MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA
Nº 700/2013 - PGGB
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 31841/DF
RECTE. : CARLOS DOS SANTOS DE OLIVEIRA
ADV.
: MARCELO PIRES TORREÃO E OUTRO(A/S)
RECDO. : UNIÃO
ADV.
: ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO
RELATOR: MIN. RICARDO LEWANDOWSKI – SEGUNDA TURMA
Mandado de segurança. Cassação de anistia
política. Decadência.
Em 25 de novembro de 2003, o recorrente foi contemplado
com a anistia política, por meio de portaria do Ministro da Justiça. Em 2006, uma
nota da Advocacia-Geral da União pôs em dúvida a forma de julgamento
adotada, com relação a certo grupo de ex-militares, pela comissão formada para
avaliar o direito ao benefício. Em 15 de fevereiro de 2011, portaria conjunta do
Ministro da Justiça e do Advogado-Geral da União determinou que fossem
revistas as portarias de anistia de mais de dois mil cabos da Aeronáutica,
inclusive a do impetrante. O grupo de trabalho instituído opinou pela anulação da
concessão da vantagem. Em 23 de novembro de 2011, o Ministro da Justiça
autorizou a abertura de processo de anulação da portaria concessiva da anistia e,
em 22 de junho de 2012, por meio da Portaria n. 1.203, anulou o ato de 2003. O
mandado de segurança se rebelou contra a anulação, arguindo, entre outros
pontos, a consumação da decadência prevista no art. 54 da Lei nº 9.784/99.
O Ministro da Justiça, nas informações que prestou, não pôs em
disputa essa sequência de fatos, mas sustentou a correção jurídica da anulação e
alegou que o mandado de segurança não seria viável, dada a necessidade de
dilação probatória. Sustentou que o princípio da legalidade impunha a anulação e
que o princípio da segurança jurídica “não aniquila o princípio da legalidade” (eSTJ fl. 282). Argumentou que, “na evidência da prática de ato em desacordo com
as prescrições legais, é um absurdo de dispendiosas consequências para o erário
obrigar a sua continuidade”, e que, “no embate entre o interesse público e o
particular, há de prevalecer o interesse público”, cabendo “ao magistrado
ponderar o princípio da segurança jurídica conjuntamente com as demais normas
principiológicas administrativas de regência” (e-STJ fl. 283). Na página seguinte,
o documento da autoridade indicada coatora noticiou que “a Administração
tomou conhecimento do erro cometido em julho de 2006, quando, em auditoria
procedida pelo Tribunal de Contas da União, a Comissão de Anistia foi
informada das imprecisões ocorridas nos julgamentos das anistias” (e-STJ fl.
284). Apegou-se à nota da Advocacia-Geral da União, de 2006, que teria posto
“sob suspeição as anistias concedidas” (e-STJ fl 287), pretendendo com ela
demonstrar que, no quinquênio que se seguiu à concessão do benefício, houve
impugnação ao ato.
O Superior Tribunal de Justiça indeferiu a segurança,
invocando precedente em que se assentou que:
“O mero decurso do prazo de 5 anos não ostenta a
propriedade de impedir que a Administração revise seus
próprios atos, porque a ressalva do art. 54, parte final, da Lei
nº 9.784/99 permite a sua anulação a qualquer tempo, caso
fique demonstrada, no bojo do processo administrativo, a
má-fé do beneficiário, bem como que a via mandamental não
é servil à análise dessa questão em virtude da necessidade de
dilação probatória” (e-STJ fl 1148).
O recurso ressalta que o estudo em que o Ministro da Justiça se
baseou para praticar o ato impugnado no writ rejeitou toda a perspectiva de má-fé
do impetrante. Assinala que “o único motivo para anular a portaria de anistia do
recorrente é a discordância com o critério adotado pela Comissão de Anistia” (eSTJ fl. 1159). Argumenta que a Nota da AGU de 2006 está nos autos, que não há
controvérsia sobre o seu teor e que tudo o que cabe ser aferido é a sua aptidão
jurídica para interromper a fluência do prazo de decadência. A matéria seria de
direito e, não, de fato, como entendera o STJ. Pede o provimento do recurso para
que o feito retorne ao Tribunal a quo.
- II Toda a questão relevante neste momento diz com saber se a
decadência do art. 54 da Lei nº 9.784/99 se consumou. O dispositivo tem este
teor:
Art. 54. O direito da Administração de anular os atos
administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os
destinatários decai em cinco anos, contados da data em que
foram praticados, salvo comprovada má-fé.
§ 1o No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de
decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento.
