RAUL CASTRO BRASIL
Professor - CLF
Análise das obras
UVA 2015.1
ENSAIOS
30ª Edição – 2014
COORDENAÇÃO EDITORIAL:
COORDENAÇÃO GERAL:
AUTOR:
ASSISTÊNCIA EDITORIAL:
COORD. DE PRODUÇÃO GRÁFICA :
COORDENAÇÃO DE REVISÃO:
EDIÇÃO DE ARTE:
CAPA:
IMPRESSÃO:
ACABAMENTO:
Francisco Lúcio Pontes Feijão
Carlos Albuquerque
Raul Castro Brasil
Silvana Cândido
Auricélio Rodrigues Vasconcelos
Francisca Marguith Fernandes Madeira
Antonio Johnyslei Alves Sampaio
333 Propaganda
Gráfica CLF
Gráfica CLF
Raul Castro Brasil
Resumo das Obras - UVA 2015.1 – 30ª edição – Sobral:
CLF, 2014
Conteúdo: Literatura Brasileira - Ensaios
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2014
Impresso no Brasil
Apresentação
Caros alunos,
Se hoje sei Literatura, é porque estive escalando nos ombros de gigantes. Passei a
amar Literatura nas beiras de um terceiro ano que me predestinava a um curso de
Direito, comecei a ter professores que, quando entravam em sala, aos poucos, em
doses moderadas, mostravam-me um pouco do saber literário.
E foi nas salas do mesmo colégio que hoje ensino, que me apaixonei
perdidamente pelas letras, porque tive professores que ensinavam com tanto amor,
afinco e destreza, que aquilo me cativou, havia horas que eu não sabia o que mais me
encantava, o conhecimento que detinham ou amor com que ensinavam.
Eles me concediam a ponta do iceberg, e me convidavam a mergulhar e descobrir
o que havia por baixo, e lá ficava a contemplar a maravilha de saberes que estavam
além de uma aula. Hoje tenho a honra de estar ao lado deles em profissão.
Não estou tentando aqui convencê-lo a fazer Letras, mas se quiserem tentar....
Enfim, tento a cada dia de meu magistério transbordar esse mesmo amor,
dedicação e saber, foi por isso que surgiu esse material, apresento-lhe aqui uma ponta
do iceberg, um pouco dos cinco livros que a tão almejada UVA nos indica, o que não
os impedem de conhecê-los melhor, de estudá-los, sem ficar na loucura de qual
pergunta a questão quererá saber. Desfrutar um prazer imenso que é ler na íntegra os
romances românticos, naturalistas e pré-modernistas. Ninguém faz cálculos por
prazer, ninguém faz equações por amar Química, mas ler um bom livro, um bom
romance...
Talvez tenha sido por isso que optei pelas letras, porque descobri que, nas artes,
pode-se fazê-las com imenso prazer em ler, descobrir e estudar.
Raul Castro.
Sumário
• ROMANTISMO
I. Inocência (Visconde de Taunay) .................................................... 10
II. Iaiá Garcia (Machado de Assis) ..................................................... 28
• REALISMO e NATURALISMO
III. A Carne (Júlio Ribeiro) ................................................................. 73
• PRÉ-MODERNISMO (1902)
IV. Olhai os Lírios do Campo (Érico Veríssimo) .................................... 94
V. Menino do Engenho (José Lins do Rego) ....................................... 94
O Romantismo
UVA 2015.1
Tendo a Uva indicado dois livros românticos, não podemos deixar de fazer algumas
breves considerações dessa escola literária que irá revolucionar o modo de se fazer
Literatura.
Grande é o número de características que marcaram o movimento romântico,
características essas que, centradas sempre na valorização do eu e da liberdade, vão-se
entrelaçando, umas atadas às outras, umas desencadeando outras e formando um
amplo painel de traços reveladores.
Para aqui discuti-las, vamos seguir os aspectos considerados os mais significativos
por Domício Proença Filho em sua análise dos estilos de época na Literatura.
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Contraste entre os ideais divulgados e a limitação imposta pela realidade vivida.
Imaginação criadora.
Subjetivismo.
Evasão.
Senso de mistério.
Consciência da solidão.
Reformismo.
Sonho.
Fé.
Ilogismo.
Culto da natureza.
Retorno ao passado.
Gosto do pitoresco, do exótico.
Exagero.
Liberdade criadora.
Sentimentalismo.
Ânsia de glória.
Importância da paisagem.
Gosto pelas ruínas.
Gosto pelo noturno.
Idealização da mulher.
Função sacralizadora da arte.
Acrescentem-se a essas características os novos elementos estilísticos introduzidos
na arte literária: a valorização do romance em suas muitas variantes; a liberdade no uso
do ritmo e da métrica; a confusão dos gêneros, dando lugar à criação de novas formas
poéticas; a renovação do teatro.
Análise das Obras | UVA 2015.1
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O Romantismo Brasileiro
Considera-se a obra Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães,
publicada em Paris em 1836, como o marco inicial do Romantismo brasileiro.
A poesia romântica brasileira passou por diferentes momentos nitidamente
caracterizados. Essas diferentes vagas são apontadas pelos estudiosos, que agrupam os
autores segundo as características predominantes em sua produção, dando destaque a
essas tendências. Embora alguns críticos estabeleçam quatro, cinco e até seis grupos,
observa-se que os aspectos apresentados em relevo podem ser assim reunidos:
1º grupo – chamado de primeira geração romântica – em que se destacam duas
tendências básicas: o misticismo (intensa religiosidade) e o indianismo. A religiosidade
é marcante nos primeiros românticos, enquanto o indianismo se torna símbolo da
civilização brasileira nos poemas de Gonçalves Dias. Esse espírito nacionalista fez
desabrocharem também poemas cuja temática explorou o patriotismo e o saudosismo.
Nomes que marcaram o período: Gonçalves de Magalhães, Araújo Porto Alegre,
Gonçalves Dias.
2º grupo – a segunda geração romântica – por seu intimismo, tédio e melancolia,
abraçou o negativismo boêmio, a obsessão pela morte, o satanismo. É conhecida como
geração byroniana (numa alusão ao poeta inglês Lord Byron, um de seus principais
representantes) e sua postura vivencial considerada o mal do século, por se tratar não
apenas de um fazer poético, mas de uma forma autodestrutiva de ser no mundo.
Destaques no período: Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela,
Junqueira Freire. Algumas das obras de Castro Alves permitem enquadrá-lo no período.
Sua visão da mulher, marcada pela sensualidade, distancia-se, porém, do lirismo
idealizante que caracterizou as demais produções de poesia amorosa do período.
3º grupo – a terceira geração romântica –, voltada para uma poesia de
preocupação social. Conhecida como condoreira (tinha como emblema o condor, ave
que constrói seu ninho em grandes altitudes) ou hugoniana (numa referência a Vitor
Hugo, escritor francês cuja obra de cunho social marcou o período), sua linguagem
adquiria um tom inflamado, declamatório, grandiloquente, carregada de transposições
e de figuras de linguagem. Seus principais representantes, Castro Alves e Tobias Barreto,
têm sua produção associada ao movimento abolicionista e republicano,
respectivamente.
O Romance Romântico
Destaque especial teve no movimento romântico a narrativa romanesca. Foi por
meio dos romances que a Europa marcou seu reencontro com o mundo medieval em que
repousavam as raízes das modernas nações europeias. Ali floresceram os ideais
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Análise das Obras | UVA 2015.1
cavalheirescos que resgatavam na origem heroica a dignidade da pátria e se expressaram
nos romances históricos. Encontram-se também as narrativas apoiadas no embate entre
o Bem e o Mal, com a vitória do primeiro. No Brasil, o romance histórico se fez indianista
na busca das raízes da nacionalidade (não esqueçamos que a independência há pouco
alcançada legou aos intelectuais românticos o compromisso de construir a identidade
nacional).
O primeiro romance bem-sucedido na história da Literatura brasileira foi A
moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, publicado em 1844. Seu reconhecimento
se deve ao fato de ter sido a primeira narrativa centrada em personagens brasileiros, com
ambiência local.
Os romances do período romântico foram construídos em torno de quatro grandes
núcleos:
i os romances históricos, voltados para as relações que fizeram o Brasil colônia;
i os romances indianistas, com a intenção de estabelecer nossas raízes históricas,
construiu-se em torno da idealização da figura do índio, transformado em herói
nacional;
i os romances urbanos, com ênfase nas relações amorosas, foram o espaço de
revelação das preocupações burguesas, sua noção de honra e o significado do
dinheiro nas relações estabelecidas;
i o romance sertanista ou regionalista, voltado para o mundo rural, veio a ser a
abertura para uma das temáticas mais significativas a desenvolver-se na literatura
brasileira nos movimentos literários que se seguiram ao Romantismo.
Embora encontrados em muitos dos escritores do período, os romances assim
caracterizados foram preocupação especial de José de Alencar, que se propôs a, através
de sua obra, representar o Brasil em todas as suas facetas.
Iaiá Garcia, de Machado de Assis, enquadra-se no romance urbano, enquanto
Inocência, enquadra-se no romance regionalista, mais a frente entenderemos melhor.
Análise das Obras | UVA 2015.1
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Análise da Obra
Inocência
Visconde de Taunay
UVA 2015.1
ELEMENTOS DA NARRATIVA
Foco narrativo
O ponto de vista externo define o narrador de Inocência como um narrador
onisciente, que é tendência dominante na narrativa romanesca do século XIX. É o
modelo clássico, que confere plenos poderes a uma só focalização: tudo é apresentado a
partir de um único ponto, com onisciência e onipresença. Esse é, sem dúvida, um modelo
narrativo que atende às necessidades do romance regionalista, que focaliza a vida, os
costumes, os valores sociais a partir de um único ponto de vista.
Temática central e outras características
A temática central é o amor impossível entre o jovem Cirino e a jovem
Inocência, no entanto, podemos encontrar outras temáticas:
Sofrimento – A caminhada do sertanejo em busca de seus objetivos através de
longas distâncias, sendo que no percurso, existe a dificuldade do abrigo.
Simplicidade – É claramente observada através do comportamento e diálogos
entre as personagens típicas.
Contradições – Compara-se entre o jeito de ser do sertão e a forma avançada da
Europa (Pereira e Meyer).
