O QUE QUER UMA CRIANÇA? APONTAMENTOS SOBRE A INFÂNCIA
CONTEMPORÂNEA
FORTUNA, Tânia Ramos – UFRGS – [email protected]
Eixo: Educação e Infância / N. 17
Agência Financiadora: sem financiamento
Em busca da compreensão da infância
Como são as crianças de hoje em dia? O que mudou em relação à infância do
passado? Por que as crianças parecem ser tão diferentes das crianças de antigamente?
Perguntas como estas afligem muitos adultos que se vêem às voltas com as tarefas de
criar, cuidar e educar crianças. Perplexos, indagam-se: afinal, o que é uma criança? E eu
pergunto: para que serve enquadrar alguém em uma categoria tal como a infância? Para
levar à apropriação e dominação, para melhor controlar ou melhor entender? É preciso
decidir entre aprender e entender ou apreender no sentido de tentar controlar pelo
conhecimento. A Psicologia, bem lembra Foucault (1988), pode ser um conhecimento
formalizante e enquadrador. Trata-se, então, de decidir entre prender ou compreender a
infância. No caso de decidir pela compreensão, o objetivo passa a ser ampliar o
conhecimento a respeito, sem asfixiar o objeto de estudo em categorias e parâmetros
restritivos e irreais.
Isto, no entanto, não é nada fácil, especialmente nos tempos atuais, em que
vivemos sob a égide da dúvida e da incerteza. Como afirma Giddens (2002), a despeito
de a modernidade ser uma ordem pós-tradicional, não é uma ordem em que as certezas
da tradição e do hábito tenham sido substituídas pela certeza do conhecimento racional,
pois esta nova ordem institucionaliza o princípio da dúvida radical e insiste em que todo
conhecimento tome a forma de hipótese. Muitos fatores concorrem para isto, sendo um
deles o fato de que o mundo, diz o autor, está em disparada: “não só o ritmo da mudança
social é muito mais rápido que em qualquer sistema anterior; também a amplitude e a
profundidade com que ela afeta as práticas sociais e modos de comportamento
preexistentes são maiores” (id., p. 22). Assim, corre-se um grande risco ao tentar definir
o que é uma criança de forma conclusiva, pois enquanto o fazemos, a infância já
mudou! Diante deste objeto de conhecimento fugidio, podemos ficar paralisados e
descrentes da capacidade de conhecer, renunciando à busca de saber o que é uma
criança, hoje, ou tentar, nostalgicamente, empregar referenciais teóricos do passado. Isto
também se explica: vivemos sob o efeito da desmedida – conceito cunhado por Negri
(1998) para referir-se à recusa a qualquer sistema de avaliação e à relativização levada
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ao extremo, características da nossa época, depois de a humanidade ter consumido
séculos tentando medir tudo.
Creio que é preciso correr este risco – Giddens chega a dizer que a modernidade
é uma cultura do risco –, pois, afinal, deve haver algo que subsista a tantas e tão rápidas
transformações, que permita responder às questões expostas acima, sem deixar de
admitir a provisoriedade do conhecimento.
Perguntas intermediárias podem ajudar a mapear o caminho para resposta, tais
como: o que quer uma criança? Como conhecer a infância? Para onde vai a infância?
O que quer uma criança?
Tal como Freud perguntava “o que quer a mulher?” (JONES, 1988), cabe
indagar: o que quer uma criança? Esta pergunta supõe que a criança tem um querer, isto
é, tem desejos. Admitir um querer específico das crianças é revolucionário, haja vista o
longo tempo durante o qual se acreditou que as crianças eram reflexo dos adultos, em
versão miniatura, mal dissociadas deles. Percebidas, na melhor das hipóteses, como
seres incompletos, imperfeitos, seu valor não se definia pelo que eram no presente, mas
pelo que viriam a ser.
