O QUE SERÁ QUE SERÁ... O CONTEXTO SOCIETÁRIO ATUAL?
MOVIMENTOS SOCIAIS, EDUCAÇÃO E A (DES)CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA
Ivania Marini Piton1
O que será que será? Que todos os avisos não vão evitar;Porque todos os risos vão
desafiar...O que não tem governo nem nunca terá; O que não tem juízo.
(Chico Buarque, O que será, 1976)
RESUMO
O presente texto analisa os principais paradigmas que compõe nosso espaço-tempo. Para
isto, pinta um quadro contextual buscando uma análise inteligível e algumas indicações e
caminhos a partir de novas teorias e novas práticas sociais. Busca compreender a simbiose
existente entre as ideologias postas pelo neoliberalismo e o contexto que gerou e que vigora
na pós-modernidade; bem como suas implicações nos movimentos sociais, na emergência
da sociedade civil e nos processos educativos formais e não-formais. Para isso, o texto
coloca no centro das discussões os conflitos atuais, no caso, os conflitos e contradições que
constituem o contexto social, econômico, cultural, educativo e ideológico que tem posto as
instâncias educativas situações ambíguas, contraditórias a sua função histórico-social, além
de estar re-significado as noções, construções e lutas em torno da cidadania. É um contexto
que coloca em cena novos atores sociais, com projetos políticos também novos, que
mobilizam energias regulatórias e emancipatórias numa configuração societária em que o
neoliberalismo como forma de normatização econômica da globalização e a pósmodernidade com suas amplas mudanças culturais tem penetrado em todos os setores
sociais.
Palavras Chave: Educação, Movimentos Sociais, Cidadania.
Introdução
Frente à nova ordem mundial posta pela globalização, é comum olharmos para o
contexto atual, buscando alguma indicação que nos pareça segura para podermos
compreender os eventos e reflexões que permeiam estes tempos de desenvolvimento
científico e tecnológico acelerado, de mudanças culturais e políticas que vem atingindo
diretamente o mundo humanizado.
1
Doutoranda em Educação – UNICAMP/Campinas/SP
Professora dos cursos de graduação e pós-graduação da FACIPAL
R. Bispo D. Carlos, 462, Palmas/PR, CEP:85.555-000 / Fone: 46-263-1477 / E-mail: [email protected]
Partindo disso, refletiremos neste estudo a singularidade que a combinação entre
neoliberalismo, política que normatiza o processo de globalização e pós-modernidade mudanças sócio-culturais e epistemológicas,2 tem posto à nossa época, trazendo uma
ingente regressão em três âmbitos, a saber: a)No campo político: temos democracias, porém
sem norteios cidadãos e nem sensibilidade, voltadas unicamente para a lógica do mercado;
b) No campo social: vivenciamos uma regressão, desigualdades sociais sem precedentes
históricos; c) No campo econômico: concentração de riquezas e o significativo aumento no
nível de dependência e vulnerabilidade das nações frente ao capitalismo transnacional.
Exemplo disto nos traz Dowbor (2000) ao analisar a globalização e as tendências
institucionais atuais hoje, pois, não se pode mais falar em bolsões de pobreza, já que fariam
parte destes bolsões cerca de 3,2 bilhões de pessoas, 60% da humanidade, que sobrevivem
com uma média de 350 dólares por ano, isto quando o mundo produz 4.200 dólares por
pessoa/ano. E, enfatiza a gravidade da situação do Brasil neste contexto sem nenhuma
lógica redistributiva, pois somos o país que tem hoje a distribuição de renda mais absurda
do mundo:”...1% das famílias mais ricas do Brasil aufere 17% da renda do país, enquanto
os 50% mais pobres, cerca de 80 milhões de pessoas, auferem cerca de 12%.”(p.11)
O que o autor nos mostra é a escassez de instrumentos de regulação da economia
por parte do Estado, com uma grave polarização entre ricos e pobres.