Amor impossível – Um amor tão puro e verdadeiro que por falta de condições de
existência preferiu a morte, ou pelo menos, foram levados a ela.
Honra – Pereira para manter a honra familiar, sacrificava sua própria filha, já que sua
palavra estava acima de tudo.
Beleza – É retratada através da paisagem do sertão e da jovem Inocência.
Escravidão – É representada por Maria Conga e outros.
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Análise das Obras | UVA 2015.1
Tempo
Cronológico com flashback.
A data vai de 1860, quando Cirino está indo à casa do Leal e termina em 1863,
quando Meyer, apresenta à comunidade científica a borboleta recém descoberta.
No entanto, Inocência morre em 1861, portanto, o romance do casal tem duração
de 1 ano e 1 mês.
Análise da obra
Taunay tinha um agudo senso de observação e análise, aliado a uma vivência
riquíssima da paisagem e da História do Brasil. Foi um dos primeiros prosadores
brasileiros a emprestar a linguagem coloquial regional em suas obras.
Na época em que o autor se inspirava para escrever Inocência, publicado em 1872,
acontecia no país a aprovação da Lei do Ventre Livre, onde todos os filhos de negros que
nascessem à partir daquela data seria livre da escravidão brasileira.
É notável como o narrador nos apresenta o choque de duas concepções de mundo
extremamente diversas. Pereira, homem do sertão, preso a padrões estritos de
comportamento, mantém sua bela filha Inocência reclusa.
O autor conta com franqueza seu relacionamento com uma jovem que conheceu no
Mato Grosso, a partir dai percebemos a origem mais íntima da personagem-título de
Inocência, protótipo da mulher sertaneja imaginada pelo autor.
Foi um autor além da maioria dos romancistas, entre os quais se incluíam alguns que,
embora também usassem temas sertanistas, não tinham realmente muita experiência do
interior brasileiro. Taunay, ao contrário, escrevia sobre o que conhecera. Aliás o próprio
Taunay se manifestou sobre isso, embora não diminuísse de modo algum a importância e
o valor dos outros romancistas.
Nesse romance, o rigor do observador militar que percorreu os sertões mistura-se à
capacidade imaginativa do ficcionista. O resultado é um belo equilíbrio entre a ficção e a
realidade, raramente alcançado na literatura brasileira até então.
São trinta capítulos e um epílogo, em que poucos personagens se movem. Esses
personagens podem ser agrupados de acordo com a posição que lhes caberá no
desenrolar da obra.
Inocência pode ser considerada a obra-prima do romance regionalista (Sertão do
Mato Grosso) do nosso Romantismo. Seu autor, Visconde de Taunay, soube unir ao seu
conhecimento prático do país, adquirindo em inúmeras viagens na condição de militar, o
seu agudo senso de observação da natureza e da vida social do Sertão brasileiro.
A qualidade de Inocência resulta do equilíbrio alcançado entre os aspectos ligados
ao conceito de verossimilhança – que muitas vezes chegava a comprometer a qualidade
de obras regionalistas –, como a tensão entre ficção e realidade, a linguagem culta e a
linguagem regional e a adequação dos valores românticos à realidade bruta do nosso
Sertão.
Ao lado dos acontecimentos, que constituem a trama amorosa, há também o
choque de valores entre Pereira e Meyer, um naturalista alemão que se hospedara na casa
Inocência |Visconde de Taunay
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de Pereira à procura de borboletas, evidenciando as contradições entre o meio rural
brasileiro e o meio urbano europeu.
A atração pelo pitoresco e o desejo de explorar e investigar o Brasil do interior
fizeram o autor romântico se interessar pela vida e hábitos das populações que viviam
distante das cidades. Abria-se assim, para o Romantismo, o campo fecundo do romance
sertanejo, que até hoje continua a fornecer matéria à nossa literatura.
É o romance sertanista onde mais se percebe a divisão entre o enredo central folhetinesco e ultra-romântico - e as histórias secundárias, quase todas realistas.
O que se pode observar
Este mesmo descompasso é visível entre o tom trágico da intriga amorosa e as
passagens hilariantes das tramas paralelas.
Apesar do excesso melodramático final, os caracteres de Cirino e Inocência nos são
mostrados de forma muito mais verossímil que os personagens de outros romances
românticos da época.
Há uma forte crítica de Taunay em relação ao implacável patriarcalismo do mundo
rural. O curioso é que durante quase toda a narrativa, o autor ironiza a visão machista,
como nesta cômica exposição de Pereira sobre o comportamento das mulheres: Eu
repito, isto de mulheres, não há que fiar. Bem faziam os nossos do tempo antigo. As
raparigas andavam direitinhas que nem um fuso... Uma piscadela de olho mais duvidosa,
era logo pau. (...) Cá no meu modo de pensar, entendo que não se maltratem as
coitadinhas, mas também é preciso não dar asas às formigas...
No final do relato, contudo, esta crítica amena e humorística transforma-se quase
em um panfleto contra o domínio absoluto que, dentro do código patriarcalista, os pais
tinham sobre os filhos.
Importante ressaltar que o simplório Pereira, além de possuir boa índole, ama
desesperadamente a filha. Portanto, também ele nos é mostrado como vítima dos
costumes patriarcais.
Meyer, o naturalista alemão, sábio das coisas da ciência, porém incapaz de perceber
a estreiteza moral do mundo em que está metido, é um dos protagonistas mais
engraçados da ficção brasileira do século XIX. Suas trapalhadas são impagáveis.
O romance apresenta uma curiosa mescla de linguagem culta urbana e termos
regionais (arcaísmos, corruptelas, provérbios, expressões típicas). Estes "regionalismos",
na sua maioria, são explicados pelo próprio autor, em notas ao pé das páginas. O
resultado dessa junção é uma prosa bastante viva, colorida e com acentos humorísticos
na sua formulação.
Espaço
A fazenda de Pereira é localizada nos limites de Mato Grosso, São Paulo, Goiás e
Minas Gerais.
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Inocência |Visconde de Taunay
Personagens
Martinho dos Santos Pereira (Pereira) – Homem de mais ou menos 45 anos,
gordo, bem disposto, cabelos brancos, rosto expressivo e franco. Pessoa honesta,
hospitaleiro, severo e não trocava a sua palavra nem pela vida.
Inocência – Tem uma grande beleza e delicadeza de traços, nem parece moça do
sertão. Isso vai ser fundamental no despertar da paixão entre ela e Cirino e também na
compreensão da atitude que ela irá tomar posteriormente, afinal, de alguma forma, ela
não era uma típica moça do sertão. Essas características são importantes para a
compreensão do desenrolar da história. Inocência tem cabelos longos e pretos, nariz
fino, olhos matadores, beleza deslumbrante e incomparável, faces mimosas, cílios
sedosos, boca pequena e queixo admiravelmente torneado. Enfim, uma jovem de beleza
deslumbrante e incomparável. Simples, humilde, meiga, carinhosa, indefesa e
eternamente apaixonada.
Maria Conga – Escrava de Pereira que cuidava dos afazeres domésticos. Escura,
idosa e malvestida. Usava na cabeça um pano branco de algodão.
Major Martinho de Melo Taques – Homem que merecia influência na vila de
Santana do Parnaíba: Juiz de paz e servia de juiz municipal. Participou da Guerra dos
Farrapos no Rio Grande do Sul. Era comerciante e gostava de contar casos, ou seja,
"prosear".
Manecão – alto, forte, pançudo e usava bigode. Enfim, vaqueiro bruto do sertão.
Pessoa fria que matava, se fosse preciso, em defesa de sua honra.
Antônio Cesário – Padrinho de Inocência. Homem respeitado, de palavra, honesto
e justo. Fazendeiro do sertão.
Guilherme Tembel Meyer – alto, rosto redondo, juvenil, olhos claros, nariz
pequeno e arrebitado, barbas compridas, escorrido bigode e cabelos muito louros.
Pessoa de boa indole, esperto em sua função e simples ao pronunciar as sua palavras.
Admirador da natureza e da beleza de Inocência.
José Pinho (Juque) – Ajudante de Meyer. Era muito intrometido em conversas
alheias. Pessoa boa e de confiança de seu patrão.
Cirino Ferreira Campos – Tinha mais ou menos 25 anos, presença agradável, olhos
negros e bem rasgados, barbas e cabelos cortados quase à escovinha. Era tão inteligente
quanto decidido. "Doutor" Cirino era caridoso, bom doava a própria vida em defesa do
amor.
Tico – Era um anão que tinha um defeito de nascença na fala, quando falava
demorava para dar o recado, não era criado da casa, morava a quase 40 léguas do rio
Sucuriú e lá morava com sua mãe, mas vivia pelas terras de Pereira com Inocência, o
Mineiro chegara a dizer que era o “cachorro de Inocência”, com a doença da moça, o
Inocência |Visconde de Taunay
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anão se recusara a voltar para casa para ficar com ela.
A partir dele que Pereira descobrirá que é Cirino e não Meyer que está encantado
por sua filha.
Enredo
I – O sertão e o sertanejo
É um capítulo pautado em descrições dentro de uma linguagem onde a valorização
da natureza é exaltada ao máximo, o narrador nos põe a par da localização da fazenda de
João Pereira na qual o descreve como homem hospitaleiro e bom que acolhe com carinho
aqueles que chegavam em busca de conforto e comida, até porque sua fazenda era
localizada nos arredores de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso até o rio
Sucuriú onde depois começa o sertão bruto, interessante notarmos que toda a descrição
vai sendo feita de cima para baixo, do chão, sua vegetação aos animais, carcarás e
urubus, depois se volta ao sertanejo, alguém que viaja e até dialoga com alguém em
busca de informações.
Curiosidades do capítulo I
1 – Nesse capítulo também fala de algumas características do sertanejo: “O
legítimo sertanejo, explorador dos desertos, não tem, em geral, família.
Enquanto moço, seu fim único é devassar terras, pisar campos onde
ninguém antes pusera pé, vadear rios desconhecidos, despontar
cabeceiras e furar matas, que descobridor algum até então haja visto”
II – O viajante
15 de julho de 1860, um rapaz de pelo menos vinte e cinco anos caminha em direção
à casa do senhor Leal na decadente vila de Sant'Ana, no trajeto encontra um senhor que
o interrompe perguntando-lhe para onde ia e de onde era.