§ 2o Considera-se exercício do direito de anular qualquer
medida de autoridade administrativa que importe impugnação à
validade do ato.
A portaria que concedeu a anistia, de novembro de 2003, à
vista desse dispositivo, estaria aberta a anulação até novembro de 2008. Não há
dúvida de que a anulação ocorreu em instante consideravelmente posterior, em
junho de 2012. A perda do direito de anular o ato somente deixaria de acontecer
se fossem verificadas as hipóteses que ressalvam a decadência, referidas no
dispositivo legal – a má-fé do beneficiário do ato, como fator concorrente para a
suposta ilegalidade, ou a prática, pela autoridade administrativa, de impugnação à
validade do ato.
Até porque não se recomenda impor ônus de prova negativa ao
litigante, a demonstração de que houve ato de impugnação ou de que o
impetrante se houve com má-fé incumbe à Administração. Percebe-se, a esse
propósito, que a defesa da União na causa não argui a má-fé do impetrante no
procedimento administrativo da concessão da anistia. No procedimento
administrativo que culminou na cassação da vantagem, impugna-se o ato, antes,
pela forma como se houve a comissão de anistia para apurar o efetivo direito do
impetrante ao que postulou.
Sabe-se que vários outros mandados de segurança foram
ajuizados, insurgindo-se contra a mera abertura do procedimento visando a
revisão ou a anulação da anistia. Para esses casos, sim, era precipitado impedir a
ação administrativa de autotutela, porque eventual má-fé do anistiado poderia ser
averiguada no curso das apurações, com o que se aperfeiçoaria a hipótese legal
impeditiva da decadência.
A espécie conduz, entretanto, a uma discussão diferente. Aqui,
já se concluiu o processo administrativo aberto com a finalidade de investigar
causa de invalidação da portaria que concedeu a anistia. A portaria foi anulada e
não se imputou conduta de má-fé para o seu beneficiado. A decisão respondeu,
antes, a um juízo administrativo de impropriedade interpretativa de lei ao se
deferir o benefício.
Por outro lado, não se controverte quanto à existência do ato
invocado pela Administração como caracterizador de impugnação tempestiva à
validade da portaria anulada. A discussão, neste ponto, consiste em determinar a
natureza desse ato, a fim de se estabelecer a sua aptidão para interromper o curso
da decadência. Não há nisso exercício de apuração da realidade de fatos nem dos
seus contornos existenciais, há apenas uma questão de qualificação jurídica de
documento, uma questão de direito.
Sendo essas as coordenadas da causa, não há como negar razão
à crítica formulada pelo recurso ordinário.
Estando, mais, a causa preparada para apreciação do mérito, é
dado enfrentá-lo desde logo.
Está visto que a anulação da anistia se deu bem depois dos 5
anos da sua concessão ao impetrante. Da mesma forma, está assentado que o
recorrente não se portou com má-fé perante a Administração. A segurança, assim,
somente pode deixar de ser deferida se a Nota AGU/JD/1-2006 for tida como
suficiente para vencer a decadência.
A Nota está reproduzida nos autos (e-STJ fls. 142/186) e inicia
informando que resultou de “dúvidas [do Ministro da Justiça] a respeito da
legalidade e do espectro de abrangência da Súmula Administrativa n.
2002.07.0003, da Comissão de Anistia” (e-STJ fl. 142). Essa súmula consignava
que “a Portaria n. 1.104, de 12 de outubro de 1964, expedida pelo Senhor
Ministro de Estado da Aeronáutica, é ato de exceção, de natureza exclusivamente
política”. Produzida por Consultor da União e aprovada pelo Advogado-Geral da
União, a Nota entendeu que “não são recomendáveis generalizações semelhantes
à que foi adotada pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça por ocasião
da edição da Súmula” (e-STJ fl. 150). Sustentou ser “indispensável que a
Comissão de Anistia proceda à análise pormenorizada de cada ato apontado como
ato de exceção de natureza exclusivamente política” (e-STJ fl. 152). Entre as suas
conclusões, o parecer da AGU afirmou que a revisão das análises implementadas
exclusivamente com base na data de ingresso nos quadros da Força Aérea
Brasileira, mostra-se adequada e justa” (e-STJ fl. 162). A Nota, então, seguiu
para o Ministério da Justiça.
Como se vê, a Nota não anulou portaria alguma, apenas
deduziu crítica a critério de julgamento de pedidos administrativos por parte da
Comissão de Anistia e recomendou outra forma de tratamento da questão e a
revisão de casos passados. A Nota não abriu processo administrativo nenhum,
nem formulou censura ao processo específico do impetrante – até porque não era
seu propósito investigar caso-a-caso as concessões concluídas até ali.
