Concordância variável de número no SN no português L2 de
Moçambique – algumas explicações sociais e linguísticas
Anna Jon-And
Universidade de Estocolmo
Neste artigo são analisadas, de forma quantitativa, algumas variáveis sociais e
linguísticas que regem a concordância variável de número no sintagma nominal no
português L2 falado em Maputo, Moçambique. Os falantes de português L2 no estudo
têm uma língua bantu como L1. A partir da análise e da comparação com estudos
anteriores de concordância variável de número no sintagma nominal (SN) em
variedades africanas e brasileiras de português, discutem-se algumas explicações
anteriormente postuladas para este fenómeno. Os resultados da análise das variáveis
sociais idade de início da aquisição de português e idade indicam que a concordância
variável de número no SN no português em Moçambique é um fenómeno ligado ao
contacto linguístico. A análise da variável linguística posição em relação ao
núcleo/posição linear serve para discutir a hipótese de influência de línguas bantu em
certas estruturas sintácticas da concordância variável de número. Os resultados
anteriores apoiam esta hipótese. A comparação com dados de português sem substrato
bantu levanta a necessidade de considerar também influência de outras línguas
africanas e/ou explicações mais gerais de contacto linguístico.
Palavras-chave: Concordância variável, Português de Moçambique, Variedades
africanas de português, Português brasileiro
1. Introdução
O objectivo do presente estudo é investigar, de forma quantitativa, a
concordância de número no sintagma nominal (SN) no português popular
falado em Maputo, Moçambique (PM). Esta é uma variedade de português L2,
cujos falantes têm línguas bantu de Moçambique como L1.
Concordância variável significa que as regras de concordância do
português padrão1 (PP) são aplicadas em algumas ocasiões e em outras não.
Seguem-se alguns exemplos de concordância variável encontrados em
entrevistas gravadas em Maputo, Moçambique em 2007. 1- 4 são exemplos de
1
O português padrão define-se de acordo com as normas de gramáticas prescritivas, como
Cunha & Cintra (1984). Estas são as normas ensinadas nas escolas moçambicanas. Estas são
também as normas que geralmente se pretende seguir em contextos formais.
Revista de Crioulos de Base Lexical Portuguesa e Espanhola 2 (2010), 28-50
ISSN 1646-7000 © Revista de Crioulos de Base Lexical Portuguesa e Espanhola
Concordância variável de número no SN no português L2 de Moçambique
não aplicação da regra de concordância, e 5-8 são exemplos de aplicação da
regra de concordância em diversas estruturas, tais como demonstrativo-nomeadjectivo (1 e 5), artigo definido-nome (2 e 6), numeral-nome (3 e 7) e artigo
definido-possessivo-nome (4 e 8):
(1)
(2)
(3)
(4)
(5)
(6)
(7)
(8)
ainda permanecemos com aquelas casas velha
as coisa de limpeza
bidom de vinte litro
maioria das nossas casa fizemos
meninas que põe essas sainhas curtas assim
também abrir as ruas como no bairro ulene
cada bidom sta mili meticais
ali na minha barraca a vender as minhas coisas tá ver
Três variáveis que influenciam a concordância variável de número no SN no
PM são analisadas neste estudo: idade de início de aquisição de português,
idade e posição em relação ao núcleo/posição linear. Estas três são variáveis
que, por várias razões, apresentam resultados particularmente interessantes. Os
resultados da análise da última variável são comparados com os resultados de
outros estudos sobre concordância de número no SN realizados no Brasil, em
São Tomé e em Cabo Verde.
Com esta análise e comparação pretende-se discutir hipóteses já
existentes que procuram explicar a origem da concordância variável em
variedades de português faladas na África e no Brasil. As hipóteses a serem
discutidas dizem respeito, por um lado, a explicações baseadas em contacto
linguístico contra explicações relacionadas com a evolução interna da própria
língua, e por outro lado a influências de substrato/transferência contra
processos mais gerais que seriam o resultado de aquisição de L2.
2. Estudos e teorias anteriores sobre concordância variável de número em
variedades do português no mundo
A concordância de número no SN no português tem sido o objecto de vários
estudos. O fenómeno foi estudado principalmente no Brasil, entre outros nos
estudos quantitativos de Guy (1981), Scherre (1988), Lopes (2001) e Andrade
(2003). No que diz respeito a variedades africanas de português, o fenómeno
foi pouco estudado. Estudos quantitativos são encontrados apenas em relação a
variedades faladas em São Tomé (Baxter 2004, Figueiredo 2008) e a uma
variedade de Cabo Verde (Jon-And 2009). Registros de concordância variável
29
Anna Jon-And
de número em estudos não quantitativos podem ser encontrados em relação a
variedades de Moçambique (Companhia 2001, Stroud/Gonçalves 1997,
Gärtner 1996a, 1996b), e Angola (Inverno 2004, 2005, 2009; Marques 1985).
O presente artigo inclui comparações entre os resultados nele adiantados e os
de outros estudos quantitativos de variedades africanas e brasileiras do
português.
As hipóteses que procuram explicar a concordância variável de número
no português podem ser divididas em três alíneas principais:
1. Hipóteses baseadas em influência de línguas africanas (transferência ou
influência de substrato2);
2. Hipóteses de processos mais gerais de mudança linguística como um
resultado do contacto linguístico, sem nenhuma relação com uma L1 ou
substrato específico;
3. Hipóteses baseadas na evolução interna da própria língua.
As hipóteses das primeiras duas alíneas podem ser classificadas como ligadas
ao contacto linguístico, diferentemente da terceira e última hipóteses. A
distinção tradicionalmente feita no debate sobre a origem da concordância
variável no português é entre explicações externas e internas.3 Essa distinção é
fundamental e portanto é relevante. No entanto, parece-me importante também
reconhecer que as hipóteses relacionadas com o contacto linguístico dizem
respeito, por um lado, à influência de substrato/transferência e, por outro lado,
a mudanças que são o resultado de processos mais gerais ligados ao contacto
linguístico. Esses são dois processos distintos. Neste artigo pretende-se
2
Na area de aquisição de segunda língua (ASL) fala-se de transferência e na área de
crioulística fala-se de influência de substrato. Estes são dois processos relacionados mas não
idênticos. No entanto, independentemente de estarmos a falar de uma variedade possivelmente
influenciada por transferência (como é o caso quando se investiga variedades de português L2,
ou de uma variedade influenciada por substrato, como alguns teóricos postulam para varidades
brasileiras do português), qualquer um dos dois processos pode resultar em influência de
línguas africanas.