O senhor se diz mineiro, o outro paulista, mas criado em Minas Gerais, então uma
prosa agradável começa, nisso, Cirino se apresenta como doutor, tirou carta de farmácia
e preconiza obrar milagres de curar, aquilo caiu como uma luva para o senhor que
procurava alguém que curasse a febre de sua filha que há dez dias sofria, convida-o para
a fazenda dizendo que faria bom negócio e teria lucros, pois doente era o que não
faltava.
Nisso, o “doutor” resolve abrir o jogo, possui uma dívida de jogo, sua maior raiva
consiste em ter pegado em cartas, em ter se envolvido com apostas, Pereira o aconselha e
novamente o convida, alega que se ele for ter com os doentes e todos pagarem como
devem, teria como pagar facilmente tal dívida, ambos partem.
O narrador então se prepara para nos explicar melhor quem era Cirino no capítulo
seguinte.
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Inocência |Visconde de Taunay
Curiosidades do capítulo II
1 – Quando se apresentam dizem seus nomes completos:
Martinho Pereira dos Santos e Cirino Ferreira de Campos
2 – Febre no livro e chamado de Sezões.
3 – A dívida de Cirino era de trezentos mil-reis, o equivalente a 2.500 reais.
4 – A dívida fora adquirida com Totó Siquiera
III – O doutor
Cirino nascera em São Paulo na Vila de Casa Branca, era filho de um boticário onde
conviveu com o mesmo até seus dozes anos, depois fora mandado para seu tio e
padrinho na cidade de Ouro Preto,
Esse tio aceitou com muito mal grado sua estadia lá, mas pagou-lhe estudos,
quando o padrinho morrera, procurou-se sua riqueza, e nada, tudo conversa e
enganação.
Cirino passou a andar como curandeiro e aos poucos ganhou o título de doutor, era
sempre bem tratado a quem atendia e nisso foi se especializando, lendo livros e com a
experiência que ia detendo de consulta em consulta.
IV – A casa do mineiro
Ambos chegam na fazenda, Pereira chega logo perguntando por Inocência e a
escrava Conga alega que ainda está com febre, Cirino andava meio acabrunhado, mas
Pereira fez logo questão de pedir que se deitasse e que a casa era também sua.
Depois sucede uma descrição da casa de Pereira, não era luxuosa, em contrapartida
muito farta de comida e hospitalidade.
Após servir dois pratos imensos com ervas, feijão e arroz, Cirino pergunta pela sua
filha, diz não gostar de adiantamentos, e pede para logo vê-la, o mineiro fica inquieto,
veja:
— Agora, amigo meu, disse o moço depois de pequena pausa, estou às suas
ordens. Podemos ver a sua doentinha e aproveitar a parada da febre para mim
atalhá-la de pronto. Em tais casos, não gosto de adiantamentos.
Cobriu-se o rosto do mineiro de ligeira sombra: franziram-se
os seus sobrolhos, e vaga inquietação lhe pairou na fronte.
— Mais tarde, disse ele com precipitação.
— Nada, meu senhor, retrucou Cirino, quanto mais cedo, melhor.
É o que lhe digo.
— Mas, que pressa tem mecê? perguntou Pereira com certa desconfiança.
— Eu? respondeu o outro sem perceber a intenção, nenhuma.
É mesmo para bem da moça.
Acenderam-se os olhos de Pereira de repentino brilho.
Inocência |Visconde de Taunay
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— E como sabe que minha filha é moça? exclamou com vivacidade.
— Pois não foi o senhor mesmo quem mo disse na prosa do caminho?
Com isso Pereira alega que verá a filha e logo o doutor irá vê-la.
Curiosidades do capítulo IV
1 – A casa de Pereira é assim descrita:
“Consistia a morada de Pereira num casarão vasto e baixo, coberto de sapé,
com uma porta larga entre duas janelas muito estreitas e mal abertas. Na parede
da frente que, talvez com o peso da coberta, bojava sensivelmente fora da vertical,
grandes rachas longitudinais mostravam a urgência de sérias reparações em toda
aquela obra feita, de terra amassada e grandes paus-a-pique.
Ao oitão da direita existia encostado um grande paiol construído de troncos
de palmeiras, por entre os quais iam rolando as espigas de milho, com o contínuo
fossar dos porquinhos, que dali não arredavam pé.
Corrido na frente de toda a vivenda, via-se um alpendre de palha de buriti,
sustentado por grossas taquaras, ligeiro apêndice acrescentado por ocasião de
alguma passada festa, em que o número de convidados ultrapassara os limites de
abrigo da hospitaleira habitação.
Internamente, era ela dividida em dois lanços324: um, todo fechado, com
exceção da porta por onde se entrava, e que constituía o cômodo destinado aos
hóspedes; outro, à retaguarda, pertencia à família, ficando portanto
completamente vedado às vistas dos estranhos e sem comunicação interna com o
compartimento da frente.
Era de barro compacto e socado o chão desta sala, vendo-se nele sinais de
que às vezes ali se acendia fogo: pelo que estavam o sapé do forro e o ripamento
revestidos de luzidia e tênue camada de picumã que lhes dava brilho singular,
como se tudo fora jacarandá envernizado.”
2 – Pereira mente a idade da filha para o “médico”, diz que a moça tem
quinze anos.
V – Aviso prévio
Antes de Cirino entrar no quarto da moça, o pai da moça o interrompe e pede de
forma contida, mas áspera que saiba se portar diante da moça, alega que a moça tem
dezoito anos, muito bonita, o doutor chega a cogitar que a moça fosse até casada, não,
entretanto, está apalavrada com Manecão (ver personagens).
Depois faz considerações sobre mulheres:
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Inocência |Visconde de Taunay
— Esta obrigação de casar as mulheres é o diacho!.. Se não tomam estado,
ficam jururus e fanadinhas...; se casam, podem cair nas mãos de algum marido
malvado... E depois, as histórias!... Hi, meu Deus, mulheres numa casa, é coisa de
meter medo... São redomas de vidro que tudo pode quebrar... Enfim, minha
filha, enquanto solteira, honrou o nome de meus pais... O Manecão que se
agüente, quando a tiver por sua... Com gente de saia não há que fiar... Cruz!
Botam famílias inteiras a perder, enquanto o demo esfrega um olho.
Cirino reintegra sua hombridade e respeito nas casas de família, faz considerações
sobre as mulheres bem diferente de Pereira. O mineiro fica mais sossegado e pede que
trate Inocência como paciente, nada mais.
VI – Nocência
O rapaz entra no quarto e se deslumbra com a beleza da moça, toda uma descrição
maravilhosa lhe é feita:
Apesar de bastante descorada e um tanto magra, era Inocência de beleza
deslumbrante.
Do seu rosto irradiava singela expressão de encantadora ingenuidade,
realçada pela meiguice do olhar sereno, que, a custo, parecia coar por entre os
cílios sedosos a franjar-lhe as pálpebras, e compridos a ponto de projetarem
sombras nas mimosas faces.
Era o nariz fino, um bocadinho arqueado; a boca pequena, e o queixo
admiravelmente torneado.
Ao erguer a cabeça para tirar o braço de sob o lençol, descera um nada a
camisinha de crivo que vestia, deixando nu um colo de fascinadora alvura, em
que ressaltava um ou outro sinal de nascença.
Razões de sobra tinha, pois, o pretenso facultativo para sentir a mão fria e
um tanto incerta, e não poder atinar com o pulso de tão gentil cliente.
Ela não apresenta febre, o rapaz promete ao pai da moça que num prazo de três
trará sua coloração de jovialidade novamente, vai fazê-la suar durante à noite e depois
lhe dará sulfato, ao sair do quarto depara-se com Tico (ver personagens), o pai alega que
a filha está com sede e o doutor manda trazer água com alguns limões para ir se
recuperando.
VII - O Naturalista
Um dos menores capítulos, relata a vinda de um novo personagem, o alemão
naturalista Meyer, e seu companheiro José, ambos já caminham a léguas de distância.
O burro que carregava as coisas do tal cientista depara-se com o galho que seria o
que Pereira cortara para desviar os amigos de Cirino, José confirma achar o novo trajeto
que dará na fazenda do Mineiro.
Inocência |Visconde de Taunay
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Curiosidades do capítulo VII
1 – O alemão chama José de Juque e José chama-o de Mochu.
VIII Os hóspedes da Meia-Noite
O naturalista chega recepcionado pelos cães, logo o alemão pergunta sobre o dono
do estabelecimento e Pereira se identifica como tal.
José Pinho logo diz de quem se trata, Cirino se apresenta como médico, logo após o
alemão pegar um inseto e guardar no clorofórmio, o médico sabe de quem se trata,
Pereira gosta de José, pois percebera-o muito prosador, o alemão se apresenta como
Meyer, doutor que caçava insetos e os colecionava, ao final da noite, o subordinado José
deu uma rapadura com farinha e Mayer comeu a bom gosto.
Cirino avisa para Pereira que está na hora de dar o remédio à moça e o mineiro vai
com ele.
IX – O medicamento
Lá está Cirino com a moça e o pai, a moça alega que suara três camisas e que não
tivera febre, o rapaz manda pegar o café para misturar o remédio, entretanto, Conga não
viera, Pereira reclama da lentidão da escrava e foi ele mesmo pegar, enquanto isso, Cirino
contempla a beleza da moça, Tico o encara de forma misteriosa, o médico pega em seu
pulso e aperta entre as mãos, Inocência fingi dormir.
Pereira chega com o café e acorda a filha, a moça toma o remédio e reclama do
amargor, Cirino diz que de manhã deverá tomar a mesma porção e se despede, à noite,
ainda sobre o ronco do novo hóspede, o médico que curava todo mal, não podia curar o
mal da paixão que ia pouco a pouco se instalando em sua vida.
X – A carta de recomendação
O alemão acorda seu servo para caçar borboletas, o servo aposta quanto o patrão
pagaria se ele conseguisse caçar 23 borboletas. Aposta feita.
Nisso Pereira continua a admirar o alemão, os três conversam, Pereira diz para Cirino
que a moça estava melhor, o médico dá glorias ao Senhor e ganha a admiração de Meyer,
o alemão mudando de assunto tem várias cartas de recomendação, entre eles está a de
Francisco dos Santos Pereira, irmão de Pereira, o mineiro quase cai para trás de
contentamento e pede que leia a carta.
