PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Helena de Lima Corvini
Quem tem medo de Oscar Wilde?
Vida como Obra-de-Arte
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Dissertação
apresentada
à
Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para a obtenção do título de
MESTRE em CIÊNCIAS SOCIAIS, sob a
orientação da Profa Doutora Mariza
Martins Furquim Werneck
SÃO PAULO
2012
1
Dissertação intitulada “Quem tem medo de Oscar Wilde? – Vida como Obrade-Arte”, de autoria da mestranda Helena de Lima Corvini, apresentada à banca
examinadora constituída pelos seguintes professores:
Banca Examinadora
___________________________________
___________________________________
___________________________________
2
RESUMO
A presente dissertação busca acompanhar os passos de Oscar Wilde pela
Londres da era vitoriana tardia, o centro pujante de um Império já em decadência.
Nesse momento, o status quo produz um discurso positivista e imperialista sobre o
mundo. A homossexualidade é disputada pelos discursos da ciência médica e da
jurisprudência. Numa época em que a autoridade simbólica para nomear o desejo
homoerótico se encontra questionada, Wilde tem a ousadia de afirmar a primazia do
artista em nomear o mundo. Com sua vida e sua obra, Wilde provoca reações
exaltadas. Suas excentricidades chocam a alta sociedade londrina, da qual se torna o
árbitro da elegância, apesar de sua posição de outsider: irlandês e homossexual.
Vivendo plenamente os ideários do Esteticismo e do dandismo, tem um estilo de vida
acintosamente gay e suscita o medo da "corrupção" e da "influência" sobre os homens
jovens por parte da sociedade inglesa. As masculinidades estão sendo elaboradas
nesse momento e há o medo de que os homens jovens deixem de ser viris cavalheiros
para se tornarem afeminados dândis. Em seus escritos, por meio de paradoxos e
inversões simbólicas, Wilde também mostra a costura por baixo do texto
aparentemente neutro da realidade normativa. Em seu julgamento, é transformado em
bode expiatório de uma sociedade severamente reprimida e puritana. Suas obras
permanecem hoje como fundadoras da sensibilidade camp e de uma estética
decididamente homossexual.
Palavras-chave:
Oscar
Wilde,
era
vitoriana
tardia,
masculinidade,
teoria
da
inversão,
homossexualidade, literatura, decadentismo, esteticismo, dandismo, Dorian Gray,
paradoxo, inversão simbólica, camp
3
ABSTRACT
This present dissertation intends to accompany Oscar Wilde's steps through
late Victorian London, the booming center of an already decadent Empire. At this
time being, positivist and imperialist discourses explain the reality. Both the medical
science and the law fight over the theme of homosexuality. In a time when the
symbolic authority to name homosexual desire is being questioned, Wilde is brave
enough to state the precedence of the artist in naming the world. His life and works
cause exalted reactions. His excentricities outrage London's high-society, of which
Wilde becomes the arbiter of elegance, despite being a complete outsider: Irish and
homosexual. He lives Aestheticism and dandism to the fullest, he lives a purposedly
gay lifestyle and excites the fear of exerting some sort of "corruption" or "influence"
over young men of the British society. His writing, through the use of paradoxes and
symbolic invertions, shows the underpinnings of the aparently neutral text of
normative reality. In his judgment, he is turned into the scapegoat of a severely
repressed and puritan society. His works have founded the camp sensibility and a
decidedly homosexual aesthetics.
Keywords:
Oscar Wilde, late victorian era, masculinity, invertion theory, homossexuality,
literature, decadentism, aestheticism, dandism, Dorian Gray, paradox, symbolic
invertion, camp
4
À vó Helena e à mãe Tereza
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha orientadora, a Professora Doutora Mariza Werneck pela
paciência e acolhida quando eu atravessava momentos difíceis. Agradeço à minha
amiga Carla Cristina Garcia, antes de qualquer coisa, simplesmente pela sua
existência, que me devolve a fé na humanidade. E também pela generosidade, pelas
aulas inspiradoras, pela alegria de vida e pela sugestão do tema de pesquisa. Não
tenho palavras para agradecer tudo o que você fez por mim.
Agradeço à mãe Tereza, ao pai Luis, ao Luisinho, à vó Helena e também à tia
Aida, ao tio Nhandar, ao vô Décio, ao bisavô Pedrinho, à bisavó Teresa e ao vô Luis.
Agradeço à vó Nair, à tia Neusa, ao tio Zé, à tia Cidinha e às meninas, Camila,
Carina, Clarissa, Marcela, Patrícia e Milena. Agradeço à família Ferreira da Silva pela
acolhida em São Paulo durante todos esses anos: Ednalva, Teca, Kátia, Juliana Nozue,
Nelson Canteri e também pela presença luminosa do pequeno Lucca. Guel, Pitchula,
Capitu, vocês jamais serão esquecidos. Agradeço ao Batatinha e ao Ovelha, por me
ensinarem tantas coisas todo dia. Saudades de Coragem, a criatura com o nome mais
inspirador que consigo imaginar.
Agradeço à Marina Costin Fuser, por viver esse processo junto comigo, na
tristeza e na alegria. Agradeço aos amigos e amigas que me ouviram reclamar das
dores do processo de mestrado tantas e tantas vezes e me consolaram nos momentos
de desespero: Lorena Phillips, Andressa Nozue, Débora Lessa, Ellen Taline Ramos,
Ana Carolina Gebrim, Mayra Castro, Ana Kelson, Amanda Fraga, Michelle Barros,
Bruna Domenico, Rachel D'Amico, Ariane Aboboreira, Bruno Cohen, Amanda
Bacaleinick, Lilian Breschigliaro, Gabriela Pozzoli, Josie Berezin, Luciana Milnitsky,
Tânia Regina Vizachri, Rafael Bruno, Rafael Pinheiro, Aline Passos, Luiza Uehara,
Marina Rodrigues, Mariana Cristtal, Ana Paula Varani, Isaac Vitório Ferraz, João
Paulo Fagundes Lêdo, Edson Alencar Silva, Mariana Lopes, Victor Hungaro, Raquel
Lorenzetti, Alessandro Ezabella, Mariana Serafim Xavier Antunes, Liliane Caetano,
Márcia Cristina Gomes, Leda Vasconcellos, Marcelo Rocco, Marina Trivelli
Tambelli, Gustavo Racy, Alê Carvalho, Cauê Ueda, Maria Helena Uliani e todo o
pessoal colorido, divertido, bonito e estiloso do Inanna.
6
Agradeço ao CNPq e ao programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais por
viabilizarem a bolsa que custeou meus estudos. Agradeço à Carmen Junqueira pela
honra de haver freqüentado suas aulas. Agradeço ao querido grupo Inanna por todas
as felicidades, risadas, amigas, amigos, reflexões, preocupações e leituras que já me
proporcionou e proporcionará no futuro.
Agradeço a Oscar Wilde pela coragem de ser ele mesmo.
7
Sumário
Introdução.....................................................................................................................9
Capítulo I
O retrato da sociedade vitoriana...............................................................................11
Capítulo II
O universo estético de Oscar Wilde..........................................................................24
Capítulo III
A importância de ser Wilde.......................................................................................43
Capítulo IV
A derrocada de um homem de gênio........................................................................64
Capítulo V
Take a walk on the Wilde side..................................................................................79
8
INTRODUÇÃO
Neste trabalho, pretendemos fazer um estudo introdutório a respeito da vida e
obra de Oscar Wilde, tentando mostrar o quão subversivo este escritor foi, tanto em
sua vida pessoal quanto na literatura que produziu. A escrita de Wilde, com seus
paradoxos, prefigura as inovações formais que somente se cristalizariam no início do
século XX, nas obras de James Joyce e Virginia Woolf. A vida de Wilde
exemplificou a coragem de um indivíduo de assumir inteiramente a si mesmo no
momento exato em que as identidades sexuais estavam sendo elaboradas. A obra de
Wilde inicia uma sensibilidade nova, que abre caminho para a nascente cultura e
estética homossexuais que floresceriam no século XX.
No primeiro capítulo, fizemos um retrato da sociedade vitoriana tardia, da Londres
pela qual Wilde circulou, dos muitos medos que assombravam o homem da época.
Esse sentimento tomava várias formas: medo dos operários, medo da chamada "nova
mulher", medo do "enfraquecimento corporal masculino". Tentamos fazer um
panorama da ciência médica da época e das várias teorias que explicavam esse mundo
que se "degenerava". É nesse momento que surge a ciência sexual e, com ela, as
teorias a respeito da homossexualidade e o questionamento das sexualidades em geral,
da masculina (com a contraposição dos dândis e dos cavalheiros) e da feminina (com
o surgimento da "nova mulher", elaborada muitas vezes como "masculinizada").
No segundo capítulo, procuramos mostrar o universo estético pelo qual se movia
Oscar Wilde. Falamos dos movimentos literários que estavam ocorrendo nesse
momento e de seus respectivos ideários para contextualizar a produção de Wilde
nesse momento histórico. No final do capítulo, analisamos o único romance de Wilde
(e sua obra mais conhecida), O Retrato de Dorian Gray.
O terceiro capítulo tenta desvendar essa figura enigmática que foi Wilde, com suas
muitas contradições, segredos e mistérios. Como um irlandês homossexual se torna o
árbitro de elegância da alta sociedade londrina? É o que tentamos descobrir aqui.
Tentamos analisar como suas excentricidades contribuem para compor o mito em
torno da figura de Oscar Wilde.
No quarto capítulo, analisamos seu julgamento, a "derrocada deselegante e impiedosa
de um homem de gênio" segundo H. G. Wells. Analisamos o que subjaz a essa
condenação, à necessidade de punir exemplarmente Wilde por seu "crime" (ou por
9
seu "vício") justamente no momento em que a definição simbólica da
homossexualidade está em jogo. Também mencionamos as repercussões desse
julgamento na literatura e entre os escritores. Tratamos também, brevemente, da
famosa carta que Wilde escreve da prisão para seu ex-amante, Lorde Alfred Douglas.
No quinto capítulo, tentamos analisar as repercussões da vida e da obra de Wilde
hoje, o que seu estilo e, principalmente, sua panache nos legou, o quanto seu espírito
subversivo ajudou a formar o século XX. A obra de Wilde inicia a sensibilidade camp
e modula um discurso estético da homossexualidade, que se tornaria cada vez mais
prevalente e importante desde então.
10
Capítulo I
O RETRATO DA SOCIEDADE VITORIANA
Parece-me que encontrei a humanidade em decadência. O pôr-do-sol
ferrugem me fez pensar no pôr-do-sol da humanidade. Pela primeira vez
comecei a perceber um estranho resultado dos esforços sociais que
praticamos agora. E, no entanto, pensem, é uma conseqüência bastante
lógica. Força é o resultado da necessidade; segurança é uma premiação
da fragilidade. O trabalho de aprimorar as condições de vida – o processo
verdadeiramente civilizador de fazer a vida mais e mais segura – havia
chegado calmamente a um clímax. Um triunfo da Humanidade unida
contra a Natureza havia se seguido a outro. Coisas que agora são apenas
sonhos haviam se convertido em projetos deliberadamente realizados. E a
colheita era o que vi!
- H. G. Wells, "A Máquina do Tempo"
A Inglaterra do final do século XIX era um mundo conturbado. O Império
inglês via sua hegemonia ameaçada tanto em seus limites externos quanto
internamente. Uma crise se anunciava entre as classes sociais e os burgueses tinham
medo de que ocorresse uma insurreição de trabalhadores. Estes eram elaborados pelos
burgueses como se pertencessem a uma raça diferente, degenerada em termos
intelectuais. Traçavam-se paralelos entre o East End (bairro operário de Londres) e o
Oriente: a classe operária era comparada aos povos "selvagens" e "primitivos" dos
confins do Império Britânico. Segundo Celso M. Paciornik1:
Para a população européia em geral, a necessidade imperial era vendida
pelas elites econômicas e sociais como o esforço civilizatório de uma
sociedade desenvolvida para com as hordas e tribos incivis, bárbaras,
fetichistas, canibais, e o que mais se quiser lembrar. Levas de missionários
se embrenhavam nas selvas para levar a palavra de Deus aos 'bons
selvagens' e arrastá-los, se preciso à força, das trevas da barbárie para as
luzes da civilização moderna. Evidentemente, conforme este mesmo
ideário, o 'branco' conquistador, generoso e altruísta, era superior ao 'negro'
primitivo, bárbaro. Colonizar aqueles seres inferiores era mais que uma
necessidade, era uma missão para a Europa civilizada e moderna,
beneficiando 'mais o colonizado que o colonizador', o emblemático 'fardo
do homem branco' do poema tristemente célebre de Rudyard Kipling, um
dos arautos e defensores da espansão imperial britânica.
Essa visão de mundo era justificada pela ciência vitoriana, que se baseava em
teses evolucionistas. Estas transpunham, de uma forma praticamente literal, um
1
Celso M. Paciornik, "Posfácio" in O Coração das Trevas, p. 172
11
pensamento pós-darwinista da biologia para o meio social e assentavam-se sob a
crença de que algumas "raças" seriam mais evoluídas, mais adaptadas que outras,
consideradas mais bárbaras e primitivas (essa ideologia também era aplicada para
explicar o comportamento das diferentes classes sociais). Especialmente a
antropologia física visava estabelecer a legitimidade da hierarquia e da diferenciação
entre as raças e demonstrar as degenerações que ocorriam quando estes limites eram
desrespeitados.
Em fins do século XIX, a medicina clínica (como a conhecemos hoje) se
desenvolve sob bases positivistas, racistas e misóginas. Esta assume a posição central
das ciências cartesianas, firma-se como a ciência-modelo, detentora da verdade última
sobre o ser humano. É nesse momento que nasce a scientia sexualis, a explicação
científica a respeito das práticas sexuais. Como um típico discurso da ciência médica,
define a norma a partir do que é elaborado como "desviante", "não-natural",
"anormal". Nesta área do conhecimento, mais do que em outras, pululavam os
preconceitos da sociedade vitoriana disfarçados de determinismos biológicos. Os
órgãos humanos e de primatas são medidos, pesados, analisados: comparam-se os
cérebros dos homens e dos primatas machos ao passo que, em relação às mulheres e
às primatas fêmeas, seus órgãos sexuais é que são comparados. Ao mesmo tempo, a
craniometria, por meio da medição e comparação de cérebros de homens e de
mulheres, oferecia provas irrefutáveis das diferenças evolutivas entre ambos e
estabelecia cientificamente a inferioridade intelectual feminina e sua menor
racionalidade.
A esta ciência médica soberana, junta-se o Estado, que passa a regular, cada
vez mais de perto, as práticas dos cidadãos: "Por se encontrar, de fato, no cerne do
pensamento político e econômico, das preocupações sociais, morais e médicas da
época, o privado leva à criação de inúmeros discursos teóricos, normativos ou
descritivos centrados na família"2. As táticas higienistas impostas pela aliança Estadomedicina se constituíram numa manipulação político-econômica que a burguesia
impôs às outras classes. As múltiplas técnicas normalizadoras demarcam as figuras
elaboradas como representativas do "desvio" e da "antinorma". Nesse momento,
2
Michelle Perrot, "Introdução", História da Vida Privada 4 – Da Revolução Francesa à Primeira
Guerra, p. 9
12
através da articulação de táticas disciplinantes e políticas centralizadoras do Estado,
são constituídas a norma da família e a família como norma.
Na Inglaterra do século XIX, ocorre um processo de "higienização" dos
costumes. A chamada "higiene" retoma a problemática sexual religiosa com novos
fins: a sexualidade conjugal se torna objeto de regulação médica. Na elaboração
ideológica da família burguesa, há a identificação da masculinidade à paternidade e da
feminilidade à maternidade. Há uma fixação do homem à figura do pai: este recebe
uma autorização para ser "macho". Para o "homem médio", destituído de outros
poderes, a higiene oferece o machismo: um dos raros "direitos" e uma das raras
parcelas de poder social que poderá usufruir sem restrição. Ao cidadão comum,
reduzido a um animal social pela sociologia nascente e a um animal sexual
comandado por impulsos inconscientes pela medicina clínica e pela psiquiatria, a
moral higiênica oferecia o domínio total de sua mulher: "de propriedade jurídicoreligiosa, a mulher passou à propriedade higiênico-amorosa do homem"3. O
cavalheiro másculo, que detinha o controle absoluto sobre sua família, era o defensor
da nova ordem médico-política: "estava sempre disposto a reprimir com violências
físicas e morais todos aqueles que, por incompetência ou rebeldia, ousassem contestar
os novos mandamentos da conduta masculina"4.
Nessa sociedade extremamente puritana, higienizada de todo excesso, em que
o homem de bem, o "pai de família" é o exemplar típico do cidadão saudável do país,
a sexualidade é negada, obliterada. Esta existe apenas como uma obrigação
matrimonial de procriar crianças igualmente saudáveis e higienizadas, livres de
qualquer tipo de contágio, infecção ou inversão imorais.
Nesse contexto, o homossexual era visto como um "perdulário sexual" que
ousava questionar o modelo do homem-pai. Segundo Jurandir Freire Costa5, eram
elaborados como anti-homens, desertores da obrigação de ser pai, assassinos do
próprio corpo e do bem-estar biológico-social. Para a medicina higienista, o
homossexual consistia numa antinorma ao "viver normal" e possuía um valor
"teratológico" segundo a ótica populacionista.
3
Jurandir Freire Costa, Ordem Médica e Norma Familiar, p. 252
Ibid., p. 253
5
Ibid., p. 240
4
13
A família burguesa existe para procriar os futuros burgueses sólidos e
trabalhadores e suas respectivas mulheres etéreas, invisíveis, angelicais e
infantilizadas. A sensibilidade vitoriana tardia, apesar de todas as mudanças que
vinham acontecendo nos costumes desde a década de 1870, continuava a elaborar as
mulheres burguesas como "anjos do lar", como ao longo da maior parte do século
XIX. As mulheres que não se encaixavam nesse ideal eram vistas como "monstros".
Essas imagens são tão prevalentes que, no início do século XX, Virginia Woolf6 ainda
sente a necessidade de urgir às mulheres escritoras que elas matem tanto o anjo
quanto o monstro. Segundo Sherry Ortner7:
Ambos símbolos femininos subversivos (bruxas, mau olhado, poluição
menstrual, mães castradoras) e símbolos femininos de transcendência
(mães-deusas, piedosas mulheres salvadoras, símbolos femininos de
justiça) apontam para o fato de que mulheres podem aparecer, dependendo
do ponto de vista, tanto abaixo como acima (mas, na realidade,
simplesmente fora) da esfera da cultura hegemônica.
Nos últimos anos do século XIX, em Viena, houve uma proliferação de
"monstros": muitas mulheres começam a sofrer de um novo mal, batizado de
"histeria". A psiquiatria nasce com o teatro das histéricas de Jean-Martin Charcot em
Salpêtriere e com os estudos de Sigmund Freud sobre a sexualidade feminina.
Acreditava-se que a "doença feminina" (cujo nome é inspirado na palavra grega para
útero, hyster) era causada pelo sistema reprodutivo feminino, como muitas outras
"doenças nervosas" da época. De acordo com Sandra Gilbert e Susan Gubar8, este
conceito parece ter sido elaborado a partir da noção de Aristóteles de que o corpo da
fêmea era, em si mesmo, uma deformidade. A julgar pelas teorias de Freud, era
mesmo: a mulher consistia num ser "castrado" que tinha inveja do pênis que lhe
faltava. O corpo feminino é pensado pela psiquiatria nascente sob o signo da ausência.
Curiosamente, tudo isso acontecia no mesmo momento em que surgia a
chamada "nova mulher" (new woman), que buscava se libertar de seus papéis
tradicionais em busca de maior autonomia. Isso era visto com séria desconfiança pela
6
Virginia Woolf, "Professions for Women", The Death of the Moth and Other Essays, New
York: Harcourt, Brace, 1942, pp. 236-38 apud Sandra Gilbert e Susan Gubar, Madwoman in
the Attic, p. 17
7
Sherry Ortner, "Is female to male as nature is to culture?" in Woman, Culture, and Society,
Michelle Zimbalist Rosaldo e Louise Lamphere, Stanford: Stanford University Press, 1974, p.
86 apud Sandra Gilbert e Susan Gubar, Madwoman in the Attic, p. 19
8
Sandra Gilbert e Susan Gubar, Madwoman in the Attic, p. 53
14
"boa sociedade", que tinha medo de uma possível revolução das mulheres.
Suspeitava-se que estas "traidoras" pudessem se unir aos nativos colonizados em sua
luta contra o status quo. Muitos vitorianos, como Karl Pearson9, por exemplo,
consideravam que os dois grandes problemas da vida social eram o "problema das
mulheres" e o "problema do operariado". Para Peter Gay10, eles estavam certos em
temer: segundo o historiador, a legislação de reforma feminista da década de 1880
"começou a demolir o venerável sistema patriarcal na Inglaterra". No entanto, esse
caminho se provaria acidentado.
Em meio ao puritanismo histérico, rondando o fog londrino, temos a figura
assustadora de Jack, o Estripador, que assassinou e mutilou uma série de prostitutas
no bairro operário de East End em 1888, abrindo os corpos das mulheres e removendo
com perfeição o útero e as vísceras. Levantaram-se suspeitas de que o Estripador
poderia ser um médico, já que ele estaria acostumado a realizar esse tipo de operação
em suas pacientes. Logo os assassinatos do Estripador se tornaram "um mito moderno
da violência masculina contra as mulheres, uma história cujos detalhes se tornaram
vagos e generalizados, mas cuja mensagem 'moral' era clara: a cidade é um lugar
perigoso para as mulheres, quando elas ultrapassam os estreitos limites do lar e ousam
penetrar no espaço público"11. Note-se que esses assassinatos, apesar da caçada
policial massiva que foi instaurada, jamais foram solucionados.
A história de Jack, o Estripador não é apenas um mito, ilustra um fetiche, uma
imagem recorrente da época. É nesse momento histórico que há a cristalização do
conceito do corpo feminino como uma caixa de Pandora a ser aberta, um objeto para
confinamento e exibição. Segundo Elaine Showalter12:
A imagem da mulher jovem cujo corpo é invadido pela medicina já
possuía na década de 1880 uma longa tradição desde o período pósiluminista. No século XVIII, os estudantes de medicina europeus
estudavam os órgãos internos com o auxílio de uma 'Vênus Anatômica',
9
Karl Pearson, "Woman and Labour" in Fortnightly Review 129 (maio 1894), p. 561 apud
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 20
10
Peter Gay, The Bourgeois Experience 1: Victoria to Freud, Nova York: Oxford University
Press, 1984, p. 175 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle,
p. 20
11
Judith Walkowitz, "Jack the Ripper and the Myth of Male Violence" in Feminist Studies 8
(outono 1982), p. 544 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de
Siecle, p. 171
12
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 172
15
sofisticados modelos de cera de mulheres (...) que se abriam para exibir os
órgãos da reprodução.
Para Ludmilla Jordanova13, esses modelos ao mesmo tempo evocam uma
feminilidade abstrata, equiparam o conhecimento ao exame profundo do corpo e
ressaltam o destino reprodutivo da mulher. Essa imagem do corpo feminino como
vitrine estendeu-se para o mundo social.