Além da caótica situação sócio-econômica agravada pelas políticas neoliberais, o
que vem acontecendo em termos epistemológicos, decorrente do outro ingrediente
significativo na combinação neoliberalismo/pós-modernidade, não é menos avassalador,
pois vem marcando as questões epistemológicas com um viés anti-teórico, com o
enfraquecimento do pensamento crítico que tem levado a condescendência intelectual e a
resignação e re-significação política, reduzindo as teorias sócio-educacionais a cálculos
econômicos, renunciando a aspiração pelos conhecimentos em detrimento a vasta gama de
informações produzidas pela era da microeletrônica.
2
Ao caracterizarmos separadamente não queremos separar as mudanças sócio-culturais e epistemológicas das
mudanças econômicas vigentes, ao contrário, o que objetivamos é analisar a pós-modernidade e as políticas
neoliberais, buscando as interconexões de ambas na formação do novo cenário social, utilizando-as assim
como categoria analítica.
Assim, considerando que a educação está posta em favor dos padrões de
modernização industrial, como um sub-produto a serviço da lógica do capital, o presente
texto objetiva compreender o contexto atual e, dentro dele, os novos movimentos sociais,
os vínculos que os originaram e suas conexões com os processos educativos e formadores
de cidadania.
Por estarmos falando de um campo que começa a se construir, aqui apresentamos
uma pesquisa de cunho teórico-bibliográfico, que é parte de um trabalho mais extenso
sobre-processos de educação não-formal voltados a crianças e adolescentes, mas que não
será considerado neste momento pelas limitações do texto.
A Evolução do Contexto Societário
Em nossa análise partimos da pré-modernidade que predominou até a revolução
industrial, na qual a visão teocêntrica de mundo era o norteio das pessoas.
A modernidade: predominou a partir do século XVI até meados do século XX, a
qual foi fundada na crença na razão, no progresso e no poder emancipatório da ciência,
mudando a visão de mundo para antropocêntrica.
Tal período se subdivide em 3 fases: a) modernidade: fase em que as características
supra citadas da modernidade se expandem o que desencadeia as promessas de
emancipação dos sujeitos; b) modernismo: além dos aspectos pertinentes a arte, que não
trataremos neste momento, esta é a fase em que o capitalismo começa a ganhar vulto e as
promessas da modernidade começam a ser racionalizadas, ou seja começa-se a separar o
possível do impossível a ser realizado; c) modernização: fase excludente e concentratória do
capitalismo em que as leis da empresa saem de dentro de seus muros e passam a influenciar
as demais instituições sociais (Santos, 1997).
Pós-Modernidade: é mister que seja analisada como um período que supõe a
modernidade e suas conquistas, contradições e promessas – cumpridas ou não.
É caracterizado como uma civilização mundial de tendências pluralísticas e opções
superabundantes, mudanças tecnológicas aceleradas (telecomunicações e microeletrônica),
como uma sociedade em que a informação importa mais do que a produção e que traz
alteração nas relações políticas significativas ao contexto social.
Enfatizamos anteriormente em cada período o seu predomínio, isto porque a
sociedade não faz divisões estanques, ou seja na pré-modernidade estava plantada a
modernidade e a pós-modernidade, na modernidade permaneceram características da prémodernidade, bem como na pós-modernidade permanecem características de suas
antecessoras, isso coloca as sociedades o caráter híbrido, principal e fortemente nos países
da América Latina graças as suas economias periféricas
O Brasil, de modo específico, entra no cenário mundial como nação livre enquanto
o mundo, os países ricos principalmente, já viviam os processos de modernização, o que
nos impediu como Nação de passar pela construção dos processos anteriores.
O Neoliberalismo
Surge na década de 1940 nos países desenvolvidos como modelo político norteador
da globalização e para ir contra ao estado de bem-estar social. Configura-se na década de
70 com a crise e o colapso do socialismo, com a tese: o mercado é a lei social soberana.
No Brasil, os primeiros traços do neoliberalismo são encontrados no governo Collor,
em 1990, porém no governo de Fernando Henrique Cardoso que configura-se sua
implantação que coloca em cena um processo excludente com as seguintes características:
espaço para a configuração de grandes blocos econômicos; agravamento das desigualdades
sociais e da distribuição de renda; instabilidade da economia e a conseqüente falta de
recursos para projetos sociais; a diminuição do tamanho do Estado e a substituição pelo
Estado mínimo, no qual a sociedade civil vai progressivamente assumindo setores que antes
eram mantidos pelo Estado; intervenção de órgãos multilaterais de financiamento
estrangeiros, criação de acordos de livre intercâmbio.