3
Cita-se Naro e Scherre (1999) para ilustrar a divisão tradicional: “There are basically two
schools of thought with respect to the origin of these instances of variable lack of concord (or
marking), as well as other variable phenomena in non-standard Brazilian Portuguese. One
view has it that nothing more is at work in the origin of these variable phenomena than the
centuries-old drift of the Indo-European languages in general, and the Romance languages in
particular, towards a less inflected grammar. (…) The other view is that Brazilian Portuguese
is radically divergent from European Portuguese in this aspect. The principal cause of this
divergence from European lines of development under this view is the massive presence in
Brazil of people of African origin, whose original language might have influenced Brazilian
Portuguese through a hypothetical pidgin or creole Portuguese stage.” (p 236)
30
Concordância variável de número no SN no português L2 de Moçambique
discutir as duas distinções acima referidas a partir da análise dos dados de
Moçambique.
No que concerne às variedades africanas de português, as explicações
sugeridas para a concordância variável de número são principalmente
explicações de contacto, com ênfase nas influências das línguas bantu (Baxter
2004, 2009; Figueiredo 2008; Marques 1985; Gärtner 1996 a,b; Inverno 2005).
Já em relação às variedades brasileiras há controvérsias entre explicações
baseadas no contacto linguístico e explicações baseadas em processos internos
para a concordância variável de número no SN. As explicações baseadas em
processos internos são defendidas principalmente por Naro e Scherre (1993,
1999, 2007), que apontam para a existência de queda de –s final em variedades
do português europeu (PE) actual, na história das línguas românicas em geral,
e até no pré-latim. Esses autores argumentam que o fenómeno de concordância
variável é um fenómeno inicialmente fonológico, com derivações
morfológicas posteriores, e que a tendência que leva a estas mudanças existe
dentro da língua portuguesa e nos seus antecedentes. Para as variedades do
português brasileiro (PB), as hipóteses de contacto são defendidas por, entre
outros, Guy (1981), e Baxter e Lucchesi (1997,1999). A discussão da origem
da concordância variável de número no PB está ligada ao debate mais amplo
da crioulização prévia ou não do PB, que tem decorrido nos últimos??? cem
anos (Coelho [1880] 1967; Révah 1959; Silva Neto 1976; Guy 1981,1989;
Houaiss 1985; Holm 1987; Tarallo 1988; Naro/Scherre 1993, 2007; Baxter
1997; Baxter/Lucchesi 1997,1999; Parkvall/Alvarez Lopez 2003). Neste
contexto Baxter (1995, 1997) e Lucchesi (2001) têm introduzido o termo
transmissão linguística irregular. Este é um conceito que, além da
crioulização, abrange a reestruturação a partir de ASL e variedades de L2 que
num dado ponto servem como dados linguísticos primários para uma maioria,
ou uma parte, de uma comunidade linguística.
3. A comunidade estudada: Maputo, Moçambique
Moçambique é um país onde o português não tem sido estudado
quantitativamente, portanto este estudo traz informação nova. O PM é uma
variedade interessante de estudar, porque representa uma situação linguística
não encontrada em estudos quantitativos anteriores, na qual o português é
falado tipicamente como L2 por falantes que têm uma língua bantu como L14,
4
Estudos anteriores do português de Moçambique (ou de Angola, onde há uma situação
linguística parecida à de Moçambique) não são quantitativos.
31
Anna Jon-And
condição que fornece uma boa base para a discussão de teorias de influência
de línguas bantu.
Em Moçambique nunca houve um processo de crioulização do português,
devido ao baixo grau de contacto entre falantes de português e falantes de
línguas bantu durante a época colonial, e ao facto de os falantes de línguas
bantu que aprenderam português nesta altura terem aprendido a língua na
escola, de uma forma estruturada. Hoje em dia, o português é a única língua
oficial de Moçambique. O PM é falado por aproximadamente 40% da
população e é tipicamente uma L2 de falantes de línguas bantu, adquirido na
infância através da escola, e usado numa variedade de situações quotidianas, o
que fornece condições para um nível desenvolvido de conhecimento do
português dos falantes (Gonçalves 2004).
A cidade capital de Maputo é a localidade dentro de Moçambique onde o
português é mais falado. Na cidade de Maputo 87% da população fala
português e 25% da população tem português como língua materna (Firmino
2008:4).
Mesmo não tendo havido um processo de reestruturação drástica, como
crioulização, em Moçambique, a convivência com línguas bantu é um factor
decisivo no desenvolvimento do PM. Gonçalves (2004) considera a mudança
linguística do PM como posicionado num contínuo, entre mudança linguística
“normal” (sem contacto linguístico significativo) e a mudança linguística mais
drástica numa situação de pidginização/crioulização.
4. O corpus
Foi gravado o discurso oral de 18 informantes de Maputo em Outubro e
Novembro de 2007. Trabalha-se com três faixas etárias, de 20-40 anos, 41-60
anos e 61+ anos, com três homens e três mulheres em cada faixa. A tabela 1
mostra a distribuição dos informantes em relação a sexo e faixa etária.