Para o século XIX, a ânsia de abrir a mulher e examinar profundamente os
segredos do seu corpo e da reprodução é central ao processo e ao método da própria
ciência. É nesse período que muitos instrumentos ginecológicos são inventados,
inclusive o espéculo. Há um paralelo entre as conquistas do Império Britânico na
África (como atesta a "literatura de aventura" da época, dirigida a um público leitor
especificamente masculino) e a conquista e o domínio do corpo feminino. Muitos
médicos vêem-se como conquistadores que penetram em terra estrangeira:
Enquanto os romancistas do sexo masculino (...) descreviam suas viagens
até o interior de Kôr, do Kafiristão ou do coração da treva, como
expedições sexuais para o interior de um corpo primevo, os médicos
descrevem suas invasões ao corpo feminino como sagas aventureiras em
busca de tesouro e poder.14
Um tema popular na pintura do final do século XIX, assim como na literatura
médica, era o do médico realizando uma autópsia no corpo de uma prostituta afogada:
"O que será encontrado no corpo dessas mulheres afogadas? Será a verdade oculta da
natureza da mulher, o que as mulheres querem...? A cabeça da Medusa, com todo seu
poder castrador?"15.
Os estudos de caso de Freud sobre mulheres histéricas não deixa de repetir
esse padrão de cientista detentor do poder, do controle e do conhecimento masculinos
versus paciente feminina doentia. A revelação dos corpos femininos ficou associada à
visão médica e científica, algo a ser desvelado pelo olhar penetrante do domínio
sexual e intelectual. Significativamente, Freud, em seus últimos trabalhos, chama a
sexualidade feminina de "continente negro", traçando um paralelo entre as terras
13
Ludmilla Jordanova, Sexual Visions: Images of Gender in Science and Medicine between
the Eighteenth and Twentieth Centuries, pp. 50, 54 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual:
Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 173
14
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 174
15
Sander Gilman, Sexuality, pp. 249-250 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e
Cultura no Fin de Siecle, p. 176
16
africanas desconhecidas e exóticas a serem conquistadas e as mulheres, essas eternas
estrangeiras na sociedade patriarcal. Tais "corpos estranhos", segundo a sociedade e a
ciência da época, devem ser penetrados, conquistados e dominados pelo homem
branco, detentor da razão e do poder.
A proliferação dos discursos sobre o sexo, que já vinha acontecendo desde o
século XVIII, gradualmente define uma norma de desenvolvimento sexual da infância
à velhice e caracteriza cuidadosamente todos os desvios possíveis. Essa explosão
discursiva provoca um movimento centrífugo em relação à monogamia heterossexual
ao mesmo tempo que é definida uma dimensão específica do "contra-natureza" no
campo da sexualidade. Segundo Michel Foucault16,
Afigura-se um mundo da perversão, secante em relação ao da infração
legal ou moral, não sendo, entretanto, simplesmente uma variedade sua.
Surge toda uma gentalha diferente, apesar de alguns parentescos com os
antigos libertinos. Do final do século XVIII até o nosso, eles correm
através dos interstícios da sociedade perseguidos pelas leis, mas nem
sempre, encerrados freqüentemente nas prisões, talvez doentes, mas
vítimas escandalosas e perigosas presas de um estranho mal que traz
também o nome de 'vício' e, às vezes, de 'delito'. (...) No decorrer do século
eles carregaram sucessivamente o estigma da 'loucura moral', da 'neurose
genital', da 'aberração do sentido genésico', da 'degenerescência' ou do
'desequilíbrio psíquico'.
A caça promovida pela nascente ciência sexual às sexualidades periféricas
provoca a incorporação das perversões e a nova especificação dos indivíduos. Nesse
contexto, a sodomia (proscrita pelo direito canônico desde a Idade Média17) se
transforma no "homossexualismo" ou "inversão sexual", ou seja, sai da esfera
religiosa para se tornar assunto de uma ciência médica cartesiana, positivista,
racionalista. A sodomia era simplesmente um tipo de ato interdito e o autor não
passava de seu sujeito jurídico. Apesar de sua suposta "não-naturalidade", a atração
erótica por indivíduos do mesmo sexo não era colocada numa categoria espiritual
especial: era apenas um dos vários pecados da "carne decaída", do frenesi carnal
condenável. A sodomia era um pecado de que qualquer homem era considerado
capaz. Já o século XIX cria o conceito de identidade sexual:
16
Michel Foucault, História da Sexualidade 1: A Vontade de Saber, p. 47
É curioso notar que as práticas sexuais lésbicas não "existiam" aos olhos da Igreja. Estas
simplesmente não são mencionadas no direito canônico. O corpo feminino, no patriarcado, foi
sempre elaborado em termos da ausência do falo.
17
17
O homossexual do século XIX torna-se uma personagem: um passado, uma
história, uma infância, um caráter, uma forma de vida; também é morfologia,
com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. Nada
daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade. Ela está
presente nele todo: subjacente a todas as suas condutas, já que ela é o
princípio insidioso e infinitamente ativo das mesmas; inscrita sem pudor na
sua face e no seu corpo já que é um segredo que se trai sempre. É-lhe
consubstancial, não tanto como pecado habitual, porém, como natureza
singular.18
Havellock Ellis, Cesare Lombroso, Richard Krafft-Ebing e Max Simon
Nordau patologizam o chamado "homossexualismo", fazendo deste um assunto
médico, um problema mental (e moral) a ser tratado pela psiquiatria nascente19.
Mesmo os reformadores progressistas que procuravam reabilitar o homossexualismo
não como uma doença, mas sim como atributo de uma identidade sexual legítima
(como John Addington Symonds e Edward Carpenter) ainda inscreviam-no no
discurso controlado pelos profissionais da ciência20. A palavra "homossexual" é
cunhada em 1869 pelo escritor húngaro Karoly Benkert. Só entra para o vocabulário
da língua inglesa em 1892, quando o livro Psychopathia Sexualis de Krafft-Ebing
(apresentando alguns dos primeiros estudos de caso de homossexualismo masculino)
é traduzido21. Na Inglaterra, o primeiro livro a tratar do assunto é Sexual Invertion de
Ellis, publicado em 1897.
Na década de 1860, é descoberta a existência de dois hemisférios cerebrais. O
hemisfério esquerdo, responsável pelas capacidades motora e intelectual, é
considerado mais importante que o direito e praticamente define a distinção entre o
animal e o humano. O hemisfério direito, sede de características "inferiores", nãoverbais, tem função secundária. Segundo Showalter22:
Ao descrever ou imaginar as operações dos dois hemisférios, os cientistas
europeus sofriam a influência de suas premissas culturais acerca da
dualidade, incluindo-se as de sexo, raça e classe. Eles classificavam um
lado do cérebro e do corpo como masculino, racional, civilizado, europeu e
altamente evoluído enquanto o outro lado era feminino, irracional,
primitivo e atrasado.
18
Michel Foucault, História da Sexualidade 1: A Vontade de Saber, p. 50
O que pode ser percebido pelo próprio uso do sufixo "-ismo" nesse momento.
20
Lawrence Danson, Wilde's Intentions: the Artist in His Criticism, p. 45
21
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 224
22
Ibid., p. 156
19
18
Obviamente, acreditava-se que pessoas "normais", heterossexuais seriam
destras enquanto homens afeminados e mulheres masculinizadas seriam parcial ou
inteiramente canhotos. Esses indivíduos "degenerados", nos quais o hemisfério direito
predominava, ocupariam uma posição inferior na escala de evolução humana.
É cunhada a teoria da inversão sexual, segundo a qual a homossexualidade se
deveria a uma "inversão" da sensibilidade e das características associadas a cada sexo:
a lésbica seria uma mulher "masculinizada" e o homem homossexual seria
"afeminado", ambos mostrariam em seu comportamento tendências consideradas do
sexo oposto. De acordo com Foucault, o artigo de Westphal de 1870 sobre as
"sensações sexuais contrárias" pode servir de data natalícia para a constituição da
categoria psicológica, psiquiátrica e médica da homossexualidade. Essas sensações
são caracterizadas menos como um tipo de relações sexuais do que como uma
determinada qualidade da sensibilidade sexual, uma maneira de inverter, em si
mesmo, o masculino e o feminino. Segundo o historiador, "A homossexualidade
apareceu como uma das figuras da sexualidade quando foi transferida, da prática da
sodomia, para uma espécie de androginia interior, um hermafroditismo da alma. O
sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma espécie".23
O discurso acerca do homossexualismo continua a evoluir durante esse
período e eventualmente surgem dois modelos conflitantes de identidade
homossexual. O primeiro consiste no modelo paradigmático de inversão sexual do
final do século, ilustrado pela obra de Edward Carpenter e John Addington Symonds
na Inglaterra. De acordo com esse modelo de transposição de fronteiras e de
limiaridade, as pessoas gays seriam um "sexo intermediário", localizado na fronteira
entre os dois sexos. Segundo essa teoria, os homens homossexuais seriam pessoas
nascidas com um alto teor de feminilidade essencial enquanto que as lésbicas seriam
mulheres com um alto teor de masculinidade essencial.
O segundo modelo propõe o oposto: o homossexualismo seria o "estágio
evolutivo mais alto e mais perfeito da distinção sexual". Segundo essa teoria, o
homem identificado com a masculinidade e a mulher identificada com a feminilidade
dariam expressão a formas intensificadas da masculinidade e da feminilidade e seriam
os representantes mais "masculinos" ou "femininos" de seus respectivos sexos.
23
Michel Foucault, História da Sexualidade 1: A Vontade de Saber, p. 51
19
Acreditava-se que a preferência sexual pelo próprio sexo era determinada pela repulsa
ao sexo oposto ao invés de por uma identificação com os seus desejos.
Afinal, o homossexual é um doente psiquiátrico ou um criminoso? A categoria
da homossexualidade, assim como muitas outras, se encontrava em pleno processo de
nomeação. O século XIX foi, segundo Michelle Perrot24, a idade de ouro do privado,
"onde as palavras e as coisas se precisam e as noções se refinam". Havia uma disputa
por parte de vários tipos de candidatos para ver quem possuía a autoridade simbólica
de nomeá-la.
As duas capitais culturais do século XIX, Londres e Paris, viviam momentos
diametralmente opostos em relação à criminalização da homossexualidade. Enquanto
em Paris penas menos severas passavam a ser aplicadas mais sistematicamente (dada
a despenalização crescente da homossexualidade desde a Revolução Francesa e a
generalização desse pensamento mais humano por toda a Europa a partir do Código
Napoleônico), na Inglaterra, foi exumado em 1828 um estatuto da época de Henrique
VIII. Segundo este, "Que toda pessoa reconhecida culpada do abominável crime de
sodomia [buggery] ou com um ser humano ou com qualquer animal, seja condenada à
morte conquanto que criminosa"25.
O homossexualismo se constituía em um tópico de considerável interesse
tanto científico quanto jurídico. Na Inglaterra, em janeiro de 1886, a Emenda
Labouchere entrava em vigor. Esta emenda prescrevia uma pena de dois anos de
reclusão com ou sem trabalhos forçados para aqueles que fossem considerados
culpados do crime de "indecência grave" [gross indecency]. É curioso notar que "mais
uma geração se passaria antes que o homossexualismo feminino atingisse um nível de
articulação correspondente. A identidade lésbica era definida de modo muito menos
claro, e a subcultura lésbica era mínima em comparação com a do homossexualismo
masculino"26. Mesmo em 1921, os legisladores ingleses se recusaram a incluir as
mulheres na Emenda Labouchere porque o lesbianismo era inconveniente demais até
mesmo para ser proibido. Um parlamentar alegou que a adoção de uma cláusula dessa
24
Michelle Perrot, "Introdução" in História da Vida Privada 4: Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra, p. 9
25
Paolo Zanotti, Gay: la Identidad Homosexual de Platón a Marlene Dietrich, p. 37
26
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 162
20
natureza "seria prejudicial ao apresentar às mentes de seres perfeitamente inocentes os
pensamentos mais revoltantes"27.
A ciência sexual define sexualidades e, por conseguinte, masculinidades. Há
uma polarização entre as figuras do "cavalheiro" e do "dândi". Nordau lança, em
1895, um livro chamado Degeneração, em que ataca as "artes degeneradas" de seu
tempo, tais como as obras de John Ruskin, Dante Gabriel Rossetti, Paul Verlaine e
Charles Baudelaire. A esta arte degenerada, obviamente, correspondem vidas
degeneradas. Nordau critica todos os movimentos artísticos da segunda metade do
século XIX: o simbolismo, o decadentismo, o pré-rafaelismo, o esteticismo. Segundo
Paolo Zanotti28, as vanguardas artísticas poderiam ser definidas como "uma espécie
de contracultura que se opõe à cultura oficial da época e a seus ideais em questão de
arte, utilidade e virilidade normativa". O grande medo do século era o de que os
sólidos valores burgueses estariam se desvanescendo, que o homem, antes robusto,
estaria se debilitando e que se aproximaria um período de decadência, degeneração e
"afeminação" do homem europeu. As temidas "novas mulheres" também poderiam
ser consideradas parte dessa contracultura.
Para a mentalidade conservadora da época, a "nova mulher" e o "decadente"
estavam vinculados como um casal com muitos atributos em comum: ambos
desafiavam a instituição do casamento e ignoravam as distinções entre os sexos.
Também faziam algo que era considerado motivo de grande surpresa e comoção na
Inglaterra vitoriana: aos olhos da sociedade burguesa, violavam os organismos sociais
e as hierarquias perfeitas ao celebrar, em sua ficção, alianças românticas entre as
classes sociais. Para a burguesia, este era um momento de profunda insegurança e
incerteza: as tradições pareciam estar se "enfraquecendo", as "novas mulheres"
estavam dispostas a questionar as convenções sociais, a supremacia industrial inglesa
deixava de ser indiscutível. O mundo como o conheciam parecia desvanecer-se no ar
e a "culpa" era atribuída a esses corpos estranhos.
No fin-de-siecle, borbulhavam intensos sentimentos antipatriarcais por parte da
avant-garde artística, que eram combatidos com um recrudescimento da misoginia,
27
Parliamentary Debates, Commons, 1921, vol. 145, p. 1805 apud Elaine Showalter,
Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 163
28
Paolo Zanotti, Gay: la Identidad Homosexual de Platón a Marlene Dietrich, p. 44
21
do racismo e da homofobia por parte da sociedade burguesa. A masculinidade
tradicional passava por uma crise, que refletia os estresses e as tensões da rígida
estruturação dos papéis masculinos. Ao mesmo tempo em que havia uma valorização
exacerbada do poder físico e intelectual masculino (por parte dos cavalheiros), temiase a "degenerescência" representada pelos dândis, artistas e homossexuais, cuja
postura era percebida como um declínio da virilidade na sociedade.
Em fins do século XIX, a identidade sexual masculina burguesa suplanta em
definitivo a antiga identidade masculina herdada da aristocracia. Esta não era
incompatível com a música, o balé, a literatura – atividades que, neste momento,
recebem um novo recorte de gênero (são "feminizadas") e se tornam marginalizadas.
Deixam de ser ofícios adequados para um burguês "respeitável" e "são". Os artistas
são pessoas que são pensadas, cada vez mais, em termos da concepção romântica de
genialidade e loucura. Essas atividades e ocupações "marginalizadas" viriam a ser
realizadas por grupos também marginalizados, por indivíduos cujos corpos já fossem
considerados "corpos estranhos", fora do padrão "correto", ou seja, estrangeiros,
judeus e homossexuais.
Estes dois tipos de identidade masculina eram elaborados como pólos opostos.
Na realidade, quem podia afirmar em que momento a misoginia extrema (aceita e
encorajada socialmente) se transformava num possível desejo homoerótico? Para
Showalter29, "A Clubelândia do final do século repousava sobre a frágil linha
limítrofe que separava as amizades entre homens das relações homossexuais e que
distinguia uma misoginia máscula de um homoerotismo repugnante". A contraposição
do cavalheiro másculo ao dândi degenerado fingia não perceber que o desejo
homossocial masculino é muito mais fluido do que parece à primeira vista. Como
afirma Eve Kosofsky Sedgwick30, "Para um homem, gostar da companhia masculina
fica separado de interessar-se por homens apenas por uma linha invisível,
cuidadosamente apagada, sempre já transposta".
Esse era um dos maiores medos da Inglaterra vitoriana tardia: o de que seus
homens jovens, ao invés de se tornarem robustos e sólidos cavalheiros, burgueses e
pais de família, se tornassem afeminados e artísticos decadentes, estetas e dândis.
29
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 29
Eve Kosofsky Sedgwick, Between Men: English Literature and Male Homosocial Desire,
Nova York: Columbia University Press, 1985, p. 89 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual:
Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 29
30
22
Tudo isso era complicado ainda mais pelas reivindicações das "novas mulheres", que
não se contentavam mais em ser etéreos "anjos do lar". Se essas mudanças se
generalizassem, o que aconteceria com a raça inglesa?
23
Capítulo II
O UNIVERSO ESTÉTICO DE OSCAR WILDE
Em todas as questões pouco importantes, o estilo, e não a sinceridade, é o
essencial. Em todas as questões muito importantes, o estilo, e não a
sinceridade, é o essencial.
- Oscar Wilde
Um ar de decadência varre a Europa em fins do século XIX. A civilização finde-siecle se sabe um mundo envelhecido, pressente que muitas de suas características
estão morrendo para dar lugar ao novo. Muitos artistas, ao invés de lastimar, se
alegram e festejam a degenerescência da humanidade. Charles Baudelaire (18211867) é o primeiro escritor, em meados do século XIX, a positivar o conceito de
decadência, baseado no antigo conceito clássico das Idades do Homem. Segundo esse
conceito, a humanidade se encontraria num processo de degenerescência, estaria
numa escala descendente em termos artísticos a partir de uma suposta Idade do Ouro,
representada na literatura latina por Ovídio e Cícero. Esse conceito se coadunaria
mais tarde com a escatologia católica e sua linha descendente que liga um suposto
paraíso perdido a um apocalíptico fim dos tempos. Para Baudelaire31, "Tudo está dito,
e chegamos tarde demais após mais de sete mil anos que há homens e que pensam". O
autor de As Flores do Mal (1857) é o primeiro a celebrar a decadência: "Je suis venu
trop tard dans un monde trop vieux"32. Baudelaire é um típico exemplo de poete
maudit, o poeta que vive, por escolha própria, nas margens de uma sociedade que
detesta. Com suas Flores do Mal, inicia a estética marginal, "da sarjeta". Nasce muito
tarde para ser um dos românticos, morre muito cedo para ser um dos simbolistas.
Baudelaire se constitui no elo entre Romantismo e Decadência, esses dois
momentos que, de modos bem diferentes, celebram o sonho e o fantástico em face a
um realismo cientificista e industrialista. No entanto, ao contrário do Romantismo, a
31
Charles Baudelaire, Caracteres apud Paul Bourget, "Teoria da Decadência" in Fulvia
Moretto, Caminhos do Decadentismo, p. 54
32
"Vim muito tarde a um mundo muito velho", Charles Baudelaire, Rolla apud Paul Bourget,
"Teoria da Decadência" in Fulvia Moretto, Caminhos do Decadentismo, p. 54
24
Decadência começa a vilificar os grilhões da verossimilhança entre arte e realidade,
começa a questionar a "natureza". Em O Pintor da Vida Moderna33, o autor pergunta
"quem se atreveria a atribuir à arte a função estéril de imitar a natureza?" e procura
libertar a arte da tirania da representação. Para Patrick McGuinness 34, Baudelaire "em
seus textos sobre arte moveu uma cruzada filosoficamente marcante e moralmente
implacável contra la Nature". Baudelaire acreditava que era a natureza que fazia com
que os seres humanos se matassem e se brutalizassem, considerava que as leis, as
religiões, os códigos morais, a própria autoridade e a civilização que preservavam os
valores humanos eram artificiais.
Baudelaire, por sua vez, se inspira na obra do escritor norte-americano Edgar
Allan Poe para criar o que viria a ser considerada a estética decadente. O escritor
francês encontrou em Poe um precursor: ambos partilhavam uma sensibilidade com
tendência para o macabro, o sobrenatural e o melancólico. Baudelaire se baseia
principalmente em O Princípio Poético, ensaio em que Poe descreve a sua teoria
literária. Neste ensaio, podemos ver prefigurados muitos dos princípios estéticos que
guiariam o Decadentismo nascente. Talvez a asserção mais famosa de Poe neste texto
seja a de que um poema deva ser escrito for the poem's sake: o poema deve referir-se
a si mesmo, consistir numa busca pela Beleza e não pela Verdade moral. De acordo
com o escritor norte-americano, é apenas através da arte (em especial da música) que
somos capazes de vislumbrar os prazeres divinos, a beleza celestial. O ensaio partilha
da tendência da época de associar as sensações físicas que a Beleza produz a uma
excitação da alma, que reconheceria nesta a manifestação do que Poe chama de
Princípio Poético. Esta teoria se tornaria o substrato do Decadentismo e do
Esteticismo e segue o "espírito da época" que separa de vez a esfera ética da esfera
estética (a arte deixa de ter a "função moral" de iluminar o espectador). A expressão
cunhada por Poe, poem for poem's sake, inspira o motto do Esteticismo, art for art's
sake, afirmando a intenção do movimento de produzir uma literatura que não
estivesse necessariamente vinculada à realidade, que fosse julgada somente a partir de
parâmetros estéticos e não de critérios didáticos ou utilitários.
O Decadentismo possui representantes por toda a Europa nessa época. Não se
constitui numa escola literária, mas sim num l'air-du-temps que se infiltra, como um
33
34
Teixeira Coelho (org.), A Modernidade de Baudelaire, p. 204
Patrick McGuinness, "Introdução" in Joris-Karl Huysmans, Às Avessas, p. 55
25
perfume com notas orientais, nas subjetividades da época. Na França, onde floresce, a
escrita decadente é associada principalmente aos poetas simbolistas e seus principais
expoentes são Arthur Rimbaud, Paul Verlaine, Auguste Villiers de L'Isle Adam,
Stéphane Mallarmé e Tristan Corbiere.
Este movimento celebra tudo o que há de outonal nesse mundo que morre. As
palavras de ordem do movimento são: imaginação, intuição, "novo lirismo". O estilo
de seus autores é incrustrado de palavras arcaicas e neologismos. Os decadentes
mostram um "espírito de revolta", uma desconfiança em relação ao mundo que a
ciência e o progresso prometem. Prega-se a volta a um "primitivismo": são
recuperadas e revalorizadas lendas celtas, nórdicas (lendas arturianas, histórias do
Graal), antigas, medievais e bíblicas (a judia Salomé é a "deusa da decadência"). Os
mitos gregos também voltam à voga: há uma recuperação dos mitos de Édipo, de
Prometeu, de Orfeu e da Esfinge pelos escritores da época. O olhar dos autores se
volta para o passado, há uma recusa do mundo contemporâneo. Segundo Fulvia
Moretto35, alguns dos temas trabalhados mais obsessivamente nesse momento são: a
natureza petrificada e fria dos bizantinos, os reflexos dourados de outono, o elogio à
maquiagem e ao artifício em geral, a descrição de uma flora exótica, o reflexo na
água, o gosto por pedrarias, por metais, por vegetais terrestres ou submarinos (temas
da art nouveau), a beleza do sol poente, a consciência da finitude das coisas, a evasão
para a arte da decadência latina e bizantina, "como se o preciosismo da escritura e da
pintura pudesse salvar um mundo que morre".