Decorrente das referidas mudanças e com a configuração da Terceira Revolução
Industrial, fortemente marcada pela tecnologia de ponta e pelos processos inovadores de
gestão de produção, surgem novas e sofisticadas formas de acumulação de capital. Neste
processo o neoliberalismo tem procurado garantir a liberdade de ação do capital, e para isso
vem imprimindo uma nova forma de planejamento político, social, educacional e
principalmente econômico, enfatizando as imensas possibilidades de lucro a partir do livre
mercado e da competição.
Na perspectiva do neoliberal o livre mercado e a competição colaboram e
impulsionam maior eficiência e eficácia na produção, o que legitima a idéia de que o setor
público é o grande responsável pela ineficiência e ineficácia existentes nos serviços
públicos, e a saída para isso é a criação do Estado Mínimo.
A educação institucionalizada é considerada um dos mecanismos de regulamentação
e controle, pois mesmo sendo estatal não opera fundamentalmente através de mecanismos
diretos de controle social. Portanto, a estratégia neoliberal é retirar a educação
institucionalizada da esfera pública e submetê-la as regras do mercado, o que significa não
mais liberdade e menos regulamentação, mas precisamente mais controle e ‘governo’ da
vida cotidiana na medida em que a transforma em um objeto de consumo individual e não
de discussão pública e coletiva.
Os neoliberais procuram provar que a intervenção do Estado é o grande mal à esfera
pública, enquanto que a iniciativa privada, com sua lógica de mercado, tem as respostas
certas, prontas e práticas para administrar os diferentes setores sociais em crise.
O modelo capitalista neoliberal faz uso da educação para redefinir em termos
globais as esferas social, política e pessoal, interferindo nos mais complexos mecanismos
de significação e representação para tornar o clima favorável às políticas neoliberais. Nesta
redefinição a solução das questões que antes pertenciam às esferas públicas, sociais e
políticas são ressignificadas no âmbito da iniciativa individual e privada.
O neoliberalismo tem na educação um espaço privilegiado, porém além das
investidas na educação, na implementação de seus ideários, a classe hegemônica manipula
os desejos da população usando os meios de comunicação de massa, principalmente a
televisão e a mídia eletrônica.
É um cenário em que os sujeitos, desde sua tenra idade estão expostos as ideologias
neoliberais, seja na escola, seja através das múltiplas mídias acessíveis hoje, o que contribui
na formação, do que Gentili (1998, p.20), chama de “O modelo do homem neoliberal é o
cidadão privatizado, responsável, dinâmico: o consumidor.
Vive-se então na seguinte realidade: em termos de economia os sujeitos possuem
liberdade3, porém cultural e social e, em alguns pontos até individualmente, são
controlados, manipulados e espoliados dessa pretensa liberdade. Desta forma, a pseudodemocracia em que vivemos torna-se cada vez mais antagônica.
Movimentos Sociais
Considerando a complexidade societária vigente, analisamos agora os movimentos sociais,
buscando a (des)construção dos caminhos da cidadania, ainda que forçosamente de forma
superficial pelas limitações deste texto.
As questões que afloram neste momento são: Que projetos políticos norteiam os
movimentos sociais atuais? Até que ponto as energias emancipatórias da modernidade
foram compensadas pelas energias regulatórias4, atingindo os movimentos sociais e a
educação? As mudanças sócio-culturais da pós-modernidade tem atingido os movimentos
sociais? Podemos afirmar que o neoliberalismo como forma de normatização da
globalização e do capital transnacional tem imprimido novas características aos
movimentos sociais? Que vínculos existem entre movimentos sociais e formação da
cidadania?