A criança como categoria social tem um surgimento recente, situado entre os
séculos XIII e XVII, e a descoberta e difusão deste fato é devida a Ariès (1978), um
pesquisador destacado no estudo sobre a criança e seu passado. Tal estudo entrelaça-se
com as pesquisas sobre a história das diversas instituições sociais, da família ao
trabalho, passando pela escola, todas fortemente determinadas pela evolução políticoeconômica da humanidade. Graças a este historiador aprendemos que não existe
natureza infantil e, sim, um sentimento de infância que é produto de uma laboriosa
construção social, variando conforme o grupo social que o experimenta. A infância é,
pois, uma criação da sociedade sujeita a mudar sempre que surgem transformações
sociais mais amplas, o que põe em evidência a importância do mundo social na
conformação do sujeito. A reforma religiosa européia, por exemplo, contribuiu para a
superação de concepções deterministas e fatalistas sustentadas pela Igreja em benefício
da concepção do homem como protagonista de sua existência, o que reforçou a
importância da educação, especialmente das crianças. A revolução econômica
determinada pela revolução industrial, por seu turno, foi acompanhada de uma
verdadeira revolução afetiva ao separar a criança da família e dos adultos devido à
necessidade de escolarizar grandes contingentes infantis como forma de prepará-los
para o mercado econômico e profissional nascente. Disto resultaram novos papéis
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destinados à família, família esta que sofreu uma drástica redução de tamanho,
confinando-se no interior das moradias. A oposição ao trabalho infantil, marca da nossa
época e expressão da consciência elevada das sociedades que se preocupam com a
infância e com a defesa de seu direito à escola e à própria infância, é extremamente
recente e ela mesma expressão do dinamismo que caracteriza a compreensão da
infância, pois na Europa, por exemplo, em 1833, lutar pela redução da jornada diária de
trabalho das crianças para o patamar de dez horas diárias era bastante avançado. No
Brasil, no final do século XIX, com a chegada dos imigrantes, a incipiente
industrialização e o fim da escravidão, as crianças passavam onze horas diante das
máquinas de tecelagem, com direito a 20 minutos de descanso – eram simplesmente
substitutos mais baratos do trabalho escravo (DEL PRIORI, 2004).
Se admitir um querer específico das crianças é revolucionário, também o é ouvilas, como crê Dolto (1999). Como ouvir o que a criança diz? Freud declarou: para ser
educador é preciso penetrar a alma infantil e para isso é preciso reconciliar-se com a
infância dentro de si, para o que a familiaridade com a Psicanálise
tem especial
contribuição (ed. orig. 1913, p. 225). Eis, aqui, um paradoxo: é preciso aproximar-se da
criança que fomos e distanciarmo-nos da criança que fomos, prestando atenção à
criança que está diante de nós. Isto é, para compreender a criança, é preciso aproximarse da criança real, examinar suas condições objetivas de vida, conhecer suas hipóteses,
seus desejos, etc., mas só "enxergarmos" esta criança segundo a lente da nossa própria
infância - que nos assombra.
Assim, se existem desejos especificamente infantis, isto não quer dizer que
sejam independentes dos desejos adultos, já que estes, por sua vez, estão profundamente
enraizados nos desejos infantis passados. A infância, escreve Heywood (2004) é, em
grande medida, resultado das expectativas dos adultos.
Cabe perguntar, então: e nós, adultos, o que queremos de uma criança? A
infância é a esperança do adulto, pois ele tem, através dela, uma promessa de
imortalidade que se baseia na expectativa de que seus valores tenham continuidade
(CALLIGARIS, 2000). Talvez esta seja uma pista para compreender a perplexidade e
até mesmo o mal-estar adulto desencadeado pela percepção de que as crianças estão
diferentes: sem reconhecermos nossa própria infância – na verdade, a imagem guardada
dela – na infância atual, sentimo-nos ameaçados em nosso desejo de perpetuidade e
privados de futuro.