O primeiro romance considerado decadente é Às Avessas de Joris-Karl
Huysmans. O autor havia sido discípulo de Émile Zola, mas, ao invés de usar sua
pena para pintar um painel da sociedade ao gosto dos escritores realistas, faz o retrato
de um homem sozinho, um solteirão, um ermitão recluso, que se isola de um mundo
que detesta. Seguimos o aristocrata Jean Des Esseintes, esteta, homossexual,
hedonista, blasé, misógino, numa busca narcísica e egocêntrica de educar seus
sentidos em todos os assuntos "elevados", como o estudo de sua própria genealogia,
de pedrarias, de perfumes, de tapeçarias, de música, de jóias, de teorias místicas e de
religiões. Trata-se de um romance sem enredo e com um único personagem. De
35
Fulvia Moretto, Caminhos do Decadentismo Francês, pp. 32-3.
26
acordo com McGuinness36, "Às Avessas é um híbrido, composto de diferentes
modalidades de escrita: catálogo, inventário, estudo de caso, enciclopédia e tratado
erudito, enquanto os capítulos são dispostos como compartimentos ou vitrines".
Des Esseintes se tornou o protótipo do herói (ou anti-herói) decadente. Des
Esseintes/ Huysmans cria o conceito de um cânone literário alternativo, faz uma lista
de "malditos", a começar por Baudelaire. O livro, quando de sua publicação em maio
de 1884, se torna uma coqueluche, é celebrado efusivamente por vários escritores
como o nascimento de um novo tipo de romance, de uma nova sensibilidade literária.
Forma as mentes de toda uma geração de novos escritores, cansados da "frieza" e da
"crueza" das escolas realista e naturalista. Zola, de sua parte, critica o livro pelo que
considera sua falta de desenvolvimento, sua circularidade e suas transições dolorosas.
Provavelmente pressentindo o nascimento de uma nova sensibilidade literária, Zola o
considera um terrível golpe contra o Naturalismo. Segundo McGuinness37:
Tem mais em comum com as narrativas não lineares e aparentemente sem
enredo do modernismo do que com a maior parte da ficção francesa do finde-siecle que ele, a um tempo, inspirou e ultrapassou de antemão. (...) Às
Avessas fica mais à vontade ao lado das obras de Proust, Musil, Joyce e
Woolf que junto das de Jean Lorrain, Rachilde ou Octave Mirbau.
O Esteticismo partilha do ar outonal e do espírito de degenerescência do
Decadentismo que varrem o continente, mas enfatiza determinados elementos,
criando uma teoria estética especificamente inglesa. Esta se inspira no PréRafaelismo, no Romantismo (especialmente na poesia de John Keats) e nos filósofos
do século XVIII Immanuel Kant e Alexander Gottlieb Baumgarten38. Este movimento
também celebra a Renascença e os textos clássicos "redescobertos" nessa época. Seus
idealizadores enfatizam vários elementos da Grécia Clássica, bem mais do que os
escritores do continente. Eles criam uma verdadeira filosofia de vida (devidamente
"vitorianizada") a partir dos clássicos gregos.
Com a demolição dos paradigmas tradicionais, a recusa da estética prevalente
e a ojeriza pela vida produtiva do capitalismo industrial, só resta aos decadentes um
36
Patrick McGuinness, "Introdução" in Joris-Karl Huysmans, Às Avessas, p. 58
Ibid., p. 59
38
Nicholas Frankel, Oscar Wilde: The Picture of Dorian Gray: an Annotated, Uncensored
Edition, p. 70
37
27
neo-hedonismo, a busca do "novo, o raro, o estranho, o refinado"39. Na Inglaterra,
Walter Pater se torna o patrono dessa filosofia, escrevendo em The Renaissance:
Studies in Art and Poetry, em 1873:
nossa única chance está em (...) conseguir reunir o máximo de pulsações
possíveis num determinado período. As grandes paixões nos proporcionam
essa percepção acelerada da vida. (...) O amor à arte pela arte tem o
máximo, porque a arte nos chega propondo-se francamente a não nos dar
nada a não ser a melhor qualidade aos momentos à medida que vão
passando, e apenas em prol desses momentos. 40
A decadência é um termo de notória dificuldade para se definir, consistindo,
segundo John Reed41, no rótulo pejorativo aplicado pela burguesia a tudo que lhe
parecesse anormal, artificial e pervertido, desde o art nouveau ao homossexualismo,
uma doença com sintomas associados à degeneração e à decomposição cultural. Para
além da visão tacanha da burguesia, tratava-se de um movimento estético pósdarwiniano que ultrapassava as fronteiras européias. A estética decadente questionava
todos os pilares nos quais se assentava a moral burguesa, já que considerava a
natureza um mecanismo impiedoso, alheio à espécie humana; a religião, uma
superstição do passado; e o amor, um impulso biológico para a reprodução da espécie.
Na Inglaterra, tais idéias são vinculadas principalmente pelos escritores e
artistas filiados à escola do Esteticismo, que eram publicados pelo periódico The
Yellow Book. Seu maior expoente é Oscar Wilde. Os decadentes ingleses associados a
este periódico parecem ter sido as vítimas mais dramáticas da crise da masculinidade.
Ao passo que as escritoras do movimento da nova mulher eram robustas e bemsucedidas, os decadentes eram elaborados como criaturas fisicamente frágeis, sendo
caricaturados, muitas vezes de maneira impiedosa, nas páginas da revista Punch. De
acordo com Showalter42, "O termo 'decadência' era também um eufemismo do final
do século para o homossexualismo, a fachada pública ou cultural que designava uma
39
Jean Pierrot, The Decadent Imagination, p. 10 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual:
Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 223
40
Walter Pater, The Renaissance: Studies in Art and Poetry (1873) apud Elaine Showalter,
Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 223
41
John Reed, Decadent Style, Athens: Ohio University Press, 1985, p. 7 apud Elaine
Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 222
42
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 224
28
posição complexa e na verdade contraditória ao longo do eixo da formação da
identidade homossexual inglesa no final do século XIX". As novas mulheres e os
homens homossexuais "aparecem" mais ou menos na mesma época, na década de
1890.
A sociedade da era vitoriana tardia se sabia decadente em vários sentidos,
mas, ao mesmo tempo, acreditava em seus poderes de renovação: "um mundo
proclamando sua própria morte a plenos pulmões, um fin du monde degenerado e
decadente; mas ele também proclamava seu poder de renascer como o moderno, o
novo: a Nova Mulher, a Nova Ficção, o Novo Drama, o Novo Hedonismo43". A
Londres de Wilde era o centro pujante (e agonizante) de um Império que já mostrava
sinais inequívocos de decadência. Especialmente os artistas sentiam o "cansaço" do
fim do século e comparavam sua época com a decadência, a lassidão de costumes, o
langor associados ao fim dos impérios romano e bizantino.
A literatura "decadente" do período registra essa cultura do fin-de-siecle.
Havia uma preocupação muito grande por parte da sociedade normativa em relação a
essa literatura decadente e a "influência" que esta teria sobre mentes jovens. O médico
Max Nordau44, em seu livro Degeneração, refere-se ao personagem fictício Des
Esseintes do livro de Huysmans para descrever o artista degenerado:
E ei-lo agora, pois, como o 'super-homem' com que Baudelaire e seus
discípulos sonham e com quem desejam se parecer: fisicamente, doente e
frágil; moralmente, um rematado patife; intelectualmente, um inacreditável
idiota que passa todo o tempo escolhendo as cores e os tecidos com que
revestir artisticamente seu quarto, a observar os movimentos de peixes
mecânicos, cheirando perfumes e provando licores [...]. Um parasita do
mais baixo grau de atavismo, uma espécie de sáculo humano, estaria
condenado, se pobre fosse, a morrer ignobilmente de fome se a sociedade,
com uma caridade equivocada, não lhe assegurasse as necessidades da vida
num hospício de cretinos.
As narrativas da época (mesmos as que não se encaixam nos moldes
decadentes ou estéticos) nos oferecem um retrato fiel dos debates vitorianos, das
grandes questões que preocupavam os homens do final do século XIX. Segundo
43
Holbrook Jackson, The Eighteen Nineties, p. 21 apud Lawrence Danson, Wilde's Intentions:
The Artist in His Criticism, p. 10
44
Max Nordau, Degeneração, 1892 apud Patrick McGuinness, "Introdução" in Joris-Karl
Huysmans, Às Avessas, p. 318
29
Showalter45, "Os personagens da virada do século tornaram-se parte da nossa
mitologia cultural. Desde o instante da sua criação, Sherlock Holmes, Jekyll e Hyde,
Drácula, Dorian Gray, o Viajante do Tempo e Mr. Kurtz saltaram das páginas dos
livros para entrar para a cultura popular".
Nesse momento, o mundo editorial passava por sérias mudanças, dentre elas, a
proliferação de revistas e da imprensa popular e o desaparecimento do romance
vitoriano em três volumes. Este havia sido projetado para a leitura em família e era
presença garantida no lar vitoriano (um exemplo típico seriam os romances e contos
de Natal de Charles Dickens). Como haviam sido projetados para a circulação na
família, os romances vitorianos eram obrigados a ser castos e respeitáveis. O
desaparecimento do romance em três volumes se deveu a uma decisão de cunho
econômico tomada em 1894 por parte das bibliotecas de empréstimo. De acordo com
Showalter46, os romancistas celebraram o fim de um gênero que havia sido fonte de
inibição e repressão. Os antigos volumes em suas encadernações resistentes eram
também associados em termos físicos à família nuclear vitoriana: pai, mãe e filho.
Os novos romances passam a tratar de uma gama mais variada de assuntos:
com a perda de seu caráter familiar, os romancistas podem começar a escrever sobre
temas que haviam sido até então expurgados da literatura pela sensibilidade vitoriana.
Para Showalter47:
Já os romances esbeltos, finamente encadernados do fin-de-siecle, com
suas capas douradas e seus desenhos de Beardsley, sugeriam uma imagem
muito diferente tanto no caráter quanto na sexualidade: o celibatário, o
solteirão, a 'mulher sem par', o dândi e o esteta. Novas combinações
sexuais e ficcionais caracterizavam o meio narrativo [a partir] da década de
1880.
Com o desaparecimento do romance em três volumes, segue-se também um
período de vinte anos em que, aparentemente, não aparece nenhuma escritora de
talento. As escritoras, que, de acordo com Showalter48, haviam dominado o mercado
editorial desde 1840, entram num perigoso período de declínio após 1880. Por que
isso acontece? Esse fato pode ser pensado como um aspecto da crise da masculinidade
45
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 31
46
Ibid., p. 32
Ibid., p. 32
48
Elaine Showalter, A Literature of Their Own, p. 39
47
30
que intensificava a luta entre os sexos. A literatura produzida ao longo do século XIX
na Inglaterra possuía "uma venerável tradição narrativa, controlada pela diferença,
pela nítida separação entre sujeito e objeto, entre público e privado, ativo e passivo –
classificações intimamente vinculadas ao dualismo radical do masculino e
feminino"49.
A era vitoriana tardia trouxe o fim dessas convenções literárias: na medida em
que as certezas sexuais entravam em colapso, as certezas ficcionais também se
alteravam. O desaparecimento do romance em três volumes sugeria um afastamento
de temas, assuntos e formas associados à feminilidade e à maternidade (George Eliot
foi o exemplo mais ilustrativo desse gênero narrativo). Segundo Showalter50:
A estrutura de três partes determinava uma visão da experiência humana
que fosse linear, progressiva, causal e tripartite, terminando com o
casamento ou a morte. Quando não havia mais três volumes a preencher,
os escritores puderam abandonar as estruturas temporais de começo, meio
e fim, bem como as fábulas genealógicas e procriadoras de heranças,
casamentos e mortes que estavam tradicionalmente associadas às mulheres
escritoras e ao realismo vitoriano.
Ao invés disso, a narrativa do final do século questionava as próprias crenças
em términos e encerramentos, em casamentos e heranças. Em franca oposição aos
romances vitorianos sobre famílias e relacionamentos (e na tentativa de fuga da
sombra que a escrita de George Eliot deitava sobre o romance inglês), surgem as
narrativas de aventura, escritas por homens e pressupondo uma audiência masculina.
A literatura de aventura fantástica de Jules Verne já fazia sucesso desde a década de
1860. A Ilha de Coral de R. M. Ballantyne, A Ilha do Tesouro de Robert Louis
Stevenson, As Minas do Rei Salomão e Ela de H. Rider Haggard, A Ilha do Dr.
Moreau de H. G. Wells e O Coração das Trevas de Joseph Conrad se constituem em
exemplos ilustrativos dessas narrativas de aventuras que envolviam "a penetração do
centro imaginado de uma civilização exótica, no cerne, Kôr, coeur ou coração da
treva que é um ponto vazio no mapa, o reino do inexplorado e do desconhecido. Para
os escritores do final do século, esse espaço livre é geralmente a África, o 'continente
49
Kahane, "Bostonians", p. 287 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no
Fin de Siecle, p. 34
50
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 34
31
negro', ou alguma região misteriosa do Oriente, local habitado por uma outra raça
mais escura"51.
Nas terras exóticas, distantes, tropicais, de florestas exuberantes, que estavam
sendo dilapidadas pelo Império Britânico, eram permitidos comportamentos que
seriam considerados inaceitáveis na ilha da Grã-Bretanha. Essas narrativas refletem o
lado otimista e eufórico do colonialismo e, em alguns casos (como em A Iha do Dr.
Moreau e em O Coração das Trevas), também o lado obscuro e sombrio do processo
civilizatório. Estes dois livros mostram a natureza dúbia desse processo, que usa por
um lado um discurso missionário e humanitário ao mesmo tempo em que se utiliza de
uma prática que acaba por desumanizar a todos, inclusive aos próprios "civilizados".
De uma outra forma, os romances de H. G. Wells também lidam com as
paranóias da sociedade vitoriana tardia. Dois de seus romances mais famosos, A
Máquina do Tempo (1895) e A Guerra dos Mundos (1898) refletem alguns dos
grandes debates da época, algumas das grandes preocupações do homem vitoriano.
Em A Máquina do Tempo, o protagonista, após viajar para o ano 802.701 d.C., se
depara com os Elói, um dos dois ramos em que a humanidade se dividiu. Estes são
caracterizados como uma raça degenerada, enfraquecida, pouco inteligente, que só se
preocupa com o lado belo da existência e que não participa do processo produtivo.
Para o protagonista, os Elói representam o fim da humanidade: "Parece-me que
encontrei a humanidade em decadência. O pôr-do-sol ferrugem me fez pensar no pôrdo-sol da humanidade"52. Em oposição a estes, temos os Morlocks, os repugnantes
seres do subterrâneo, que, no entanto, se encontram no topo da cadeia alimentar dessa
sociedade do futuro (e possuem os meios de produção). Essa narrativa reflete crenças
típicas da sociedade vitoriana tardia: a crença em um darwinismo social que,
eventualmente, transformaria as classes abastadas e os trabalhadores em espécies
("raças") diferentes, dados seus estilos de vida opostos. Também ilustra a histeria da
época a respeito da degenerescência da raça, óbvia alusão aos afeminados dândis e
estetas.
Já em A Guerra dos Mundos, a Inglaterra parece bem mais distante da França
do que de Marte. O assunto é, de novo, o fim dos tempos, em que as "conquistas" do
51
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 115-116
52
H. G. Wells, A Máquina do Tempo, p. 48
32
positivismo foram dizimadas: "Cidades, nações, progresso, civilizações... nada disso
existe mais. Esse jogo acabou. Fomos derrotados"53. Sobreviverão apenas os homens
"de verdade", em detrimento aos artistas e boêmios, retratados como gordos,
estúpidos e degenerados: "Formaremos um bando de homens lúcidos e fortes. Não
aceitaremos qualquer porcaria que aparecer. Colocaremos os fracotes para fora. (...)
os que são inúteis, incômodos e prejudiciais precisam morrer. Devem morrer. Devem
estar dispostos a morrer. Afinal, é um tipo de traição continuar vivo e manchar a
raça"54. O que deve ser preservado para o futuro, para a eventual reconquista da Terra
pelos homens são "não romances e poesias açucaradas, mas idéias, livros de
ciência"55. O grande medo que se vê aqui é que uma "raça alienígena" venha a
destruir a ciência, o racionalismo e o progresso do orgulhoso Império inglês.
Além disso, como já vimos, a psicanálise começa a questionar o ego vitoriano
estável e linear no final do século. A literatura reflete essa fragmentação, essa
dissolução da psique humana. O gênero fantástico passa a apresentar o tema da dupla
personalidade e a descrever os desvios, a rebelião e a anormalidade: "À semelhança
dos relatos de Freud de pacientes histéricos, essas histórias são fragmentadas,
contraditórias, incoerentes e alheias à seqüência cronológica"56. As histórias, ao invés
de serem contadas pelo narrador onisciente do realismo vitoriano, são relatadas por
narradores múltiplos, que dão suas opiniões e versões sobre o que está sendo contado.
Os finais das histórias passam a ficar em aberto. No fin-de-siecle, a solidez da vida
burguesa vitoriana era corroída pela degenerescência trazida por essa nova literatura.
Um dos grandes debates vitorianos se desenvolve a respeito da "essência" do
homem. O homem é eminentemente bom ou mau? Ou uma mistura das duas coisas?
Em textos da época, é comum a imagem de que, na alma do homem, coabitam o
animal (representado pelo corpo baixo e material, corruptível) e o anjo (representado
pelo espírito racional e pela alma imortal). O mais ilustrativo romance que se utiliza
desse tema é O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde de Stevenson.
53
H. G. Wells, A Guerra dos Mundos, p. 206
Ibid., p. 210
55
Ibid., p. 210
56
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 34
54
33
Nessa época, também há o florescimento da história de detetive, que tem
como sua maior figura o famoso personagem de Arthur Conan Doyle, Sherlock
Holmes. Ao seguir o método científico à risca, Holmes junta na mesma persona o
cientista e o policial, dando forma definitiva e icônica ao detetive sangue-frio e sabetudo. Suas histórias se passam numa Londres tomada pelo fog, pelo medo burguês da
"imundície" do bairro operário do East End e pelos desaparecimentos (afinal, a
Londres dessa época era conhecida como "a cidade dos desaparecimentos"57),
assassinatos e descobertas de corpos boiando no Tâmisa, acontecimentos corriqueiros
de então.
O método utilizado por Holmes é ilustrativo do modelo epistemológico que
surge nessa época: o paradigma indiciário. Este se baseava na investigação de
pormenores normalmente considerados sem importância, triviais, "baixos", que,
acreditava-se, forneceriam a chave para aceder aos produtos mais elevados do espírito
humano. Segundo Carlo Ginzburg58, esse modelo derivava da semiótica médica, "a
disciplina que permite diagnosticar as doenças inacessíveis à observação direta na
base de sintomas superficiais, às vezes irrelevantes aos olhos do leigo".
A história de detetive (com as convenções de gênero que perduram até hoje) é
inventada em meados do século XIX pelo escritor norte-americano Edgar Allan Poe.
Em 1841, é publicado o conto "Os Assassinatos da Rua Morgue", em que aparece
pela primeira vez o detetive C. Auguste Dupin. Este é seguido por dois outros contos,
"O Mistério de Marie Rogêt" e "A Carta Roubada".
Outro conto influente do autor é "O Homem da Multidão" (1840), que
prefigura tanto a história de detetive quanto a flanêrie pela grande cidade. Segundo
Walter Benjamin59, "A figura do flâneur prenuncia a do detetive". Este conto faz
referência à quantidade nunca antes vista de indivíduos anônimos que circulam pelas
metrópoles do século XIX, ao aparecimento da "turba" da cidade moderna, de onde
tanto pode emergir uma bela passante vestida de negro quanto um ladrão ou um
assassino. A princípio, o autor nos descreve toda a "fauna humana" que pode ser
observada na Londres de meados do século XIX. Anoitece, mas, devido à recente
57
Nicholas Frankel, Oscar Wilde: The Picture of Dorian Gray: an Annotated, Uncensored
Edition, p. 70
58
Carlo Ginzburg, Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e História, p. 151
59
Walter Benjamin, Passagens, p. 485
34
instalação de lampiões de gás nas ruas60, a multidão permanece circulando pela
cidade. Depois, devido a seus traços fisiognômicos notáveis, o narrador começa a
seguir um indivíduo em específico. Este homem perambula por toda a cidade de
Londres durante uma noite e um dia, alternando um comportamento de suspeita e
desconfiança com uma atitude blasé perante a tudo. Nada prende sua atenção por
muito tempo e ele sente como que uma compulsão por caminhar sem parar pela
cidade. Estavam lançadas as características do infatigável flâneur baudelairiano.
Qual a diferença entre o flâneur e o dândi, essas personagens típicas do século
XIX? De acordo com Benjamin61, "Paris criou o tipo do flâneur". A flânerie é um
fenômeno tipicamente francês (e, mais especificamente, parisiense) que denota essa
vontade incontrolável de andar pela Paris do século XIX, por seus boulevars e
magasins, que os artistas, escritores, poetas e literatos em geral passam a sentir após
as reformas promovidas na cidade pelo Barão de Haussman. O flâneur, portanto, é um
homem que caminha pela cidade, apreciando o planejamento urbanístico, as novas
avenidas largas, a arquitetura moderna e observando os tipos humanos da multidão.
Refere-se à cidade, ao espaço urbano.
Já o dandismo ocorre tanto na Inglaterra quanto na França, constituindo-se em
mais um caso de influência cruzada entre as duas culturas. Surge no período da
Regência inglesa com Lorde George "Beau" Brummel (1778–1840), conselheiro do
regente Jorge IV, no final do século XVIII e início do XIX. Penetra na França na
época da Revolução Francesa, numa onda de anglomania, torna-se uma moda entre os
homens do mundo, poetas e romancistas e encontra seus teóricos em Baudelaire e
Barbey d'Aurevilly. Um dos mais famosos dândis franceses será Robert de
Montesquiou (1855-1921), inspiração de Marcel Proust para criar a personagem do
Barão de Charlus em Em Busca do Tempo Perdido. Curiosamente, nas últimas
décadas do século XIX, o dandismo é recuperado pelos estetas ingleses, agora como
imitação das modas francesas. Segundo Zanotti62,
os estetas ingleses recuperaram através da França uma tradição autóctone,
ainda que a maioria bem-pensante a imaginava de origem francesa, já que
consideravam a França o exportador oficial de produtos 'imundos': as
novelas francesas (...); os beijos de língua (French kisses); os preservativos
60
Os lampiões a gás foram instalados em 1812 em Londres e em 1820 em Paris.