Seja através dos meios de comunicação, seja através de diferentes pessoas ou
instituições da sociedade, temos presenciado múltiplas formas de comentários, depoimentos
ou discussões sobre ONGs, Terceiro Setor e a emergência da sociedade civil, porém, a
grande maioria das pessoas desconhecem as origens, conceitos e contextos sócio-históricos
que norteiam os novos movimentos sociais, os vêem mais pelo prisma de voluntarismo, de
humanitarismo e até mesmo de alívio de consciência frente as tantas desigualdades sociais
com as quais convivemos diuturnamente.
Estamos frente a uma nova e singular realidade, porém, estamos nos apercebendo
de sua complexidade, possibilidades e limites? Existem novas subordinações? Existem
novas resistências? O que há de singular neste singular contexto?
3
Liberdade esta questionável, pois se o cidadão é o cliente, só é livre quem tem dinheiro suficiente para a
referida liberdade.
4
Santos (1997)
A contradição que permeia o atual contexto sócio-histórico e que se traduz nos
movimentos sociais reside, como abordamos anteriormente, na simbiose entre
neoliberalismo e pós-modernidade, na qual o neoliberalismo quando justifica a mudança
das formas de acumulação fordista e taylorista para a forma de acumulação flexível
associa-se, de certa maneira, com a pós-modernidade em sua fluidez e aceleração,
mudando conceitos, e formas do ver e do agir sócio-cultural.
Através do descrédito das utopias e da desconstrução dos anseios coletivos
fortemente enfatizados pelo individualismo neoliberal e pela turbulência da vida pósmoderna, os conceitos dos grandes movimentos sociais representados pelos sindicatos,
considerados como movimentos da era industrial, fordista, foram transformados, ou melhor,
fragmentados em muitos tipos de movimentos combinando, de certa maneira, com a forma
de acumulação flexível do capital.
A partir disso, emergem os movimentos sociais atuais, assim originados segundo
Gohn (2000, p.243a) “As diferentes interpretações sobre o que é um movimento social na
atualidade decorrem de três fatores principais: primeiro: mudanças nas ações coletivas da
sociedade civil, no que se refere a seu conteúdo, suas práticas, formas de organização e
bases sociais; segundo: mudanças dos paradigmas de análise dos pesquisadores; terceiro:
mudança na estrutura econômica e nas políticas sociais”.
Alguns movimentos sociais, como o terceiro setor, são um campo em que
predominam mais indagações e reflexões do que conceitos, mas, o que se pode afirmar é a
importância dos movimentos sociais nos processos de transformação e de re-significação da
realidade, porém é necessário ampliar e socializar as análises, já que, estamos frente a um
campo de disputa, sendo que a direção dada aos movimentos precisa ser analisada e
questionada constantemente frente a atual segmentação dos movimentos e das práticas.
Por isso, Gohn (2000a), considera necessário estabelecer algumas diferenças que
subsidiem as análises dos movimentos: 1) a diferença entre movimento e grupo de
interesse, pois o interesse é só um dos componentes necessários, é mister considerar para
que seja um movimento social outros parâmetros, como identidade e realidade em comum;
2) quanto ao uso da palavra movimento, já que designa-se como movimento a ação
histórica de grupos sociais – uma categoria dialética, em oposição a estática. Não é um
movimento específico de classe, mas a classe em movimento, o que imprime ao movimento
um sentido ampliado, geral e outro restrito, específico. 3)modos de ação coletiva são
diferentes de movimentos sociais, poderão ser, estratégias de movimentos sociais. 4) referese a esfera na qual ocorre a ação coletiva, pois trata-se de um espaço não institucionalizado,
nem na esfera pública, nem na esfera privada, criando um novo campo político.
É com o intuito de analisar tais movimentos que caracterizaremos o terceiro setor e
as ONGs, dentre as múltiplas formas e modalidades de movimentos sociais que estão em
evidência e interferindo na sociedade.
Quando analisamos terceiro setor e ONGs: estamos falando de instâncias que
encontram-se entre o primeiro setor: Estado e segundo setor: Mercado, o que Gohn (2000b)
refere-se como um novo campo político, público-não-estatal.