Tabela 1. Informantes de Maputo
Faixa etária
Homens
20-40 anos
MZ-6
MZ-16
MZ-19
41-60 anos
MZ-11
MZ-14
MZ-17
61+ anos
MZ-9
MZ-12
MZ-13
Mulheres
MZ-2
MZ-15
MZ-1
MZ-4
MZ-5
MZ-7
MZ-18
MZ-20
MZ-21
32
Concordância variável de número no SN no português L2 de Moçambique
As faixas etárias utilizadas coincidem com as faixas etárias nas quais os
informantes de Andrade (2003) Baxter (2004) e Figueiredo (2008) são
divididos, o que facilita a comparação com estes estudos.
Foram entrevistadas pessoas de apenas um nível de escolaridade. O nível
de escolaridade estabelecido para os informantes de Moçambique é de três a
sete anos de escolarização. Um nível relativamente baixo de escolaridade foi
escolhido porque se parte da hipótese de que em variedades de português
popular há mais probabilidade de se encontrar uma maior frequência de
marcação zero de número do que em variedades de português culto. O nível
mínimo de três anos de escolarização foi estabelecido no presente estudo por
causa de os informantes terem português como L2, o que implica a
possibilidade de pessoas que tenham estudado menos de três anos terem pouco
ou nenhum conhecimento de português.
Como o português dos falantes moçambicanos é tipicamente L2, decidiuse trabalhar apenas com informantes que tivessem português como L2 no
presente estudo. Para trabalhar com um grupo de informantes bastante
uniforme, foi necessário estabelecer qual seria a L1 dos informantes e qual
seria a relação entre a L1 e o português. Em Maputo foi natural trabalhar com
informantes que tivessem uma das línguas ronga ou xangana5 como L1, já que
estas são as línguas que predominam em Maputo, principalmente entre pessoas
nascidas na cidade. Quanto à relação entre a L1 e o português foi estabelecido
que os informantes deviam comunicar-se principalmente em uma língua bantu
com pelo menos uma das pessoas com quem viviam6, isto para incluir pessoas
que tivessem um uso activo da L1. Foi também estabelecido que os
informantes deviam ter um trabalho no qual falassem diariamente português,
para garantir que tivessem um conhecimento do português que fosse “vivo” e
não que apenas tivessem aprendido o português na escola para depois nunca
mais o usarem. Se os informantes fossem aposentados ou desempregados, o
critério era que deviam ter tido alguma vez um trabalho no qual falassem
diariamente português.
Os informantes foram encontrados através de contactos já estabelecidos
em Maputo. Procurou-se entrevistar pessoas residentes em vários bairros da
cidade. Os informantes de Maputo moram nos bairros Congolote, Ferroviário,
Guava, Laulane, Mafalala, Mavalane, Polana Cimento e Ulene. Todos os
5
Duas línguas bantu faladas no sul de Moçambique. As duas línguas estão relacionadas e são
reciprocamente inteligíveis.
6
Não foi estabelecido o critério de os informantes falarem unicamente uma língua bantu em
casa, porque é muito comum as pessoas falarem português com a geração mais nova em casa.
33
Anna Jon-And
informantes nasceram em Maputo e aí viveram em durante a maior parte das
suas vidas.
Foi realizada uma entrevista a cada um dos informantes. Todas as
entrevistas foram realizadas pela autora deste artigo. As entrevistas duraram
entre 30 e 60 minutos e foram realizadas seguindo o modelo de entrevista
sociolinguística semi-dirigida. Isto significa que é uma conversa bastante livre,
na qual o entrevistador pretende fazer o informante falar da forma mais natural
e relaxada possível. Diferentemente de uma conversa totalmente livre, os
temas são introduzidos pelo entrevistador. No entanto, não há muita imposição
quanto aos temas.
5. Análise quantitativa
A análise quantitativa dos dados é realizada através do programa Goldvarb X,
criado por D. Sankoff, S.A. Tagliamonte e E. Smith em 2005. O programa é a
versão mais recente dos programas VARBRUL, um grupo de programas
estatísticos baseados num modelo matemático de análise multivariada que foi
implementado na área da linguística pela primeira vez por David Sankoff em
1975. A função principal do modelo é calcular a probabilidade com a qual
uma regra linguística variável é aplicada em relação a dados factores. Através
do modelo consegue-se calcular a influência relativa de cada factor numa
análise em conjunto, que considera todas as variáveis independentes que
tenham uma influência estatisticamente significativa sobre a variável
dependente. O programa consegue também determinar se uma variável
independente codificada tem uma influência significativa sobre a variável
dependente ou não, e entre as variáveis que são escolhidas como significativas
determina-se quais delas influenciam em maior grau e quais as que
influenciam em menor grau a variável dependente.
Os resultados do programa Goldvarb X são apresentados em termos de
uma probabilidade, ou peso relativo, associada a cada um dos factores
analisados. O valor da probabilidade varia entre 0 e 1. Uma probabilidade
superior a 0.5 significa que o factor favorece a aplicação da regra, enquanto
uma probabilidade inferior a 0.5 significa que o factor desfavorece a aplicação
da regra.7
Trabalha-se com uma variável dependente e um conjunto de variáveis
independentes. A variável dependente na presente análise é a presença ou não
7
Para uma leitura aprofundada do uso e a função dos programas VARBRUL, pode-se
consultar Guy e Zilles (2007), Tagliamonte (2006) e Paolillo (2002).
34
Concordância variável de número no SN no português L2 de Moçambique
de marca de plural. No material gravado são identificados todos os SNs com
referência de plural constituídos por dois ou mais elementos. Todos os
elementos flexionáveis dentro destes SNs são codificados pela variável
dependente e um conjunto de variáveis independentes. Aplicação da regra
significa que o elemento leva marca de plural, e não aplicação da regra
significa que o elemento não leva marca de plural.