Walter Benjamin, Passagens, p. 462
62
Paolo Zanotti, Gay: La Identidad Homosexual de Platón a Marlene Dietrich, p. 45
61
35
(French letters); a sífilis (French pox) e inclusive o sexo pago (French
lessons).
O dândi é herdeiro de uma longa linhagem. Apesar do fenômeno do dandismo
propriamente dito ter a sua origem no período da Regência britânica, Roger Kempf63
identifica muitos antepassados ilustres dos dândis ao longo da História, tais como
Júlio César, Catilina, Alcibíades e Paul de Molenes. Thomas Carlyle, em Sartor
Resartus, escreve sobre o dândi: "Toda faculdade de sua alma, espírito, bolsa e pessoa
é heroicamente consagrada a esse objeto único, ao uso inteligente e elegante de
roupas: enquanto outros se vestem para viver, ele vive para se vestir...". Honoré de
Balzac cria o primeiro modelo literário de dândi na figura de Henri de Marsay em La
fille aux yeux d'or (1835), parte da Comédia Humana.
Baudelaire alça o dandismo a uma esfera metafísica: compara-o ao
espiritualismo e ao estoicismo e considera-o uma espécie de religião. Para o pensador
francês, o dandismo não consistiria apenas num amor desmesurado pela indumentária
e pela elegância física; a preocupação com essas coisas seria um símbolo da
superioridade aristocrática do espírito do dândi. Para Baudelaire64, este é um homem
em luta contra a trivialidade e a mediocridade burguesas:
(...) alguns homens, deslocados de sua classe, descontentes, destituídos de
uma ocupação, mas todos ricos de uma força inata, são capazes de conceber
o projeto de fundar uma nova espécie de aristocracia, tanto mais difícil de
abater quanto estará baseada nas mais preciosas, nas mais indestrutíveis
faculdades, e nos dons celestes que nem o trabalho nem o dinheiro podem
conferir. O dandismo é o último rasgo de heroísmo nas decadências.
De acordo com Antoine Compagnon65, o dândi herda o ódio ao burguês e o
flair pelo sublime do Romantismo (apesar de ser contemporâneo ao Esteticismo e ao
Simbolismo, que se contrapunham à escola romântica anterior). É notável no dândi
seu sentimento antiburguês, sua ojeriza ao homem comum, ao homem medíocre, ao
comerciante. Para se diferenciar do vulgar burguês, o dândi adota hábitos e costumes
aristocráticos; o próprio corpo do dândi faz referência a uma época aristocrática, a um
63
Roger Kempf, "Citations pour une famille" in Dandies – Baudelaire et Cie, pp. 137-156
Charles Baudelaire, "O dândi" in Tomaz Tadeu (org.), Manual do Dândi: A Vida com
Estilo, p. 17
65
Antoine Compagnon, Os Antimodernos, p. 135
64
36
passado em que a brandura e o ornamento podiam recair sobre a figura masculina.
Para Compagnon, o dândi, assim como o romântico, continua sendo um individualista
refratário e rebelde que vive sob a ameaça do spleen e da dor. Baudelaire66 também
não deixa de notar uma espécie de tristeza no dandismo: "O dandismo é um sol
poente; como o astro que declina, é soberbo, sem calor e pleno de melancolia".
Outro dos maiores teóricos franceses do dandismo, juntamente com
Baudelaire, foi o escritor Barbey d'Aurevilly. Em seu ensaio sobre o maior dândi de
todos os tempos, "O Dandismo e George Brummell", o pensador tenta definir a
filosofia de vida por trás do dandismo, que, a seu ver, é bem mais sutil do que pode
parecer a princípio. Segundo d'Aurevilly67, "o dandismo é toda uma maneira de ser
que não se resume ao aspecto materialmente visível. É uma maneira de ser
inteiramente composta de nuances". A partir de sua definição, percebemos bem a
oposição ferrenha do dândi ao burguês, pois uma das principais características do
dandismo seria a de produzir o imprevisto, aquilo que o espírito acostumado às regras
não poderia antever. De acordo com ele, o dândi teria a capacidade de se valer do
"socialmente aceitável" em termos de apresentação social e, ao mesmo tempo, fazer
uma crítica sutil a essas regras e convenções:
O dandismo (...) brinca com a regra e, contudo, respeita-a ainda. Sofre com
ela e dela se vinga quando tem de cumpri-la; invoca-a quando dela
consegue fugir; domina e é dominado, alternadamente: duplo e móvel
caráter! Para jogar esse jogo é preciso ter a seu serviço todas as levezas
que fazem a graça, tal como os matizes do prisma, ao se reunirem, formam
a opala.68
Ou seja, segundo d'Aurevilly, o dândi tem um je-ne-sais-quoi que o diferencia
dos outros homens; não é a roupa que faz o dândi, mas sim o dândi que "faz" a roupa:
"É uma maneira de vesti-lo que cria o Dandismo"69. O modo como o dândi usa o seu
traje cria a moda: uma qualidade intangível de refinamento, bom-gosto e sofisticação
separa um homem comum de um legítimo dândi. De acordo com d'Aurevilly, os
dândis, durante o reinado de Beau Brummell (ou seja, no auge de sua impertinência),
66
Charles Baudelaire, "O dândi" in Tomaz Tadeu (org.), Manual do Dândi: A Vida com
Estilo, p. 17
67
Barbey d'Aurevilly, "O dandismo e George Brummell" in Tomaz Tadeu (org.), Manual do
dândi: a vida com estilo, pp. 130-1
68
Ibid., pp. 131
69
Ibid., p. 184
37
não conseguiram mais conter sua ousadia e inventaram a moda do "traje lixado". Esta
consistia em lixar toda a roupa, antes de usá-la, com um pedaço de vidro afiado até
transformá-la praticamente em uma gaze. Para d'Aurevilly, "Eis aí um verdadeiro ato
de Dandismo. O traje pouco importa. Praticamente, ele não existe"70.
O dândi é um homem livre, não está preso pelas amarras das convenções
sociais. Pelo contrário, sente-se totalmente à vontade para questionar a sociedade e
seus pressupostos através da ironia, para inverter a valoração simbólica tradicional
das coisas. O dândi cria para si a aura do livre-pensador e se outorga a liberdade de
renomear o mundo a seu bel-prazer, como o artista. Constitui-se num verdadeiro
"artista da vida". Para d'Aurevilly71,
Não é o dandismo o livre pensar em questões de maneiras e de convenções
do mundo, da mesma maneira que a filosofia o é em matéria de moral e de
religião? Como os filósofos que erigiam, perante a lei, uma obrigação
superior, os dândis, com sua autoridade privada, estabelecem uma regra
acima daquela que rege os círculos mais aristocráticos, mais presos à
tradição, e pelo gracejo, que é um ácido, eles conseguem fazer com que
seja aceita essa regra móvel que não é, ao final das contas, senão a audácia
de sua própria personalidade.
O dandismo, com sua celebração da beleza e do corpo masculinos, assim
como a literatura decadente, não poderia deixar de ser misógino. Baudelaire descreve
a mulher como um ser totalmente governado pelos seus impulsos físicos e biológicos:
"A mulher é o contrário do Dândi. Ela deve, pois, causar horror. A mulher tem fome:
ela quer comer; sede: quer beber. Está no cio: quer ser fodida. Grande mérito! A
mulher é natural, isto é, abominável. Ela é, pois, sempre vulgar, isto é, o contrário do
Dândi"72. Em termos de elaboração simbólica, Baudelaire relega a mulher a uma
natureza irredutível e inescapável, condenada a seu corpo feminino destinado à
reprodução. Como é mais "natural" que o homem, precisa lançar mão de mais
artifícios para esconder sua natureza "animal". Curiosamente, nela, o uso de artifícios
advém dessa falta de humanidade original enquanto que, no homem, a artificialidade
é uma escolha, uma decisão, um gosto a ser celebrado. Em relação às mulheres,
70
Barbey d'Aurevilly, "O dandismo e George Brummell" in Tomaz Tadeu (org.), Manual do
dândi: a vida com estilo, p. 185
71
Ibid., pp. 139-40
72
Baudelaire, "Meu coração desnudado" apud Tomaz Tadeu, Manual do Dândi, p. 212-3
38
haveria como que uma obrigação ao adorno, ao enfeite, à ornamentação ao passo que,
nos homens, isto seria uma eleição, uma demonstração de estilo, de bom-gosto.
O questionamento feito pelo dandismo ao ideal normativo é restrito aos
homens: não há mulheres dândi. O corpo feminino sofre uma "naturalização"
impossível de ser questionada: o dândi constitui-se num "sujeito-objeto" por livre e
espontânea vontade enquanto a mulher, como não é sujeito da Razão, não pode
"escolher" tornar-se objeto. O dandismo, a valorização estética do homem afeminado,
belo, coberto de adornos, cria um padrão alternativo de masculinidade. No entanto, a
mulher continua condenada à natureza e elaborada em termos de coletivo e não de
indivíduo.
Significativamente, essa voga do dândi surge em uma época de redescoberta
não só dos clássicos como de uma "vitorianização", de uma estetização do amor
grego. Nos escritos de Wilde, há a valorização do homem belo, do male muse.
Igualmente, o dandismo é um ideal de beleza masculina. O feminino é celebrado na
medida em que pode ser observado num homem; já numa mulher, esse feminino
sempre é vilificado. Assim, o dandismo é a aplicação de uma característica feminina
(beleza, ornamento, adorno) a indivíduos do sexo masculino (únicos sujeitos do
conhecimento).
Obviamente, seguir o dandismo à risca se constituía em um tapa com luvas de
pelica no ideal normativo de masculinidade. A mentalidade imperante da época fez do
gosto dos estetas um indício de degeneração. O corpo normativo do cavalheiro serve
fundamentalmente para marginalizar os "outros" e é erigido em símbolo do corpo são
da pátria. Em contraposição ao dândi, o cavalheiro não se nega ao trabalho, prefere o
útil ao belo ou agradável, não deixa dúvidas a respeito da sua heterossexualidade
normativa. O cavalheiro usa sua força para defender as mulheres e as crianças: sua
"supremacia varonil" dita um comportamento hiperprotetor em relação a seres
elaborados como "inferiores". Significativamente, é também do final do século XIX a
"invenção" do esporte, pensado para exaltar a proeza masculina. Segundo Eric
Hobsbawm73, "Que o esporte era considerado elemento importante na formação da
nova classe governante, segundo o modelo do gentleman britânico burguês treinado
em escola pública, é evidente".
73
Eric J. Hobsbawm, A Era dos Inpérios: 1875-1914, p. 287
39
O corpo de Wilde não é apenas acidental ou simbólico: assim como as
mulheres, ele é julgado primordialmente a partir dessa existência corporificada.
Atestam isso as inúmeras charges que ressaltam a delicadeza, a artificiosidade, a
afeminação do corpo do escritor. Segundo Zanotti74, "Os cavalheiros têm um corpo,
os 'outros', exatamente igual às mulheres, são um corpo. O corpo não-normativo é um
corpo observável, sexualizado, socialmente inapropriado, independentemente de que
essa diferença seja ostentada (caso dos dândis e dos boêmios) ou que seja imposta
(como acontece com os homossexuais)". O corpo de Wilde (como um legítimo corpo
de dândi) se refere a um código aristocrático segundo o qual é permitida a
coexistência da autoconfiança e de uma certa brandura no corpo masculino. Talvez
um dos maiores "pecados" de Wilde fosse se mostrar tão seguro, tão confiante de sua
imagem, sendo esta tão desviante da norma.
O dândi seria o epítome da individualidade num mundo que se tornava cada
vez mais igual. Era um homem que ousava se apresentar de um modo diferente e
ousado numa sociedade que literalmente uniformizava cada vez mais os homens.
Cada vez mais normas e interditos recaíam sobre o modo como os homens deveriam
se apresentar socialmente. A moda masculina havia sofrido uma curva descendente
em termos de originalidade e criatividade desde a ascenção da burguesia: o dândi
procurava recuperar o exagero, a cor, o adorno perdidos com a decadência da
aristocracia. (No século XVIII, os homens nobres ainda usavam peruca, maquiagem e
saltos altos vermelhos.) O que era considerado "aceitável" em termos de traje
masculino diminui em paralelo com a normatização progressiva da masculinidade que
ocorre nesse mesmo período. Diferentes peças e cores são tachados de "femininos" e
"afeminados" e são limados do guarda-roupa do sério burguês, pater familias. Tudo
isso abre caminho para a uniformização total que ocorre no início do século XX,
quando se torna praticamente impossível imaginar um homem saindo de casa trajando
outra vestimenta que não o terno preto, a gravata e o chapéu-coco (o traje típico do
funcionário público).
Kempf75, em Dandies – Baudelaire et Cie, após uma descrição minuciosa dos
estilos de vida e dos tipos de dândi, chega a uma conclusão que pode parecer bastante
inesperada, em se tratando do dandismo: diz que toda a mística do dândi não é mais
74
75
Paolo Zanotti in Gay: La Identidad Homosexual de Platón a Marlene Dietrich, p. 48
Roger Kempf, Dandies – Baudelaire et Cie, p. 181
40
que uma antecipação da morte. Segundo ele, de uma forma heróica, o dândi se vale de
seus gestos depreciativos, de sua pose blasé, de sua ironia ao se mover pela vida, mas,
a todo momento, se sabe "condenado" à morte e a um provável esquecimento, como
todos os outros. Ou seja, o dândi aceita a falta de sentido da vida; dá tanta atenção à
aparência e às coisas ditas supérfluas justamente porque percebe, mais que os outros,
a transitoriedade de tudo. Pode-se dizer que o dândi tenha (ou afete) uma pose
"debochada" em relação à seriedade da vida.
Desde o começo, Wilde assume essa pose de esteta e dândi, a qual manterá até o
fim. O dandismo do escritor é uma postura estética muito bem definida a respeito dos
usos e costumes de seu tempo. Pode ser pensado como complementar a seu
posicionamento em matéria de arte ou de crítica literária: em todos esses casos, Wilde
afirma o poder da personalidade individual do artista. O vestir-se com esmero, a
escolha cuidadosa de pedrarias e jóias, a flor na lapela que se adequa perfeitamente a
cada situação social, tudo isso consiste, a seu ver, numa arte do bem viver. Segundo
Tzvetan Todorov76, "Nas últimas décadas do século XIX, tanto na Europa quanto na
América do Norte, um homem mais do que todos os outros encarna a idéia de que a
vida deve ser conduzida de acordo com as exigências únicas da beleza: ele se chama
Oscar Wilde".
Curiosamente, num dos livros que lança após a morte de Oscar, Lorde Alfred
Douglas diz que Wilde detestava o modelo que era "obrigado" a usar como dândi.
Este consistia, de uma forma geral, num chapéu de seda, um casaco de caimento solto
(que lembrava o caimento de um vestido), calças listradas, botas de couro, um par de
luvas cinza de camurça e uma grande bengala com adornos dourados. A qualquer
hora do dia ou da noite, Wilde sempre se encontrava vestido de forma extremamente
elegante, como se fosse para as ocasiões mais solenes (a expressão inglesa dressed to
the nines engloba esse conceito perfeitamente). Segundo Douglas77, "No mais, eu
acredito que ele [Wilde] odiasse o modelo, especialmente no calor, mas ele
permanecia fiel a esse estilo como um troiano".
O dandismo de Wilde pode ser visto como uma postura agressiva do escritor
76
Tzvetan Todorov, A Beleza Salvará o Mundo – Wilde, Rilke e Tsvetaeva: Os Aventureiros
do Absoluto, p. 25
77
Lorde Alfred Douglas, Oscar Wilde and Myself, Nova York, 1914, pp. 35-36 apud
Lawrence Danson, Wilde's Intentions: The Artist in His Criticism, p. 25
41
frente à normatização que as masculinidades sofriam nesse período, especialmente
com a figura do gentleman, o exemplar "correto" de homem inglês. No entanto, esta
não era a menor de suas impertinências. O curioso em Wilde é como todos os
aspectos de sua vida (escrita, vestimenta, teoria estética) se coadunam num todo
harmônico. Cada uma de suas poses parece ter sido pensada para irritar o
establishment.
42
Capítulo III
A IMPORTÂNCIA DE SER WILDE
Seus nomes são símbolos de sua pessoa: Oscar, sobrinho do rei Fingal e
filho único de Ossian na amorfa Odisséia celta, morto à traição pelo
homem que o convidara a sentar à sua mesa. O' Flahertie, a selvática tribo
irlandesa cuja missão era derrubar as portas das muralhas das cidades
medievais; nome que produzia terror nos homens de paz, que o
mencionam, entre as pragas, como a ira de Deus e o espírito de fornicação,
na antiga litania dos santos: 'do espírito selvagem dos O' Flahertie, libertanos Senhor'. Igual ao outro Oscar, Wilde encontraria a morte pública na
flor da idade, sentado à mesa, coroado com falsas folhas de louro e falando
de Platão. Como aquela tribo selvagem, arremessaria as lanças de seus
fluidos paradoxos contra o corpo dos convencionalismos práticos, e
ouviria, como exilado sem honra, o coro dos justos mencionar seu nome
juntamente com o dos impuros.
- James Joyce
As figuras da sexualidade feminina do fin-de-siecle eram com freqüência
representadas como seres exóticos e cobertos por véus. Wilde trabalha o tema do véu
na peça Salomé. Sandra Gilbert e Susan Gubar78 afirmam que o véu é uma espécie de
fronteira aberta, uma imagem de confinamento e reclusão que é também
extremamente penetrável: "mesmo quando opaco, ele é muito transitório, enquanto a
transparência o transforma numa entrada ou saída possível". Segundo Showalter79, o
véu sugere a possibilidade de acesso a uma outra esfera, uma outra sexualidade, uma
outra identidade. Curiosamente, nas histórias do final do século sobre a "mulher" por
trás do véu, há sempre um homem oculto sob o véu. Essa figura reflete a ambigüidade
e a transparência da diferença sexual e da sensação de culpa, decadência, transgressão
e anarquia sexual.
A mulher de véus mais popular do fin-de-siecle é Salomé, que se torna um ícone
obsessivo da sexualidade feminina para os artistas decadentes. Ela é "a fêmea fálica
preferida do fin-de-siecle"80. De acordo com Philippe Jullian81, a Salomé que
78
79
Sandra Gilbert e Susan Gubar, The Madwoman in the Attic, p. 468
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 196
Carl Schorske, Viena fin-de-siecle – Política e Cultura, São Paulo: Companhia das Letras,
1988, p. 217 apud Eliane Robert Moraes, O Corpo Impossível, p. 27
80
81
Philippe Jullian, Esthetes et Magiciens, Paris: Perrin, 1969 apud Elaine Showalter,
Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 197
43
recordamos como a "Deusa da Decadência" é a protagonista da peça de Wilde. Essa
personagem bíblica se torna uma verdadeira febre nesse momento, sendo representada
na pintura por Gustave Moreau, Aubrey Beardsley e Gustav Klimt e sendo celebrada
na literatura por Gustave Flaubert, Stéphane Mallarmé e Guillaume Apollinaire, além
de Oscar Wilde. Tal coqueluche, segundo Eliane Robert Moraes82, "nos autoriza a
concluir que as histórias da perversa bailarina que fascinou o fin-de-siecle constituem,
no seu conjunto, um mito; mais que personagem literário ou iconográfico, Salomé foi
figura emblemática de uma sensibilidade que a época viveu com intensidade e
inquietação". De acordo com Joaquim Brasil Fontes83, a femme fatale representava o
duplo feminino do dândi: "encarnando o contrário da mulher, ela ostentava a
perfeição da antiphysis, a dramatizar a própria idéia de decadência que a época
acalentava".
A peça é proibida pelo Lorde Chamberlain, baseado numa antiga lei, por tratar
de um tema bíblico. Wilde ameaça deixar a Inglaterra e adotar a cidadania francesa se
a peça fosse proibida: "Não vou me conformar a ser chamado de cidadão de um país
que demonstra uma avaliação artística tão mesquinha". Poucos escritores, atores ou
críticos se apresentam em sua defesa (com as exceções de Bernard Shaw e Mallarmé).
O escritor se torna motivo de chacota por parte da imprensa: "Toda Londres ri da
ameaça de Oscar Wilde de se tornar francês"84. Wilde jamais vê a peça ser encenada:
na época em que Salomé tem sua primeira encenação em Paris em 1896, o autor já
estava preso. Quando a peça começa a sua carreira de sucesso no início do século XX,
o escritor já era falecido.
Salomé pode ser vista como uma peça não-assumida, tanto no sentido de ser
uma peça que existe principalmente como texto de leitura quanto no sentido
contemporâneo do termo "não-assumido", uma peça "heterossexual" criada por um
autor homossexual com um significado sexual gay nas entrelinhas. Examinando
imagens de véus e máscaras nos contos e críticas de autoria de Wilde, Katherine
Worth85 conclui que "o afastamento do véu era uma imagem adequada para a
82
Eliane Robert Moraes, O Corpo Impossível, pp. 29-30
Joaquim Brasil Fontes, Eros, Tecelão de Mitos, São Paulo: Estação Liberdade, 1991, p. 42
apud Eliane Robert Moraes, O Corpo Impossível, p. 30
84
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 199
83
85
Katherine Worth, Oscar Wilde, Nova York: Grove Press, 1983, p. 66 apud Elaine
Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 199
44
atividade que Wilde considerava ser o principal dever do artista: o da auto-expressão
e da auto-revelação. Ao apresentar a dança dos sete véus, Salomé talvez esteja
oferecendo não só uma visão do corpo nu, mas também da alma ou do seu ser mais
profundo".
É comum afirmar que as ilustrações que Aubrey Beardsley fez para a primeira
edição da peça não corresponderiam às cenas descritas no texto. Elliot Gilbert86
considera tanto Beardsley quanto Wilde artistas homossexuais que "através de uma
extraordinária representação da sexualidade pervertida na sua obra, participam de um
devastador ataque do final do século contra as convenções da cultura patriarcal,
mesmo quando exprimem seu horror diante da ameaçadora energia feminina que é o
instrumento daquele ataque". Wilde, aparentemente, gostou das ilustrações. No
volume que deu de presente ao ilustrador, o autor escreveu: "Para o único artista, além
de mim mesmo, que sabe o que é a dança dos sete véus e que é capaz de ver aquela
dança invisível".
Para Showalter87, os desenhos de Beardsley "realçam com grande intensidade o
subtexto, as entrelinhas secretas ou improferíveis da peça, especialmente seus
elementos homoeróticos e blasfemos". A autora acredita que as imagens do ilustrador
concretizem uma verdadeira fusão entre Wilde e Salomé: "A fusão realizada por
Beardsley de Wilde e Salomé, do corrosivo amor feminino e do amor homossexual
masculino, traz à tona as mensagens ocultas e cifradas da peça"88. As personagens das
ilustrações de Beardsley são andróginas, são figuras ao mesmo tempo assexuadas e
lascivas. Esse tipo de representação era comum na época.