Na carta o irmão manda-lhe saudações e pede que receba Meyer como se fosse ele,
o mineiro passa então a tratar Meyer como chefe da família:
O senhor ponha e disponha de mim, da minha tulha, das minhas terras,
meus escravos, gado... tudo o que aqui achar. Parta e reparta... Quem está
falando aqui, não é mais dono de coisa nenhuma;... é o senhor... Meu irmão me
escreveu, é escusado pensar que não sei respeitar a vontade de meus superiores
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Inocência |Visconde de Taunay
e parentes. É como se recebesse uma ordem do punho do senhor D. Pedro II, filho
de D. Pedro I, que pinchou os emboabas para fora desta terra do Brasil e
levantou o Império nos campos do Ipiranga...
Nisso o pesquisador só tem a agradecer e admirar o quanto o Sr. Pereira falava sem
cansar.
Curiosidades do capítulo X
1 – Repare que a cena da carta revela mais um caso de coincidência extrema.
2 – Meyer era formado pela universidade de Iena, na Alemanha, Pereira achava
que era apenas um nome de animal.
3 – Guilherme Tembel Meyer é o seu nome completo
XI – O almoço
Pereira serve o jantar para Meyer e Cirino, discutem sobre a questão do Brasil ser um
país maravilhoso, pois segundo o mineiro ninguém passava fome, depois discutem sobre
as mulheres.
Pereira, de forma gentil, chamando Meyer de “a sombra de seu irmão Chiquinho”
quer agora lhe apresentar a filha, e convida o alemão e ao médico que estão na mesa a se
dirigir até o quarto de Inocência.
Era a prova de amizade e respeito que Pereira tinha pelo tão nobre pesquisador.
XII – Apresentação
Os três estão no quarto da moça, o pai gentilmente apresenta-lhe o novo conviva e
diz ali está um representante de seu irmão, no caso, o tio de Inocência, entretanto o
alemão, de forma ingênua e descabida faz um elogio a moça:
Além do mais, sua filha é muito bonita, muito bonita, e parece boa deveras...
Há de ter umas cores tão lindas, que eu daria tudo para vê-la com saúde... Que
moça!... Muito bela!
Estas palavras que o inocente saxônio pronunciara ex abundantia cordis
produziram extraordinário abalo nas pessoas que as ouviram.
A reação de todos no quarto fora de desagrado, a reação de Pereira foi instantânea:
Tornou-se Pereira pálido, franzindo os sobrolhos e olhando de esguelha
para quem tão imprudentemente elogiava assim, cara a cara, a beleza de sua
filha; Inocência enrubesceu que nem uma romã; Cirino sentiu um movimento
impetuoso misturado de estranheza e desespero, e, lá da sua pele de tamanduábandeira, ergueu-se meio apavorado o anão.
Em nada reparou Meyer...
Inocência |Visconde de Taunay
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Meyer continuo os elogios e o pai de Inocência pediu que se retirassem, no trajeto,
afastando-se do pesquisador e puxando Cirino para si, alega com veemência:
— Vejam só, continuou Pereira retendo o seu interlocutor para deixar Meyer
distanciar-se, em boas me fui eu meter!... Se não fosse a tal carta do man... jurolhe, que hoje mesmo o cujo dançava ao som do cacete... Malcriadaço! Uma
mulher que daqui a dois dias está para receber marido... Deus nos livre que o
Manecão o ouvisse... Desancava-o logo, se não o cosesse a facadas... Vejam só,
hein?... Sempre é gente de outras terras... Cruz! Também vi logo... um latagão
bonito... todo faceiro... haverá por força de ser rufião.
Cirino apóia as decisões demonstrando ciúmes, o alemão chega para Pereira e diz
que ficará mais duas semanas para desespero do mineiro.
XIII – Desconfianças
Meyer que ir caçar, mandou José pegar suas luvas, Pereira quer ajudá-lo,mas para
mantê-lo sobre vigilância, o alemão tira um vinho do Porto e entrega ao mineiro dizendo
que a moça tão linda de Pereira iria se curar com o tal vinho.
O pai de Inocência fica ainda mais irritado,e diz para Cirino dar o remédio mais tarde
para a moça, que ela sairia do quarto para isso, Cirino objeta, dizendo que ele mesmo
dará o medicamento, ao final temos uma lição dada pelo autor, uma das mais belas
considerações do livro:
À medida que as suspeitas sobre as intenções do inocente Meyer iam
tomando vulto exagerado, nascia ilimitada confiança naquele outro homem
que lhe era também desconhecido e que a princípio lhe causara tanta prevenção
quanto o segundo.
É que as dificuldades e colisões da vida, quando se agravam, tão fundo nos
incutem a necessidade do apoio, das simpatias e dos conselhos de outrem, que
qualquer aliado nos serve, embora de muito mais proveito fora bem pensada
reserva e menos confiança em auxiliares de ocasião.
XIV – Realidade
Esse capítulo é crucial para o romance ter seu desenrolar.
Cirino está agoniado, anda de um canto para o outro, anda no sol, volta para casa
feito uma barata tonta, deu meio-dia, finalmente veria a moça, era hora do seu remédio.
O rapaz deu a volta na casa procurando pela Conga, não a vê, então decidi dar a
volta na casa e se depara com o anão, já era hora do remédio, então o anão saiu e fez
gesto para que esperasse, Cirino desobedece e entra logo em seguida.
A moça está ainda com fraqueza, apoia-se numa trave na sala, Cirino diz ser a hora
do remédio, a moça o contesta com suavidade e doçura encantando-o ainda mais.
O médico diz que tomará também o remédio, pois sentiria o que ele sentiria, e
manda Tico buscar a “mezinha” (café) para diluir o remédio, enquanto o anão vai, depois
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Inocência |Visconde de Taunay
de desobedecer ao pedido do doutor e só depois de dois pedidos da ama, Cirino ataca de
beijos o pulso da moça, ela se assusta, mas aceita, safadinha!
Tico volta e ele fica lá como se nada tivesse acontecido, ela tem em seguida uma
vertigem, quase um desmaio, Cirino a segura com destreza e a detém em seus braços, o
anão demonstra várias insatisfações.
Inocência passa a ter sentimentos pelo rapaz:
Decididamente lhe agradava aquele médico: curava do seu corpo enfermo e
entendia-lhe com a alma. Raros homens que não seu pai e Manecão, além de
pretos velhos, tinha ela até então visto; mas a ela, tão ignorante das coisas e do
mundo, parecia-lhe que ente algum nem de longe poderia ser comparado em
elegância e beleza a esse que lhe ficava agora em frente. Depois, que cadeia
misteriosa de simpatia a ia prendendo àquele estranho, simples viajante que via
hoje, para, sem dúvida, nunca mais tornar a vê-lo?
Quem sabe, se a meiguice e bondade que lhe dispensava Cirino não eram a
causa única desse sentimento novo, desconhecido, que de chofre nascia em seu
peito, como depois da chuva brota a florzinha do campo?
O rapaz ainda tenta lhe fazer declarações:
Despedindo-se então Cirino de Inocência:
— Agora, lhe disse ele risonho e pegando-lhe a mão, sossegue um pouco:
depois tome um caldo e... queira-me bem.
— Gentes! Por que lhe não havera de querer? perguntou ela com
ingenuidade. Mecê nunca me fez mal...
— Eu, retrucou Cirino com fogo, fazer-lhe mal? Antes morrer... Sim...dona...
da minha alma, eu...
E, sem concluir, disse repentinamente:
— Adeus!
...
E, a custo, despegou-se daquele lugar, onde quisera ficar, até que de velhice
lhe fraqueassem as pernas.
XV – Histórias de Meyer
Cirino dormia quando de repente ouviu gritos meio risonhos, era Pereira que havia
começado o dia com piadas por que ele ainda estava dormindo enquanto eles
trabalhavam.
O Srº Pereira o perguntou sobre o remédio de Inocência, porém estava com tanto
sono que nem sequer se lembrava se já havia dado.
O Srº Pereira mesmo com aquele bom humor que aparentava, percebe-se que havia
está errado, porém só contou quando Meyer saiu da sala.
- Sabe doutor, Meyer está o tempo todo querendo falar de minha filha.
Na hora do jantar, meio que por coincidência, Meyer deu desculpas que se
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encaixaram perfeitamente nas recomendações medicas a Inocência, sossego e pouca
gente envolta dela.
José Pinho e Pereira ouviam e riam das histórias de Meyer, o naturalista consumista.
Cirino só pensava em Inocência.
Após o jantar, o Srº Pereira confessa para o médico que se Meyer não fosse
recomendado por seu irmão, ele já o teria mandado embora.
Cirino tenta encorajar Srº Pereira
Vejo que é um homem um tanto conservador e observador, pois não
demorou a ver que aquele alemão realmente era um namorador.
Infelizmente, faz um comentário do qual se arrependerá logo depois. Quando
Martinho Pereira falou de seu genro Manecão, Cirino comenta que não havia de faltar
quem queira Inocência, além de assustado, ele praticamente diz que mataria qualquer
homem que tentasse, o rapaz teme o comentário, mas mantêm-se contido.
XVI – O empalamado
Cirino ainda passa a pensar na moça doente, chega a cogitar que não pode viver sem
a moça, sua vida não possui sentido sem a sua presença.
Nem dormir direito conseguia, Pereira chega a fazer essa observação...
O mineiro o avisa que era bom ficar bem, já que iria receber pacientes, afinal, ele
havia espalhado pela região o quanto o achava bom. Ele não cansava de dizer como ele
era dedicado ao contrário de certas pessoas, referindo-se, é claro, a Meyer.
No almoço, Meyer perguntou ao Srº Pereira como estava Inocência, ele respondeu
com extrema secura, mas Meyer também merecia, elogiava a menina de um jeito que
tirava o Srº Pereira do sério… e a Cirino também.
Após se levantar da mesa por não aguentar Meyer, o mineiro foi até a janela e então
viu o senhor Coelho. O primeiro paciente estava chegando.
O Srº Coelho, um homem já meio grisalho parecia fascinado com o médico, e
comentou que ouviu falar que fazia milagres e que se ele resolvesse seu problema ele não
saberia nem como me agradecer, então o Pereira disse que ele deveria pagar, ele hesitou,
mas disse que o pagaria.