As variáveis independentes são as variáveis que podem influenciar a
variável dependente. Na presente análise foram codificadas três variáveis
sociais que são idade, sexo e idade de início de aquisição de português e cinco
variáveis linguísticas que são posição em relação ao núcleo/posição linear,
classe gramatical, saliência fónica, marcas precedentes e contexto fonológico
posterior 8 . As variáveis sexo, classe gramatical e contexto fonológico
posterior são excluídas da análise por não influirem de forma significativa a
variável dependente. As outras variáveis são escolhidas como significativas
pela seguinte ordem:
1.
2.
3.
4.
5.
Posição em relação ao núcleo/posição linear
Idade
Idade de início de aquisição de português
Saliência fónica
Marcas precedentes
Neste artigo apresenta-se o resultado da análise de duas variáveis sociais e
uma variável linguística. As variáveis sociais são idade de início de aquisição
de português e idade e a variável linguística é posição em relação ao
núcleo/posição linear. Estas três variáveis, além de serem escolhidas pelo
programa Goldvarb X como as mais significativas, apresentam um resultado
que comenta de forma particularmente interessante as hipóteses discutidas
neste artigo.
8
A variável posição em relação ao núcleo/posição linear combina estas duas variáveis que
foram originalmente codificadas separadamente. A variável saliência fónica combina as
variáveis formação de plural e tonicidade, que também foram codificadas separadamente. Na
análise quantitativa chegou-se à conclusão que, devido a interacção entre as variáveis, estas
duas variáveis combinadas são as mais adequadas.
35
Anna Jon-And
6. Resultados da análise
Foram analisados um total de 2846 itens do material de Moçambique. A
aplicação total da regra no material é de 88%. O resultado da análise é
apresentado variável a variável.
6.1. Idade de início de aquisição do português
A variável social idade de início de aquisição do português é uma variável
interessante de analisar já que o resultado desta análise pode indicar se a ASL
presentemente está a influenciar a concordância variável na variedade
estudada, e de que forma. Pode também indicar se a aquisição de concordância
é influenciada pelo período crítico, o que pode ser relacionado com “failed
functional features hypothesis” (FFFH) (Hawkins/Chan 1997). A FFFH referese à aquisição desviante de categorias funcionais (tais como a concordância)
entre falantes adultos, ou seja, falantes que passaram o período crítico, que
ocorre na adolescência (Lenneberg 1967). Pode-se, portanto, verificar se o
período crítico e/ou outros níveis de idade de início de aquisição do português
são decisivos para o nível de marcação de plural do falante. A tabela 2 mostra
o resultado da variável idade de início de aquisição do português.
Tabela 2. Efeito da variável idade de início de aquisição do português
FACTOR
0-6 anos (português foi
adquirido antes de entrar na
escola)
6-8 anos
10-12 anos
20+ anos
APLICAÇÃO/ TOTAL
441/426
%
97
PESO RELATIVO
0,86
1516/1755
484/560
83/105
86
86
79
0,47
0,33
0,15
A idade de início de aquisição do português tem uma influência forte sobre a
variável dependente. O resultado é claro: a baixa idade de aquisição de
português favorece a marcação de plural, enquanto a idade mais alta a
desfavorece. Este resultado sugere um papel importante da ASL para a
concordância variável de número no PM. Mas qual é este papel?
É importante considerar a natureza do input neste contexto. Em
Moçambique o português é geralmente adquirido principalmente em contexto
formal (Gonçalves 2004), mais precisamente na escola. Entre os informantes
do presente estudo, todos, menos os que adquiriram o português antes de
entrar na escola, indicam a escola como o contexto no qual adquiriram
36
Concordância variável de número no SN no português L2 de Moçambique
inicialmente o português. Os três informantes que adquiriram o português
antes dos seis anos de idade indicam que o aprenderam com membros da
família, ou seja, num contexto natural. Há razões para suspeitar que os
informantes que adquiriram o português com membros da família devem
constituir um grupo à parte. Estes três informantes contam que os seus pais ou
os seus avós tiveram contactos próximos com colonos portugueses através do
trabalho e que cresceram num ambiente no qual havia contacto com
portugueses. Por esta razão podemos supor que um input de PE L1, e
provavelmente de variedades de português L2 relativamente próximas desta
variedade, estiveram presentes na altura da sua aquisição do português. É
provável que outras variedades de português L2 de níveis diversos também
tenham estado presentes. No entanto, parece que o PE, ou variedades próximas
do PP, tenham dominado como input, visto o alto nível de aplicação da regra
entre esse grupo. É difícil comparar este grupo com os outros informantes,
porque podemos supor que outros factores para além da idade de início de
aquisição do português, tenham influenciado a sua aquisição de português. Os
informantes adquiriram o português num contexto diferente e provavelmente a
partir de um input de natureza específica.
Os outros três grupos são mais comparáveis quanto ao contexto de
aquisição e à natureza do input. Todos adquiriram inicialmente o português em
contexto formal. Podemos portanto supor que o seu input principal tenha sido
uma variedade relativamente próxima do PP. Não se pode pressupor que os
seus professores tenham sido falantes nativos de português, mas sabemos que
em contexto formal procura-se falar e ensinar o PP, ou seja uma variedade na
qual a marcação de número em todos os elementos flexionáveis do SN é
obrigatória. Podemos também supor que todos os informantes, depois de
adquirirem o português, tenham usado a língua fora do contexto da escola. Isto,
porque o português é uma língua estabelecida e usada em contextos informais
em Maputo (Gonçalves 2004), e também porque um dos critérios na escolha
de informantes para o presente estudo era o uso diário do português no
trabalho. A maioria dos informantes também indica que fala português com
alguma(s) da(s) pessoa(s) com quem vive (principalmente com os membros
mais jovens da família), enquanto que comunica na sua língua materna com
outra(s). Sabe-se, portanto, que os informantes geralmente usam o português
em contextos também menos formais e na comunicação com outros falantes de
português L2, e que todo o input de português por esta razão provavelmente
não é muito próximo do PP.