Fiéis ao espírito transgressor da peça de Wilde, muitas montagens atuais se
valem do transformismo. Segundo o crítico de teatro Laurence Senelick89, o
travestismo teatral tem suas raízes nas origens mágicas e religiosas do teatro, através
da apresentação do xamã, cujas transformações sexuais ritualizadas eram um sinal de
que "os papéis sexuais de elaboração social podem ser embaralhados, e que ninguém
86
Elliot Gilbert, "Tumult of Images: Wilde, Beardsley, and Salome" in Victorian Studies 26
(inverno 1983), pp. 133, 150, 154 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura
no Fin de Siecle, p. 200
87
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 200
88
Ibid., p. 204
Laurence Senelick, "Changing Sex in Public: Female Impersonation as Performance" in
Theater, 1989, pp. 6-11 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de
Siecle, p. 218
89
45
que possua a centelha divina precisa ficar para sempre relegado a um só sexo". O
transformismo no palco é "uma expressão sublime da potencialidade humana,
considerando-se a artificialidade das convenções teatrais que oferecem não a verdade,
mas o símbolo"90. Talvez não seja necessária a "escolha" entre a nova mulher e o
homossexual: "o desvio através do travestismo deixa, afinal, claro que essa 'qualidade
de ser mulher' consiste na colocação de véus, em se 'fantasiar de mulher'91".
Segundo esse ponto de vista, o feminino seria necessariamente uma "máscara", uma
construção. A mulher e sua pretensa feminilidade "natural" não consistiriam em nada
além de uma invenção perniciosa do patriarcado. Wilde desconstrói a elaboração
simbólica de gênero, mostrando o quanto de artificialidade existia no feminino e
ressaltando a capacidade que qualquer homem teria de escapar do ideal normativo
viril da masculinidade.
Wilde não apenas escreve, mas usa o seu corpo como texto para ilustrar o que
quer dizer. Na biografia escrita por Richard Ellmann, há uma fotografia tirada em
Paris na década de 1890 do próprio Wilde posando como Salomé, de peruca e fantasia
coberta de jóias, braceletes enroscados, ajoelhado com os braços estendidos diante da
cabeça decepada. (Estranhamente, essa foto não é muito conhecida nem muito
divulgada.) O que o escritor queria dizer deixando-se fotografar desse modo? Seria
uma afirmação no estilo "Eu sou Salomé"92? Podemos imaginar que Wilde, desse
modo, faz referência ao subtexto secreto da peça, às suas entrelinhas, como se
passasse uma mensagem cifrada que apenas um determinado tipo de público
entenderia. Talvez quisesse dizer que a peça não se trata da "nova mulher" e de seu
temido poder sexual, mas sim da sexualidade homossexual velada, que não podia
mostrar seu rosto, que tinha que se esconder por baixo de um véu.
Esse jogo de esconder e desvelar é uma constante na vida de Wilde. Desde o
começo de sua carreira, Wilde cria um tipo notório por suas excentricidades e se
mantém fiel a ele.
90
Laurence Senelick, "Changing Sex in Public: Female Impersonation as Performance" in
Theater, 1989, pp. 6-11 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de
Siecle, p. 218
91
V. Joan Riviere, "Womanliness as a Masquerade", Formations of Fantasy, Victor Burgin,
James Donald e Cora Kaplan (org.), Londres e Nova York: Methuen, 1986, p. 36 apud Elaine
Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 221
92
Reminiscente do "I am Heathcliff" da personagem Catherine Earnshaw de O Morro dos
Ventos Uivantes de Emily Brontë e do "Madame Bovary, c'est moi" de Flaubert.
46
Nasce em Dublin a 16 de outubro de 1854, numa família de intelectuais. Seu
tio-avô Charles Maturin havia escrito um romance gótico, Melmoth the Wanderer, e a
mãe, conhecida como Lady "Esperanza" Wilde, escrevia poemas nacionalistas. Seu
pai era um renomado médico. Sua mãe tinha um salão literário, do qual participava
Sheridan Le Fanu.
Estudante brilhante desde novo, quando jovem é admitido no Magdalen
College, a faculdade de estudos humanistas da universidade de Oxford, onde estuda
os clássicos e se torna discípulo de Walter Pater, passando a integrar o círculo dos
estetas. Em Oxford, começa a se tornar notório por seu dandismo e seus ditos de
espírito. Ele usa cabelos compridos e a flor que usa na lapela é sempre perfeita para a
ocasião. Suas acomodações na faculdade são decoradas com esmero: girassóis, lírios,
porcelana chinesa e penas de pavão. Ele abertamente desdenhava de esportes
"masculinos" (apesar de lutar boxe às vezes). Na universidade, em determinado
momento, é aberta uma competição literária para ver quem traduziria melhor o Novo
Testamento. Wilde é impedido de participar, pois todos sabem que, se ele entrasse no
concurso, ganharia sem dúvida. Afirma então que "não queria saber mesmo como
terminaria essa história". Mais tarde em sua vida, afirmaria "meu sotaque irlandês é
uma das muitas coisas que esqueci em Oxford". Wilde começa a criar o seu mito.
Após a graduação em Oxford, Wilde retorna a Dublin com a intenção de se
casar com a sua namorada da juventude. No entanto, esta havia se casado com Bram
Stoker (que escreveria Drácula). Tenta conseguir um posto acadêmico em Oxford (o
que garantiria uma relativa segurança financeira ao aspirante a escritor), mas não é
aceito. Com essa rota em direção à fama literária barrada, Wilde se muda
definitivamente para Londres e começa a se fazer conhecido pelos ricos e poderosos
da sociedade londrina.
Muito de seu esforço é gasto em cultivar uma imagem que o distinguiria dos
outros no meio literário de Londres. Adota a mesma pose dos seguidores do
Esteticismo, que eram alvo de desaprovação e condescendência públicas. Wilde
aperfeiçoa de tal modo sua persona que se torna conhecido na Londres de fins dos
anos 1870 e começo dos anos 1880 como o esteta prototípico. Com sua aparência
extravagante e sua verve, Wilde se faz presente em todas as festas importantes,
premieres e reuniões da alta sociedade.
Aproveitando-se de sua celebridade, Wilde aceita, em dezembro de 1881,
embarcar para os Estados Unidos para promover a ópera cômica "Paciência" de
47
Gilbert e Sullivan93. Muitos acreditavam que a ópera consistia numa sátira à própria
pose estética de Wilde. As palestras foram extremamente bem-sucedidas e tornaram
Wilde ainda mais famoso do que antes. Ele ficou reconhecido como porta-voz da
"Nova Renascença" da arte inglesa, o interesse renovado em artes decorativas e
aplicadas que ocorreu na Inglaterra na segunda metade do reinado da Rainha Vitória.
No entanto, o sucesso literário continua a lhe escapar: publica um livro de poemas, ao
qual a crítica reage de maneira hostil.
Wilde se casa com Constance Lloyd, tem dois filhos e a família passa por
dificuldades econômicas. Para se manter, escreve artigos para jornais e revistas e se
torna, por um tempo, editor do periódico Woman's World94. Só começa a fazer
sucesso em 1891, quando quatro de seus livros são publicados. Dentre esses, dois
livros de contos, um volume de ensaios (Intentions, que também pode ser considerado
seu manifesto estético) e O Retrato de Dorian Gray.
Finalmente, inicia-se a parte áurea da carreira e da vida de Wilde, em que ele
escreve suas famosas peças, tais como A Importância de Ser Prudente, Um Marido
Ideal e Uma Mulher sem Importância. Pede a seus amigos para comparecem à estréia
de A Importância de Ser Prudente usando um cravo tingido de verde na lapela, para
dar a impressão de uma sociedade secreta. Wilde se torna o árbitro da elegância em
Londres. É impiedosamente caricaturado pela imprensa por seu dandismo e por
defender uma postura estética perante a vida.
Da noite para o dia, deixa de ser o dramaturgo mais celebrado da Inglaterra para
se tornar seu mais famigerado criminoso sexual. É acusado de "sodomia" pelo
Marquês de Queensberry, pai de seu amante, Lorde Alfred Douglas. Segue-se um
julgamento por "indecência grave", no qual Wilde é sentenciado à pena máxima, dois
anos de aprisionamento com trabalhos forçados. O nome do juiz que o condena é,
ironicamente, Justice Wills (que poderia ser traduzido como "a justiça vencerá"). Este
declara nunca haver julgado um caso pior que esse e diz considerar a pena totalmente
inadequada ao caso, dando a entender que esta deveria ser mais severa.
Na prisão, Wilde escreve o poema A Balada de Reading Gaol e a longa carta De
Profundis, endereçada a Douglas. Durante seu tempo encarcerado, morre sua mãe, de
93
W. S. Gilbert e Arthur Sullivan, uma parceria teatral que produzia óperas cômicas na
Inglaterra vitoriana.
94
Vale notar que é Wilde quem muda o nome do periódico de Lady's World para Woman's
World. Ele também passou a inserir artigos literários na revista, pois acreditava que as
mulheres não deveriam ler apenas sobre assuntos do lar.
48
quem era muito próximo. Nesse mesmo período, dadas as condições insalubres das
prisões, é acometido por uma infecção no ouvido que eventualmente o mataria. Sua
mulher Constance pede o divórcio e muda o sobrenome seu e de seus filhos, já que o
nome "Wilde" ficara associado à ignonímia do "crime sexual".
Quando sai da prisão, é um homem destroçado. Conta-se que foi perseguido por
homens mandados pelo Marquês assim que é liberado da prisão. Encontra-se falido,
sem o direito sobre suas obras, mantido afastado dos filhos pela ex-esposa. Wilde se
torna um completo excluído, totalmente marginalizado da sociedade. Tenta
reconstruir sua carreira literária e sua vida em Nápoles e Paris, mas em vão. Em seu
exílio, adota o nome de "Sebastian Melmoth", uma homenagem a São Sebastião e ao
andarilho do romance escrito por seu tio-avô. Bosie (que praticamente não havia
visitado Wilde na prisão) reaparece e eles reatam o relacionamento, que dura três
meses, até o minguado dinheiro de Wilde acabar. No fim da vida, Wilde se torna
praticamente um mendigo-dândi, oferecendo poemas em troca de dinheiro. Um pouco
antes de morrer, converte-se ao catolicismo. Aparentemente, não perde a pose nem na
hora da morte. De acordo com o mito, mencionando as cortinas rotas de seu quarto de
hotel barato, diz: "Ou se vão essas cortinas ou vou eu". A causa de sua morte é o
agravamento da infecção no ouvido que havia contraído na prisão. Aparentemente,
seus contemporâneos acreditavam que o escritor havia morrido de sífilis, dado o seu
estilo de vida "degenerado".
Morto em novembro de 1900, Wilde é enterrado num túmulo simples no
Cemitério de Bagneux. Ironicamente, a Rainha Vitória morre em 1901: sua morte
encerra o período vitoriano e o século XIX. Wilde permanece como homem
prototípico do século XIX, não vê a aurora do novo século que, com seus escritos,
ajudara a forjar.
49
QUEM TEM MEDO DE DORIAN GRAY?
O Retrato de Dorian Gray, o único romance escrito por Wilde pode ser
interpretado de uma miríade de maneiras diferentes: pode ser considerado um
manifesto estético, uma alegoria sobre a interpretação, um ensaio sobre a conduta
crítica, uma fábula gótica, uma fábula moral que critica o próprio Esteticismo, um
melodrama, um conto filosófico, um conto fantástico, uma sátira social, uma novela
criminal, uma fantasia mórbida. É um livro estético que, sob vários pontos de vista,
critica e satiriza a própria doutrina do Esteticismo.
Há duas versões do romance. A primeira é publicada no periódico Lippincott's
Monthly Review em 1890. Esta versão tem apenas 13 capítulos e é muito mais focada
nos três personagens principais, o artista Basil Hallward, o polêmico Lorde Henry e o
belo Dorian Gray. É também abertamente homoerótica; tem-se a impressão de que,
nesta versão, Wilde leva ao ponto máximo o que poderia ser escrito em relação a esse
tema na época.
Obviamente, essa primeira versão de O Retrato de Dorian Gray é severamente
criticada pela imprensa. As críticas faziam referência à "sujeira", "afeminação" e
"imoralidade" do livro. De acordo com o Daily Chronicle: "Tédio e sujeira são as
principais caraterísticas de Lippincott's este mês". Para o Scotts Observer, "o Senhor
Wilde tem cérebro e arte e estilo; mas se ele não consegue escrever para ninguém a
não ser nobres fora-da-lei e garotos pervertidos que trabalham no telégrafo, o quanto
antes ele se iniciar na alfaiataria (ou qualquer outra profissão decente), tanto melhor".
O romance é chamado de "infeccioso" e "corruptor".
Quando da publicação da história em livro em 1891, Wilde adiciona
personagens e torna-o mais tipicamente vitoriano, por exemplo, com a história da
vingança de James Vane. Ao mesmo tempo, o escritor insere no livro várias
passagens que questionam a existência de livros infecciosos e corruptores. Adiciona
também o famoso prefácio, em que afirma: "Um livro não é, de modo algum, moral
ou imoral. Os livros são bem ou mal escritos. Eis tudo"95.
95
Oscar Mendes (org.), Oscar Wilde: Obra Completa, p. 55
50
Wilde, apontando a perversidade que se escondia sob o puritanismo da época
vitoriana tardia, se defende, em réplica ao periódico Scotts Observer: "Todo homem
vê seu próprio pecado em Dorian Gray. O que são os pecados de Dorian Gray
ninguém sabe. Aquele que os encontra é quem os trouxe à tona"96. Em todo o livro, os
propalados "pecados" de Dorian nunca são revelados diretamente. O leitor imagina o
que quiser a respeito disso. Wilde não apenas transforma o leitor em cúmplice de
Dorian, mas transforma-o também em criminoso. Os "pecados" que cada um imagina
são nada mais que um reflexo da mente do leitor.
As inversões simbólicas promovidas por Wilde em seus escritos apontavam
para uma desestabilização completa do status quo vitoriano. O escritor tinha a
intenção de promover um renascimento da sensibilidade clássica, da Estética
reconhecida como esfera separada da Ética em um mundo puritano, cinza, moralista
(cujo símbolo poderia ser o eterno luto da Rainha Vitória). E esse "programa" de
Wilde andava de braços dados com a reabilitação da amizade grega entre dois
homens, vilificada na época em que vivia.
Como transformar uma paixão não só vista como pecaminosa, mas passível de
sanções legais em uma procura pela Beleza, pela personalidade, pela arte em vida,
pela Estética em si? A paixão que Basil sente por Dorian (pecaminosa e, pior,
criminosa) é transmutada pela escrita de Wilde de algo "não natural" e "indecente" em
uma Paixão pela Beleza, pela Estética, em inspiração para a criação artística: "sua
personalidade [a de Dorian] me sugeriu um modo completamente novo em arte, um
estilo inteiramente novo. Eu vejo as coisas diferentemente, eu penso nelas de forma
diferente. Agora, eu posso recriar a vida de um modo que estava escondido de mim
antes"97. Através da escrita de Wilde, o que é visto como a coisa mais baixa e vil se
transforma, pelo uso de adjetivos numinosos, no que há de mais raro, belo e elevado,
na matéria mesma de que a arte é formada.
Os riscos associados à homossexualidade eram tantos que poucos autores
ousavam tratar desse assunto diretamente. Mais comumente, onde a sugestão de
homossexualidade era invocada, um véu de convenção clássica era utilizado. A
96
Marcello Rollemberg (org.), Sempre Seu, Oscar: Uma Biografia Epistolar, p. 28
Nicholas Frankel, Oscar Wilde: Picture of Dorian Gray: an Annotated, Uncensored
Edition, p. 84
97
51
Grécia Antiga é idealizada nesse sentido: por isso as miríades de alusões a
personagens mitológicos gregos reconhecidos por sua beleza, a homens belos do mito
e da lenda: Narciso, Adônis, Apolo.
O livro parece reverenciar e questionar, concomitantemente, a doutrina do
Epicurianismo de Walter Pater. Essa teoria almejava o que Pater98 chamava de
"aquele ideal helênico segundo o qual o homem se encontra em unidade consigo
mesmo, com sua natureza física, com o mundo externo". Esse pensamento era comum
entre a elite vitoriana progressista. Nos textos de Wilde, Pater e Symonds, a evocação
desse ideal grego se torna um discurso legitimador da homossexualidade.
Outro aspecto da teoria de Pater era que esta tinha como objetivo o
desenvolvimento harmônico de todas as partes do homem. O Esteticismo reinscreve a
ética no corpo, iguala prazer sensível a experiência estética, coloca-se contra a moral
puritana etérea que abomina qualquer excesso corporal. Recupera o conceito grego de
kalokagathia, que traça uma correspondência entre beleza estética e beleza moral
(belo = bom). Essa teoria associa como inseparáveis a excelência e o grau de
perfeição nas coisas exteriores, na conduta e no conhecimento.
A personagem de Dorian Gray "quebra" esse conceito: a beleza juvenil de
Dorian promete uma alma límpida, mas esconde uma personalidade criminosa. Essa
caracterização vai contra as teorias fisiognômicas e frenológicas da época. Questiona
também a teoria swedenborguiana de correspondência entre corpo e alma: sua beleza
física deveria corresponder a uma beleza espiritual. Além disso, a beleza de Dorian
inspira um Amor espiritual, estético, mas este professa apenas um amor sensual.
O discurso dos estetas reevocava o conceito de pederastia da Antigüidade
grega e romana. Em termos humanísticos, o amor pelos rapazes era elaborado como
superior, como mais "elevado" do que o amor pelas mulheres. No entanto, na
Antigüidade, a sexualidade passiva já se constituía num tabu: a relação homossexual
era elaborada como pertencente à esfera da pedagogia, da transmissão corporal do
conhecimento, algo que teria lugar entre um homem mais velho (cidadão pleno,
detentor do conhecimento) e um adolescente (em formação, ainda não era
98
Nicholas Frankel (ed.), The Picture of Dorian Gray: an Annotated, Uncensored Edition, p.
95
52
considerado um cidadão pleno). Segundo Paul Veynes99, no caso tido como típico, o
adolescente não sentiria prazer nessa relação. Ou seja: a sexualidade passiva já
encerrava um mistério intransponível para um mundo que criava um saber
falocêntrico.
A estetização da homossexualidade masculina trazia em suas entrelinhas um
desprezo pelo corpo feminino, mais "natural" e menos "artístico". Como afirma
Showalter100, "A misoginia antinaturalista não havia começado com os homens
homossexuais, mas ela respaldava seu desejo de idealizar os relacionamentos entre
homens como mais espirituais, intelectuais, belos e puros do que o amor
heterossexual".
O próprio retrato de Dorian Gray seria o início de uma nova escola de arte
platônica, que combinaria o romance com a perfeição do "espírito grego". Dorian
acredita que o amor do pintor Basil Hallward por ele "nada continha que não fosse
nobre e intelectual. Não era essa simples admiração física pela beleza que nasce dos
sentidos e que morre quando estes se cansam. Era um amor como o tinham
experimentado Michelangelo, Montaigne, Winckelmann e o próprio Shakespeare"101.
Embora a beleza de Dorian seja descrita como a beleza da juventude, fica claro que
somente a juventude masculina tem qualificações para o ideal da arte helênica e
hedonista. Para Showalter, Dorian, sendo a princípio um espécime desmiolado, um
lourinho tolo, começa a acreditar ser seu destino se tornar o teórico de um novo
hedonismo alternativo. Dorian desenvolve um programa estético que poderia ser o do
próprio Wilde ou do próprio Esteticismo: "Ele procurou elaborar algum novo
esquema de vida que tivesse sua filosofia racional e sua ordem de princípios e que
encontrasse na espiritualização dos sentidos sua maior realização"102.
De acordo com Showalter103, essa racionalização do desejo homossexual
como experiência estética traz nas entrelinhas um desdém cada vez maior pelas
mulheres, cujos corpos parecem atrapalhar a beleza filosófica. O dândi aristocrático
99
Paul Veyne, "A homossexualidade em Roma" in Philippe Aries e André Béjin (org.),
Sexualidades Ocidentais, p. 47
100
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 228
101
102
103
Oscar Mendes (org.), Oscar Wilde: Obra Completa, p. 144
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 231
Ibid., p. 231
53
Lorde Henry Wotton profere as frases mais misóginas do romance, generalizações
sobre a natureza prática, o materialismo, a vulgaridade e a imanência das mulheres.
Para ele, as mulheres não são capazes do amor nobre e intelectual, por serem muito
ligadas à carne e aos aspectos materiais. Também não têm nenhum sentido de arte e
suas exigências interrompem o filósofo no trabalho. Elas somente penetram na esfera
da arte quando se suicidam e se tornam belos objetos. Sybil Vane só se torna
interessante para Lorde Henry após seu suicídio por ingestão de ácido prússico (o
veneno preferido das mulheres abandonadas nesse momento). Ela só consegue
transcender a "natureza" representada por seu corpo de mulher ao se tornar um objeto
de arte, uma musa morta.
Lorde Henry, o teórico da decadência no romance, encarna também a figura
do cientista do final do século que aprecia o poder sádico de fazer experiências com
casos humanos: "Ele se sentia fascinado pelos métodos da ciência natural, mas o
objeto de experiência dessa ciência lhe parecia trivial e de nenhuma importância. Por
isso, ele havia começado a se vivisseccionar, acabando por vivisseccionar outras
pessoas"104. Para ele, as mulheres e sua capacidade reprodutiva são descabidas e
destrutivas. A única criatividade artística possível é a masculina, de geração
autônoma. O romance de Wilde é um dos vários livros do fin-de-siecle que se
constituem em narrativas de autogeração masculina, permeados por metáforas
assexuadas que rejeitam a procriação natural em prol de versões fantásticas da
paternidade, como O Médico e o Monstro de Stevenson, Ela de Haggard, Drácula de
Bram Stoker e A Ilha do Dr. Moreau.
Pode-se mesmo afirmar que os três homens partilham uma fantasia de
autogeração. A personalidade, a identidade, a vida de Dorian é "gerada" por seu
fatídico retrato. As personagens femininas ocupam um papel definitivamente
secundário no romance: temos a esposa deselegante de Lorde Henry, a irmã deste
(que, aparentemente, é "seduzida" por Dorian e fica mal-falada na sociedade) e Sybil
Vane, que se suicida por um amor que deixa de ser correspondido. Todas elas ou
criaturas desagradáveis que impedem a criação artística, considerada como a própria
vida, no caso do dândi (a mulher de Lorde Henry) ou figuras frágeis, aptas apenas a
serem usadas, corrompidas e destruídas pelos homens de suas vidas. Curiosamente,
104
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, pp. 231-232
54
nenhum dos personagens principais, em momento algum, faz menção à própria mãe
ou a alguma antepassada feminina (vemos, no máximo, "tias", no mais das vezes,
velhas viúvas fofoqueiras). O esteticismo homossexual de Wilde, calcado no homem
belo, admite "pais" literários e criadores (como o pintor Basil), mas não figuras
maternas. O romance elabora uma fantasia de autogênese, em que, artisticamente,
homens nascem de homens.
De acordo com Showalter105, Wilde se utiliza da obsessão do final do século
XIX pela evidência do vício para sugerir que a degeneração do quadro seja uma
doença sexual, o indicador externo da sexualidade de Dorian numa cultura repressora.