Analisou o estado do Coelho, para sua sorte, Meyer não retrucou. Concluiu que o
paciente estava empalado (anêmico). Cirino passa a dizer todos os sintomas que ele
estava tendo.
Ele já perguntou assustado de não havia cura, mas o doutor trata de o acalmar
dizendo que havia, porém era com um remédio extremamente forte. Srº Coelho disse
que era pobre, que não tinha muito dinheiro, o médico diz que recebia o pagamento pela
metade, uma no início, outra no final, ele não gostou muito do preço, mas eu achei que
era um preço justo, cem mil réis.
Meyer, Pereira e Coelho o olharam de um jeito amedrontador quando o disse qual
era o remédio. Sim, extremamente forte o Jaracatiá, porém era a alternativa.
Depois diz ao Srº Coelho que gostaria de ir até o fim nos tratamentos, ele disse que
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Inocência |Visconde de Taunay
faria tudo certo, além disso ele iria todo dia à sua casa.
Também o alerta que poderia ajudar da melhor maneira possível, mas somente o
paciente poderia dizer se ele iria ficar bom ou não.
XVII – O morfético
Ainda tratando o Coelho, Pereira vai ao seu encontro me assustado e enojado.
Pediu para andar depressa porque um tal de Srº Garcia que estava em seu terreno
querendo o ver.
Cirino logo entende porque o Srº Pereira não havia deixado aquele homem entrar. O
Srº Garcia era um morfético.
O homem estava angustiado, depressivo, não sabia mais o que fazer.
Questiona-o se havia algo que pudesse fazer, infelizmente, nem ele nem qualquer
outra pessoa conheciam algo que pudesse ajudar. Tão triste ele contando que sua neta
teve receio de abraçá-lo.
De repente, ele ficou pálido e ofegante. Pede água, Cirino foi correndo na casa do
Srº Pereira pegar, ele disse para pegar uma caneca de louça que depois seria quebrada.
Após tomar a água, aquele pobre homem o pergunta se era uma doença que
pegava, não poderia mentir, teve que dizer que sim.
Falou a ele para pedir ajuda a Senhora Sant'Ana e a Nosso Senhor Jesus Cristo, ele
terminou a frase falando que o proteja na sua vida de desgraças.
Após isso o morfético Srº Garcia montou em seu cavalo, foi embora acenando para o
Srº Pereira, o Srº Coelho e para o médio.
Curiosidades do capítulo XVII
1 – Morfético: sinônimo de lazarento, ou seja, lepra, equivalente hanseníase.
XVIII – Idílio
E se passaram dias após dias, Cirino, fazendo seu trabalho receitando pessoas,
Meyer aumentando sua bela coleção entomológica, sempre observado por Pereira que
cuidadosamente o mantinha no suspeito círculo da sua apertada vigilância.
Foi aí então que ocorreu os seguintes comentários:
- O alamão, dizia o mineiro, não me deixa pôr pé em ramo verde, mas
também o trago vigiado que é um gosto… Se desconfiasse, teria medo até da
sua sombra… Estou em brasas. Não sei por que não chega o Manecão Doca.
Quero arriar a carga no chão, agora, mais do que nunca, devo casar Nocência…
Estas mulheres botam sal na moleira de um homem. Salta! E ainda isto tudo não
é nada.
- Então espera muito breve o Manecão? perguntou o outro com ansiedade.
- Não pode tardar… por estes dois ou três dias quando muito. Vem de
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Uberaba e sem dúvida por lá arranjou todos os papéis.Dei a certidão do meu
casamento, a do batismo da pequena e adiantei dinheiro para as
despesas…bem que ele refugasse meio vexado.
- Então está tudo decidido? perguntei com vivacidade.
- Boa dúvida!Já lhe tenho dito mais de uma vez. Hoje é coisa de pedra e cal…
Se até trato o Manecão de filho… A honra desta casa é também honra dele.
- Mas sua filha?
- Que tem?
- Gosta dele?
- Ora se!…Um homenzarrão… Desempenado. Quando não gostasse, é
vontade minha e está acabado. Para felicidade dela e, como boa filha que é não
tem que piar… Estou, porém, certíssimo de que o noivo lhe faz bater o coração.
Tomara ver o cujo chegado!
Cirino sente uma dor no peito, sem mais esperanças de ter Inocência com ele, tinha
que evitar seus olhares para ela, e quanto mais ele fazia isso, maior ficava sua paixão. Até
que começou a ficar doente, e percebeu que a situação estava ficando precária. E aquela
incerteza de se tudo isso era por alguém que sentia a mesma coisa por ela, ou se não.
Capítulo XIX - Cálculos e esperanças
Naquele lugar longe, a muitas léguas de distância das coisas, sem vizinhança, sem
afazeres, Meyer tinha como passatempo colecionar bichos, principalmente borboletas.
Ficava tão feliz quando conseguia aumentar sua coleção.
Meyer dizia que se sentia muito bem na casa de Pereira , por isso a alegria imensa,
pois Meyer suplicou Pereira por não deixar sua filha, a linda Inocência, falar com os
rapazes dali, e sentia muito por isso. O pai rígido falou que mulheres não feitas para dar
conversa para qualquer um, não era certo. Pereira ficou cada vez mais de olhos abertos
com Meyer, queria proteger sua pobre e inocente filha.
Cirino sente um desejo enorme de escrever uma carta a Inocência, mas o pai de
Inocência a prendia tanto a garota, que mal saia de seu quarto, não sabia ler nem
escrever, por isso seria inútil tentar escrever uma carta a ela, aliás, como chegaria lá
qualquer recado?
Foi pensando em como ele falaria com sua amada que passei noites em claro,
procurando um meio, uma alternativa. Mas, numa dessas noites, vi então abrir a janela
de Inocência, e suas expectativas aumentaram. Viu a angústia de Inocência, percebeu
que ela estava abrasada de amor e queria respirar um pouco naquela noite, sentir o ar do
sertão e colocar um pouco seus sentimentos que a sufocava para fora, na expectativa de
encontrar por ali aquele que lhe causava tantos sentimentos.
Então logo foi ao encontro da sua tão esperada amada, beijou suas mãos como se
fosse a última coisa que faria na sua vida. Não via oportunidade melhor para dizer a ela
tudo o que sentia, não conseguia conter as palavras, desde primeira noite que
conversaram, sempre tinha novas declarações a dizer.
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Inocência |Visconde de Taunay
Inocência disse que finalmente sabia o que era amar, e diria a seu pai que não queria
mais se casar com Manecão, choraria até o pai mudar de ideia se necessário ou então
morreria.
Porém Inocência confessou-lhe que essa paixão tinha despertado nela a visão do
mundo, tudo que seria bom e mau. Ela estava com anseios, pois a honra de sua família
estava em suas mãos. Então combinaram de virarem o pai a favor daquela junção, para
que concordasse com aquela paixão e os deixasse ficar juntos, só estavam esperando
uma hora certa, pois tinha que falar com muito cuidado, porque apesar de ser um bom
homem, seu Pereira tinha um gênio muito forte.
Capítulo XX - Novas histórias de Meyer
Uma ocasião, de volta do trabalho, atingiu a habitual irritação de Pereira contra
Meyer. Entrou de cabeça baixa e fez um gesto para o médico dizendo que precisavam
conversar a sós.
Caminham por ali mesmo, em silêncio até um regato que ficava a meio quarto de
légua de casa. Então sentiu que deveria tratar o assunto de Inocência com Pereira.
Pereira falou que não aguentava mais Meyer em sua casa e disse também que se não
fosse aquela carta e a sua palavra que deu a Meyer, ele já teria mandado Meyer embora.
Pereira disse que queria falar com ele apenas para tirar esse peso do coração, Pereira
criticava Meyer sempre com sua desconfiança, de que Meyer quer conversa com sua
querida filha, por isso cismava com o homem.
Capítulo XXI - Papilio Innocentia
Viu Meyer sentado na soleira, quando o avistou saiu correndo ao seu encontro. Ele
se mostrou com muito entusiasmo sua nova descoberta, uma borboleta.
Era um lindo bichinho da natureza, lindo e com muita vida. Ele o nomeou de papilio
innocentia, o que não tinha agradado nem a Pereira e nem a ele. Com muita sabedoria
no assunto ele nos contou sobre que espécie pertencia a borboleta e essas coisas de
ciência.
Quando terminaram a longa conversa sobre borboletas e suas espécies, Meyer
anunciou que em 3 ou 4 dias estaria a partir. O pai de Inocência enfim sossegaria seu
coração.
Capítulo XXVII - Meyer parte
Com muitos pacientes, Cirino estava sem remédio. Depois de atender os pacientes e
medicá-los, viu Meyer com as malas arrumadas para partir. Perguntou se ele não poderia
ficar, mas ele o respondeu que não era possível, seu dinheiro estava curto e precisava
mostrar sua descoberta para a Sociedade Entomóloga.
Meyer agradeceu ao Srº Pereira pela estadia e disse-lhe que nunca iria esquecê-lo.
Ele e Juque montaram em seus cavalos e disseram adeus. Com isso o Srº Pereira ficou tão
feliz que seus olhos tinham brilhado. Não só ele tinha ficado feliz por Meyer ir embora e
Inocência |Visconde de Taunay
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não ver mais Inocência, Cirino demonstrou a mesma alegria, mal sabendo agora que
todas as atenções se desdobrariam agora para ele.
Capítulo XXIII - A última entrevista
Quando Srº Meyer saiu daquela casa, o pai da bela Inocência sentiu um pouco de
culpa por tê-lo julgado mal, já que ele não fez nada demais com sua filha. Ele disse uma
coisa que deixou o rapaz pensativo: “As vezes o perigo vem donde nunca se esperou..”,
parecia se referir a ele.
Agora com a ausência de Meyer a atenção de Pereira estava toda para o médico, o
que tornou seus encontros com Inocência improváveis.
Inocência e Cirino conseguimos nos encontrar, para não chamarmos atenção se
viram debaixo da árvore. Ela ficou envergonhada porque estava ali, disse a ele que não
daria certo os dois, pois ela estava comprometida. Cirino sugere a fuga, em resposta, ela
disse que não daria, porque não queria ser amaldiçoada por não ter a benção de seu pai.
Então diz que poderia falar com Pereira e talvez ele mudasse de ideia em fazer com
que ela casasse com Manecão. Infelizmente, ela já tinha pensado nisso, mas não seria
possível pois palavra de mineiro não volta atrás.
