Anais do 5º Encontro do Celsul, Curitiba-PR, 2003 (1186-1190)
EMPRÉSTIMOS LINGÜÍSTICOS DO PORTUGUÊS DO BRASIL NA LÍNGUA MUNDURUKÚ
(TUPÍ)
Patrícia Vieira NUNES (Faculdade Michelangelo – DF)
ABSTRACT: This paper deals with the way that Mundurukú language receives in its system the linguistic
borrowings from brazilian portuguese, specially in its fonology and morphosyntax.
KEY WORDS: lexicology; linguistic borrowings; mundurukú language; brazilian portuguese
0.
Introdução
Pode-se entender por empréstimo lingüístico o processo pelo qual uma determinada comunidade
lingüística incorpora traços “estrangeiros”, tais como elementos fonéticos, morfológicos, sintáticos e, em
especial, lexicais.
Segundo Gonçalves e Sitoe (1999), normalmente, a razão do empréstimo é a lacuna lexical
existente em uma das línguas em contato para designar uma nova realidade, como por exemplo, objetos
tecnológicos, nomes de animais e vegetais, elementos culturais, entre outros.
Lamberti (1999) conclui ser o empréstimo (i) uma palavra de origem estrangeira, assim como
palavra estrangeira quando sua forma ainda não foi adaptada à língua recebedora, (ii) ser palavra atestada
como de origem estrangeira, mas ter sua forma totalmente adaptada à gramática da língua recebedora,
decalcada ou híbrida, e (iii) ser tanto em (i) como em (ii) termo de uso generalizado, ou seja, termo
difundido em sua comunidade.
Observa-se então que é condição para o empréstimo o contato entre, no mínimo, duas línguas que
intercambiam língua e cultura em uma íntima relação.
Alguns estudos já foram realizados acerca dos empréstimos recebidos pelo Português do Brasil,
especialmente, no tocante à língua inglesa. Lamberti (1999) estabelece uma tipologia para o empréstimo:
a) mantém a forma tal qual no inglês e gera uma forma lingüística no PB;
b) gera palavras derivadas ou híbridas e motiva o surgimento de um novo significado para um
termo vernacular já existente no PB;
c) gera unidades terminológicas complexas (UTCs) híbridas e UTCs vernaculares;
d) abandona a forma de origem em favor de um decalque do PB;
e) mantém a forma tal qual no inglês e gera uma forma adaptada à morfofonêmica.
Esse trabalho tem por objetivo fazer um contraponto entre o português do Brasil e a língua
indígena Mundurukú (Tupí). Será observado de que modo a língua indígena tem absorvido, no âmbito,
fonético e morfossintático, os itens lexicais advindos do contato com comunidades não-indígenas.
1.
A Língua Mundurukú
A língua Mundurukú, objeto dessa aplicação, enquadra-se como língua não Tupí-Guaraní do
tronco Tupí e recebe o mesmo nome da família, a qual possui apenas mais uma língua, o Kuruáya, falada
no estado do Pará por 52 pessoas. (Rodrigues, 1994).
Tem como característica particular ser uma língua tonal; os quatro tons são relativos e não
absolutos. O tom 1, o mais alto é menos comum; há o tom 2, que é o tom médio e o 3, que é o tom baixo.
O tom 4 é a laringalização.
A comunidade Mundurukú é hoje composta por 8 000 pessoas, aproximadamente, vivendo em
mais de 40 aldeias nos territórios situados na região do Alto Tapajós no estado do Pará, e na bacia do
Madeira, estado do Amazonas. Os Mundurukús usam sua língua materna em 100% da comunicação
intragrupal, no entanto, possuem uma história de contato cultural e lingüístico com a sociedade nãoindígena há vários séculos.
A iconicidade é expressa de forma mais evidente, na língua Mundurukú, pelo sistema de
classificação nominal.
No caso da língua Mundurukú, os classificadores nominais se caracterizam como unidades lexicais
autônomas, dotadas de significação plena.