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É, por certo, curioso que, a despeito de vivermos numa época em que ser jovem
seja algo tão valorizado a ponto de que os próprios adultos queiram ser sempre jovens,
fiquemos atônitos ante o desejo infantil de ser jovem também. Não que o desejo de
crescer, de ser grande como o adulto, identificado por Freud na brincadeira infantil (ed.
orig. 1907), não valha mais: o problema é que, sendo o desejo do adulto ser jovem, e
querendo a criança o que o adulto quer, ambos querem o mesmo, sem que um possa se
inspirar no outro e ver nele o seu próprio futuro. O desamparo daí decorrente é, a um só
tempo, causa e conseqüência da época em que vivemos, timbrada pela busca da
satisfação imediata, autocentramento, exaltação do individualismo e euforia de estar em
todo o lugar e em lugar algum. Kupfer (1998) o descreve como a sensação de estarmos
jogados em um mundo fragmentado, sem tradição, sem passado, sem significações
capazes de orientar as ressignificações do futuro.
De outra parte, a infância parece nunca ter sido tratada de forma tão paradoxal
como atualmente: promovemos um verdadeiro infanticídio, enquanto somos largamente
“infantocêntricos”. Castells (2002) observa um grande retrocesso em relação às
conquistas sociais e aos direitos da criança nesta era da informação na qual vivemos,
atribuído à desregulamentação ampla e abrangente e à imunidade das redes globais em
relação às medidas e aos controles exercidos pelos governos. A destruição de vidas em
um grande segmento da população infantil ocorre, segundo o autor, porque as
instituições de controle social são sobrepujadas pelas redes globais de informação e do
capital, favorecendo a exploração infantil. Observamos, no entanto, concomitantemente,
uma centração na infância, visível nas rotinas familiares das classes médias e ricas,
organizadas em torno de necessidades infantis identificadas, geradas e proclamadas pelo
mercado de consumo.
Eis um solo fértil para que teses catastróficas sobre o fim da infância e a morte
da criança proliferem, mas basta um rápido olhar sobre a história do Homem e,
especialmente, da infância, para constatar que os modos de vida estão, desde sempre, se
modificando. Por isso mesmo tem sentido a cautela de Brougère (2004), em sua obra
dedicada à elaboração de uma teoria sociológica da relação entre o brinquedo e a cultura
infantil contemporânea, ao recusar-se a fazer previsão sobre o futuro das crianças.
O que querem, então, as crianças de hoje? Winnicott (1993) já dizia: ter pai e
mãe vivos, juntos e que sejam fortes, dentro de si. Será que isto perdura nos dias de
hoje, em que predominam relacionamentos virtuais que tornam os laços humanos cada
vez mais frágeis, resultando naquilo que Bauman (2004) denomina “amor líquido”,
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cujos efeitos impõem uma nova ordem familiar? Depois de ter servido,
fundamentalmente, para assegurar a transmissão do patrimônio, baseando-se na lógica
do mundo imutável e da autoridade patriarcal, a família, entre o final do séc. XVIII e
XX, fundada no amor romântico, passou a sancionar os sentimentos e desejos carnais
através do casamento, valorizar a divisão do trabalho entre esposos e exercer a
autoridade sobre os filhos, compartilhando-a com o Estado (ROUDINESCO, 2003). É
verdade que a família conjugal, cujos elementos básicos são aliança e filiação, esteve
sempre presente desde Heródoto, mas a novidade da família contemporânea, a partir da
década de 60, é o novo conceito de casamento, definido como uma união de dois
indivíduos em busca de relações íntimas ou realização sexual, cuja duração é relativa. É
a emergência da sexualidade plástica (aquela liberta das necessidades de reprodução),
própria dos relacionamentos puros, como denomina Giddens (1993). Roudinesco
acredita que neste contexto a transmissão da autoridade é mais problemática à medida
que as recomposições conjugais aumentam. Problemas com autoridade e limites da
educação dos filhos convertem-se no centro de gravidade do cotidiano familiar,
estendendo-se à escola. É tão impactante esta transformação da família que um autor
como Castells (op. cit.) vê na desintegração do patriarcalismo, sem que haja sua
substituição por um sistema de proteção proposto por novos modelos de família ou pelo
Estado, um dos fatores para o genocídio infantil de que somos testemunhas na virada do
milênio, concretizado através da exploração infantil em larga escala.