Os dois ficaram debaixo da árvore por uns minutos a chorar, até que o médico teve
uma brilhante ideia. Pensou em falar com o padrinho, só a este o pai dela ouviria.
Perguntou a Inocência quem era o padrinho e onde morava, ela disse que seu nome era
Antônio Cesário morador de Paraíbas, um tanto longe dali. Fiquei muito feliz ao saber
que tínhamos uma chance, iria até este Antônio para ele convencer o Srº Pereira a fazer
com que Inocência se casasse com ele.
Já tinha raiado o dia e ela precisou ir antes que alguém os visse, felizmente isso não
ocorreu. Com muita sorte não tinham sido pegos, depois que Inocência se foi, ouviu um
tiro da mata e a voz de Pereira. Cirino correu para frente da casa, disse a ele que acordou
com o tiro, meio estranho ele disse que ouviu vozes diferentes e que se pegasse alguém
matava.
Capítulo XXIV - A vila de Sant'Ana
Cirino monta um cavalo e se despede de Pereira, para uma tão inesperada viagem
por um pouco mais de uma semana, diz que seria para visitar uns parentes doentes, e
também procurar uns remédios que estavam faltando.
Passaram-se rápido as três léguas que andara, pois a estrada estava tranquila e
sombria, foram fáceis de vencer. Mas quando passou por aquela campinas de calor,
desanimou completamente do êxito da empresa que se atirara.
Tanta esperança o alvoroçara quando ia seguindo a vereda encoberta e amena,
quanto desalento sentia agora; e, descoroçoado, deixou que o animal o fosse levando a
passo vagaroso e como que identificado com a disposição de seu ânimo.
Que vou eu fazer? Pensei auto… Como encetar aquela conversa?
Tamanha era a dúvida que lhe salteava que cheguei quase a blasfemar contra a
amada de seu coração.
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Inocência |Visconde de Taunay
Maldita à hora em que vi aquela mulher… botaram-me a perder os seus
olhos. Perdão, Inocência! perdão, meu anjo! Estou a amaldiçoar a hora da minha
felicidade… Eu, que sou homem, posso fugir… deixar-te… mas tu, amarrada à
casa… Infeliz, fui o culpado!…
E, engolfado em dolorosa cogitação, alcança a Vila de Sant'Ana do Paranaíba.
De longe é sumamente pitoresco o primeiro aspecto da povoação.
Capítulo XXV - A viagem
Em um pouco mais de uma hora, transpôs a distância da povoação ao rio, na légua e
quarto que ate lá media, só há de ruim o trecho em que fica a floresta que borda as
margens da majestosa corrente.
Em nada é, pois aprazível o aspecto, e a lembrança de que ali imperam as temidas
sezões faz que todo o viajante apresse a travessia de tão tristonhas paisagens.
Capítulo XXVI - Recepção Cordial
Era demasiado triste saber que o casamento estava próximo.
Pereira e Manecão estavam acertando os preparativos finais do casamento, Pereira
como sempre muito animado.
Era quase inacreditável, o casamento fora marcado com apenas duas semanas de
antecipação, Manecão, creio que numa tentativa de agradar o sogro encomendou duas
dúzias de vinho, obviamente que Pereira ficou encantado com tal ato.
Cirino Já não aguentava mais tal conversa, apenas de ouvinte tentando não
acreditar que a mulher que amava iria se casar com outro.
Capítulo XXVII - Cenas íntimas
Inocência estava mal, ficava trancada no quarto sem querer ver seu pai ou seu futuro
marido.
Seu pai a chamou para falar com Manecão, ela não falou nada, mas até o próprio pai
percebeu que havia algo errado. Manecão ficou triste, ao seu ver parecia que Inocência
tinha medo dele.
Como Inocência só queria ficar no quarto, rezava e se sentia mal por ter se
apaixonado por Cirino. Seu pai resolveu ir ver o que era, disse a ela que tinha que se
conservar, mas não deveria ignorar daquele jeito seu futuro marido.
Inocência havia cansado, resolveu enfrentar seu pai. Disse a ele que não deveria
casar, ele a olhou aterrorizado, ele meio que perguntou o porquê, então ela lhe disse que
havia tido um sonho com sua mãe, que ela desceu do Céu e disse que ela não deveria se
casar com Manecão ou seria infeliz.
O pai dela ficou muito desconfiado, Inocência não havia conhecido sua mãe, então
perguntou a ela que sinal a sua mãe tinha no rosto, ela não soube responder, disse que
aquilo tudo era mentira e ficou de bruços na cama.
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Srº Pereira ficou paralisado, mas alertou ela que Manecão estava logo chegando da
roça e se ela não fosse ver seu futuro marido, seu próprio pai iria matá-la.
Capítulo XXVIII - Em casa de Cesário
Conforme combinado com Inocência, somente uma pessoa poderia os ajudar, seu
padrinho Antônio Cesário.
Como já esperava de início ele lembrava muito o Srº Pereira, sempre achando o sexo
feminino o frágil e dizendo que as mulheres não devem tomar decisões.
Teve que contar a ele o que estava acontecendo, então combinou de se encontrarem
em sua roça, pois ele tinha segredos a contar.
O local combinado era muito triste, mas não tinha outra escolha. Quando se
encontraram fez ao padrinho perguntas um tanto estranhas, do tipo: se ele salvaria um
homem arrastado por uma corredeira, ele disse que sim e que salvaria qualquer pessoa,
então lhe disse que precisava ser salvo.
Então contou que morria de paixão por uma mulher, e que essa mulher era
Inocência.chegando ao ponto de pedir para que o matasse.
Ele disse que sabia tratar gente, perguntou-lhe se ele já havia estado a só com
Inocência, Cirino fica horrorizado e responde que sua alma arderia no inferno se
Inocência fosse impura. Ele pediu para se acalmar, que acreditava nele, porém não sabia
o que fazer porque nem o pai de Inocência era seu dono, o problema era a palavra de
honra de mineiro que ele havia dado e que não voltaria atrás.
Cirino sabia que Inocência era diferente, que não podia se submeter a isso.
Cesário disse que precisava de dois dias para pensar e, após isso iria me encontrar na
Senhora Sant'Ana, porém teve que fazer um juramento pela salvação de sua alma que se
em 8 dias ele aparecesse em Sant'Ana iriam juntos a casa de Pereira, porém, senão
aparecesse, era porque pensou o contrário e eu deveria ir embora e esquecer Inocência.
Não teve escolha, aceitou.
Capítulo XXIX - Resistência de corça
Todos percebiam. Inocência estava mal, estava frágil e pálida. Estava tentando se
recuperar, mas era perceptível o sofrimento em seu rosto. Logo depois, Pereira a chamou,
dizendo que precisavam conversar. Ali fora, estavam junto com ele: Manecão e Tico.
Manecão foi conversar com a Inocência sobre o casamento deles, mas ela
estranhou. Disse que não lembrava de nada e que, se eles fossem realmente se casar, ela
não iria aceitar. Pereira estava ouvindo a conversa e ficou furioso, então a pegou pelos
braços e a jogou longe. Inocência se machucou e inclusive saiu sangue.
Tico levantou a garota e fez bastante carinho nela e a convidou para sair. Porém,
Pereira e Manecão ficaram discutindo o assunto, que ele estava desconfiado das
tentativas do alemão Meyer, pois ele tinha fama de namorar as mulheres e depois sair
fora. Também comentou que ele estava pensando em matá-lo. E então o noivo
concordou e disse que quem iria matá-lo seria ele, no dia seguinte. O problema é que
essa conversa foi ouvida pelo Tico.
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Inocência |Visconde de Taunay
O anão explicou que os dois estavam confundindo tudo, pois as tentativas não eram
do alemão Meyer e sim de Cirino. Depois disso, tudo ficou mais claro para Pereira. Ele
achou disso um absurdo, porque o tal doutor dormiu, comeu e fez de tudo na casa dele e
então estava estragando um casamento.
Pereira e Manecão discutiram muito e resolveram que iriam o matar. Logo em
seguida, saíram a sua procura. Aliás, para que ninguém percebesse da situação, Pereira
propôs para ele fingir que estaria saindo dali para mandar uma carta à SantAna.
Manecão e Pereira trocaram ideias do que fazer com o Tico, já que tinha escutado
toda a conversa e estava presente em todos esses momentos, mas decidiram não
abandoná-lo. Porém, se alguém ficasse sabendo disso, as coisas iriam ficar feias para o
seu lado. Logo após disso, Manecão saiu a procura de Cirino. Pegou seu cavalo e partiu
da casa de Pereira. Estavam certos de que ele teria que ser morto.
Capítulo XXX - Desenlace
Cirino estava nervoso esperando Cesário, o prazo estava acabando e ele não ainda
não havia aparecido.
Jurava que se ele não aparecesse, se ele perdesse Inocência para sempre, iria se
matar.
Chegava a ouvir várias vezes galopes. No começo achava que era Cesário, mas
depois começou a desconfiar,mal sabia ele que Manecão estava o vigiando por dias,
então esbarrou com ele, porém naquele momento não sabia quem era.
Ele começou a discutir, perguntando o que Cirino estava fazendo ali, Cirino
respondeu a ele que não era de sua conta, então ele o destratou, chamou-o de ladrão,
cachorro…
Então o jovem apaixonada pede para acabar com aquilo de uma vez, quando
perguntou quem era mal, deu tempo de pensar, quando viu, Manecão havia acertado
minha cintura.
Primeiro o amaldiçoou, falou que sua alma iria persegui-lo por toda sua vida, porém
depois passa a refletir, era cristão, tinha que perdoar, e apesar de ele não ter se
importado, disse que lhe perdoava e pediu água.
No começo, pareceu que ele estava gostando de o ver morrer pouco a pouco,
porém depois pode-se ver a tristeza nos olhos daquele homem, que covardemente
quando ouviu galopes fugiu.
Para sua surpresa era Antônio Cesário chegando a galope.
Cesário entrou em desespero ao me ver daquele jeito, mas ele sabia que já era tarde,
pediu-lhe um pouco d'água, porém ele não tinha consigo e não havia mais tempo para
buscar.