O terceiro setor ganha significado a partir dos anos 90 quando agrega-se a ele um
outro termo: ONG – Organizações Não-Governamentais, as quais surgem ligadas a
movimentos raciais, de gêneros e ecológicos, sem perfis caritativos ou filantrópicos. No
Brasil, graças a ditadura militar, surgem ONGs que lutam contra tal regime, no campo de
organizações populares, que lutam pelos direitos e condições de sobrevivência,
contribuindo nesse processo pela reconstrução de sociedade civil, já que, trouxeram a
público novos personagens, novos atores sociais. Gohn (2001a).
Temos a partir de então, uma situação de intervenção direta através dos novos atores
sociais5, atuando nas áreas sociais, prestando serviços que eram antes prestados pelo
Estado. Não que o Estado tenha se retirado completamente, mas tem se eximido em nome
do Estado mínimo, sendo exatamente aí uma das brechas deixadas para as intervenções do
terceiro setor e das ONGs. Mas qual a intencionalidade que norteia estas intervenções? São
intervenções regulatórias ou emancipatórias? O que está em jogo são os interesses públicos,
ou interesses próprios, particularistas e economicistas?
Qual a intencionalidade do Banco Mundial por exemplo, que norteado por políticas
neoliberais se aproximou das ONGs, abriu diálogo com elas, e até as financia, apropriando-
5
Ver SANTOS, Boaventura de Souza & AVRITZER, Leonardo. Para Ampliar o Cânone Democrático. In:
SANTOS, Boaventura de Souza (Org.) (2002). Democratizar a Democracia.Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira.
se da linguagem das ONGs falando em desenvolvimento sustentável, educação popular,
etc.?6
Continuando nesta linha de pensamento, encontramos atualmente uma forma um
pouco mais segura de caracterizar o terceiro setor e analisar se existem limites entre estes e
as ONGs, pois no cenário atual, as ONGs não querem ser confundidas com terceiro setor e
vice-versa. De acordo com as leituras feitas em Gohn (2001 a, b, c; 2000a, b, c), Paoli
(2001) e Santos (2001), podemos estabelecer que neste novo campo político a divisão entre
terceiro setor e ONGs é, na prática uma divisão política, de intencionalidade.
Porém, vemos o terceiro setor como um espaço pouco político ou a-político, voltado
à filantropia, ou usando os termos que são mais visíveis no marketing que tais ações
estabelecem: cidadania empresarial e responsabilidade social.
Como Paoli (2001) argumenta: é um ativismo social com atores inesperados, os
empresários que movidos pela consciência da cidadania, saem dos muros das empresas
privadas, graças às imensas carências dos pobres brasileiros. Ou seja, dentre os movimentos
sociais7 alguns estão exercendo também a função de alívio de consciência, como uma
forma de justificar o lucro exorbitante de alguns em contraponto as inúmeras mortes que
temos diariamente no Brasil oriundas da fome, da miséria ou de doenças por elas
desencadeadas.
Porém, queiramos ou não, o terceiro setor com este perfil, não é mais ou apenas um
modismo, é uma realidade eminente. E, como Paoli (2001, p.414) coloca,...existe um lado
positivo da presença empresarial mobilizadora de energias de doações que se remetem
discursivamente à cidadania, e nada se poderia dizer contra elas se funcionassem dentro
de uma sociedade apoiada em garantias reais de direitos universalizados.
A autora (2001) diz, o problema é que considerando as relações de poder e o cenário
da desregulamentação estatal, a fala filantrópica da classe hegemônica brasileira se apóia
menos em uma clara lógica da cidadania e mais numa clara lógica de integração social,
como auto-preservação, para limitar o perigo e o risco que o quadro social atual apresenta.
6
Ver: ARRUDA, Marcos. ONGs e o Banco Mundial: é possível colaborar criticamente? In: TOMMASI,
WARDE e HADDAD. (2000) O Banco Mundial e as Políticas Educacionais. 3 ed. São Paulo: Cortez.
7
O terceiro setor ou as ONGs de filantrópicas, por exemplo.
