aquilo que
Shattuck chama de conhecimento proibido, muito embora a leitura não fosse
proibida a Rosa, no convento, a liberdade de ler não era exercitada, devido a uma
vida dedicada ora et labora imposto pela diretora. Assim, Rosa, já livre dessa
severa mulher, “com grande austeridade”, decidiu ler:
“[...] a cabeça pôs-se então a flutuar. Fechou o livro, deitou-se,
cerrou os olhos. Seus olhos estavam crescidos, quentes,
imóveis: ela ardia em febre. A dona da casa passou a noite a
velá-la, mas nada havia a fazer, ela não se queixava, não pedia
nada, e a febre a consumia. De manhã estava emagrecida, de
olhos menos abertos. Assim passou mais um dia e mais uma
noite. Então chamaram o médico” (Lispector, 1999, p. 89).
O culpado pela febre de Rosa foi Le corset rouge! Obra do escritor inglês
Fenimore Cooper, cuja história se passa nas cercanias de Paris (daí o título em
francês), que narra uma história bem trivial: um homem inescrupuloso que, graças
à irmã, consegue regenerar-se, porém, que havia um claro despreparo de Rosa,
acostumada a ler somente a Bíblia e livros religiosos, repletos de homens bons e
regenerados, para os livros românticos e açucarados, está claro no texto. O
estranhamento, certamente, se deu devido à ausência no Livro Sagrado de
mulheres capazes de provocar tamanha modificação.
Levando-se em conta que tanto no Velho e no Novo Testamento a
sujeição feminina era pregada, como nos diz Timóteo: “A mulher aprenda em
silêncio, com toda a sujeição. Não permito, porém, que a mulher ensine, nem use
de autoridade sobre o marido, mas que esteja em silêncio." (I Timóteo 2:11-12).
Assim, como sempre a mulher está sujeita ao homem, codificá-lo, mesmo que a um
irmão, através de atos e palavras, seria bem improvável e confuso para a
despreparada Rosa.
Mas a confusão entre fato e ficção foi desfeita pelo médico, “o primeiro
homem bom”, que ela conheceu. No entanto, este homem significava não apenas a
bondade, mas simbolizava o primeiro passo rumo ao estabelecimento da relação
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com o outro do sexo masculino, porque, no convento, esta relação era explicitamente
proibida e simbolizava a impureza. Assim, ela, que quase morreu, “dormiu magra e
pálida. A febre diminuiu, ela se levantou” (Lispector, 1999, p. 89).
A suposta impureza, atribuída aos do sexo masculino, desfaz-se com a
atitude do médico, no que concerne à doença de Rosa, pois, sabedor do motivo de
sua febre nervosa, ele tenta dirimir a relevância adquirida pela leitura do livro,
assegurando a Rosa que ela não “deve ler essas coisas, elas são mentira”
(Lispector, 1999, p. 89). Ora, vê-se claramente que o médico tenta preservar a
inocência de Rosa, não se configurando, portanto, na figura perigosa antes
representada.
Este, como o filho de Apolo, Asclépio, Deus da Medicina, que não só
curava praticamente todas as doenças e traumas, como também ressuscitava os
mortos, ressuscitou Rosa. Surge, então, o momento epifânico da protagonista: “É
que eu pensava que tudo o que se escreve num livro e que se publica é verdade,
disse olhando com tanto pudor o primeiro homem–bom” (Lispector, 1999, p. 89).
Através da descoberta de que nem tudo que se escreve é verdade, Rosa descobrese, embrenhando-se, por conseguinte, nos caminhos do ser.
A menina que, de “cabeça raspada e o longo vestido de fazenda
grosseira”, surgiu do susto, transformou-se, dando lugar a uma mulher que, “aos
quarenta anos, ficou tão alegre, não sei explicar”, diz o narrador.
Mas também tentou se matar, por amor. Anos depois, risos, namorados,
novas experiências. Ao que parece, as novas experiências despertam também o
erotismo da personagem. Para Birman (2001), o erotismo deveria ser sublinhado
no psiquismo do sujeito, o que, por sua vez, desnuda a atitude do sujeito em face
da modernidade. É desta forma, portanto, que Rosa se insere no espaço e no
tempo, afirmando-se enquanto sujeito, fixando sua identidade e,
conseqüentemente, deixando de ser o sujeito deslumbrado com o mundo para
despir-se e deslumbrar-se.
Transcrevendo seu diálogo com a protagonista, a narradora, que só no
fim da crônica descobrimos que se trata de uma mulher, revela-nos mais sobre a
conversa entre as duas – é assim que ela legitima sua história: “Também diz: não
sou muito inteligente, tenho a impressão de que a senhora é mais do que eu.
Também diz: “a senhora alguma vez já chorou como uma boba e sem saber por
quê? Pois eu já!” – e cai na gargalhada” (Lispector, 1999, p. 90). Muito embora
possa se dizer que a personagem inscreve-se na associação espaço-temporal
daqueles que são, ela continua sendo a partir do outro, o que revela a profunda
necessidade desse outro enquanto elemento apaziguador da solidão.
No parágrafo acima, referimo-nos às novas experiências de Rosa, como
item de captação de sua capacidade de ser e da necessidade do outro para a
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“[...] Em que o instante mais banal estimula a suspensão do
tempo e a descrição da realidade. Este instante de real perigo
dentro do texto expressa a razão fundamental de ser ele
próprio, uma vez que expõe a desestabilização da ordem
natural das coisas. (...) O texto abre-se para a experiência
pessoal e vivencial, possibilitando o retorno às instâncias da
exterioridade, em estágio de suspensão e de questionamento
dela própria” (Rossoni, 2001, p. 158).