Mesmo desconsiderando os informantes que adquiriram o português
antes dos seis anos de idade, o resultado da análise da variável idade de início
37
Anna Jon-And
de aquisição do português mostra que os falantes que adquiriram o português
numa idade mais reduzida produzem um padrão mais próximo do PP quanto à
marcação de número, o que parece confirmar a presença do PP no input no
processo de aquisição. É interessante observar que o factor 20+ anos se
destaca especialmente em termos de desfavorecimento da marcação de plural,
apesar de este grupo ser constituído por apenas uma informante (que declara
ter adquirido português aos 30 anos na alfabetização para adultos), o que
dificulta que se chegue a conclusões seguras. No entanto, se a indicação que o
efeito deste factor nos dá, que é a de que o período crítico que ocorre na
adolescência influi na aquisição de concordância de número, for certa, isto por
sua vez forneceria apoio ao “Failed Functional Features Hypotheses” (FFFH).
Segundo a FFFH, aprendentes adultos têm dificuldades na aquisição de
categorias funcionais, como concordância, se essas categorias não existirem da
mesma forma na L1 (Hawkins/Chan 1997). 9 Porém, é também interessante
observar que falantes que adquiriram o português em idades diferentes mesmo
antes do período crítico apresentam resultados distintos, apesar da diferença
entre esses grupos ser menor. Isto parece indicar que mesmo aprendentes mais
jovens têm dificuldades na aquisição de categorias funcionais e que diferenças
pequenas em idade de início de aquisição do português para aprendentes
jovens influem no grau de marcação de número de acordo com as regras de
concordância do PP.
O resultado poderia também ser interpretado em termos de os
aprendentes terem recebido um input com concordância variável, e neste caso
os aprendentes mais velhos tenderem a adoptar uma variedade com maior grau
de marca zero de plural enquanto os aprendentes mais jovens adoptam uma
variedade com menor grau da mesma. Isto, por sua vez, poderia dever-se, por
um lado à influência mais forte da L1 entre aprendentes mais velhos e, por
outro lado, ao facto de aprendentes mais velhos tenderem a adoptar uma
variante mais próxima à basic variety (Klein & Perdue 1997), uma variedade
de interlíngua desenvolvida no processo de ASL por adultos, caracterizada,
entre outras coisas, pela ausência de flexão de número.
Como não há controle da natureza exacta do input que os informantes
receberam, é difícil determinar a relação entre essas variedades L2 e o seu
input. Podemos constatar a partir da análise da variável idade de início de
aquisição do português que a concordância variável no PM parece ser um
9
Há concordância de número dentro do SN nas línguas bantu, mas numa forma que não
corresponde exactamente à do português. O morfema PL nas línguas bantu é um prefixo
enquanto no português é um sufixo, e o PL não é marcado em exactamente os mesmos
elementos. Veja também páginas 26-28 do presente estudo.
38
Concordância variável de número no SN no português L2 de Moçambique
fenómeno relacionado com o contacto linguístico. No entanto, o maior grau de
marcação de número entre falantes com idade de início de aquisição menor
pode ser interpretado por um lado em termos de transferência de línguas bantu
e por outro lado em termos de processos mais gerais ligados ao contacto/ASL.
6.2. Idade
A análise da variável social idade fornece também informação interessante,
porque esta análise pode indicar se há uma variação diacronicamente estável
ou se há uma tendência para aplicar cada vez menos ou cada vez mais a regra.
A tabela 3 mostra os resultados da variável idade.
Tabela 3. Efeito da variável idade
FACTOR
APLICAÇÃO/
TOTAL
20-40 anos
937/1010
41-60 anos
914/1012
61+ anos
646/824
%
93
90
78
PESO
RELATIVO
0,59
0,64
0,24
Vê-se no quadro que o grupo de falantes da mais elevada faixa etária (60+)
desfavorece a marcação de plural, enquanto que não há grande diferença entre
os dois grupos mais jovens, e as duas faixas etárias mais jovens favorecem
ligeiramente a aplicação da regra. A variável idade foi a segunda a ser
escolhida pelo programa Goldvarb X e tem, portanto, uma influência forte
sobre a concordância variável no PM.
Uma possível razão do desfavorecimento da aplicação na regra da faixa
etária mais velha é o facto de o uso do português na vida quotidiana em
Maputo estar a aumentar à custa das línguas bantu. O input do PP através dos
media é também maior entre os falantes mais jovens.
Esses dados indicam, de novo, que o contacto linguístico tem um efeito
sobre a concordância variável, sem se poder deduzir apenas a partir da análise
desta variável se este contacto resulta em influências de L1s dos falantes ou
em processos mais gerais ligados ao contacto linguístico.
6.3. Posição em relação ao núcleo/posição linear
A última variável a ser analisada aqui é a variável linguística posição em
relação ao núcleo/posição linear. As variáveis posição linear dentro do
sintagma nominal e classe gramatical e a sua inter-relação foram
profundamente analisadas por Guy (1981) e Scherre (1988) em relação a
39
Anna Jon-And
variedades do PB faladas no Rio de Janeiro. Segundo Guy as duas variáveis
são fortemente relacionadas e a marcação de plural é mais favorecida na
primeira posição, geralmente um determinante. Scherre (1988) considera que a
relação entre as duas variáveis é mais complexa e, através do cruzamento das
variáveis, chega à conclusão de que a distinção entre elementos pré-nucleares
e pós-nucleares é essencial, independentemente da posição linear do núcleo,
ao mesmo tempo que a primeira posição favorece a marcação de plural
independentemente da classe gramatical do item em questão. A mesma autora
chega à conclusão de que uma variável, que distingue entre elementos
nucleares e não nucleares, que divide os elementos nucleares de acordo com
posição linear, e que divide os elementos não nucleares em pré-nucleares e
pós-nucleares, é a solução que melhor consegue descrever a influência de
posição linear e de classe gramatical sobre a marcação de plural no material
analisado. Lopes (2001), Andrade (2003), Baxter (2004, 2009) e Figueiredo
(2008) resolvem trabalhar com a mesma variável combinada, mas distinguem
também entre elementos em posição pré-nuclear que antecedem
imediatamente o núcleo (i.e elementos adjacentes ao núcleo) e que antecedem
o núcleo mas não imediatamente (i.e. elementos não adjacentes ao núcleo).