As transformações que ocorrem no retrato como as "corrupções do pecado" o
consomem como as patologias progressivas da sífilis. Para Dorian, os sentidos são
mal-compreendidos pela época em que vive:
Dorian Gray tinha a impressão de que a verdadeira natureza dos sentidos
nunca tinha sido compreendida, que os homens permaneciam selvagens e
animalizados unicamente porque o mundo tinha querido mantê-los famintos
pela submissão, ou matá-los pela dor, em vez de aspirar a torná-los
elementos de uma nova espiritualidade, cuja característica principal seria um
instinto sutil de beleza.106
A imagem do homossexual que prevaleceu no final do século XIX foi aquela
que se coadunava com o "retrato" que é feito deste no romance de Wilde: o esteta
afeminado ou o dândi decadente. Outras "possibilidades" do período são desprezadas,
como a imagem do social-democrata, anti-imperialista e feminista ao estilo de
Edward Carpenter. Eve Sedgwick107 chama esse fenômeno de "feminilização do
homossexual inglês" e acredita que isso diminuiria as possibilidades de alianças entre
as feministas e os gays.
No livro, Wilde trabalha várias temáticas caras ao Decadentismo. Uma delas é
a do "livro venenoso" que, com sua "influência corruptora", destrói a vida de suas
"vítimas". Muitos livros nesse momento foram acusados de "degenerados", de destruir
a moral e os bons costumes (inclusive livros decididamente "moralistas", como os
romances realistas de Zola). Havia certos assuntos que eram tabu, que a sociedade
105
Ibid., p. 232
Oscar Mendes (org.), Oscar Wilde: Obra Completa, pp. 152-153
107
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 233
106
55
bem-pensante não queria ver mencionada em livros. O próprio Dorian Gray havia
sido acusado de ser um livro "venenoso" por seus críticos, um termo muito usado no
repertório da crítica moralista da época. Na segunda versão do romance, Wilde coloca
na própria história um questionamento desse conceito na fala de Lorde Henry:
"Quanto a ser envenenado por um livro, é qualquer coisa de impossível. A Arte não
tem influência sobre a ação. Faz desaparecer o desejo de agir. É soberbamente estéril.
Os livros que o mundo considera imorais são os que mostram a própria vergonha dele.
E isso é tudo"108.
No entanto, não se pode negar que Dorian Gray é "intoxicado" pelo misterioso
livro amarelo que recebe de presente de Lorde Henry, livro em que Dorian descobre
"a história de sua vida, antes de havê-la vivido". O outonal amarelo era a cor típica da
Decadência, os livros franceses "degenerados" eram publicados na Inglaterra com
capas desta cor. O próprio Wilde dizia, a respeito de The Renaissance de Walter
Pater: "esse livro que exerceu uma influência tão estranha sobre a minha vida" 109. Na
primeira versão, Dorian recebe o livro Le Secret de Raoul do fictício autor Catulle
Sarrazin (mistura dos nomes de dois autores decadentes); já na segunda versão, Wilde
omite o nome do autor, envolvendo o livro num mistério ainda maior, sugerindo ao
invés de especificar, aumentando o número possível de candidatos.
No mais das vezes, este livro é identificado com o livro que detona a onda do
decadentismo na Europa, o também chamado "breviário da Decadência", Às Avessas
de Joris-Karl Huysmans. Em 1892, Wilde escreve que o livro foi "parcialmente
sugerido por Às Avessas de Huysmans... É uma variação fantástica do estudo realista
que Huysmans faz do temperamento artístico em nossa era inartística"110. Wilde era
um grande admirador desse romance, que, como vimos, discorre a respeito dos
estranhos experimentos hedonistas, estéticos e sexuais (e o eventual colapso físico) de
um recluso aristocrata parisiense. Muitos dos experimentos em prazeres e arte de
Dorian e a visão empírica e científica que Lorde Henry aplica à vida são modelados
em Des Esseintes, o protagonista do romance de Huysmans.
108
Oscar Mendes, Oscar Wilde: Obra Completa, p. 220
Oscar Wilde, De Profundis e Outros Escritos do Cárcere, p. 86
110
Carta a E. W. Pratt in Hart-Davies, Selected Letters of Oscar Wilde (1979), p. 116 apud
Robert Mighall, Penguin, p. 244
109
56
Um capítulo inteiro de Dorian Gray (o capítulo IX na primeira versão, o
capítulo XI na segunda) é modelado segundo as experiências de Des Esseintes. Neste
capítulo, Dorian se dedica, consecutivamente, ao estudo de um determinado gosto
decadente: perfumes, jóias, tapeçarias. A descrição deste modo de vida decadente e
hedonista é apresentado por Wilde como algo de extremamente interessante e
atraente; a "sociedade bem-pensante" tinha muito medo da "influência" que isso
poderia ter sobre as mentes dos jovens ingleses. Segundo Eribon111:
Wilde queria sem dúvida 'intoxicar' os jovens, escrever sua vida antes que
a vivessem e anunciar assim o mundo futuro utilizando como metáfora as
mil e uma centelhas de cores que lançavam as jóias colecionadas por
Dorian Gray para imitar Des Esseintes, o herói de Às Avessas. Se Wilde se
dedica tão extensamente a descrever o infinito esplendor de seus matizes é
porque brilham como símbolos da vida livre, aberta aos prazeres dos
sentidos.
Dorian Gray é um dândi, um "artista da vida". Seu estilo é imitado pelos
jovens elegantes dos bailes de Mayfair e dos clubes de Pall Mall: na vida real, Beau
Brummel havia cumprido essa mesma função durante o seu "reinado". Dorian vive até
as últimas conseqüências todas as sensações e experiências que a vida tem a oferecer:
"E certamente considerava a Vida como a primeira e a maior de todas as artes, em
relação à qual as outras eram apenas uma simples preparação. A moda, através da
qual o que é realmente fantasioso se torna universal por breves minutos, e o
dandismo, que é, à sua maneira, uma tentativa para afirmar o modernismo absoluto da
beleza, exerciam sobre ele grande fascinação"112. Lorde Henry, ao final do romance,
celebra a "esterilidade" da vida que Dorian Gray levara: "A vida foi a sua arte. Você é
a própria música. Seus dias são seus sonetos"113.
Na qualidade de dândi, a "arte" de Dorian Gray é sua própria vida, ele consiste
em sua própria obra de arte. Sobre sua arte/ vida, de acordo com a ideologia da "arte
pela arte" do Esteticismo, não podem recair preceitos éticos ou moralistas. Em Dorian
Gray, Wilde leva ao extremo lógico as filosofias do dandismo e do Esteticismo: a
vida vira arte e o dândi vira uma obra de arte.
111
Didier Eribon, "Las granadas de Oscar Wilde" in Herjías: Ensayos sobre la teoría de la
sexualidad, p. 134
112
Oscar Mendes (org.), Oscar Wilde: Obra Completa, p. 152
113
Ibid., p. 219
57
No entanto, Dorian não quer ser "apenas" um árbitro da elegância da Londres
de seu tempo, não quer ser consultado somente sobre o uso de uma jóia, o nó de uma
gravata ou o manejo de uma bengala (assim como Petrônio, o autor de Satyricon e
escritor latino favorito de Des Esseintes, teria sido para Nero). Dorian, depois de
receber a "influência corruptora" de Lorde Henry, pensa em fundar um novo
hedonismo: "Tentava idealizar o novo esquema de vida que apresentasse uma
filosofia sensata, princípios ordenados, e encontrasse na espiritualização dos sentidos
sua mais alta realização"114.
Dorian leva uma vida dupla, entre o glamour da alta sociedade e as
assustadoras casas de ópio do East End (isso sem mencionar sua paranóia de que sua
outra "vida secreta", o quadro escondido, seja descoberto). Com isso, Wilde questiona
a identidade sólida e una do burguês vitoriano: "Para ele, o homem era um ser de
múltiplas vidas e múltiplas sensações, uma criatura complexa e com uma inifinidade
de facetas, que levava em si heranças estranhas de pensamentos e de paixões e cuja
carne estava minada pela enfermidade monstruosa da morte"115. Poderíamos até
mesmo afirmar que Wilde prenuncia, em seus textos, o conceito de identidade
nômade: com suas personagens, o escritor busca descentrar o ego estável, seguro de
si, "sincero"; procura revelar uma identidade que não tem medo de sua potencial
incoerência, uma personalidade que não está sempre em posse de si mesma, incerta de
que haja um ego a ser possuído; explora as descontinuidades da personalidade
individual.
A "personalidade" das personagens de Wilde não é auto-consistente: elas
recorrem o tempo todo a máscaras e poses para expressar o que sentem. Nisso, Wilde
segue o teórico Pater, que fala da "costura e descostura de nós mesmos". A
"personalidade" que o escritor trabalha em seus textos se manifesta através da
multiplicidade e da superfície e se coloca frontalmente contra a crença vitoriana na
unicidade do indivíduo. Dorian intensifica suas "experiências" com a busca de
sensações cada vez mais raras, exóticas e exaltadas. Sua "personalidade" é
intensificada através do pecado: "Pode-se imaginar uma personalidade intensa ser
criada a partir do pecado".
114
115
Ibid., p. 152
Oscar Mendes (org.), Oscar Wilde: Obra Completa, p. 162
58
O tema do duplo é algo que se repete na literatura vitoriana, a começar pela
mais famosa história de duplo da época, O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde
de Stevenson (história de que Wilde gostava particularmente). O escritor até mesmo
inclui, em A Decadência da Mentira, uma passagem sobre "um amigo meu, chamado
Sr. Hyde", que se descobre revivendo estranhamente os acontecimentos da história de
Stevenson. Segundo Showalter116, "o fin-de-siecle foi a idade de ouro dos duplos
literários e sexuais". Outro exemplo dessa temática é o livro The Mystery of Edwin
Drood de Charles Dickens, em que o protagonista, como Dorian, vive uma vida de
aparente respeitabilidade, mas de indulgência clandestina em ópio. Também
trabalhando com o tema do duplo, Conan Doyle publica o caso de Sherlock Holmes
The Man with the Twisted Lip (em que duas personagens levam vidas duplas,
circulando entre subúrbios respeitáveis e casas de ópio) em 1891, alguns meses depois
da publicação da versão revisada de Dorian Gray.
Essa duplicidade não se constituía apenas num tema que estava na moda na
época, mas revelava uma profunda preocupação da sociedade vitoriana. De acordo
com Showalter117,
já na década de 1880, o universo homossexual vitoriano havia evoluído
formando uma subcultura secreta, porém ativa, com seus próprios estilos,
práticas, locais de reunião e linguajar. Para a maioria dos integrantes da
classe média desse universo, o homossexualismo representava uma vida
dupla, na qual a parte diurna e respeitável muitas vezes envolvendo o
casamento e a família existia lado a lado com uma vida noturna dedicada
ao homoerotismo.
Essa associação de vida dupla e homossexualidade era algo facilmente
reconhecível na época: um crítico de A Importância de Ser Prudente de Oscar Wilde
vê na peça "o fingimento e as vidas duplas aos quais os homossexuais estavam
acostumados"118. Para a autora, a leitura mais convincente do livro vulgarmente
conhecido como "O Médico e o Monstro" é a de "uma fábula sobre o pânico
116
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 146
117
Ibid., p. 146
118
Regenia Gagnier, Idylls of the Marketplace, p. 158 apud Elaine Showalter, Anarquia
Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 147
59
homossexual do final do século, a descoberta e resistência da identidade
homossexual"119.
Sedgwick denominou o gênero ao qual pertence o romance de Stevenson de
"gótico paranóico". Segundo a pensadora, "o romance gótico cristalizou para o
público inglês os termos de uma dialética entre o homossexualismo e a homofobia, na
qual a homofobia aparecia como tema em enredos paranóicos"120. De acordo com
Showalter121, esses textos envolviam figuras masculinas duplicadas, uma das quais se
sente obcecada pela outra ou por ela perseguida, bem como a imagem central do
segredo impronunciável. O romance de Oscar Wilde também pode ser visto como
representante deste gênero. O surgimento do quadro instaura um duplo na vida de
Dorian, que passa a levar uma vida de segredo e paranóia a partir de então.
Dorian Gray passa a se comportar de uma forma estranha e a levar uma vida
secreta. O significado homossexual do termo queer (estranho) já fazia parte da gíria
inglesa em 1900122. Karl Miller salienta que " 'estranho', 'esquisito', 'secreto',
'disposto', 'nervoso' são os tijolos com que se construiu a casa do duplo" 123. Apesar de
Dorian manter sua aura de respeitabilidade (associada à sua beleza juvenil impoluta),
muitos têm uma reação de repulsa, ódio e medo em relação a ele, reações sugestivas
da homofobia quase histérica do final do século XIX. O quadro (duplo de Dorian)
insere em sua vida a sugestão de anormalidade, criminalidade, doença, contágio e
morte, estados alterados que, aparentemente, são "intuídos" por aqueles à sua volta.
Wilde nos mostra claramente: por debaixo do belo corpo do dândi se esconde o corpo
"monstruoso" do homossexual.
Wilde, em Dorian Gray, inverte constantemente as expectativas do leitor ao
aproximar noções tidas como antitéticas: beleza/ gênio; dândi/ monstro; artista/
119
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 149
120
Eve Kosofsky Sedgwick, Between Men, p. 92 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual:
Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 282
121
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 282
122
V. Veeder, "Children of the Night" in Dr. Jekyll and Mr. Hyde, p. 159 apud Elaine
Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 153
123
Miller, Doubles, p. 241 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de
Sieclep. 153
60
criminoso; civilização/ corrupção. Em várias passagens do romance, Lorde Henry
traça uma equivalência entre os conceitos de "cultura" e "corrupção": "A civilização
não é, de maneira nenhuma, uma coisa fácil de se alcançar. Há apenas duas maneiras
de chegar a ela. Uma é a cultura e a outra a corrupção"124. Todos os temas que se
repetem obsessivamente em Dorian Gray corroboram a visão de que a civilização não
é mais do que corrupção: a máscara, a personalidade, a influência. Todos eles
"torcidos" em relação a seu sentido original: a máscara não esconde, mas desvela a
verdade; a personalidade é múltipla, cada hora mostra uma faceta, como um
diamante; a influência é sempre corruptora. Todos fazem menção à propalada
"degenerescência" do homossexual.
Wilde, repetidas vezes, aproxima a arte ao crime. Em De Profundis faz
menção a "o tom sombrio que, tal como um fio púrpura, perpassa a textura de Dorian
Gray"125. No ensaio Pena, Lápis e Veneno, Wilde é explícito a respeito do assunto:
"O fato de que um homem seja um envenenador não diz nada contra sua prosa (...)
Não há uma incompatibilidade fundamental entre o crime e a cultura"126. Este ensaio
consiste num estudo sobre Thomas Griffiths Wainewright, homem de letras e artista
do início do século XIX, também falsário e assassino, e é publicado no mesmo ano de
Dorian Gray.
O subtítulo deste ensaio é Um Estudo em Verde. Boa parte da obra de Wilde
se coloca sob o signo das cores e de seu simbolismo. Para Eribon 127, o verde é
associado tradicionalmente à bruxaria e aos malefícios (a expressão inglesa poison
green atesta seu vínculo com o envenenamento). A essa conotação clássica, Wilde
acrescenta outra: "tinha esse curioso amor pelo verde que, nos indivíduos, sempre é
signo de um temperamento artístico sutil e nas nações denota um relaxamento e
inclusive uma decadência dos costumes".
No símbolo do verde, Wilde coloca tudo o que há de "venenoso" para a
moralidade burguesa vitoriana: "Ao designar o artista, o literato, o envenenador e o
homossexual, a conotação venenosa do verde é polissêmica. Permite que Wilde faça
124
Oscar Mendes, Oscar Wilde: Obra Completa, p. 213
De Profundis e outros escritos do cárcere, p. 93
126
Didier Eribon, "Las Granadas de Oscar Wilde: Un estudio en rojo y verde" in Herejías:
Ensayos sobre la Teoría de la Sexualidad, p. 132
127
Ibid., p. 132
125
61
saber a seus leitores como concebe o artista e como concebe o homossexual, em uma
palavra, como concebe a si mesmo: como um veneno para a sociedade"128. O verde,
nesse momento, se converte no símbolo público do que hoje poderíamos chamar de
uma "cultura gay" nascente. O significado do cravo tingido de verde, marca de Wilde,
é compreendido pelo público e não será esquecido tão cedo.
Grande parte dos textos de Wilde (o tema, o tratamento, a marginalidade das
personagens) podem ser lidos em suas referências veladas (ou nem tanto) à
homossexualidade. Em muitas de suas obras, Wilde reclama ninguém menos do que
William Shakespeare como seu pai literário. A alusão não é gratuita: Wilde aponta
para o fato de que o venerado "Poeta Nacional" inglês havia, flagrantemente, escrito
sonetos dedicados a um homem. Como outros de seu tempo, Wilde projeta na
Inglaterra elisabetana uma liberdade homoerótica comumente associada à Atenas de
Platão e à Arcádia de Virgílio. O escritor brinca com essa idéia no conto O Retrato do
Sr. W. H., em que, para explicar a misteriosa dedicatória dos sonetos de Shakespeare,
Wilde inventa um amante para o dramaturgo, Willie Hughes129, que seria um de seus
atores. A dedicatória130 produziu uma série de teorias sobre a identidade do Sr. W. H.,
já que essas não são as iniciais de Shakespeare. Wilde cria uma história divertidíssima
e rocambolesca, em que um retrato de Willie Hughes é forjado (para tentar provar a
veracidade da teoria) e em que a crença nessa hipótese passa, como uma
contaminação, de uma pessoa para outra. Vários escritores consideram essa a melhor
teoria a respeito do mistério da dedicatória dos sonetos, por se revelar em sua
artificiosidade essencial.
Wilde, ao mencionar Shakespeare, faz alusão ao que Colm Tóibin chama de
"linha pontilhada secreta que corre ao longo da literatura ocidental", ou seja, da
tradição gay esquecida. A genealogia dos textos que possuem um subtexto
homossexual só será feita no século XX, mas podemos ver em Wilde um precursor
desse movimento (mesmo que ele faça isso de uma maneira velada). Para Tóibin131,
128
Ibid., p. 132
Teoria proposta pelo crítico literário do século XVIII Thomas Tyrwhitt.
130
"Ao único engendrador destes sonetos que seguem, Senhor W. H., toda a felicidade e essa
eternidade prometidas por nosso poeta imortal, deseja o que desejando-o bem se aventura a
lançar esta publicação", assinada pelo primeiro editor dos Sonetos, Thomas Thorpe.
131
Colm Tóibín, Love in a dark time, p. 12
129
62
"Pessoas homossexuais... crescem sozinhas; não há uma história. (...) É como se, na
frase de Adrienne Rich, 'você olhasse no espelho e não visse nada' ".
O suicídio que encerra o romance é a única forma de desfecho narrativo
possível no romance gótico gay. Dorian causa a "vergonha" e o suicídio de uma série
de rapazes e depois se mata. Segundo Showalter132, "a morte é a única solução para o
'mal' do homossexualismo" dentro da economia dramática desse gênero. Wilde
considerava o final "moralista" o único defeito estético do livro; no entanto, manteve
a punição do protagonista. Neste tipo de história, é autodestrutiva a atitude de
transgredir os códigos sexuais da sociedade em que se vive: na sociedade vitoriana,
não há outra narrativa possível para o homem homossexual.
132
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 155
63
Capítulo IV
A DERROCADA DE UM HOMEM DE GÊNIO
As causas pelas quais o povo da Inglaterra condenou Wilde são muitas e
muito complexas, porém não foi a simples reação de uma consciência
pura. Qualquer um que analise os graffitis, os desenhos licenciosos, os
gestos obscenos deste povo, hesitará muito antes de qualificá-lo de limpo
de coração. Qualquer um que preste atenção à vida e à fala destes homens,
(...) duvidará muito que aqueles que flagelaram Wilde estejam limpos de
culpa.
- James Joyce
O relacionamento homossexual entre dois homens é demonizado nas terras da
Rainha pelo menos desde o período elisabetano, segundo John Kerrigan133. A
imaginação popular da época associava a sodomia a lobisomens e basiliscos. De
acordo com os ensinamentos da Igreja, o vício se encontrava completamente fora da
ordem divina das coisas: consistia em algo tão abominável que o próprio demônio não
praticaria a sodomia (apenas seria "responsável" pela concepção de sodomitas ao
copular com as bruxas nos sabás). Quando havia pragas, escassez de alimento,
mudanças climáticas inesperadas, os sodomitas eram considerados culpados por atrair
a ira de Deus – juntamente com outros "pecadores carnais" como os adúlteros, os
bêbados, as cafetinas.
O reinado de Elizabeth (1558-1603) é considerado o ápice da Renascença
Inglesa (fins do século XV ao início do século XVII). Nesse momento, ainda se vê a
sobrevivência do conceito de "corpo excessivo", de "corpo grotesco" da Idade Média.
As ditas "paixões do corpo" continuam sendo vilificadas: se antes o corpo era
considerado inferior à alma divina (de acordo com os ensinamentos da Igreja
medieval), este agora se torna inferior à mente racional e ao espírito elevado (de
acordo com o racionalismo e o antropocentrismo nascentes, baseados na recuperação
ocidental dos textos clássicos, da tradição filosófica grega da abstração do
133
John Kerrigan, "Introduction" in William Shakespeare, The Sonnets and A Lover's
Complaint, Penguin Books, p. lvi
64
pensamento). A sodomia é condenada por se tratar de um "excesso", do
comportamento de um "corpo excessivo". A Inglaterra elisabetana não possuía os
meios de nomear univocamente tal "vício abominável". Este só começará a ser
nomeado,
como
vimos,
em
fins
do
século
XIX,
quando
o
nascente
"homossexualismo" será disputado pelos discursos da ciência sexual (considerado
uma doença) e da jurisprudência (considerado um crime).
A história de como o sucesso brilhante de Wilde se transforma em desgraça,
encarceramento e destituição em semanas é uma das mais conhecidas narrativas da
história da literatura. Em 1891, Wilde é apresentado ao Lorde Alfred Douglas, o
terceiro filho do Marquês de Queensberry. Douglas era um estudante do Magdalen
College de Oxford, como Wilde havia sido há uma década. O jovem era um
admirador do trabalho do escritor, queria conhecer o autor de O Retrato de Dorian
Gray. Wilde se apaixonou profunda e tragicamente e começou um relacionamento
com "Bosie" (o apelido familiar de Douglas). Este relacionamento foi, desde o início,
bastante público, o que ocasionou uma reação extremamente violenta e imprevisível
por parte do pai de Douglas.
Ao ver seu filho ficar reconhecido na sociedade como o "garoto"134 de Wilde,
Queensberry começa uma vendeta contra o escritor. Ele tenta criar um escândalo na
noite de estréia da peça A Importância de Ser Prudente, mas é impedido pela
intervenção da gerência do teatro. Duas semanas depois, em 28 de fevereiro de 1895,
o Marquês deixa no Clube Albemarle um cartão onde se lê "For Oscar Wilde posing
as a somdomite135".