Simplesmente pedi para ele distribuir seu dinheiro aos pobres e adoentados, pediu
para falar dele para Inocência, porém sabia que não tinha como, então lhe fez um último
pedido: Que impedisse o casamento de Inocência e Manecão ou ela viveria infeliz e
morreria de desgosto.
Então tudo foi ficando escuro, brotam duas lágrimas brotarem dos olhos de Cesário,
Inocência |Visconde de Taunay
29
porém mesmo estando somente Cesário ali, a última coisa que Cirino viu foi um rosto de
uma bela mulher, e pela última vez a chamou: Inocência.
Epílogo - Reaparece Meyer
Em Magdeburgo, estava acontecendo um espetáculo muito anunciado em
Germânia. Nesse espetáculo chamavam muitos convidados distintos, que iam para
acolher e levar a glória de um dos seus distintos filhos. Todos convidados foram para ver o
colecionador Meyer e o alemão recebeu muitos elogios. “Grande, O Vencedor e o
Incomparável Guilherme foram alguns deles. Meyer recebeu até elogios no jornal.
E inclusive, nesse dia, fez dois anos que a querida Inocência morreu. Foi descansar
em paz.
30
Inocência |Visconde de Taunay
Análise da Obra
Iaiá Garcia
Machado de Assis
UVA 2015.1
DA ESCOLA LITERÁRIA
Apesar das obras de Machado de Assis em sua maioria fazerem parte do Realismo, o
romance ‘’Helena’’ escrito em 1876 se encaixa na "fase romântica", quando melhor se
diriam "de compromisso" ou "convencionais" do escritor. Entretanto, destaca que a
genialidade do autor transcende a qualquer escola em que se possa colocar.
A obra de Machado, segundo alguns críticos, pode ser dividida em duas fases:
romântica ou convencional e realista.
1ª fase: Romântica
“Ressurreição” (1872)
“A Mão e a Luva” (1874)
“Helena” (1876)
“Iaiá Garcia” (1878)
Os romances de sua primeira fase se caracterizam por uma mistura de romantismo
agonizante e psicologismo incipiente. Observam-se aqui e ali perfeitas construções
estilísticas, renúncia à ação aventureira e melodramática dos românticos, certa agudeza
em tratar os caracteres dos personagens; mas o grave equívoco destes romances é que
Machado os submete à moral e aos padrões da época.
2ª fase: Realista
“Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881)
“Quincas Borba” (1891)
“Dom Casmurro” (1900)
“Esaú e Jacó” (1908)
“Memorial de Aires” (1908)
Análise das Obras | UVA 2015.1
31
Pode-se encontrar a verdadeira essência do Machado de Assis nesta 2ª fase. Quebra
da atitude narrativa e da estrutura linear, análise psicológica, uma nova visão do mundo e
o senso de humor destacam o realismo na obra do escritor.
Dessa forma ‘’Helena’’ se comporta de forma Romântica, mas, assim como
‘’Senhora’’, de José de Alencar, o livro possui características pré-realistas.
Elementos da Narrativa e Características
Autoria: Prof. Raul Castro
LINGUAGEM e ESTILO:
Elaborada em uma linguagem bem simples, pode-se considerar uma característica
de um pré-realismo, a linguagem na obra é a mesma adotada no resto de suas obras.
O estilo de Machado de Assis assume uma originalidade despreocupada com as
modas literárias dominantes de seu tempo. Mesmo suas obras iniciais — ‘’Ressurreição’’,
‘’Helena’’, ‘’Iaiá Garcia’’ — que eram pertencentes ao Romantismo (ou ao
convencionalismo), possuem uma ainda tímida análise do interior das personagens e do
homem diante da sociedade, que ele virá, mais amplamente, desenvolver em suas obras
do Realismo. Os acadêmicos notam cinco fundamentais enquadramentos em seus
textos: "elementos clássicos" (equilíbrio, concisão, contenção lírica e expressional),
"resíduos românticos"(narrativas convencionais ao enredo), "aproximações realistas"
(atitude crítica, objetividade, temas contemporâneos), "procedimentos impressionistas"
(recriação do passado através da memória), e "antecipações modernas" (o elíptico e o
alusivo engajados à um tema que permite diversas leituras e interpretações).
O estudioso Francisco Achcar traça um plano resumidamente no estilo de
Machado de Assis, escrevendo:
"[...] alguns dos pontos mais importantes da prosa narrativa machadiana:
Machado é o grande mestre do foco narrativo de primeira pessoa, embora
tenha exercido com mestria também o foco de terceira pessoa. Ele sabe colocarse no lugar de um narrador hipotético e vivenciar todos os seus grandes
problemas.
Ao contrário dos realistas, que eram muito dependentes de um certo
esquematismo determinista (isto é: pensavam que tudo, no comportamento
humano, era determinado por causas precisas), Machado não procura causas
muito explícitas ou claras para a explicação das personagens e situações. Ele sabe
deixar na sombra e no mistério aquilo que seria inútil explicar. Foi justamente por
não tentar explicar tudo que Machado não caiu na vulgaridade de muitos
realistas, como Aluísio Azevedo. Há coisas que não se explicam, coisas que só
podem ter descrição discreta. Nisso, Machado de Assis foi um grande mestre.
A frase machadiana é simples, sem enfeites. Os períodos em geral são curtos,
as palavras muito bem escolhidas e não há vocabulário difícil (alguma dificuldade
que pode ter um leitor de hoje se deve ao fato de que certas palavras caíram em
32
Iaiá Garcia |Machado de Assis
desuso). Mas com esses recursos limitados Machado consegue um estilo de
extraordinária expressividade, com um fraseado de agilidade incomparável.
A descrição dos objetos se limita ao que neles é funcional, ou seja, àquilo que
tenha que ver com a história que está sendo contada. O espaço é singelo,
reduzido, e as coisas descritas parecem participar intimamente do espírito da
narrativa.
Uma das maiores características da prosa de Machado de Assis é a forma
contraditória de apreensão do mundo. Machado em geral apanha o fato em suas
versões antagônicas, e isso lhe dá um caráter dilemático. É também uma forma
superior e mais completa de ver as coisas. Machado tem os olhos voltados para as
contradições do mundo.
Chamamos aparência aquilo que aparece a nossos olhos, aquilo que
primeiramente surge à observação; chamamos essência aquilo que
consideramos a verdade, aquilo que é encoberto pela aparência. Mas o que
tomamos por essência pode não ser mais do que outra aparência. O estilo
machadiano focaliza as personagens de fora para dentro, vai descascando as
pessoas, aparência atrás de aparência. Por isso, Machado é considerado grande
"analista da alma humana".
A linguagem machadiana faz referências constantes aos estilos de outros
grandes autores do Ocidente. Na maioria dos casos, essas referências são
implícitas, só podem ser percebidas por leitores familiarizados com as grandes
obras da literatura. Esse é um dos motivos de se poder dizer que o estilo de
Machado é um estilo "culto" (pois ele faz uso da cultura e sua compreensão
aprofundada exige cultura da parte do leitor). Costuma-se chamar
intertextualidade a esse diálogo que se estabelece, no texto de um escritor, com
textos de outros autores, do presente ou do passado. Machado de Assis foi um
grande virtuose da intertextualidade.
Em seus romances mais importantes, Machado de Assis pratica a
interpolação de episódios, recordações, ou reflexões que se afastam da linha
central da narrativa. Essas "intromissões" de elementos que aparentemente se
desviam do tema central do livro correspondem a procedimentos chamados
digressões. As digressões são, naturalmente, muito mais comuns nos romances
do que nos contos, pois nestes a brevidade do texto não permite constantes
retardamentos da narrativa. Nessas digressões, Machado é constantemente
seduzido pelo impulso de falar sobre a própria obra que está escrevendo, isto é,
faz metalinguagem, comentando os capítulos, as frases, a organização do todo.
Embora também presente nos contos, esses elementos de metalinguagem são
neles bem mais raros e discretos.
Uma das características mais atraentes e refinadas de Machado de Assis é sua
ironia, uma ironia que, embora chegue francamente ao humor em certas
situações, tem geralmente uma sutileza que só a faz perceptível a leitores de
Iaiá Garcia |Machado de Assis
33
sensibilidade já treinada em textos de alta qualidade. Essa ironia é a arma mais
corrosiva da crítica machadiana dos comportamentos, dos costumes, das
estruturas sociais. Machado a desenvolveu a partir de grandes escritores ingleses
que apreciava e nos quais se inspirou (sobretudo o originalíssimo Lawrence
Sterne, romancista do século XVIII). Na representação dos comportamentos
humanos, a ironia de Machado de Assis se associa àquilo que é classificado como
o seu grande poder de analista da alma humana'."
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Estilo_de_Machado_de_Assis
FOCO NARRATIVO
A narrativa é toda em 3ª pessoa, portanto é onisciente, heterodiegético, Machado
tem como característica a análise do perfil feminino, e o psicologismo, sua marca
registrada; para isso precisa de um narrador que não esteja na história.
Notamos tal peculiaridade no capítulo IV quando Jorge, após seu frustrante
encontro com Estela sai desatinado e começa a ponderar sobre fatos:
- Tua mãe é que tem razão – bradava uma voz interior -...
- Quem tem razão és tu – dizia-lhe outra voz contrária-...
Aqui notamos que o narrador é onisciente pois é capaz de expressar os sentimentos
internos e as suas reflexões ao longo da caminhada que faz.
TEMPO
A narrativa é cronológica com várias quebras de linearidade
ESPAÇO
Tudo ocorre no Rio de Janeiro, principalmente na Rua dos Inválidos, há também a
guerra do Paraguai na qual Jorge vai para a guerra e lá serve por 4 anos.
PERSONAGENS
Iaiá Garcia
Era alta, delgada, travessa; possuía os movimentos súbitos e incoerentes da
andorinha. A boca desabrochava facilmente em riso, — um riso que ainda não toldavam
as dissimulações da vida, nem ensurdeciam as ironias de outra idade.
Jorge
Filho de Valéria, apaixona-se por Estela, mas ao voltar da Guerra do Paraguai
encanta-se por Iaiá Garcia.
Sr. Antunes
Era o escrevente e homem de confiança do marido de Valéria, ao longo de três
anos de plena subserviência consolidou sua posição em meio a bajulações e
34
Iaiá Garcia |Machado de Assis
gratificações do seu amigo-patrão, infelizmente nessa mesma época a esposa morreu
deixando uma filha de apenas 10 anos. O esposo de Valéria, amigo e cordial, pagou
os estudos da moça e com o tempo, sendo boa e gentil, foi ganhando o coração de
Valéria até se hospedar em sua casa no dia em que terminou os estudos.