Como o espaço das ONGs é aberto, é mister analisarmos o que Gohn (2000d)
chama de ONGs militantes e cidadãs dos anos 90, que herdaram a cultura participativa,
identitária e autônoma das décadas de 70/80, estas ONGs, similares aos movimentos
populares, se fundamentaram na conquista de direitos, lutaram pela igualdade com justiça
social, de certa forma sendo um componente na construção da democracia. Por outro lado
com ideologia semelhante ao terceiro setor, Gohn (2000b) aponta para as ONGs
propositivas, as quais tem estratégias de ação mercadológicas. São ONGs que também
estão na disputa nas relações de poder e que precisam ser consideradas porque fazem parte
da luta pela hegemonia, nesta complexa conjuntura que dá espaço para essas novas formas
de espaços públicos
Ainda, considerando os novos cenários, é mister fazermos uma ligação do abordado
até aqui com outro paradigma presente na atualidade que é a noção de sociedade civil, e
como esta se relaciona em tal cenário.
Mas o que é sociedade civil? Apesar do termo sociedade civil aparecer em pauta nas
discussões depois dos movimentos sociais apontados, é ela, sociedade civil, a grande
protagonista deste contexto hoje. Segundo Bottomore (1988), nas obras de Marx a
sociedade civil era retratada como o terreno do egoísmo individual, pois, considerava uma
separação desta com o Estado. Gramsci, por sua vez, continua a usar a mesma categoria
para analisar a sociedade privada, mas dá um enfoque diferenciado a sociedade civil,
considera-a não simplesmente como uma esfera de necessidades individuais, mas de
organizações que possuem o potencial de auto-regulação racional e de liberdade.
Bottomore (1988) aponta que em Gramsci a sociedade civil é o conjunto de
organismos comumente chamados de privados onde a hegemonia e o consentimento
espontâneo são organizados. Contrariamente de Marx, Gramsci insiste na inter-relação
entre ambos, pois, conquanto o uso cotidiano da palavra Estado possa referir-se a governo,
o conceito de Estado inclui elementos da sociedade civil. O Estado concebido de forma
estrita como governo, é protegido pela hegemonia organizada da sociedade civil, ao passo
que a hegemonia da classe dominante é fortalecida pelo Estado. O Estado, porém, tem uma
função ética ao tentar educar a opinião pública e influencia a esfera da economia.
Gramsci é visto como um marxista de notória coerência, isso se deve em grande
parte pela maneira como se posicionava contra a estatolatria. Neste sentido, Bottomore
(1988) argumenta que em qualquer sociedade concreta, as linhas demarcatórias entre
sociedade civil e Estado podem ser apagadas, mas Gramsci se posiciona contra as
tentativas, de eqüalizar Estado e sociedade civil, admite apenas um papel do Estado no
desenvolvimento da sociedade civil, mas não o culto ao Estado.
Também trabalhando com os conceitos de Gramsci, Semeraro (2001), busca
resgatar o verdadeiro conceito de sociedade civil e diz que esta é uma arena privilegiada da
luta de classes, uma esfera do ser social onde se dá uma intensa luta pela hegemonia, o que
a configura, não o outro do Estado, mas um de seus inelimináveis constituintes.
Com este conceito Coutinho (Apud: Semeraro, 2001), trás as concepções distorcidas
de sociedade civil que se processaram nos anos da ditadura militar no Brasil, nas quais tudo
o que viesse do Estado era mau e da sociedade civil era bom. Desconstrói tal visão
exemplificando que a sociedade civil pode ser hegemoneizada pela direita e isso não é bom,
bem como o Estado pode implementar políticas originárias das classes subalternas o que
seria positivo.
Por isso aponta a necessidade de uma profunda análise histórica das correlações de
forças presentes em cada momento. Assim, o conceito posto por Semeraro (2001) contribui
para a análise crítica de uma das piores vertentes da ideologia neoliberal, aquela que utiliza
a terminologia de esquerda, herdada dos combates contra a ditadura militar, porém
embasada num conceito apolítico de sociedade civil.
Através do conceito de sociedade civil em Gramsci é possível analisarmos os
movimentos sociais atuais a partir de suas intencionalidades e projetos, tecendo um divisor
entre os movimentos que realmente consideram as práticas sociais dos homens e mulheres
concretos, suas necessidades e expectativas, com os movimentos sociais de cunho
mercadológico, justificador da exclusão social.