Bosie, vendo nessa oportunidade mais uma chance de brigar com seu odiado
pai, convence Wilde a retaliar pela ofensa recebida. Apesar dos conselhos da maioria
de seus amigos, que eram contra essa idéia, Wilde processa Queensberry por
difamação. Na examinação cruzada no tribunal, Wilde "solta" várias revelações
comprometedoras e o caso se vira contra ele. Ele logo seria preso por violar o
Criminal Law Amendment Act de 1885 (também conhecido como Emenda
134
O próprio apelido de Lorde Alfred Douglas, "Bosie", é um diminutivo carinhoso de "boy",
dado por sua mãe. A palavra "boy" carregava a conotação de um rapaz afeminado, era o
termo eufemístico da era vitoriana para designar o jovem amante masculino. Os outros
personagens se referem a Dorian Gray deste modo várias vezes ao longo do romance.
135
"Oscar Wilde posando como somdomita": o marquês erra a grafia da palavra.
65
Labouchere), que tornava ilegais as relações homossexuais entre homens, fossem
privadas ou públicas. A acusação específica que recai sobre o escritor é a de atos de
"indecência grave" com garotos de programa de classe baixa. O júri desse julgamento
não chega a uma conclusão a respeito do caso.
Um novo julgamento acontece e, em 25 de maio de 1895, Wilde é condenado
a dois anos de encarceramento com trabalhos forçados. Sua sentença pressupõe um
regime de confinamento solitário e tarefas manuais repetitivas e debilitantes. Wilde
descreve, de uma maneira tocante, seu regime de encarceramento em cartas escritas
ao jornal Morning Chronicle, em que intercede pela reforma nas prisões. A carta mais
famosa desse período viria a ser publicada como De Profundis e consiste numa
amarga recriminação que Wilde faz a Douglas. Durante seu tempo na prisão, Wilde é
declarado falido e suas posses são vendidas. Após sua libertação, ele leva uma vida
nômade na Europa. Reata com Douglas, que permanece com o escritor apenas por três
meses. Constance havia morrido em 1898, deixando-lhe uma pequena pensão de 150
libras por ano. Não tem mais acesso a seus filhos. Wilde morre na obscuridade e na
pobreza em Paris a 30 de novembro de 1900.
A Inglaterra puritana não se incomodava com a "sodomia" praticada pelos
cidadãos em sua vida privada. O problema é que Wilde circulava pelos salões, clubes
e restaurantes da moda com seu "garoto". O escritor cai em desgraça por causa de seu
estilo de vida "degenerado" e homossexual, criticado severamente pelas vozes da
ciência e da moral positivas. Segundo Zanotti136,
Wilde poderia obter uma sentença semelhante a qualquer outra sentença
ditada durante os duzentos anos anteriores. Mas o seu foi mais que um
julgamento, foi o símbolo de uma divergência ideológica daquelas que
fazem época: a sociedade bem-pensante européia havia conseguido tornar
ilegal não apenas um ato, mas um estilo de vida. A nascente cultura
homossexual havia encontrado seu mártir.
A Emenda Labouchere137 foi uma emenda de última hora feita num artigo que
concernia principalmente a "proteção" de mulheres e moças e a supressão de bordéis.
O estatuto 11, proposto por Henry Labouchere138, declarava crimes os atos
homossexuais entre homens. A emenda teve sucesso em vilificar ainda mais as
136
Paolo Zanotti, Gay: La Identidad Homosexual de Platón a Marlene Dietrich, p. 39
A Emenda Labouchere só seria repelida em 1956.
138
Ironicamente, Labouchere era amigo de Oscar Wilde.
137
66
práticas homossexuais e em aumentar a histeria social a respeito da homossexualidade
masculina na Inglaterra139. A lei previa o encarceramento por dois anos, com ou sem
trabalhos forçados. Segundo esta emenda, um indivíduo poderia ser considerado
culpado não apenas por cometer o ato, mas também por parecer o tipo de pessoa que,
dada a ocasião, não deixaria de cometê-lo.
Conhecida vulgarmente como a "Carta do Chantagista", a Emenda Labouchere
oferecia um risco especial para homossexuais não-assumidos como Symonds e Wilde.
Para os contemporâneos de Wilde, a palavra "chantagem" sugeria imediatamente
ligações homossexuais. Originada na Escócia do século XVI, ela era geralmente
associada a denúncias de sodomia140. Para Eve Sedgwick141, a emenda representou
uma importante contribuição para aquela "condição de vulnerabilidade à chantagem"
que a autora considera um componente crucial da "influência da homofobia".
A emenda tentava conter a borbulhante subcultura homossexual que havia
começado a se desenvolver na década de 1870, tornando ilegais todos os atos
homossexuais entre homens, quer íntimos quer públicos:
Qualquer pessoa do sexo masculino que, em público ou em caráter
privado, cometa, partícipe da perpetração, consiga ou tente conseguir de
qualquer pessoa do sexo masculino a perpetração de qualquer ato de torpe
indecência com outra pessoa do sexo masculino, será acusada de
contravenção e, sendo condenada por esse motivo, deverá ser encarcerada
segundo a determinação do tribunal por um período que não excederá dois
anos, com ou sem trabalhos forçados.142
Note-se que a letra da lei se preocupa apenas com as "pessoas do sexo
masculino". É criado um saber positivo que recai apenas sobre os homens, elaborados
como sujeitos da Razão. O medo da homossexualidade masculina é que esta funcione
como um tipo de "influência corruptora" sobre os outros homens, especialmente os
mais jovens. Isso explica a invisibilidade que o lesbianismo enfrentaria ainda por
139
Nicholas Frankel, Oscar Wilde: The Picture of Dorian Gray: an Annotated, Uncensored
Edition, p. 8
140
Alexander Welsh, George Eliot and Blackmail, p. 9 apud Elaine Showalter, Anarquia
Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 153
141
Eve Kosofsky Sedgwick, Between Men, p. 88 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual:
Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 153
142
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 30
67
muito tempo: a homossexualidade feminina é desimportante em termos simbólicos,
pois se refere a indivíduos que são pensados dentro da esfera da natureza e não da
Razão.
De várias maneiras, pode-se dizer que a publicação de Dorian Gray, chamado
até mesmo de "romance sodomítico", chamou a atenção para o autor "degenerado".
Para James Joyce, "não cabe a menor dúvida de que [Wilde] cumpriu a função de
bode expiatório"143. A atmosfera de puritanismo e repressão sexual estava ainda mais
exacerbada que o normal quando da publicação do romance, por conta dos últimos
"escândalos sexuais". O artigo de jornal "O Tributo da Donzela à Babilônia
Moderna"144, que denunciava a rede clandestina de prostituição de mulheres brancas,
recrutadas entre a classe trabalhadora, apontava o dedo para uma elite que comerciava
com a "virtude" das jovens de classe popular. O artigo causou uma grande comoção
pública e, ao mesmo tempo, foi acusado de ser "perigoso" e "corrupto". Contribuiu
para a aprovação da lei na qual seria anexada a Emenda Labouchere.
O outro escândalo sexual que ocorrera pouco antes da publicação do romance
foi o chamado "Escândalo da Rua Cleveland145". Em setembro de 1889, foi
"descoberto" um bordel homossexual que empregava jovens trabalhadores do
Escritório Telegráfico para atender aos "gostos" de nobres como o Lorde Arthur
Somerset e o Conde de Euston. A nobreza e a classe trabalhadora eram duas classes
consideradas "degeneradas" por motivos diferentes, eram elaboradas em oposição ao
burguês "saudável" e másculo. A disponibilidade sexual dos jovens das classes
trabalhadoras era considerada um fato na Londres vitoriana. Por causa do escândalo, o
Lorde Somerset foge para a França em outubro de 1889, com medo de ser processado.
Quando foi acusado de "indecência grave", por que Wilde não fugiu para a
França, como era costumeiro nessa situação? No caso de acusações de sodomia,
infundadas ou não, a expatriação era a opção mais segura. Todos os seus amigos lhe
pediram insistentemente que fizesse isso. Um dos motivos para sua permanência pode
143
James Joyce, "Oscar Wilde: Il Poeta de Salomé", Il Piccolo della Sera, Trieste, 24 de
março de 1909 in Escritos Críticos, James Joyce, Barcelona: Editorial Lumen, 1971, pp. 291297 apud Antonio Daniel Abreu (ed.), "Introdução ou Oscar Wilde Visto por James Joyce" in
Aforismos ou Mensagens Eternas, pp. 13-14
144
Nicholas Frankel (ed.), The Picture of Dorian Gray: an Annotated, Uncensored Edition, p.
215-6
145
Robert Mighall (ed.), The Picture of Dorian Gray, p. 223
68
ser sido o fato de que sua mãe lhe pedira para ficar e "limpar" o nome da família, já
que Wilde era bastante orgulhoso da tradição literária que herdara de seus
antepassados. Talvez tenha imaginado que nada de muito grave poderia acontecer a
um dramaturgo famoso como ele, reconhecido como o melhor orador de Londres.
No julgamento, o advogado de defesa de Queensberry, Edward Henry Carson,
ataca, utilizando a arte de Wilde, a doutrina da vida louvada nessa arte. Consciente de
que era uma figura em relação simbólica com a arte e a cultura de sua época, Wilde
assume acertadamente como questão fundamental sua justificativa da vida como
fenômeno estético e não moral. Carson representa a justificativa da vida como
fenômeno moral, é o representante da sólida e viril burguesia. O advogado centra seu
ataque na admissão artística de Wilde de todas as experiências. Carson se refere
claramente àquelas sanções e coerções externas que Wilde se negava a admitir, nem
sequer como ficções inevitáveis ou limites à sua busca de auto-realização.
Wilde se recusa a abandonar a "pose" de artista e nega-se terminantemente a
usar a linguagem médico-legal do sistema penal. Não dá respostas diretas e, nas
poucas definições que se digna a dar, inverte o sentido, o significado e a valoração
simbólica atribuídos a praticamente todas as palavras de seu discurso. Chamado a
definir o "amor que não ousa dizer seu nome", responde:
'O amor que não ousa dizer seu nome' neste século é o amor entre um
homem mais velho e um homem jovem, tal como o que houve entre Davi e
Jonas, tal como Platão o situou no centro de sua filosofia e tal como se
encontra nos sonetos de Michelangelo e Shakespeare. É esse profundo
afeto espiritual, que é tão puro quanto perfeito, que dita e permeia grandes
obras de arte como as de Shakespeare e Michelangelo e essas duas cartas
minhas, assim como são. É mal-compreendido neste século, tão malcompreendido que pode ser descrito como 'o amor que não ousa dizer seu
nome' e graças ao qual estou colocado onde me encontro agora. É belo, é
fino, é a forma mais nobre de afeto. Não há nada antinatural a seu respeito.
É intelectual e existe freqüentemente entre um homem mais velho e um
homem jovem, quando o homem mais velho tem o intelecto e o mais
jovem tem todo o prazer, a esperança e o glamour da vida à sua frente. Que
seja assim, o mundo não o entende. O mundo ri dele e, às vezes, põe
alguém na picota por isso.146
Provavelmente movidos pela extrema eloqüência do orador (e esquecendo
momentaneamente a moral vitoriana), conta-se que, neste dia, choveram aplausos à
fala de Wilde.
146
Paolo Zanotti, Gay: La Identidad Homosexual de Platón a Marlene Dietrich, p. 62
69
A expressão "o amor que não ousa dizer seu nome" havia sido cunhada pelo
próprio Lorde Alfred Douglas, num poema intitulado Dois Amores. Neste, Douglas
compara dois tipos de amor: o primeiro, legítimo, entre garota e garoto e o segundo,
ilegítimo, cujo nome é "Vergonha" e que não ousa pronunciá-lo. A comparação de
dois tipos de amores é uma antiga tradição literária; Shakespeare já escrevera esse
tipo de poema. As últimas estrofes do poema de Douglas se tornaram famosas:
'Sweet youth,
Tell me why, sad and sighting, thou dost rove
These pleasant realms? I pray thee speak me sooth
What is thy name?' He said, 'My name is Love.'
Then straight the first did turn himself to me
And cried, 'He lieth, for his name is Shame,
But I am Love, and I was wont to be
Alone in this fair garden, till he came
Unasked by night; I am true Love, I fill
The hearts of boy and girl with mutual flame.'
Then sighing, said the other, 'Have thy will,
I am the love that dare not speak its name.'
A combinação de grafomania e homofobia da Londres vitoriana fazia com que
muitos homens fossem chantageados por pessoas que tivessem acesso a cartas
"perigosas". Em Dorian Gray, o escritor faz menção a esse perigo: "Já tinha ouvido
falar de homens ricos explorados durante toda a sua vida por um criado que tinha lido
uma carta, ou surpreendido uma conversação, ou recolhido um cartão com uns
sinais".147
Uma das cartas usadas como "prova" contra Wilde em seu julgamento consiste
em um poema, inspirado nos Sonetos de Shakespeare, em que o escritor compara seu
amado a Narciso e a outros homens belos. Por negligência de Douglas, essa carta é
perdida, passa de mão em mão e é finalmente usada como prova do crime de
"indecência repulsiva". No tribunal, Wilde afirma que essa carta só pode ser
147
Oscar Mendes, Oscar Wilde: Obra Completa, p. 148
70
compreendida em seu teor literário por aqueles que haviam lido O Banquete de
Platão, ou seja, desqualifica a capacidade do júri para julgá-lo.
No entanto, Wilde não considera que, para a sociedade e o sistema penal
ingleses, apesar de todo seu prestígio e sua fama, ele não passaria nunca de um
outsider, um irlandês, um dândi, um corpo estranho que jamais se enquadraria
plenamente naquela sociedade. Por outro lado, os Douglas eram upper class, estavam
no topo do sistema de classes inglês. Apesar de se encaixarem na retórica
melodramática da estirpe aristocrática que degenerara numa série de desequilibrados
(típica da época), o título de nobreza dos Douglas os tornava intocáveis. O Marquês
de Queensbery, como um legítimo cavalheiro, não só praticava esporte, como havia
modificado as regras do boxe (vigentes ainda hoje). Wilde o chamava de "o Marquês
vermelho" e, a seu respeito, escreve: "Eu nunca imaginei que seria um pária que
tornaria a mim mesmo um pária"148. Bosie é citado apenas uma vez pelo advogado de
acusação, com a intenção óbvia de mantê-lo à margem do assunto: "Não estou aqui
para dizer que haja sucedido algo entre o Lorde Alfred Douglas e o Senhor Wilde.
Deus nos livre! Mas tudo leva a pensar que o jovem estava em uma situação
perigosa".149
Wilde tinha a pretensão de caminhar livremente por uma sociedade
rigidamente hierarquizada em classes. No tribunal, afirma: "Não reconheço a
legitimidade de nenhuma distinção social de nenhuma classe"150. Circulava entre a
nobreza e os trabalhadores. A postura de Wilde era subversiva, constituía-se em uma
grave violação dos códigos de classe:
O que estava sendo reconstruído no tribunal era uma espécie de Londres
paralela e perfeitamente simétrica à respeitável: nesta Londres-Sodoma,
entrava-se em contato com os jovenzinhos da classe trabalhadora nos
espaços públicos, isso sem falar da possibilidade de profanar os dois
templos da respeitabilidade londrina: o Hotel Savoy e o domicílio
conjugal.151
O processo contra Wilde por homossexualismo gerou um pânico moral
propiciador de um período de censura que afetou tanto as mulheres progressistas
148
Nicholas Frankel (ed.), The Picture of Dorian Gray: an Annotated, Uncensored Edition, p.
82
149
Paolo Zanotti, Gay: La Identidad Homosexual de Platón a Marlene Dietrich, pp. 57-58
Ibid., pp. 57
151
Ibid., p. 58
150
71
quanto os homossexuais. A Westminster Gazette saudou a condenação de Wilde como
uma justificativa para a censura:
Dizem-nos que a arte não tem nada a ver com a moral. Mesmo que essa
doutrina fosse válida, há muito ela vem sendo deturpada, com o tratamento
dado pelos decadentes, de modo a revelar uma nítida preferência por parte
da 'arte' pelo que é imoral, mórbido e maníaco. (...) No entanto, esse
terrível caso (...) pode ser o veículo para inculcar o bem se ele deixar sua
marca na consciência literária e moral da geração atual.152
Embora alguns dos amigos de Wilde continuassem a lutar pela revogação da
Emenda Labouchere e a pressionar pela sua libertação, a maioria dos intelectuais e
escritores não se dispôs a apoiá-lo em público. Na França, foi circulado um abaixoassinado em sua defesa, mas a maioria dos escritores (Alphonse Daudet, Jules Renard,
Anatole France, Edmond de Goncourt, Pierre Loüys, Émile Zola) se recusou a assinálo.
Oscar Wilde é condenado mais por sua "influência" corruptora do que por
qualquer outra coisa: é condenado mais por ser um sedutor do que por atos sodomitas
especificamente. De acordo com Zanotti153,
Não o condenaram como homossexual, mas sim – nas palavras do primeiro
e, por muito tempo, único tratado inglês sobre a homossexualidade, A
Inversão Sexual (1896), de Havelock Ellis – como exemplo de 'pessoa
heterossexual, a qual parece que chega a ser homossexual através do
exercício da curiosidade intelectual e do interesse estético'. A
homossexualidade de Wilde era vista como um vício livremente elegido, a
conclusão de certo modo previsível de uma longa série de comportamentos
anticonformistas. O impulso de negar as normas sexuais 'naturais' era o
mesmo que o havia levado a praticar uma arte 'perversa' e a saltar as
normas de classe para correr atrás de seus amantes da classe trabalhadora.
Aqui, vê-se novamente a co-relação arte, anticonformismo e degeneração.
Novamente, somos lembrados que não era um indivíduo e seus atos que estavam
sendo julgados, mas sim toda a classe artística, vista como degenerada pela sociedade
burguesa moralista.
152
Ed Cohen, "Writing Gone Wilde: Homoerotic Desire in the Closet of Representation",
PMLA 102 (outubro 1987), p. 80 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no
Fin de Siecle, p. 225
153
Paolo Zanotti, Gay: La Identidad Homosexual de Platón a Marlene Dietrich, pp. 62-63
72
O julgamento de Wilde é o momento de convergência de dois estereótipos, um
sobre a arte e outro sobre a homossexualidade. A acusação de "afeminação" recai
tanto sobre um determinado tipo de arte quanto sobre o homem homossexual. Neste
momento (em que o protótipo do homossexual está sendo construído, como vimos), a
afeminação ainda estava se firmando como um suposto atributo ou sintoma de
homossexualidade. É nesse momento que a delinqüência moral por contato com o
(supostamente) feminino se transforma, gradualmente, em delinqüência pelo contato
mútuo de dois homens. Segundo Lawrence Danson154,
Numa tradição com profundas raízes no mundo medieval, a afeminação
estava ligada não ao desejo de mesmo sexo, mas a qualquer desejo que
fosse excessivamente indulgido, visto como algo que poderia ameaçar a
ordem política estabelecida. O alargamento semântico da palavra em
esferas sociais bastante afastadas daquelas consideradas especificamente
"sexuais" remete tanto à misoginia quanto à homofobia. Isso faz de
qualquer indulgência na paixão (...) uma fraqueza e, da fraqueza, uma
qualidade do feminino.
Para Showalter155, os esforços do fin-de-siecle no sentido de definir e controlar
o homossexualismo, além de isolá-lo da masculinidade em geral, talvez tenham
surtido o efeito paradoxal de fortalecer os vínculos homossexuais. De acordo com
Jeffrey Weeks156, "parece provável que novas formas de documentação legal, por
mais excêntricas que fossem na sua aplicação, tenham tido o efeito de fazer ver a
muitos a realidade da sua diferença, criando-se, assim, uma nova comunidade de
conhecimento, para não dizer de vida e sentimento, entre muitos homens com
tendências homossexuais". Segundo Foucault, esse efeito seria inevitável porque a
definição, marginalização e controle oficiais de um grupo em particular, como o dos
homossexuais, sempre faz surgir um "discurso inverso", uma identidade em torno da
qual uma subcultura pode começar a se formar e a protestar. Como afirma Jonathan
Dollimore157, uma vez definido o homossexualismo no final do século XIX, "ele
começa a ter sua própria voz, a forjar sua identidade e cultura, muitas vezes nos
154
155
Lawrence Danson, Wilde's Intentions: The Artist in His Criticism, p. 31
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 30
156
Weeks, Sex, Politics, and Society, Nova York e Londres: Longman, 1981, p. 103 apud
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 30
157
Jonathan Dollimore, "Homophobia and Sexual Difference", Oxford Literary Review 8,
1986, p. 7 apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 30-31
73
mesmos termos exatos com os quais havia sido criado e marginalizado, e afinal a
desafiar a própria estrutura do poder que o havia criado e marginalizado". Para
Showalter158, o julgamento de Wilde cristaliza o movimento de emancipação dos
homossexuais.
O julgamento de Oscar Wilde também tem reflexos na literatura. A Ilha do Dr.
Moreau foi escrito por H. G. Wells em 1896, no ano seguinte ao julgamento. Nesse
momento, a sociedade discutia avidamente o tema da degeneração. O escritor de
ficção científica diz ter pensado muito em Wilde e sua derrocada ao longo do
processo de escrita do livro:
Naquela época houve um julgamento escandaloso, a derrocada deselegante
e impiedosa de um homem de gênio, e essa história era a resposta de uma
mente criadora ao lembrete de que o homem não é mais do que um animal,
burilado para se tornar razoável e submetido a perpétuo conflito interno
entre o instinto e as injunções. A história encarna esse ideal; mas,
excetuando-se essa personificação, ela não tem nenhum aspecto alegórico.
Ela foi escrita de modo a conferir a maior nitidez possível a esse conceito
de que os homens são bestas atormentadas, confusas, grosseiramente
esculpidas.159
Vemos aí uma curiosa inversão do Esteticismo elevado de Wilde, em que os
homens são idealizados e até mesmo seus sentidos e suas sensações são
espiritualizados: Wells quer demonstrar o contrário, que "o homem não é mais do que
um animal".
O Dr. Moreau, assim como Lorde Henry, vivissecciona os seres vivos à sua
volta. Como um perfeito homem da ciência, objetifica completamente a criatura que
se encontra do outro lado do bisturi: "Não dá para se imaginar o prazer estranho e
pálido desses desejos intelectuais. O que está diante dos seus olhos não é mais um
animal, um outro ser humano, mas um problema. A solidariedade na dor – tudo o que
sei dela é uma lembrança de algo que eu costumava sentir anos atrás". (É possível
imaginar essas frases sendo proferidas por um dos muitos médicos que realizavam
clitoridectomias e ovariotomias nas histéricas, frígidas e ninfomaníacas da época.) Na
158
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, pp. 225-226
H. G. Wells, "Prefácio à Ilha do Dr. Moreau" in The Works of H. G. Wells, Nova York:
Atlantic Edition, 1924, 2:ix apud Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin
de Siecle, p. 233
159
74
história de Wells, a sexualidade/ reprodução/ criatividade feminina deixa de ser
irrelevante (como no romance de Wilde) e se torna a questão central da busca
científica do protagonista. O cientista é adepto da máxima da época "torturar a
natureza para que ela revele os seus segredos", sendo essa natureza, obviamente,
feminina. Portanto, não é uma coincidência que "As fêmeas demonstram especial
resistência aos esforços do doutor no sentido de civilizá-las. (...) As fêmeas parecem
estar mais vinculadas à própria ilha, à natureza orgânica e ao solo 'rico e lodoso'. São
as primeiras a regredir à animalidade e a 'desrespeitar a injunção à decência' "160.