No entanto, a despeito das transformações da intimidade e da família, Alsop e
McCafrey (1999), citando uma pesquisa feita na Inglaterra com a intenção de
estabelecer um ranking de eventos traumáticos segundo as crianças, mostram que figura
em primeiro lugar como temor infantil a perda de um dos pais, tanto faz se por morte ou
divórcio. Já em uma pesquisa feita com 150 crianças porto-alegrenses, entre cinco e 10
anos de idade, alunas de três escolas da rede privada de ensino, descobriu-se que o que
as crianças mais querem é a companhia dos pais - para brincar, praticar esportes, sair,
ficar junto, enfim (ROCHA, 2003). Outra pesquisa, neste caso feita pela Cartoon
Network (VEIGA, 2001), ressalta que a família continua ocupando o centro do universo
infantil. Das mil crianças investigadas, entre seis e onze nos de idade, de quatro capitais
brasileiras, 91% considera que se relaciona bem com pai e mãe, 98% acreditam acatar
seus conselhos, 89% acham importante a opinião dos avós e 83% gostam de passar o
tempo junto de seus pais – vendo televisão, que é a atividade preferida.
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Percebe-se, portanto, que continua sendo importante para as crianças, em meio
às tantas mutações recentes do universo contemporâneo, a presença de adultos capazes
de exercer funções parentais por meio das quais sua inserção cultural e uma herança
moral seja garantida. São vínculos familiares tecidos de modo a desenvolver a
capacidade de estabelecer vínculos coletivos mais amplos, em que possam se sentir, a
um só tempo, amadas, contidas e estimuladas a crescer, separar-se e ser diferente. O que
estas crianças parecem lembrar, com os seus quereres, é que nossa humanidade depende
dos outros.
Não devemos esquecer disto, mesmo quando deparamos com os resultados da
mesma pesquisa da Cartoon Network, em que as crianças revelaram estar mais
interessadas em roupas do que em brinquedos – mesmo juntando os videogames e
demais jogos eletrônicos nesta categoria – e muito preocupadas com sua aparência e
popularidade. No que diz respeito à constituição da subjetividade infantil, os brinquedos
são parte importante deste processo, sendo tão afetados pelas mudanças contemporâneas
como o são os adultos e as crianças. Se, de um lado, as novas preocupações e desejos
infantis podem ser interpretados como um sinal de alerta sobre como a sociedade da
imagem atinge as crianças, em que parecer é mais importante do que ter ou ser, com um
conseqüente autocentramento e valorização das narrativas figurativas – uma verdadeira
cultura da visão -, por outro lado, observar como as crianças elaboram estas influências
ensina muito, inclusive sobre nós, os adultos, e sobre nossa participação na promoção de
seu desenvolvimento e sua aprendizagem.
O modo e com o quê as crianças brincam – ou desprezam o ato de brincar -, é
um dos modos de apreendermos uma parte importante da relação entre o mundo adulto
e o mundo das crianças.
Um exemplo disto é a boneca Barbie. Ela é, conforme
Brougère (2004), um objeto-guia da transformação do brinquedo e, portanto, da
infância, no século XX. A originalidade da Barbie no mundo do brinquedo é mudar
constantemente, mantendo uma forte identidade. Apesar de veicular valores tais como
juventude, beleza, riqueza e ser loira, esbelta e não ter filhos, a criança não é
espectadora da Barbie, pois a introduz num universo de manipulações que limita
qualquer autonomização de valores carregados pela imagem (id., p. 113). Valentim e
Bomtempo (1999), em uma pesquisa em que vinte crianças entre 6 e 8 anos, de creches
beneficentes e escolas particulares, deveriam imaginar que a boneca Barbie era uma
pessoa, descobriram que, apesar de se tratar de um brinquedo altamente estruturado, as
crianças tendiam a recriar sua imagem de acordo com sua própria realidade social.
