A bênção
Eram os dias em que Joazar governava o Templo, Herodes
governava a Judeia, Otávio Augusto, o mundo, e Deus, tudo.
Soprava uma brisa amena e rouxinóis cantavam alegres.
O cheiro dos lírios perfumava o ar e as risadas eram tantas que
encobriam o murmúrio do regato de Bet-Num.
Vinda dos lados do pomar, apareceu Maria. Enfeitada com
flores de jacinto e usando um vestido branco, ela caminhava em
meio a uma roda de doze virgens que sacudiam pandeiros.
Logo depois, do lado oposto, onde ficava o cocho dos camelos, veio José, acompanhado por doze moços que tocavam
flautas.
Os noivos se encontraram à sombra da grande romãzeira e
caminharam sobre um tapete de palha de trigo. Grãos de cevada
foram atirados sobre eles.
Tocou então o chofar, anunciando que o rabi Caifás iria
começar a cerimônia, com o que os homens sorriram e as mulheres choraram, algumas de alegria, outras de inveja.
Mas eis que, quando os noivos deram-se as mãos, uma
pomba voou sobre eles e alvejou Maria com sua sujidade.
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Causou aquilo um sombrio sentimento entre os do povo,
e estes passaram a sussurrar uns com os outros: “Isto é um negro
vaticínio!”, “Mau agouro, mau agouro!”, “A ira de Javé há de se
abater sobre eles!”. Aqueles cochichos, que mais pareciam um
zumbido de abelhas, só tiveram fim quando o rabi bradou:
“Aquietai-vos, filhos de Abraão! Vós conheceis os atalhos
do deserto mas vos perdeis no caminho da verdade. Não sabeis
que a pomba é uma ave abençoada? Não sabeis que foi um dos
animais eleitos para os sacrifícios sagrados? Eia!, celebrai!, pois
que ela, despejando sua marca sobre Maria, anuncia uma bênção
do Altíssimo.”
Ao ouvir aquilo, a multidão se acalmou e finalmente o rabi
pôde selar a união entre os noivos.
Depois, Maria limpou sua testa, deu graças aos céus pelo
presente e foi-se com José para sua nova morada.
A virgem
Mal atravessaram o batente da porta e José, afogueado por
suas urgências de homem, levou Maria para a esteira.
Seus dedos tremiam como chamas enquanto ele tirava as
vestes da esposa. Mas aconteceu que, quando finalmente a despiu, notou que o ventre dela estava bojudo.
Abriram-se em espanto os olhos e a boca de José, que indagou: “Acaso tens um filho na barriga?”
Depois de olhar para o próprio corpo, Maria pôs-se de
joelhos, juntou as mãos em prece, olhou para o teto e disse:
“Milagre, milagre!”
Ao que José, cruzando os braços, perguntou: “De
quem?”
“Não percebes? Devo ter ficado prenhe quando a pomba
lançou seu fértil adubo sobre mim.”
Naquele instante, o espírito da ira apossou-se de José e ele
estilhaçou vasos, chutou cadeiras e rasgou roupas enquanto gritava: “Mentirosa, adúltera, infiel!”
Maria, no entanto, permanecia serena. Sentada num canto, apenas passava as mãos sobre sua barriga.
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Quando já não havia mais o que quebrar e José caminhava
com passos decididos e punhos cerrados em direção à mulher,
eis que a porta se abriu e entrou por ela o rabi Caifás, chamado
pelos vizinhos por conta do barulho.
Maria, cobrindo-se, falou: “Rabi, fui abençoada! Javé pôs
um filho em meu ventre. Mas meu marido é homem de pouca
fé e não me crê.”
Perguntou José: “Por que Deus colocaria um filho em minha
esposa? Por que não o criaria do barro como fez com Adão?”
O rabi pôs as mãos nos ombros de José e disse: “Quem
somos nós para conhecer os desígnios de Deus? Quem subiu às
nuvens para indagar sobre seus planos? Nunca te esqueças de
que o impossível dos homens é o possível para o Criador. Ele,
que separa mares, queima cidades e faz o tudo do nada, pode,
com um simples sopro, semear uma criança no ventre de uma
mulher.”
“Bah!”, comentou José.
O rabi fez com que o esposo de Maria tomasse com ele
uma caneca de água. Depois, vendo que seu espírito estava mais
sereno, ponderou com sabedoria:
“Vê bem, amigo José, se te casaste com uma adúltera, teremos que castigá-la e também àquele que se deitou com ela,
porque está escrito: ‘Conduzireis um e outro às portas da cidade
e os apedrejareis até que morram.’”
“Isso seria bom, pois eu teria minha honra de volta.”
“É verdade. Mas perderias uma bela esposa e até o fim dos
teus dias te apontariam nas ruas, dizendo: ‘Lá vai aquele que foi
traído antes da primeira noite.’”
“Isso seria ruim, pois não gosto de caçoadas.”
“Por outro lado, se foi o Altíssimo quem pejou Maria, terás
a honra de ser o guardião de um fruto celeste.”
José não disse nada, apenas baixou os olhos, mirando a
ponta da longa e ruiva barba de Caifás.
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O Evangelho de Barrabás
“Não tentes encontrar a resposta agora”, continuou o rabi.
“Apenas dorme ao lado da bela Maria e espera, pois o Senhor te
falará em sonho, assim como falou com nossos pais. Amanhã,
quando acordares, saberás se outro homem é a razão de teu ciúme ou se serás tu a razão de ciúme para os outros homens.”
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