O romance de Wells pode ser lido de várias maneiras: como uma crítica à organização
social, uma parábola sobre a crueldade da ciência, uma fábula darwinista ou uma
alegoria do modo como o colonialismo europeu procurava "civilizar" os primitivos.
Ian F. Roberts161 afirma que Wells teria se inspirado, ao criar o Dr. Moreau, em Pierre
Louis Moreau de Maupertuis, considerado um precursor da teoria da evolução. É
significativo que Wells tenha escrito uma história sobre este cientista no ano do
julgamento de Wilde, acusado principalmente por ser considerado uma "influência
corruptora", um "degenerado" que não deveria manchar, com seus genes
enfraquecidos, a robustez sólida da raça.
Após o julgamento, em que é rotulado como um degenerado, Wilde é
encarcerado. Quando já se encontrava preso por mais de um ano na Prisão de
Reading, Wilde escreve uma carta endereçada ao Ministro do Interior, em que se diz
acometido de "loucura sexual". Ele se diz corretamente julgado culpado e usa termos
como "erotomania", "monstruosa perversão sexual", "insanidade sexual" e
"monomania sexual" para referir-se a si mesmo. Menciona também que todo um
capítulo do livro Degeneração de Nordau é dedicado a ele. Habilmente, percebendo a
disputa pela autoridade simbólica de nomear e classificar a homossexualidade que
ocorria nesse momento entre a lei e a ciência sexual, Wilde tenta transformar seu
"crime" num "diagnóstico", tenta convencer as autoridades de que não era um
criminoso, mas sim um doente.
160
Elaine Showalter, Anarquia Sexual: Sexo e Cultura no Fin de Siecle, p. 234
161
Science Fiction Studies 84, julho de 2001 apud Braulio Tavares, "Prefácio" in H. G. Wells,
A Ilha do Dr. Moreau, p. 10-11
75
Também de extremo interesse são as cartas que Wilde envia ao jornal Daily
Chronicle após sua libertação, em que descreve as condições desumanas a que os
presos eram submetidos. Ele diz que os condenados eram terrivelmente malalimentados nas prisões, recebendo um pedaço de pão e água no café-da-manhã e na
janta e uma papa no almoço. Tal dieta provocava diarréia nos detentos, que já sofriam
com a precariedade das instalações sanitárias. Também se coloca contra o
encarceramento de crianças, comum na época.
Mas a carta mais famosa que Wilde escreve na prisão é a longa e amarga De
Profundis, dedicada a Lorde Alfred Douglas. Nessa carta, Wilde analisa o
relacionamento dos dois à luz de seu desfecho e finalmente admite que Bosie foi o
responsável pela sua derrocada. Wilde entregou o manuscrito a Ross, pedindo que
este mandasse apenas uma cópia datilografada para Douglas, com medo de que este
destruísse a obra. Fez bem em agir assim: este realmente destruiu a cópia que possuía,
acreditando ser esta a única cópia existente. Alguns anos mais tarde, Douglas
descobre a existência do manuscrito original e rompe com Ross. O ex-amante retarda
o aparecimento do texto integral da carta o quanto pode (ele viveu até 1945162). O
texto integral só foi conhecido em 1962.
Seu nome original é Epistola: in Carcere et Vinculis ("Epístola: no Cárcere e
Acorrentado"), aparentemente sugerido por Wilde em tom de brincadeira. Foi Robbie
Ross, seu executor literário, que, em 1905, deu à carta o nome De Profundis, baseado
no Salmo 130. A forma literária de epístola e o nome original mostram muito bem as
intenções artísticas de Wilde ao escrever essa carta. Consiste em uma Carta Encíclica
sobre o sofrimento estético, em que Wilde repensa os anos passados ao lado de
Douglas e em que se compara a Jesus Cristo, elaborando-o como o primeiro
romântico e o primeiro individualista da História.
A leitura da carta quebra a expectativa do leitor acostumado aos outros
escritos de Wilde: nesta, não encontramos as características usualmente associadas
aos textos do escritor. Não resta nada da leveza, dos diálogos rápidos das peças de
sociedade, dos epigramas rascantes de O Retrato de Dorian Gray: o que temos é
162
Bosie também viria a ser encarcerado em 1923, acusado de difamação por ninguém menos
que Winston Churchill. No cárcere, escreve um livro de sonetos e o intitula In Excelsis.
76
profundidade, gravidade, uma apologia ao sofrimento estético. Danson163 sugere uma
leitura segundo a qual a obra pregressa de Wilde (especialmente as peças e Dorian
Gray) representariam uma literatura calcada num conceito de "superfície" e De
Profundis (como perfeitamente intuído por Ross), num conceito de "profundidade".
Para o pensador, nas peças de sociedade, as personagens de Wilde não possuem uma
psicologia profunda, elas se constituem nas máscaras que usam, distinguem-se umas
das outras pelo brilho de suas superficialidades. Já De Profundis pode ser visto
alternativamente como a capitulação exausta ou a descoberta final que Wilde faz do
modelo sincero de uma personalidade profunda.
Nesta obra, a filosofia literária anterior de Wilde (em seu caso, sempre
imbricada com sua filosofia de vida) é matizada. Antes da prisão, com o dandismo, o
neo-hedonismo e o Esteticismo, Wilde expressa a ideologia de uma vida bela e
sensual. É essa a descrição que faz de sua vida com Douglas, uma busca contínua de
novas sensações e experiências, que atrapalha a reflexão e o recolhimento necessários
ao trabalho de um escritor. Wilde se censura repetidas vezes por haver levado essa
vida hedonista com Bosie por tanto tempo e deixado de se dedicar à literatura como
deveria.
Em De Profundis, Wilde chega à conclusão que questiona sua filosofia de vida
anterior: a de que o artista não consegue, simultaneamente, transformar sua vida em
arte e criar obras de arte. A high life, os salões, as festas, as conversas brilhantes com
figuras extravagantes impediriam a introspecção, o recolhimento necessários para que
o artista possa criar. Em vários trechos do texto, censura Douglas pela vida nababesca
que levavam juntos (às expensas do escritor): "Dos jantares inconseqüentes com você,
nada permanece a não ser a memória de que comia-se e bebia-se muito"164. A isso,
Wilde contrapõe a rica frugalidade de sua vida com Ross, lembrando-se de um jantar
simples em um café do bairro londrino do Soho, que custara apenas 3 francos e 50
centavos: "Do jantar com Robbie, surgiu o primeiro e melhor de todos os meus
diálogos. Idéia, título, tratamento, modo, tudo (...)". Ou seja, dos lautos jantares com
Douglas, nada restou, enquanto que um jantar simples com Ross nos legou A
Decadência da Mentira165. Em sua Encíclica, Wilde conclui que a vida artística do
163
Lawrence Danson, Wilde's Intentions: The Artist in His Criticism, p. 40
Ibid., p. 36
165
Ibid., p. 37
164
77
dândi fere a capacidade do artista de produzir belas obras e, como sua "religião" é a
arte, essa vida hedonista deve ser repudiada. Essa mudança estética de Wilde é
perfeitamente resumida num dos trechos mais belos da carta:
Lembro de uma vez, quando estava em Oxford, ter dito a um amigo
enquanto caminhávamos certa manhã pelos estreitos caminhos cheios dos
cantos de pássaros do Magdalen, um ano antes de deixar a Universidade,
que eu desejava provar os frutos de todas as árvores do jardim do mundo, e
que deixava Oxford com essa paixão em minha alma. E assim fiz. Meu
único erro foi ter me limitado às árvores do que me parecia ser o lado
ensolarado do jardim, desprezando o outro lado por ser triste e sombrio. O
fracasso, a desgraça, a pobreza, o desespero, o sofrimento, a dor e até
mesmo as lágrimas, as palavras entrecortadas que saem dos lábios
daqueles que sofrem, o remorso que faz caminhar sobre espinhos, a
consciência que condena, a humilhação que castiga, a tristeza que joga
cinzas sobre a própria cabeça, a angústia que escolhe vestes de aniagem e
derrama fel na água que bebe, todas essas eram coisas que eu temia e,
como havia determinado jamais conhecê-las, fui obrigado a provar de cada
uma delas, alimentar-me delas e na verdade não conheci outro alimento
durante muito tempo.166
Sabemos como foi o final da vida de Wilde após a prisão. O escritor nunca
mais foi capaz produzir uma linha sequer. Por mais triste que soe esse final, sua
história não termina aí. A partir da publicação de suas obras completas em quatorze
volumes por Robbie Ross em 1908, a apreciação de Wilde só fez aumentar. Seus
textos parecem indicar que uma verdadeira oeuvre não é possível, apenas fragmentos.
Harold Bloom o chama de "gênio do paradoxo" e considera seu estilo "antológico".
Sua obra prenuncia o Modernismo literário; seus textos, sob vários aspectos, se
parecem mais com os de modernistas como James Joyce e Virginia Woolf do que
com a maior parte da literatura que estava sendo produzida na sua época. A literatura
de Wilde ajuda a conformar o espírito do século XX, com seus paradoxos, suas
inversões simbólicas e sua ironia.
166
Oscar Wilde, De Profundis e Outros Escritos do Cárcere, pp. 92-93
78
Capítulo V
TAKE A WALK ON THE WILDE SIDE
A cada dia, torna-se mais difícil viver à altura de minha porcelana azul.
- Oscar Wilde
"Os paradoxos funcionam da mesma maneira que a verdade. Para testar a
realidade, é preciso vê-la sobre a corda esticada. Quando as verdades se
tornam acrobatas, podemos julgá-las."
- Oscar Wilde
And alien tears will fill for him
Pity's long-broken urn,
For his mourners will be outcast men,
And outcasts always mourn.
- inscrição no túmulo de Wilde, retirada de "The Ballad of Reading Gaol"
Uma das características mais marcantes das obras de Oscar Wilde é a presença
constante de inversões simbólicas e paradoxos. O escritor se dá o direito de renomear
o mundo a seu bel-prazer. Algumas das inversões mais marcantes que ele realiza em
seus escritos são aquelas entre socialismo e aristocratismo; natureza/ vida e arte
(especialmente no ensaio A Decadência da Mentira); arte e crime (especialmente em
Dorian Gray); profundidade e superfície; aparência e essência; alta cultura/
respeitável e baixa cultura/ outsider.
Em A Decadência da Mentira, Wilde afirma que a natureza e a vida é que
imitam a arte e não o contrário. É a postura estética levada ao máximo: a vida não faz
mais do que imitar a arte. A afirmação do escritor é totalmente consonante com o
ideário da Decadência como este foi estabelecido por Baudelaire: ojeriza à natureza e
exaltação da arte e do artifício. Para alguns pensadores, essas inversões de sentido
79
instauram na prosa de Wilde um subtexto decididamente gay. Segundo Danson167,
com suas inversões e paradoxos, Wilde quebra o discurso binário que opõe imitação à
criação, natureza à forma, vida à arte, realismo à romance e uma sexualidade
supostamente "natural" a uma sexualidade que, como a arte, se recusa a ser
categorizada ou controlada.
Pressupondo uma natureza imitadora e uma arte autogeradora, Wilde promove
uma inversão da teoria platônica. Segundo esta, tudo derivaria das formas ideais,
inatingíveis, acessadas apenas pelo pensamento abstrato: a natureza como a
conhecemos seria falha, apenas uma cópia dessas formas ideais; a arte seria ainda
inferior, constituindo-se em "cópia da cópia". Wilde, renomado classicista, inverte
completamente esse conceito, fazendo com que a vida, a natureza, toda a realidade
ontológica derivem da arte, colocando-a numa esfera "acima" da existência mundana
e mesquinha.
Wilde revela a costura por baixo do termo "natureza": não há uma natureza
primordial, um paraíso perdido. O escritor mostra que o que chamamos de natureza
não é "natural", é um derivado da cultura. A sociedade criou essa "natureza" que é,
então, celebrada como primigênia. Para Wilde, a natureza "posa" como algo natural: à
procura do "natural", passaríamos a vida imitando uma imitação. Isso vai diretamente
contra o conceito de "personalidade" do escritor, segundo o qual não deveríamos
nunca "expressar algo que não nós mesmos".
As "inversões lingüísticas" que Wilde realiza em suas obras implodem por
dentro todas as categorias de valor, todas as associações simbólicas nas quais a
sociedade ocidental se sustenta. Seu discurso é considerado extremamente perigoso, é
rotulado de "corruptor" pelos defensores dos "bons costumes". De acordo com
Eribon168, os paradoxos de Wilde têm o objetivo expresso de questionar a rígida
moralidade burguesa:
Como fiel herdeiro do simbolismo e do decadentismo, nos quais o gosto
pelo estranho se mesclava com tudo o que se passava por 'imoral', nos
quais o questionamento da arte e da literatura clássica incluía um repúdio
radical dos códigos morais em vigor, como grande leitor de Baudelaire, de
Gautier e de Huysmans, necessitava desses adornos, dessas flores de
167
Lawrence Danson, Wilde's Intentions: The Artist in His Criticism, p. 11
Didier Eribon, "Las granadas de Oscar Wilde: Un estudio en rojo y verde" in Herejías:
Ensayos sobre la Teoría de la Sexualidad, p. 134
168
80
retórica, desses quadros cheios de cores, para poder dizer o que tinha que
dizer e fazer surgir no espírito de seus leitores pensamentos, associações de
idéias, sentimentos, desejos e aspirações, e assim, talvez, transformar o
mundo ao seu redor.
Para Danson169, o paradoxo wildeano desestabiliza as categorias, realiza o
trabalho adâmico da nomeação. Wilde se utiliza do potencial revolucionário do
paradoxo e de sua capacidade de reescrever a geografia da exclusão/ inclusão: por
meio deste, busca assegurar para si mesmo uma posição poderosa no centro de uma
cultura cujos valores ele estava subvertendo e cujas leis ele estava questionando.
Wilde era a própria figura do outsider: um irlandês homossexual que procurava
assegurar para si uma posição cultural elevada na Londres vitoriana, centro do
Império Britânico. Segundo Danson170, "Ao fraturar categorias sociais, estéticas e
mesmo sexuais presumidamente estáveis, [Wilde] criaria o espaço necessário para o
seu posicionamento".
Por meio de seu uso de alusões, citações, pastiche e paradoxo, Wilde tenta
fugir da categorização, do "já elaborado". Para Danson171, a ruptura textual que a
escrita de Wilde produz tem um alcance bem maior do que a esfera da literatura
especificamente: as inversões lingüísticas subvertem o "normal", apresentam-no como
um texto construído como qualquer outro e questionam todos os textos construídos
como "normais", como o da heterossexualidade.
Wilde, especialmente em seus ensaios, cria um mundo em que apenas o artista
teria o poder de nomear e julgar. Faz isso até mesmo num terreno "perigoso" como o
do desejo sexual: o escritor dá livre curso a um voluntarismo utópico em relação a
esse assunto, acredita ser capaz de produzir textualmente o que Danson 172 chama de
"um desejo de sua própria fabulação". Wilde promove uma desestabilização das
identidades no momento mesmo em que o conceito de identidade sexual se fixava.
Ele quebra o estigma que transforma o desejo sexual numa identidade social: "usa" no
peito a injúria atirada contra ele, ao promover uma ressignificação de nomes e
identidades pejorativos ou derrogatórios.
169
Lawrence Danson, Wilde's Intentions: The Artist in his Criticism, p. 3
170
Ibid., p. 20
171
Ibid., p. 44
Ibid., p. 5
172
81
A patologização e a criminalização da identidade gay é questionada por vários
pensadores nesse momento, mas nunca com o grau de subversão de Wilde. Como
vimos, mesmo Symonds e Carpenter, reformadores que queriam transformar a
homossexualidade numa identidade sexual legítima, continuavam a inscrevê-la na
linguagem da ciência. André Gide insiste que seu desejo homossexual é "natural" à
sua identidade autêntica. Apenas Wilde inova nesse sentido: "A estética transgressora
de Wilde é o reverso: insinceridade, inautenticidade e não-naturalidade se tornam os
atributos liberadores de uma identidade e um desejo descentrados".173
Segundo Zanotti174, alguns estudiosos consideram os paradoxos de Wilde
como o nascimento de uma sensibilidade especificamente gay. O nome desta
sensibilidade ficou conhecido com o ensaio "Notas sobre o Camp" de Susan Sontag,
publicado em 1964. De acordo com Sontag, o camp é um descendente direto do
Esteticismo do século XIX, em particular dos célebres aforismos de Wilde.
O camp – palavra que nasce no início do século XX para designar gestos
enfáticos e teatrais – é interpretado por Sontag como uma visão irônica da vida
entendida como uma representação; esta se basearia na inversão de valores, na
transformação sistemática do sério em frívolo e do frívolo em sério. Sontag a
considera uma sensibilidade típica dos tempos pós-modernos (sucessora do kitsch) e
também uma aportação especificamente homossexual à cultura contemporânea. De
acordo com a intelectual norte-americana, "foi Wilde quem formulou um importante
elemento da sensibilidade camp – a equivalência de todos os objetos – ao anunciar
sua intenção de 'corresponder' à porcelana azul e branca, ou ao afirmar que uma
maçaneta poderia ser tão admirável quanto uma pintura175".
Apesar de parecer, a princípio, algo frívolo, as principais características do
camp (esteticismo, sensibilidade, a capacidade de ironizar sobre si mesmo, de falar
em código) podem ser consideradas armas defensivas: esteticismo e sensibilidade
remetem a características eliminadas da virilidade normativa e, no entanto, toleradas
nos "anormais"; ironizar sobre si mesmo e falar cifrado são típicos dispositivos
173
Lawrence Danson, Wilde's Intentions: The Artist in his Criticism, p. 45
Paolo Zanotti, Gay: La Identidad Homosexual de Platón a Marlene Dietrich, p. 64
175
Susan Sontag, "Notes on Camp" in Against Interpretation and Other Essays, p. 289
174
82
necessários para reconhecer-se entre iguais sem se expor muito. Os lugares-comuns
da literatura do fim-de-século tinham essa função:
Quando, no princípio de O Retrato de Dorian Gray, Wilde compara
Dorian a Antínoo, o leitor 'iniciado' da época já sabia que [o escritor]
estava aludindo à homossexualidade: a estátua do jovem amante do
imperador Adriano havia sido uma das pedras de toque da beleza gay ao
longo de todo o século XIX e princípios do XX.176
De acordo com Sontag177, "O Camp é um certo modo de esteticismo. É um
modo de ver o mundo como fenômeno estético. Esse modo, o modo do Camp, não
julga o mundo em termos de beleza, mas sim em termos do grau de artifício, de
estilização". Para a intelectual norte-americana, as origens dessa sensibilidade podem
ser traçadas até o século XVIII, quando primeiro surgiu o gosto por romances góticos,
chinoiserie178, caricatura, ruínas artificiais (em pleno Romantismo literário). O camp
consiste no exato oposto da alta cultura: enquanto esta possui parâmetros moralistas, o
camp consiste na experiência consistentemente estética do mundo. Essa sensibilidade
é brincalhona, anti-séria: o camp propõe uma visão cômica do mundo. Para Sontag,
"Os homossexuais fixaram sua integração à sociedade promovendo o senso estético.
O Camp é um solvente da moralidade. Ele neutraliza a indignação moral, incentiva a
ludicidade".
Dorian Gray possui uma sensibilidade camp. O final que culpa e pune o
esteta, que o transforma em monstro é o único final possível que essa história poderia
ter na era vitoriana tardia. Como vimos, para Oscar Wilde, a "moral" da história
consistia em seu único defeito estético. No entanto, após muitas e muitas páginas
descrevendo o estilo elegantemente decadente de Dorian Gray, sentimos que seu final
até que não é tão ruim assim. Tem-se a impressão de que, mesmo sabendo qual seria o
seu fim, Dorian teria tomado as mesmas decisões, não aceitaria levar uma vida menos
brilhante (e menos criminosa) do que a que de fato levou. Podemos ver aí um
descolamento da forma e do conteúdo da história: apesar de se travestir de "fábula
moral", o romance celebra ostensivamente o estilo de vida decadente. Apesar do final
trágico de Dorian, o que não esquecemos é a beleza de sua vida corrompida.
176
Paolo Zanotti, Gay: La Identidad Homosexual de Platón a Marlene Dietrich, p. 66
Susan Sontag, "Notes on Camp" in Against Interpretation and Other Essays, p. 277
178
Gosto por objetos chineses.
177
83
Dorian é um verdadeiro dândi: seu corpo e sua identidade se assumem como
uma obra-de-arte, como um texto em perpétua reconstrução. O belo protagonista não
é apenas um sujeito da Razão, é também objeto de sua própria mirada: com isso,
Wilde realiza a ruptura do sujeito unitário, cartesiano, idêntico a si mesmo e promove
a emergência de um sujeito que habita justamente o lugar em que as fronteiras entre o
exterior e o interior se confundem. Segundo Foucault179, a consciência do eu como
espetáculo típica do dândi prefigura a subjetividade moderna.
Como Harold Bloom180 sugere, se tivesse nascido numa outra época, Oscar
Wilde provavelmente teria sido um "superstar estético" como Andy Warhol e Truman
Capote. Em 1909, com a crescente popularidade do escritor, suas cinzas são
transferidas para o Cemitério Pere Lachaise, que abriga os restos mortais de muitas
outras figuras da cultura, dentre escritores (como Moliere) e rockstars (como Jim
Morrison). Em 1912, sobre seu túmulo, é erigido o monumento da esfinge alada181 de
Jacob Epstein. Seu túmulo mantém as marcas da "loucura dos beijos"182, uma tradição
iniciada pelos visitantes: notemos que esta tradição denota uma profunda
compreensão da obra e da figura de Wilde, já que se constitui numa homenagem de
decidida sensibilidade camp. Wilde, e não Dorian Gray, se torna o primeiro mártir do
Esteticismo. Com sua vida e seus escritos, pode ser visto como patrono da nascente
cultura gay e – por que não? – do rock'n'roll.
"Todo pensamento é imoral. Sua própria essência é a destruição. Se
pensamos em alguma coisa, nós a matamos: nada sobrevive à reflexão."
- Oscar Wilde
179
Michel Foucault, Tecnologías del yo apud Isabel Clúa Ginés, "Cuando Frankenstein
encontró a Dorian Gray: Dandysmo, Post-Identidad y Sujetos Virtuales" in Lectora: Revista
de mujeres y textualidad 10, 2004
180
Harold Bloom, Gênio: Os 100 Autores Mais Criativos da História da Literatura, p. 263
181
É digno de nota que uma das primeiras coisas que o Viajante do Tempo da história de
Wells veja no futuro seja justamente uma esfinge alada.
182
Em um poema, Wilde diz que os lábios vermelho-rosados de Bosie foram feitos para a
"loucura dos beijos".
84
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