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Nunca é demais lembrar que o que faz um brinquedo ser brinquedo é a ação de brincar,
e esta ação, para ser denominada brincadeira, deve ser livre, espontânea, ainda que
regulada interna e, por vezes, externamente também; marcada pela não-literalidade, gira
em torno de si mesma, sendo incerta e imprevisível. Um brinquedo não é brinquedo
pelo simples fato de ter sido fabricado com esta intenção, tampouco o conjunto de
significados que contém não é assimilado passivamente. A Barbie, por sinal, quando
criada, em 1959, foi fortemente repudiada pelas mães das pequenas consumidoras
(BROUGÈRE, id.) e ainda hoje é objeto de críticas acerbas (STEINBERG e
KINCHELOE, 2001). A oposição adulta diz muito sobre o fascínio que o universo
Barbie desencadeia: esta preferência infantil teimosa denuncia uma forma de se
relacionar com o mundo adulto, reagindo criativamente a ele.
Silva recorda que desde tempos remotos os brinquedos, assim como os jogos e
brincadeiras, fazem parte do convívio social: nos primórdios, eram feitos dentro da
própria família, por artesãos, de acordo com a matéria-prima com que trabalhavam, de
modo que existia uma relação do indivíduo que criava e fabricava com sua criação.
Todos, inclusive a própria criança, tinham acesso ao próprio processo de construção do
brinquedo. Com a industrialização esta relação se transforma (1989, p. 25). O aumento
das populações nas cidades e a definição do espaço urbano, com suas possibilidades e
restrições às manifestações lúdicas também, incidem sobre a infância. A ocorrência de
brincadeiras na rua não apenas diminui na atualidade, como evidencia a pesquisa citada
por Öfele (2004), que investigou 113 crianças ao longo de ano e encontrou uma redução
de 38% para 35% daquelas que responderam brincar na rua, mas também se
interiorizou, passando a ser praticada em locais fechados, quando não fortemente
controlados. Como no passado, quando eram os adultos que passavam às crianças
objetos antes usados em rituais e cultos (o chocalho e a boneca, por exemplo) e que
integravam laços coletivos com a comunidade, os adultos continuam tendo uma
participação importante na introdução das crianças no mundo do brinquedo e, por
conseguinte, no mundo social.
Quando desprezam os brinquedos e a infância, quer seja em nome do ideal da
juventude eterna, quer seja pela exploração e matança de crianças, ou ainda, pela
reificação da infância, no sentido de coisificá-la, despojando-a de sua subjetividade, os
adultos privam-nas de um importante meio para se chegar ao coletivo geral da
humanidade. A brincadeira é uma dessas trilhas que levam a este coletivo geral da
humanidade, pois, como acredita Silva,
“pela brincadeira vivencia-se questões
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importantes da essência do ser humano: medo, fantasia, faz-de-conta, além de
experimentar relações sociais presentes como cooperação, competição, ganhar, perder,
comandar, subordinar-se” (op. cit., p.75).
A ambigüidade de uma cultura que atribui, o tempo todo, um baixo status social
ao brincar, associando-o à perda de tempo, ‘coisa de criança’, não-seriedade, enquanto
valoriza a juventude, o gozo imediato e sem limites e a alta produtividade, tem
implicações sobre a constituição da infância. Os interesses infantis por aparência e
popularidade são um exemplo da influência dos valores adultos atuais sobre o universo
infantil.
Mas, na confusão de valores criada, há geração de espaço para a reinvenção da
infância, com pistas para a compreensão da relação entre o mundo adulto e o mundo
infantil.