A Nota apresenta caráter de resposta a dúvidas jurídicas que
inquietaram o Ministro da Justiça, como ela mesma refere no seu início.
Providência concreta relativa à concessão da anistia ao impetrante, porém,
somente ocorreu quando, em 2011, o Ministro da Justiça, a quem incumbiria
anular o ato da Comissão, determinou a revisão da anistia de diversos
beneficiados, inclusive do impetrante.
Este sendo o quadro, não há se predicar ao parecer de 2006 a
qualidade de ato de impugnação à anistia reconhecida ao impetrante três anos
antes. A Nota é opinativa, desprovida da virtude de deflagrar, por si,
procedimento de desfazimento do ato concreto que havia beneficiado o atual
recorrente. Não há se ver, por isso, na Nota traços típicos de impugnação à anistia
concretamente deferida em processo específico. A Nota não reflete o exercício do
direito de anular o ato, para os fins do § 2º do art. 54 da Lei nº 9.784/99.
Essa conclusão se conforta também em precedentes do STF.
No MS 28.953 (rel. a Ministra Cármen Lúcia, DJe 28.3.2012), que tratava de
decadência para que o TCU impugnasse atos de ascensão funcional, somente a
instauração formal de processo de administrativo orientado a anular a
movimentação de servidores – e não outros atos preparatórios – foi identificada
como apta para interromper o prazo do mencionado preceito de lei. Em voto
vogal, o Ministro Luiz Fux foi além e adiantou:
“No próprio Superior Tribunal de Justiça, onde ocupei
durante dez anos a Turma de Direito Público, a minha leitura
era exatamente essa, igual à da Ministra Cármen Lúcia; quer
dizer, a Administração tem cinco anos para concluir e anular
o ato administrativo, e não para iniciar o procedimento
administrativo. Em cinco anos tem que estar anulado o ato
administrativo, sob pena de incorrer em decadência”.
Quer se tome o ato de anulação em si, quer se tome o momento
de abertura de procedimento direcionado concretamente para esse fim - com a
ciência pelo beneficiado do propósito da Administração -, a conclusão relevante
para este feito é a de que, antes de 2011, nada com qualquer dessas características
aconteceu. Apenas em 2011, o impetrante viu-se em risco concreto de perder a
vantagem de que desfrutava desde 2003 – quando, portanto, já vigia a presunção
legal de que se estabilizara a confiança do cidadão na permanência e na licitude
do ato que o favorecera.
Com efeito, a norma que institui a decadência presta
homenagem ao princípio da confiança do cidadão nos atos dos poderes públicos e
ao valor da constância das relações jurídicas. Decerto que esses valores,
decorrentes do princípio do Estado de Direito, não são absolutos, como sustenta a
União. O que não cabe, porém, é concordar com a recorrida, quando alega que o
Judiciário, em ocorrendo a decadência, ainda pode ponderar esses mesmos
valores com o princípio da legalidade. Semelhante ideia é objetada, com
exatidão, por Almiro do Couto e Silva, ao comentar o art. 54 da Lei nº 9.784/99.
Leciona o professor do Rio Grande do Sul:
“Como se trata [aí] de regra, ainda que inspirada num
princípio constitucional, o da segurança jurídica, não há que
se fazer qualquer ponderação entre o princípio da legalidade
e o da segurança jurídica, como anteriormente à edição dessa
regra era necessário proceder. O legislador ordinário é que
efetuou essa ponderação, decidindo-se pela prevalência da
segurança jurídica, quando verificadas as circunstâncias
perfeitamente descritas no preceito. Atendidos os requisitos
estabelecidos na norma, isto é, transcorrido o prazo de cinco
anos e inexistindo comprovada má-fé dos destinatários,
opera-se, de imediato, a decadência do direito da
Administração Pública de extirpar do mundo jurídico o ato
administrativo por ela exarado, quer pelos seus próprios
meios, no exercício da autotutela, quer pela propositura de
ação judicial visando a decretação de invalidade daquele ato
jurídico”(O princípio da segurança jurídica - proteção da
confiança - no Direito Público brasileiro e o direito da
Administração Pública de anular seus próprios atos
administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do
Processo Administrativo da União. Revista de Direito
Administrativo, Rio, jul/set 2004, vol. 237, p. 290).
Não estando caracterizada a interrupção da decadência na
espécie, o Ministério Público Federal opina pelo provimento do recurso, a fim de
se deferir a segurança impetrada.
Brasília, 1o de março de 2013.
Paulo Gustavo Gonet Branco
Subprocurador-Geral da República
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recurso em mandado de segurança nº 31841/df recte. : carlos dos