Lixo que dá emprego
Miro Bezerra também conseguiu sair da rua. Trabalha na
coleta seletiva dos resíduos num dos maiores prédios de São
Paulo. É um condomínio formado por 486 moradores entre
escritórios, comércio, cinemas e apartamentos residenciais.
A produção é de quase três toneladas de lixo todos os dias.
E nesse "departamento" trabalham 17 pessoas, como Miro.
"Consegui valorização humana, um teto, alimentação balanceada e prestígio", comemora.
Foi tudo idéia da síndica, Vilma Peramezza, que resolveu arrumar o porão como se fosse a
sala de visitas do prédio. Exigiu ordem e limpeza – e deu em troca uniformes, refeitório e
salário. Tão simples, mas foi o começo de uma revolução.
"O local onde funciona a coleta seletiva parecia uma montanha de lixo. Tinha rato, gato... E
para que ninguém tivesse despesas, quem administrava o edifício dava o lixo para uma
pessoa, que trazia crianças para separá-lo. Depois, essa pessoa levava o que sobrasse e
ficava com o reciclável. Quer dizer, era uma coisa desumana, absurda!", conta dona Vilma.
"Hoje, trabalhamos com a transformação – tanto das pessoas que trabalham com o lixo; do
próprio condômino, que aprende a separar o lixo na origem; como até criar a decoração de
Natal com o reciclável".
Este Natal entrou para a história de muita gente. Logo depois, a síndica teve a idéia de
reunir numa cooperativa toda a turma que lidava com a reciclagem para profissionalizar
ainda mais o trabalho. Eles aceitaram o desafio e aprenderam a andar com as "próprias
pernas", fazendo arte. E arte de primeira!
"A gente tem objetivo social, que é trabalhar com as pessoas que normalmente uma
agência de trabalho dispensaria. Damos oportunidade, mas elas também têm que fazer a
sua parte, porque milagres não acontecem assim", ressalta o coordenador da cooperativa
Sandro Rodrigues.
Sandro é sócio-fundador da cooperativa. Principal assistente do cenógrafo Sílvio Galvão, o
artista que cria as obras de arte.
"Ele consegue fazer com que as pessoas que não têm noção nenhuma de arte façam arte.
Eu fiquei abismado ao conhecê-lo. Tinha um que colocava os instrumentos amarrados no
toquinho de braço que tinha e desenvolvia alguma coisa. É uma linha de montagem muito
interessante. Ele tem capacidade de lidar muito bem com as pessoas", comenta Sílvio.
E o que eles fazem de latinhas, tampinhas, pedaços de qualquer coisa, é impressionante!
Bonecos gigantes – Dom Quixote, seu cavalo e Sancho Pança – anunciam a novidade
numa exposição itinerante que está percorrendo a região Sudeste há mais de um ano.
A nova instalação artística, que acaba de ser inaugurada, também promete fazer muito
barulho na praça. É o "Fazedor de Montanhas".
Na rua, os catadores se tornam invisíveis. Pilotando a carroça, no meio do trânsito, são
tudo o que ninguém quer ver. Agora, não vai ter jeito – todo mundo vai parar para ver. E era
isso mesmo que o pessoal da cooperativa queria. Uma carroça de sete metros de altura e
um boneco sentado de três metros. Parece inacreditável.
"Eu achei muito interessante porque tudo é grande, mas o
mundo é pequeno na mão dele", comenta a operadora de
telemarketing Daiane Freires.
O "Fazedor de Montanhas" – aquele que carrega nas
costas a oportunidade de transformação – foi instalado no
saguão do prédio onde toda essa história começou.
"Eu fico emocionado com todo mundo me olhando de uma forma melhor. Era difícil eu ser
olhado como agora. Eu era visto como um mendigo e hoje as pessoas me vêem como
cidadão", diz o selecionador de recicláveis José Valdecir de Oliveira.
Seu Valdecir agora trabalha na cooperativa. Mas ficou um ano nas ruas como catador. "A
gente não quer a parte ruim. A gente só quer ficar com a parte boa, mesmo que seja difícil.
Quando eu fiquei desempregado, o dinheiro e a comida foram acabando. Aí, foi um jeito de
sobreviver", lembra.
O "Fazedor de Montanhas" é o segundo grande trabalho de arte realizado pela cooperativa.
Foram dois meses de trabalho. Uma arte que envolveu gente como Rogério Fiúza dos
Santos, mais um jovem que um dia deixou a família no interior para "dar um tempo". Mas
quando chegou à capital, sem conhecer ninguém, acabou vivendo na rua. Até descobrir a
cooperativa.
"Voltei para a escola há dois anos estou fazendo supletivo. Passei para a sétima série e no
começo do ano vou terminar a oitava, graças a Deus. Quero ir até o terceiro ano e fazer
faculdade. Aonde Deus me permitir eu estou indo. E sem desistência desta vez", garante
Rogério.
Sonho bom para o futuro e muita certeza sobre o que é preciso fazer o quanto antes.
"Quando eu me separei, minha filha menorzinha tinha cinco meses. Agora vai fazer 4 anos.
Nós ainda não nos conhecemos, só por telefone. A voz dela é linda, maravilhosa. Estou
louco para vê-la. Se eu tiver oportunidade, vou antes do fim do ano, porque o coração está
falando mais alto", planeja Rogério.
E tem sido assim desde que o coração de dona Vilma também bateu mais forte um dia.
Não fosse aquela idéia da síndica de limpar o depósito do lixo, será que a turma da
cooperativa teria encontrado uma segunda chance?
"O que para muitas pessoas pode ser lixo, para nós é uma relíquia. Porque através disso
que chamam de lixo podemos fazer muita coisa, garantir o sustento do dia-a-dia e contribuir
com nosso planeta", ressalta Miro.
"Só tem mais uma coisa que eu gostaria de dizer para todos: o mundo e a vida são uma
arte de Deus. Ele nos deu o dom de criar e transformar. Não importa a matéria-prima
utilizada, o que importa é transformar, com amor, carinho e humildade. Todo mundo tem
um pouquinho de artista dentro de si e todos deveriam experimentar esse lado", aconselha
Rogério.
Fonte: http://globoreporter.globo.com/Globoreporter/0,19125,VGC0-2703-14971-2-240585,00.html
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