Tomemos o caso das crianças em situação de rua. Apesar de passarem grande
parte do tempo longe dos adultos/cuidadores e expostas às mais diversas situações de
risco, tais como violência física e emocional, como demonstra Cerqueira (2004) em uma
pesquisa envolvendo 72 meninos com idade média de 11 anos e 3 meses que vivem ou
trabalham pelas ruas de Porto Alegre, as crianças criam mecanismos próprios de
proteção e continuam brincando. Este dado é importante à medida que estimula a
reflexão sobre os quereres infantis, pois mostra como a brincadeira mantém sua
importância em um contexto tão adverso e hostil, embora também tão estimulante como
a rua. Em estado de permanente hiper-vigilância - a forma de assegurar mínima
segurança e sobrevivência -, brincam e trabalham, sentindo-se produtivas, constituindo
laços entre contextos e formando uma nova identidade (id., p. 87-88). Um estudo sobre
os jogos eletrônicos preferidos por 85 meninos em situação de rua de Buenos Aires
surpreende: 80% deles declara freqüentar locais de jogos eletrônicos ou em rede, muitos
dos quais todos os dias, 66% preferem jogos com temáticas não-violentas, e os valores
mencionados como prioritários são de superação e atingimento de metas e não, como se
pensava, evasão da terrível realidade vivida para entrar em um mundo imaginário. A
prática dos jogos parece contribuir para a socialização e aprendizagem, associada a
processos de identificação e afirmação da personalidade (MERLO FLORES apud
MORENO, 2004). É bem verdade que na rua tais crianças estão expostas a toda sorte de
riscos e à violência, assim como denunciam, com esta condição, o abandono do papel de
cuidador por parte dos adultos, mas reinventam o ser criança reiterando as necessidades
que têm de interações desafiadoras, protetoras e significativas.
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Isto também se aplica às “screenagers”, isto é, crianças que nasceram numa
cultura mediada pela televisão e pelo computador (RUSHKOFF, 1999), do que
decorrem características bastante específicas para sua forma de se relacionar com o
mundo. É procedente a apreensão com as conseqüências do capitalismo informacional nas palavras de Castells (op. cit.) – em relação aos seus efeitos sobre as condições de
existência que parecem valorizar somente a vivência imediata, que não estabelece
nenhum vínculo com o passado e a tradição, e o isolamento das partes, produzindo uma
experiência de mundo fragmentada. Mas há quem creia (como Morin e Rushkoff, por
exemplo) que vivemos, em verdade, em lugar da aproximação paulatina e inevitável do
apocalipse de uma era, um tumultuado período de mudança marcado pela
descontinuidade, não-linearidade e complexidade da experiência humana, que propicia,
entre outras coisas, o desenvolvimento do raciocínio pós-linear, que requer capacidade
de processar rapidamente a informação visual e manter a concentração por longos
intervalos de descontinuidade. Não se trata, deste modo, de perder a noção de tempo,
mas de lidar com outra noção de tempo. Por isso, mudam os interesses infantis,
orientados para a prática de “surf” (inclusive na tevê, graças ao controle remoto, do que
deriva um novo tipo de espectador), de skate, a leitura de histórias em quadrinhos, jogos
eletrônicos e a Internet, por exemplo. Estes novos elementos da cultura infantil
plasmam-se nas trocas entre os pares (ainda que virtuais), na atenção difusa e,
principalmente, no desafio proposto pelo incerto e pelo inesperado. A atração pela
novidade e pelo risco não só aproxima crianças dos adultos na nossa época, unindo-os
pelos mesmos interesses, como também deve reiterar o papel destes últimos como
mediadores responsáveis destas experiências, pois sempre existe o perigo de que o
triunfo do pragmatismo e da tirania do prazer empurre-nos em direção a ações imediatas
que dispensam a reflexão, produzindo alienação e, em última análise, dando lugar à
barbárie.