Os resultados da análise desta variável puramente sintáctica são
frequentemente referidos para apoiar a hipótese de influências de línguas
africanas. Guy (1981, 1989) refere-se ao favorecimento da primeira posição
em relação à marcação de plural. Guy faz comparações com línguas africanas
dos grupos bantu e kwa e também com línguas crioulas como o kabuverdianu
e o palenquero, uma vez que todas estas línguas geralmente marcam o plural
no primeiro elemento do SN. Baxter (2004, 2009) e Figueiredo (2008)
destacam o papel importante da posição pré-nuclear adjacente e a sua possível
relação com a marcação de plural nas línguas bantu.
Na análise do material de Moçambique chegou-se à conclusão que a
variável combinada usada por Lopes (2001), Andrade (2003), Baxter (2004,
2009) e Figueiredo (2008) é também neste caso adequada. A variável
combinada posição em relação ao núcleo/posição linear tem na presente
análise os factores e valores apresentados na tabela 4.
Pode-se constatar que, assim como nos estudos anteriores, o papel da
posição pré-nuclear adjacente é essencial e favorece fortemente a marcação de
plural. Esta posição é de facto a única que favorece a aplicação da regra para
os elementos não nucleares, visto que as posições pré-nuclear não adjacente e
pós-nuclear desfavorecem a marcação de plural.
40
Concordância variável de número no SN no português L2 de Moçambique
Tabela 4. Efeito da variável posição em relação ao núcleo/posição linear
FACTOR
EXEMPLO
APLICAÇÃO/
%
TOTAL
PESO
RELATIVO
algumas pessoas
1139/1159
98
0,76
as minhas irmãs
190/200
95
0,34
Núcleo na primeira posição
casas grandes
48/48
100
-
Núcleo nas demais posições
algumas pessoas;
1033/1323
78
0,32
93/132
71
0,18
Elemento pré-nuclear
adjacente
Elemento pré-nuclear não
adjacente
as minhas irmãs
Elemento pós-nuclear
casas grandes;
as minhas irmãs
mais velhas
Para o núcleo, os itens na primeira posição são categoricamente marcados,
enquanto que as demais posições para o núcleo desfavorecem a marcação. Isto
não quer dizer necessariamente que a marcação de plural seja obrigatória para
o núcleo na primeira posição. No entanto, a marcação categórica entre as 48
ocorrências deste tipo fornece uma indicação de uma tendência forte de marcar
itens nesta posição.
Resumindo, vê-se que em relação à variável posição em relação ao
núcleo/posição linear há duas tendências centrais na regência da concordância
variável. Uma é a de marcar o plural na primeira posição, o que vale para o
núcleo, e a outra é a de marcar plural na posição adjacente ao núcleo, o que
vale para os elementos pré-nucleares. Para os elementos pré-nucleares a
posição em relação ao núcleo tem mais influência do que a posição linear.
Para o núcleo a influência da posição linear (considerando apenas a primeira
posição e as demais posições) é muito forte.
É interessante comparar os resultados da análise da variável posição em
relação ao núcleo/posição linear com os resultados da análise da mesma
variável em outras variedades africanas e em variedades brasileiras de
português. O diagrama 1 apresenta os valores dos pesos relativos para a
variável posição em relação ao núcleo/posição linear para o presente estudo
de PM e para cinco estudos anteriores.
41
Anna Jon-And
Diagrama 1. Posição em relação ao núcleo/posição linear comparada pesos relativos10
1
0,9
0,8
0,7
0,6
0,5
0,4
0,3
0,2
0,1
0
Maputo, Moçambique
(presente estudo)
Mindelo, Cabo Verde
(Jon-And 2009)
Tongas de São Tomé
(Baxter 2004, 2009)
Almoxarife, São Tomé
(Figueiredo 2008)
Salvador, Brasil
(Lopes 2001)
Helvécia, Brasil
(Andrade 2003)
PR.N.A.
PR.N.N.A.
N1
N2
PO.N.
PR.N.A.: elementos pré-nucleares adjacentes ao núcleo
PR.N.N.A.: elementos pré-nucleares não adjacentes ao núcleo
N1:
núcleo na primeira posição
N2:
núcleo nas demais posições
PO.N.:
elementos pós-nucleares
O estudo de Jon-And (2009) analisa o português L2 de Mindelo, Cabo Verde,
produzido por falantes nativos do crioulo cabo-verdiano. Os estudos de Baxter
(2004, 2009) tratam do português dos Tongas de São Tomé, uma comunidade
de descendentes de africanos contratados para trabalharem na plantação Monte
Café em São Tomé nos séculos XIX e XX. Os Tongas são falantes L1 de
português. No entanto, houve presença de falantes de português L2 em Monte
Café até a década de 1940 e o papel de variedades de português L2 e a
presença de línguas africanas, principalmente de línguas bantu de Angola, tem
sido importante para o desenvolvimento do português dos Tongas. Figueiredo
(2008) estuda o português L2 de Almoxarife no norte da ilha de São Tomé,
produzido por falantes nativos do crioulo forro/sãotomense. As variedades do
10
A posição N2 mostra uma média dos valores para elementos pós-nucleares para Tongas e
Salvador. A média é calculada para possibilitar a comparação entre os estudos diferentes. Isto
não é estatisticamente correto. No entanto, os valores dos quais se calcularam as médias são
tão próximos (não diferem mais que 0,1 entre si) que se considera que a imagem apresentada é
razoavelmente próxima da realidade. A posição N1 é categórica para Moçambique e, portanto
não é comparável com os outros valores, que são probabilidades. Contudo o resultado é
representado pelo valor 1 no diagrama, para dar uma idéia da situação. A posição N1 não tem
valor para Helvécia porque há poucos elementos nesta posição para esta variedade. A posição
PO.N. tem o valor 0 para Helvécia porque esta posição está categoricamente não marcada para
esta variedade.