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Dissertando acerca da epifania, termo tão explorado pelos estudiosos da
obra clariceana, Rossoni (2001) fez uma colocação bastante pertinente ao nosso
estudo, ao afirmar que na escritura de Clarice persiste uma “técnica do susto”:
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inscrição de sua identidade. Cabe-nos, assim, também relacionar a presença e a
pretensa proximidade do outro como a crescente consciência da sexualidade, em
que o feminino desenha-se em traços levíssimos, apesar de Birman (1999) relatar
que a “sexualidade se inscreve na fantasia”, culminando na relação aprofundada
entre o sujeito e seu corpo, como assevera ainda o autor de Cartografias do
Feminino: “Essa ênfase conferida ao registro da fantasia indica o lugar psíquico
onde a sexualidade se esboça e se materializa, para se desdobrar então no registro
do corpo” (Birman, 1999, p. 22). Mostra-se inevitável a recorrência à importância do
corpo para a definição da subjetividade e, conseqüentemente, da identidade de
gênero, apesar do autor considerar que a feminilidade se coloca além das questões
referentes a homens e mulheres.
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A descoberta de si torna-se patente quando Rosa, depois da febre, passa
a perceber-se através do outro, com o qual dialoga e lhe assegura que “você tem
cabelos muito pretos. Rosa dizia, tocando-se: é mesmo! (Lispector, 1999, p. 90). A
figura do outro, portanto, será responsável pela inserção da personagem no âmbito
de si, do corpo, porque é a fala do outro que lhe desperta o desejo de tocar-se, de
perceber-se, sem ressalva. Afirma-nos Neto (2006) que “sobre o mapa mutável do
corpo, podem se realizar objetos que o ocupam territorialmente de maneira
efêmera e aí valem os adornos, as perfumações, as pinturas que desaparecem”
(Neto, 2006, p. 58). Dentre os objetos, poderíamos citar a saia nos calcanhares e,
agora, a cor, não uma tintura que desaparecerá, mas a cor natural do cabelo da
personagem, que se apresenta como propriedade do corpo para a definição
gradativa de pertencimento do eu de Rosa, porque a partir dos pequenos eventos
que a circundam, ela vai mapeando a cartografia de seu corpo, desvelando
evidências que a tornem Rosa.
O processo iniciado com a saída do convento converge, agora, para o
mapeamento de um território que possa se constituir como elemento edificador da
identidade da personagem, não basta simplesmente demarcar o território
compartilhado com o outro, porque a nova Rosa – uma italiana do sul, de olhos
arredondados e cabelos muito pretos –, aquela que se descobriu através do outro,
necessita delimitar o mundo que a cerca, por isso, novamente, recorremos a Neto
(2006), quando afirma:
“[...] corpo e território são indissociáveis e determinantes de
identidade. O primeiro território onde a identidade se inscreve
é a do próprio corpo – sobre o qual e decide que marcas fazer,
que símbolos imprimir, que gestos expressar, que adereços
usar”. (Neto, 2006, p. 63)
A conscientização da existência de um corpo, para Rosa, significa aquilo
que anteriormente falamos acerca dos primeiros passos dados sozinha, o que se
torna crônico com os momentos epifânicos da personagem em sua batalha com o
mundo que a cerca, com a inclusão de outros em seu cotidiano e com a
possibilidade sempre crescente de descobrir um novo território a ser explorado.
Considerações Finais
Assim, “Uma Italiana na Suíça”, de Clarice Lispector, publicada na
coletânea de crônicas, intitulada Para não esquecer, mostra claramente a luta de
seres comuns num cotidiano atroz, em que o comum aparece como marca
indelével destes mesmos seres. No entanto, por meio de um jogo linguageiro,
também inusitado, a autora cria uma série de conflitos que terminam por colocar
seus personagens em face de si mesmos. É a partir da tensão entre personagem e
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os territórios desconhecidos da subjetividade que a autora delineia seus livros que
vêm se tornando clássicos para uma determinada casta de intelectuais que a
qualifica como complexa, difícil, existencialista, intimista, etc., adjetivos que, de
certa forma, (des) qualificam a ficção da escritora.
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XAVIER, Elódia. O corpo a corpo na Literatura Brasileira: a representação do corpo nas narrativas de autoria
feminina. GT a mulher na literatura – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística.
Santa Catarina, 2002-2004. Disponível em: http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/artigo_elodia.htm. Acesso em:
30, junho, 2008.
n. 36 2011 p. 103-111
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Dentre os adjetivos elencados acima, talvez, a de escritora intimista seja
o que mais se aplica aos seus escritos, haja vista a sondagem psicológica na qual
ela se aplica, na tentativa recorrente de compreender seus personagens e a si
mesma. Os fatores concernentes a esta compreensão funcionam como
catalisadores ineficientes, já que a temática é – e sempre será – o humano e sua
atitude diante do mundo, em que uma das frases mais célebres da autora vem a
desfazer uma crença de muitos de seus leitores, a de que Clarice desvenda o
humano. Mas é através do próprio discurso clariceano que desfazemos essa aura
pretensiosa que gira em torno de sua literatura. Conforme a autora, “Não se
preocupe em 'entender'. Viver ultrapassa qualquer entendimento”. Ora, essa
famosa frase não desmerece a tentativa de entender, apenas contesta a
possibilidade de uma efetiva compreensão do humano, o que se reflete, enfim, na
postura de Rosa diante do mundo que, por agora, já não mais lhe parecia. O
mundo, agora, era.
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09_Samara Inácio e Samarkandra