Educação e Cidadania
Frente aos ingentes problemas vividos na educação formal, atualmente a idéia da
relação escola/sociedade vem ganhando força, isso porque apesar do desenvolvimento que
o mundo vem experimentando nas últimas décadas, a miséria está atingindo uma proporção
extremamente significativa do mundo.
Hoje, 20% das pessoas que vivem nos países mais ricos consomem 86% dos bens
produzidos pela humanidade. Os 20% mais pobres não consomem mais do que 1,3% do
total. E o mais importante a observar foi a acelerada concentração de renda e o aumento da
pobreza verificada nas últimas décadas. Em 1960, a diferença de renda entre os 20% mais
ricos e os 20% mais pobres era de 30 para 1; em 1995, essa diferença atinge a proporção de
85 para 18.
Queiramos ou não os dados sobre o alcance das desigualdades sociais vigentes que
nos parecem estarrecedores atingem diretamente os processos educativos e redimensionam
os conceitos de educação e de cidadania, pois atingem e desconstroem o discurso de
igualdade e equidade que ambas fizeram e fazem.
Somando-se a isso, as sociedades vivem uma intensa desentruturação de instituição
familiar, nos moldes aceitos pelas sociedades tradicionais, o que está diretamente ligada
com a crise financeira e com as mudanças culturais nos valores que permeia a postura ética
dos sujeitos. Considerando ainda que a evolução da ciência e da tecnologia que mudou os
processos de trabalho e cognitivos além de ser grande responsável pela exclusão social
vigente, deixando a escola a margem dos avanços, pois, a aceleração nos diferentes
processos e instâncias sociais não propiciam que os entravados e burocráticos sistemas
educativos sequer acompanhem tal evolução.
Estes fatos supra citados são significativamente responsáveis pela crise na educação
formal, pois a sociedade passou a atribuir mais funções à escola do que seu papel formal
voltado aos conhecimentos9, a escola, por sua vez não tem preparo e nem estrutura para
abarcar o aumento das exigências sociais, e o Estado, ainda norteado por políticas de cunho
neoliberal, está afastado de suas funções de mantenedor da uma escola pública que garanta
os direitos mínimos do cidadão.
8
9
BAVA, Silvio Caccia.. Cadernos ABONG. ONGs Identidades e Desafios. nº 27, maio/2000.
No momento a escola vive uma crise paradigmática (Santos, 1997) está entre o relativismo cultural da pósmodernidade e a transmissão e produção de conhecimentos, entre a formação para a cidadania e a integração
no mundo do trabalho e o assistencialismo da Bolsa Escola.
Segundo SAVIANI (1997) isto foi posto pela LDB 9.394/96 que, com sua
orientação neoliberal e políticas claudicantes, pois combinam um discurso que reconhece a
importância a educação com a redução dos investimentos na área e apelos à iniciativa
privada e organizações não-governamentais, como se a responsabilidade do Estado em
matéria de educação pudesse ser transferida para uma etérea ‘boa vontade pública’.
Ou seja, vivemos uma realidade sócio-educacional caótica produzida pelo
capitalismo neoliberal, o que coloca a sociedade frente a necessidade eminente de
movimentos sociais críticos, militantes, emancipatórios, com capacidade de questionar e
colaborar efetivamente na transformação do atual contexto, pois o que nos parece é que
hoje, através dos movimentos sociais a sociedade sabe que tem direito de ter direitos mas
vem sendo regulada para não encontrar as estratégias e reivindicar tais direitos.
Tal regulação passa pelas ideologias pós-modernas, pelas políticas neoliberais, pela
mídia, pelas igrejas e até por alguns movimentos sociais. Porém, passa também pela
educação formal, já que esta é a grande reguladora da sociedade.
A escola é a única instituição social que tem audiência obrigatória prevista em lei e
atinge os sujeitos desde a mais tenra idade. Mas o que tem feito para a construção da
cidadania? O que temos de concreto é um sistema escolar dualista: boas escolas para
poucos e escolas fracas para muitos, refletindo e perpetuando as desigualdades sociais. Esse
é um processo é oriundo das sociedades capitalistas, nas quais o conhecimento é
monopolizado como garantia de sobrevivência e renovação do sistema.