É fato que classificadores, sobretudo os baseados no formato, estão diretamente relacionados à
percepção de uma comunidade que é compartilhada por seus falantes. Nesse caso específico, a língua
Patrícia Vieira NUNES
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Mundurukú classifica uma grande quantidade de nomes, relacionados às partes do corpo, seja ele
humano, vegetal ou animal. Isso demonstra de que forma a iconicidade é fortemente marcada nessa
língua. Observem-se alguns dados de classificadores nominais:
CLASSIFICADORES EM MUNDURUKÚ
PARTES DO CORPO
HUMANO
ANIMAL
VEGETAL
’a ‘cabeça’
dap ‘pena’
dup ‘folha’
ba ‘braço’
nogtapi ‘ferrão’
dot ‘cacho’
bu ‘dedo’
akanasu ‘chifre’
dit ‘flor’
dao ‘osso’
egeba ‘asa‘
da ‘semente’
a’õ ‘voz’
xep ‘gordura’
dabu ‘raiz’
Para Rosch (apud Dubois:1993), a formação de categorias está diretamente ligada à percepção
humana de stimuli salientes que determinam a estruturação categorial de diferentes domínios.
Obviamente, categorias têm seus componentes determinados pelo grau de semelhança entre eles, o que
faz com que sejam “percebidos” como tendo algo comum, por exemplo, um traço que os une, ou mesmo,
um “ar de família”.
Esses stimuli salienti identificam-se com o que Lakoff , a respeito das pesquisas de Dixon (1982,
apud Lakoff, 1986) chamou de princípios gerais:
“Dixon observed that speakers do not learn category members one-by-one, but operate in
terms of general principles.” 1
Convém ressaltar que, na grande maioria dos casos, o sistema de classificação nominal de uma
língua possui estreita relação com fatores culturais e com a visão de mundo de seu povo.
Tendo em vista a motivação lingüística em Mundurukú, acentuadamente nos nomes classificados,
leva-se em consideração a originalidade da língua.
2.
Normalização dos Empréstimos
Constataram-se, basicamente três processos para a lexicalização dos empréstimos:
(i) adaptação fonológica,
chave > xawi
cadeira> kadera
camisa > kamuxa
piloto > piroto
Há apenas a normalização dos fonemas da língua, adaptados à fonologia da língua recebedora.
(Ver em anexo quadro fonético)
(ii) composição vernacular, marcada pelo uso de classificadores nominais,
panela de pressão > puybittatamdaoma
pipoca > muradapawpawda
comprimido > posugta
telha > uk’adup
Para nomear uma nova realidade, surgem itens lexicais genuinamente vernáculos, categorizados
por meio de classificadores nominais. Em puybittatamdaoma , o classificador é dao ‘osso,
1
“Dixon observou que os falantes não apreendem membros de categorias um a um, mas operam em
termos de princípios gerais.”
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rápido’, descrevendo literalmente o “recipiente que cozinha o alimento rápido mesmo”; em
muradapawpawda , há a repetição do classificador da ‘semente’, para a “semente do milho que
estoura”; em posugta ocorre a alomorfia da ~ ta ‘semente’, para o “remédio em forma de
semente”e, em uk’adup, o classificador dup ‘folha’ descreve a “folha que cobre a casa”.
(iii) composição híbrida, também marcada pelo uso de classificadores nominais.
lápis > rapi’ip
papel > taperadup
bolacha > boraxa’a
suco > sukudi
Nesses casos, normalmente, há a adaptação fonológica, seguida da categorização pelo classificador
nominal. Dessa forma, ’ip classifica objetos de madeira, dup objetos finos e flexíveis como uma
folha, ’a objetos esféricos, e di, líquidos.
3.
Conclusão
Os três processos têm se mostrado extremamente produtivos , o que demonstra de que forma a
iconicidade é fortemente marcada nessa língua, bem como sua dinâmica interna de recepção e criação de
novos itens lexicais.
RESUMO: Esse trabalho tem por objetivo observar de que forma a língua indígena mundurukú
incorpora a seu sistema os empréstimos advindos da língua portuguesa do Brasil. Serão enfatizados os
processos fonológicos e morfossintáticos.