42
Concordância variável de número no SN no português L2 de Moçambique
PB estudadas por Lopes (2001) e Andrade (2003) são variedades faladas por
grupos com uma proporção alta de afrodescententes. Salvador é um centro
urbano com uma população diversificada, enquanto Helvécia é uma
comunidade rural que era relativamente isolada durante e depois da época da
escravatura. Todos estes estudos tratam a variável posição em relação ao
núcleo/posição linear de forma bastante parecida.
Os resultados dos estudos destas seis comunidades linguísticas têm
várias características em comum. A tendência de marcar o plural em
elementos pré-nucleares adjacentes em maior grau do que em elementos não
adjacentes ao núcleo existe em todas as variedades. Também é de notar que a
primeira posição favorece mais a aplicação da regra do que as demais posições
para os núcleos em todas as variedades menos a de Helvécia. Nesta última, o
núcleo na primeira posição é praticamente inexistente. A posição pós-nuclear
desfavorece a marcação de plural para todas as variedades.
A tendência de marcar o plural na primeira posição no SN foi apontada
também por Guy (1981) em relação a uma variedade do PB. Guy (1989:232-3)
argumenta que esta tendência no PB, assim como no crioulo de Cabo Verde e
o palenquero de Colômbia, deve-se à influência de línguas africanas. As
línguas moçambicanas ronga e xangana marcam o plural em vários elementos
do SN e não apenas no primeiro. No entanto, esta hipótese não é irrelevante
para os dados de Moçambique, já que existe a possibilidade do primeiro
elemento do SN no português ser interpretado como o prefixo plural das
línguas bantu. Esta argumentação desenvolve-se em mais detalhe na discussão
do papel dos elementos adjacentes ao núcleo que se segue.
A questão agora centra-se no papel importante dos elementos adjacentes
ao núcleo. Que explicação é possível encontrar para o favorecimento da
marcação de plural nesta posição em todas as variedades referidas?
Inicialmente esta tendência parece ser mais facilmente explicada a partir de
influências de línguas bantu. Baxter (2004, 2009) desenvolve esta teoria em
relação a este fenómeno no português dos Tongas e a língua umbundu, língua
bantu com a qual a comunidade dos Tongas tem uma história de contacto e
que ainda é L1 de alguns informantes do seu estudo. Em umbundu o plural é,
segundo Baxter, marcado por meio de um classificador nominal prefixal que
identifica a classe nominal (ou semântica) do substantivo. Esta descrição
coincide com a descrição de Ngunga (2004:105-108) da marcação de plural
em ronga e xangana, L1s de todos os informantes no presente estudo de PM.
Ngunga ilustra esta descrição com exemplos destas duas línguas:
43
Anna Jon-And
(9)
RONGA:
(10)
XANGANA:
xi-luva
SG-flor
“flor”
Ø-yindlu
SG-casa
”casa”
svi-luva
PL-flor
“flores”
ti-yindlu
PL-casas
”casas”
É de notar que a estrutura encontrada no exemplo 9 de ronga, com um prefixo
SG e um prefixo PL, é encontrada também em xangana, assim como a
estrutura do exemplo 10 de xangana, sem prefixo SG e com prefixo PL, é
encontrada também em ronga. Isto depende da classe nominal. Os itens
singulares podem, portanto, levar ou não levar um prefixo marcador de classe
semântica, enquanto que os itens plurais levam sempre um prefixo marcador
de classe nominal e de plural. Em ronga e xangana, assim como em umbundu,
há marcação de concordância de classe nominal e de número em adjectivos,
demonstrativos e possessivos. Ilustra-se a concordância com exemplos
produzidos por um falante nativo de ronga:
(11)
(12)
li-kuku
dzi-kulo
SG-esteira SG-grande
“esteira grande”
ti-kuku
ti-kulu
PL-esteira PL-grande
“esteiras grandes”
Demonstrativos e possessivos, assim como adjectivos, estão sempre na
posição pós-nuclear em ronga e xangana.
A possível explicação apresentada por Baxter é a de os elementos
adjacentes ao núcleo no português serem interpretados como os prefixos bantu
por falantes de línguas bantu e, por esta razão, tenderem a levar a marcação
plural. A marcação sufixal de plural em outros elementos no português não
tem nenhuma interpretação natural dentro do sistema de marcação de plural
das línguas bantu e, por esta razão, tendem a levar marca de plural em menor
grau que os elementos adjacentes ao núcleo.
A hipótese de influência do sistema de marcação das línguas bantu
parece inicialmente relevante como modelo explicativo do papel da posição
adjacente ao núcleo nos dados de Moçambique, assim como das variedades de
português de São Tomé e do Brasil. Em todas essas variedades há uma
possível influência de línguas bantu, embora seja mais recente e mais presente
44
Concordância variável de número no SN no português L2 de Moçambique
nas variedades africanas. No entanto, se considerarmos também a comparação
com os resultados do português de Cabo Verde (Jon-And 2009), a imagem é
outra. O modelo explicativo sugerido está fortemente ligado às estruturas
específicas das línguas bantu, que não são encontradas nos substratos do
crioulo de Cabo Verde. O português L2 de falantes nativos do crioulo caboverdiano não pode, portanto, ser influenciado por línguas bantu. Mesmo assim
a tendência de marcar plural nos elementos adjacentes ao núcleo está presente
e forte nos dados do português de Cabo Verde.