E é nesta situação educacional neoliberal e pós-moderna, que o discurso
educação/sociedade necessita efetivar-se, pois a sociedade civil precisa participar,
comprometer-se, intervir com os sistemas educativos formais, assumindo-se constituinte do
contexto e de suas mudanças.
Obviamente a instituição escolar não é a única responsável pelas desigualdades
sociais e culturais, mas sua ação de neutralidade, denuncia o pouco que tem feito para o
enfrentamento da questão.
Temos que saber fazer uma diferenciação entre os movimentos sociais que são
reguladores, mantenedores do sistema e desconstrutores da cidadania com os movimentos
sociais que efetivamente contribuam para a construção de sujeitos e sociedades cidadãs.
Não mais fazendo o discurso da estotolatria, como nos coloca Gohn (2001c), mas
buscando construir uma nova sociedade, norteada por novas relações sociais, reorganizando
a sociedade civil de uma forma diferente, a partir de singularidades, desejos e aspirações
construir novas práticas coletivas.
Concluindo... Mas, e a Educação Não-Formal?
Como concluir um tema imensamente aberto, um constructo que apenas se iniciou.
Em cada tópico buscamos analisar as teias que foram sendo tecidas ora pelo poder
hegemônico representado pelas minorias, ora pela sociedade civil voltadas aos interesses
das maiorias excluídas, e como isso contribuiu com as mudanças no contexto social.
Buscamos as conexões entre neoliberalismo e pós-modernidade com a configuração
do processo de globalização mundial, as mudanças nas formas de regulação do capital, e a
conseqüente fragmentação dos movimentos sociais com a educação e com os processos de
(des)construção da cidadania. Porém, este texto levantou mais indagações do que conceitos
ou respostas, indagações estas que fazem parte da tentativa de construção em um campo
complexo, que gera muitos embates e em constantes mutações.
Nesse sentido é mister abordarmos as questões relativas a Educação Não-Formal na
construção da cidadania, pois é um campo que começa a ter sua importância reconhecida,
não só para quem efetivamente é um interlocutor desta educação, mas também como forma
de aprendizado para a educação formal através dos pressupostos que norteiam os processo
de educação não-formal, já que, segundo Gohn (2001a), a cidadania é o objeto principal.
Gohn (2001a), diz que, um dos supostos básicos da educação não-formal é o de que
a aprendizagem se dá por meio da prática social. É a experiência das pessoas em trabalhos
coletivos que gera um aprendizado. A produção de conhecimentos ocorre não pela absorção
de conteúdos previamente sistematizados, objetivando ser apreendidos, mas o
conhecimento é gerado por meio da vivência de certas situações-problema.
Pensando sob este prisma e considerando os processos de intersubjetividade
possíveis na educação não-formal, nossa preocupação volta-se para a postura
epistemológica das escolas que colocam-se numa espécie de pedestal histórico.
A escola precisa redimensionar sua Função Social, a partir da prática cotidiana dos
homens e mulheres concretos, a partir da vida real, do cotidiano de cada sujeito em
particular e de seus anseios e necessidades coletivos. Para isso os educadores precisam estar
comprometidos com sua práxis, entrelaçando de forma histórico-contextual, consciente e
crítica a escola com a comunidade educativa10, o que tiraria a escola de dentro de seus
muros e a colocaria interagir com uma sociedade mais ampla e complexa, condição
premente para formar o homem e a mulher do nosso tempo.
REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO
BOTTOMORE, Tom. (1988). Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, Editor.
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GENTILI, Pablo. (1998). A Falsificação do Consenso. Petrópolis: RJ: Vozes.
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Gohn (2001a), diz que quando falamos de comunidades educativas devemos incluir todos os atores e
agentes sociais envolvidos no processo. Não só pais, professores, funcionários e representante de alunos, mas
também sindicatos da categoria, entidades de moradores...
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O QUE SERÁ QUE SERÁ... O CONTEXTO SOCIETÁRIO ATUAL