PALAVRAS-CHAVE: lexicologia; empréstimos; língua mundurukú; português do Brasil
ANEXO: Quadro fonético da Língua Mundurukú
GRAFIA
MUNDURUKÚ
TRANSCRIÇÃO
EXEMPLO
a
/a/ em ‘arara’
awawa ‘avô’
ã
/ã/ em ‘irmã’
ãwã ‘nenê’
b
/b/ em ‘bota’
bio ‘anta’
c
/t / em ‘tio’
dace ‘gavião’
d
/d/ em ‘dente’
murada ‘milho’
e
/ / em ‘café’
ade ‘muito’
e
/ / em ‘em’
isem ‘liso’
g
(em início de sílaba)
gasu ‘hoje’
/ / em ‘ninho’
(em final de sílaba após vogal nasal)
/ g/ em ‘manga’
pug ‘um’
Patrícia Vieira NUNES
(em final de sílaba, após vogal oral)
daxadig ‘fumaça do fogo’
/g g/ não há em português
h
/x/ em ‘correndo’
hay ‘paca’
i
/i/ em ‘aqui’
ixibu ‘cipó’
i
/i/ em ‘sim’
ãxi’a ‘pimenta’
j
/d / em ‘dia’
jekobe ‘canoa dele’
(em início de sílaba)
kat ‘roça do homem’
k
/k/ em ‘carro’
(em final de sílaba, não-solto)
daruk ‘arco’
’
/ / não há em português (glotal)
o’a ‘machado’
m
(após vogal oral) /bm/
ibubum ‘está pegando’
Não há em português
(após vogal nasal)
osum ‘meu cunhado’
/m/ em ‘mãe’
n
(após vogal oral) /dn/
Não há em português
koreren ‘em redor de’
(após vogal nasal)
õn ‘eu’
/n/ em ‘nariz’
o
õ
/o/ em ‘folha’
kobe ‘canoa’
/u/ em ‘rio’ /xiw/
ico ‘cesto’
/õ/ em ‘ontem’
ikõ ‘sua língua’
/u/ em ‘um’
õcõ’õcõ ‘gripe’
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1190
EMPRÉSTIMOS LINGÜÍSTICOS DO PORTUGUÊS DO BRASIL NA LÍNGUA MUNDURUKÚ (TUPÍ)
p
(em início de sílaba)
piga ‘anzol’
/p/ em ‘pai’
xepxep ‘dois’
(em final de sílaba, não-solto)
r
/r/ em ‘cara’
ikaraw ‘seco’
(entre duas vogais i)
/l/ em ‘livro’
obaxiri ‘polegar’
s
/s/ em ‘senhor’
sapokay ‘galinha’
t
(em início de sílaba)
tawe ‘macaco prego’
/t/ em ‘também’
(em final de sílaba, não-solto)
parat ‘peneira’
u
/ / Não há em português
ibu ‘seu dedo’
u
/ / Não há em português
ipikuykuy ‘buraco’
w
/w/ em ‘pau’
wita’a ‘pedra’
x
/ / em ‘xícara’
xipat ‘bom’
y
/j/ em ‘pai’
daydo ‘tatu’
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CROFTS, Marjorie. Aspectos da Língua Mundurukú. SIL, Brasília: 1985.
DUBOIS, Danièle. “Lexique et Catégories Naturelles: Représentations ou Connaissances?” in Cahiers de
Praxématique. Nº 21, 105-124, Montpellier: 1993.
GONÇALVES, P. & SITOE, B. “Mudança Lingüística em Situação de Contacto de Línguas: O Caso do
Changana e do Português” In Travessias. Nº 1/99, Set. 2000, Rio de Janeiro.
LAKOFF, George. “Classifiers as a Reflection of Mind” in CRAIG, Colette (ed.) Noun Classes and
Categorization. John Benjamins Co. Amsterdam/ Philadelphia: 1986.
LAMBERTI, Flávia C. C. Empréstimos Lingüísticos no Português do Brasil: Uma Interpretação
Variacionista. Dissertação de Mestrado, UnB, 1999.
NUNES, Patrícia V. Princípio Icônico e Tratamento Lexicográfico: Aplicação à Língua Mundurukú.
Dissertação de Mestrado, UnB, 2000.
RODRIGUES, Aryon D. Línguas Brasileiras: Para o conhecimento das Línguas Indígenas. Loyola. São
Paulo: 1994.
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