Enfim, o que quero dizer é que os adultos continuam sendo importantes para as
crianças, ainda que não da forma como freqüentemente imaginam, e que determinam a
infância, mesmo quando não reconhecem ou assumem seu papel, consciente e
conseqüentemente, na formação do sujeito infantil. É o caso, por exemplo, da
participação dos adultos na brincadeira infantil: enquanto alguns adultos percebem o
apelo que as crianças fazem à sua participação no brincar e respondem-lhes dirigindo
sua brincadeira ou ensinando a criticá-la, outros insistem em manter-se à parte, sob a
alegação do respeito à liberdade que a atividade lúdica requer (BUJES, 2000, p. 223.).
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Não intervir pode ser tão perverso quanto intervir em demasia, já que a omissão indica
descompromisso com a tarefa educativa e mostra-se, ao fim e ao cabo, impossível, já
que sempre há, em alguma medida, intervenção.
Mas os adultos são, também, determinados pela infância, pois as crianças são
parte ativa na determinação de suas vidas e das vidas daqueles que estão ao seu redor.
Pesquisas recentes no campo das ciências sociais indicam ser um engano atribuir aos
pais o papel de modelo e às crianças o papel de seguidoras. As relações entre os adultos
e crianças podem ser descritas como uma forma de interação, na qual os pequenos têm
cultura própria ou sucessão delas (HEYWOOD, 2004, p. 13).
Isto pode ser resumido, de forma poética, nas palavras de Morin: “os outros
moram em nós; nós moramos nos outros...” (2002, p. 95)
Para onde vai a infância?
Esta pergunta tem um duplo sentido: pode ser entendida tanto como desejo de
saber como serão as crianças do futuro, quanto como desejo de saber como serão as
crianças de hoje no futuro. Morin assevera que para progredir é preciso reencontrar a
fonte geradora (op. cit., p. 294). Aproveito este argumento para refletir sobre o futuro da
infância, ainda que concorde com Brougére (op. cit.) sobre quão temível é querer prever
o futuro das crianças.
O ciclo biológico da espécie humana se distingue dos outros primatas por um
longo processo de amadurecimento. A longa duração da infância humana – maior do
que em qualquer outro mamífero – é essencial para que a criança, com seu cérebro em
pleno desenvolvimento, obtenha uma considerável quantidade de informação sobre as
situações ao seu redor. A grande quantidade de tempo e energia dedicada pelos pais ao
cuidado dos seus descendentes pode parecer pouco vantajosa, mas foi um fator essencial
para que aumentasse a coesão social, fator fundamental para a sobrevivência de grupos.
A sobrevivência humana – o futuro do homem – depende, então, do cuidado que os
adultos dedicam às crianças. Com efeito, o futuro do homem está implicado no futuro
da infância.
Nesta perspectiva, as idéias de Brougère iluminam esta reflexão final: é no
presente da infância que nasce a expressão do futuro. Na brincadeira, por exemplo, a
criança, sem determinar o seu devir, aceita a si mesma como um ser dotado de futuro,
como um futuro adulto, ainda que não se deva esquecer que o que prepara o futuro é
mais a experiência de uma diversidade de papéis possíveis do que a escolha
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momentânea de um ou outro papel. A imagem do futuro responde, portanto, a um
desejo do presente (op. cit., p. 94 e 110).
Mas a infância só terá futuro se sobrevivermos. Para tanto, há que se resistir à
alienação e à barbárie, o que é possível, ainda segundo Morin, através da fraternidade,
mas esta, por sua vez, não existe sem maternidade e paternidade (2000, p. 248 e 268).
Voltamos, assim, ao começo – o destino está na origem: o futuro da infância, assim
como o futuro do homem, depende, hoje, de adultos capazes de contribuir ativa e
conscientemente para que as crianças se tornem, como disse Winnicott, elas mesmas,
em uma permanente busca da reinvenção humana.
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