Para uma análise adequada da comparação com os dados de Cabo Verde,
é preciso considerar também a estrutura de marcação de plural no crioulo de
Cabo Verde e os seus substratos. Entre os possíveis substratos do crioulo
encontra-se várias estruturas, tais como marca plural por meio do pronome 3pl
no início do SN (em poucas línguas atlânticas), marcação de plural por sufixo
ou marca zero de plural (em línguas mande) (Parkvall 2000:95). No entanto,
como os substratos hoje não estão presentes em Cabo Verde, a influência
principal sobre o português L2 falado em Cabo Verde é o crioulo de Cabo
Verde. No crioulo de São Vicente11 a estrutura mais frequente é marcação de
plural apenas no primeiro elemento do SN, que geralmente antecede
imediatamente o núcleo sem marcação de plural. Ocorre também a marcação
em vários elementos do SN (Holm/Swolkien 2006:76). A literatura não
fornece informação se a adjacência ao núcleo é obrigatória ou não para o
elemento não nuclear marcado de plural. Porém, consultando falantes nativos
do crioulo de São Vicente revela-se a possibilidade de não adjacência ao
núcleo do elemento marcado.12
Neste contexto seria naturalmente desejável uma análise mais profunda e
detalhada da marcação de plural nos substratos do crioulo de Cabo Verde, e a
eventual sobrevivência dessas estruturas no crioulo de Cabo Verde. Por
enquanto pode-se constatar que não podemos confiar unicamente na estrutura
de línguas bantu como explicação para o favorecimento da marcação de plural
da posição adjacente ao núcleo em variedades do português. Uma explicação
geral baseada em transferência teria que abranger diversas línguas africanas de
várias regiões. Teria também que verificar a existência de estruturas que
podem ser associadas à marcação de plural principalmente no elemento
adjacente ao núcleo em substratos do crioulo de Cabo Verde.
11
12
São Vicente é a ilha onde o estudo de Jon-And (2009) foi realizado.
Isto pode ser exemplificado na frase seguinte: nha-s
cinc
1sg:POSSESSIVE-PL cinco
“meus cinco filhos”
45
fidj
filho
Anna Jon-And
7. Considerações finais
As variáveis sociais idade de início da aquisição de português e idade
analisadas neste artigo indicam que a concordância variável de número no SN
no PM é um fenómeno relacionado com contacto linguístico. No entanto, a
análise destas variáveis não dá nenhuma indicação dos tipos de efeitos deste
contacto linguístico. Para a variedade moçambicana do português é preciso
investigar as duas hipóteses influência de línguas bantu e efeitos gerais de
ASL. Não se deve excluir a possibilidade desses dois efeitos terem influência
sobre o PM ao mesmo tempo. O que se deve analisar neste caso é de que
forma cada um deles influencia a marcação de plural.
A hipótese de influência de línguas bantu parece inicialmente apoiada
pelos resultados da análise da variável linguística posição em relação ao
núcleo/posição linear. Esta hipótese é baseada no favorecimento da marcação
de plural da posição adjacente ao núcleo, padrão encontrado em estudos
anteriores de São Tomé e de PB, e também nos dados de Moçambique. No
entanto, considerando que o mesmo padrão é encontrado num estudo do
português de Cabo Verde, variedade sem nenhuma possibilidade de influência
de línguas bantu, o apoio já não tem o mesmo valor, e parece que devemos
também considerar influência de outros substratos africanos ou procurar outras
explicações para o papel significativo dos elementos adjacentes ao núcleo.
Uma análise mais profunda da relação entre a marcação de plural no português
de Cabo Verde e o crioulo de Cabo Verde e os seus substratos será
futuramente apresentada.
A necessidade de procurar explicações alternativas para o favorecimento
da marcação de plural da posição adjacente ao núcleo não implica que
devamos necessariamente desconsiderar a possibilidade de influências bantu
na marcação de plural em variedades nas quais esta influência seja relevante.
Para investigar ainda mais a hipótese bantu no PM é preciso alargar a análise
quantitativa e codificar os elementos para classe nominal em ronga, L1 para a
maioria dos informantes do estudo. O resultado de tal codificação será também
futuramente apresentado.
Quanto a teorias baseadas em efeitos gerais de contacto linguístico/ASL,
a questão é se estes efeitos poderiam oferecer uma explicação à estrutura que
favorece a marcação de plural na posição adjacente ao núcleo. A teoria da
basic variety de Klein e Perdue (1997) consegue explicar a redução da
marcação de plural, e possivelmente a tendência de marcar elementos na
primeira posição. A teoria da FFFH (Hawkins/Chan 1997) também explica até
certo ponto a redução da marcação de plural por aprendentes de português, se
46
Concordância variável de número no SN no português L2 de Moçambique
o input principal for o PP. No entanto, estas teorias não contribuem para o
entendimento do papel central dos elementos adjacentes ao núcleo. Para
avançar na discussão de teorias baseadas em efeitos gerais de contacto
linguístico/ASL talvez seja preciso investigar explicações estruturais mais
avançadas.
Abreviaturas
ASL
– aquisição de segunda língua
DEF
– artigo definido
FFFH – failed functional features hypothesis
L1 – língua materna
L2 – segunda língua
PP – português padrão
PB – português do Brasil
PE – português europeu
PL – plural
PM – português de Moçambique
SG – singular
SN – sintagma nominal
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