Estela
Filha de Sr. Antunes, devia toda sua educação à família de Jorge, morava na casa de
Valéria, e vai ser essa proximidade com o rapaz que desencadeará o interesse dele.
Pálida era, da palidez das monjas, mas sem nenhum tom de melancolia
ascética. Tinha os olhos grandes, escuros, talhados à feição de amêndoa, por
baixo de duas sobrancelhas lisas, cheias e corretas. Os olhos eram a parte mais
saliente do rosto, a que dominava tudo, não obstante a harmonia das restantes
feições; é que havia neles uma expressão de virilidade moral, que dava à beleza
de Estela o principal característico. Uma por uma, as feições da moça eram
graciosas e delicadas; mas a impressão que deixava o todo estava longe da
meiguice natural do sexo. Estela, posta entre as musas, seria Melpomene. Tinha
as formas; restava só que o destino fizesse correr sobre elas o gemido das
paixões trágicas. Usualmente, trazia roupas pretas, cor que preferia a todas as
outras. A mulher pálida, que não usa de preferência a cor preta, carece de um
instinto. Estela possuía esse instinto do contraste. Nu de enfeites, o vestido
punha-lhe em relevo o talhe esbelto, elevado e flexível. Nem ousava nunca
trazê-lo de outro modo, sem embargo de algum dixe ou renda com que a viúva a
presenteava de quando em quando; rejeitava de si toda a sorte de ornatos; nem
folhos, nem brincos, nem anéis.
Eulália
Tinha dezenove anos, mas cabeça de trinta, era parenta da família de Jorge e é
arranjada e sondada por Valéria para se casar com seu filho.
Era uma moça sem ilusões nem vaidades, talvez sem paixões, dotada de juízo reto e
coração simples, e sobre tudo isso uma beleza sem mácula e uma elegância sem
espavento.
Luís Garcia
Pai de Iaiá Garcia, no começo da trama possui 41 anos de idade e é assim
descrito:
Era alto e magro, um começo de calva, barba raspada, ar circunspeto. Suas
maneiras eram frias, modestas e corteses; a fisionomia um pouco triste. Um
observador atento podia adivinhar por trás daquela impassibilidade aparente
ou contraída as ruínas de um coração desenganado.
Assim era; a experiência, que foi precoce, produzira em Luís Garcia um
Iaiá Garcia |Machado de Assis
35
estado de apatia e ceticismo, com seus laivos de desdém. ... Por fora, havia só a
máscara imóvel, o gesto lento e as atitudes tranquilas.
Raimundo
Ex-escravo fiel de Luís Garcia, possuía 50 anos, era herança de seu pai, logo após
pertencer ao Luís ele tratou logo de alforriá-lo, o escravo achando que estava sendo
dispensado pensou até em rasgar, entre os dois havia uma eterna amizade.
De noite junto de seu senhor tocava marimba, cantigas alegres e felizes.
Depois dessa amizade só o amor que tinha por Iaiá Garcia, sempre quando ela vinha
aos finais de semana guardava um presentinho para a garota.
Maria das Dores
A ama que a havia criado, uma pobre catarinense, para quem só havia duas
devoções capazes de levar uma alma ao céu: Nossa Senhora e a filha de Luís Garcia.
Ia ela de quando em quando à casa deste, nos dias em que era certo encontrar lá a
menina, e ia de S. Cristóvão, onde morava.
Não descansou enquanto não alugou um casebre em Santa Teresa, para ficar mais
perto da filha de criação.
RESUMO
O enredo se constitui de uma série de incidentes que giram sempre em torno do
mesmo ponto, a realização ou a não-realização de um casamento. Todos os atos das
personagens são conduzidos, de modo direto ou indireto, para a consecução ou para o
impedimento desse objetivo. Assim, a ação do romance arma-se sobre a mesma
sequência básica, repetida ao longo do relato com ligeiras variações, mas mantendo
sistematicamente os elementos essenciais.
Como já citado, Iaiá Garcia trata do conflito social entre as classes, aproveitando
como eixo o romance entre Jorge, um cavalheiro de alta sociedade e Estela, uma jovem
pobre.
O romance se inicia com a apresentação de Luís Garcia, pai de Lina Garcia, chamada
em seu círculo familiar de Iaiá. A personagem é convocada por Valéria para que a ajude a
convencer o filho a alistar-se no exército brasileiro e participar da Guerra do Paraguai. Na
descrição da personagem, ao iniciar o romance, Machado de Assis chama a atenção do
leitor para certos aspectos de Luís Garcia:
No momento em que começa esta narrativa, tinha Luís Garcia quarenta e um anos.
(...) Suas maneiras eram frias, modestas e corteses; a fisionomia um pouco triste. Um
observador atento podia adivinhar por trás daquela impassividade aparente ou
contraída as ruínas de um coração desenganado. Assim era; a experiência, que foi
precoce, produzira em Luís Garcia um estado de apatia e ceticismo, com seus laivos de
desdém.
Nessa primeira descrição, podemos notar que não há nada a se esconder: o narrador
36
Iaiá Garcia |Machado de Assis
apresenta as principais peculiaridades da personagem. Não é um “observador atento”
que é chamado à leitura, pois o próprio narrador dá ao leitor a chave para o
entendimento das futuras decisões tomadas por Luís Garcia logo na primeira página do
romance. A descrição, nesse caso, funciona como um objeto de desvelamento: mostra
aos leitores a impossibilidade de imputar à personagem qualquer outro caráter que não
seja o de um “coração desenganado”.
No romance não há nada de oculto no caráter de Luís Garcia. Tudo sobre o pai de Iaiá
foi dito na primeira oportunidade pelo narrador, de modo que a atenção do leitor ficasse
presa à camada mais imediata do texto: aquela dos fatos a serem narrados.
A partir daí, pode-se dizer que a narrativa de Machado de Assis em Iaiá Garcia
encontra-se a meio caminho entre o romance de feição popular e o problemático. Se por
um lado há descrições que reduzem as personagens psicologicamente, mantendo a
atenção do leitor voltada para a superfície mais direta da trama, por outro lado há a
presença de certas sutilezas psicológicas que produzem um nível de problematicidade
maior a ser enfrentado pelo leitor.
Logo após a descrição do pai, o narrador passa rapidamente para a descrição da
filha:
Entretanto, das duas afeições de Luís Garcia, Raimundo era apenas a segunda; a
primeira era uma filha. (...)
Contava onze anos e chamava-se Lina. O nome doméstico era Iaiá.(...) A boca
desabrochava facilmente um riso, — um riso que ainda não toldavam as dissimulações
da vida, nem ensurdeciam as ironias de outra idade.
Logo após a apresentação de Iaiá, temos a descrição do ambiente doméstico
de seu pai. Vemos, nessa parte da narrativa, que a filha de Luís Garcia apresenta
sutilezas psicológicas importantes. Observemos com cuidado:
(...) Dessa comparação extraiu a ideia do sacrifício que o pai devia ter feito
para condescender com ela; ideia que a pôs triste, ainda que não por muito
tempo, como sucede às tristezas pueris. A penetração madrugava, mas a dor
moral fazia também irrupção naquela alma até agora isenta da jurisdição da
fortuna. (ASSIS, 1975, p. 79)
Machado, nesse momento, apresenta-nos um problema: Iaiá reconhece que o pai
sacrificou-se ao lhe dar um piano de presente. Porém, como as tristezas pueris não
duram, logo ela delicia-se com o presente.
O que se mostra importante neste breve trecho é a presença de uma palavra-chave
da narrativa de ‘’Iaiá Garcia’’. Palavra que constitui o verdadeiro palco da discussão nesta
obra: a moral. Percebe-se que desde cedo (a personagem contava nessa época com onze
anos de idade) Iaiá compreende a “dor moral” que o pai tem de sofrer, para que possa
lhe dar educação e conforto.
O romance trata, portanto, da aprendizagem de Iaiá em um novo mundo: o mundo
da tensão entre o social e o natural, mediante o jogo imposto pelo narrado acerca da
moral.
Iaiá Garcia |Machado de Assis
37
O primeiro momento de tensão da narrativa ocorre já no segundo capítulo do
romance. Na verdade, trata-se de uma fórmula que se repetirá em toda a trama: a
realização ou não de um casamento, como já vimos.
Temos a tríade Estela – Valéria – Jorge que representa a dinâmica entre o natural e o
social por meio do casamento. A convocação de Luís Garcia para interagir nessa
dinâmica, sendo esse o tema do segundo capítulo do romance, não afeta o trinômio,
pois, como sabemos, ele não participará diretamente da tensão. Porém, caberá a essa
personagem o papel de julgar, sendo complementado pelo narrador. O diálogo entre
Valéria, Luís Garcia e Jorge é recheado de julgamentos morais que levam o leitor a uma
dubiedade: ao separar seu filho de Estela, a verdadeira motivação de Valéria é egoísta,
mas, por outro lado, existem grandes vantagens sociais para o jovem rapaz.
Sob esse aspecto, basta que observemos a descrição que Machado de Assis faz de
Estela:
Simples agregada ou protegida, não se julgava no direito a sonhar posição superior
e independente; e dado que fosse possível obtê-la, é lícito afirmar que recusara, porque,
a seus olhos seria um favor, e sua taça de gratidão estava cheia. (...)
Pois o orgulho de Estela não lhe fez somente calar o coração, infundiu-lhe a
confiança moral necessária para viver tranquila no centro mesmo do perigo.
A dissimulação, característica própria do universo feminino e romanesco, é
resgatada no momento em que Estela descobre seu amor por Jorge:
No meio de semelhante situação, que sentia ou pensava Estela? Estela amava-o. No
instante em que descobriu esse sentimento em si mesma, pareceu-lhe que o futuro se lhe
rasgava largo e luminoso; mas foi só nesse instante. Tão depressa descobriu o
sentimento, como tratou de o estrangulá-lo ou dissimular, — trancá-lo ao menos no
mais escuro do coração, como se fora uma vergonha ou pecado. (ASSIS, 1975, p. 97)
Sendo assim, a primeira tensão do romance é a seguinte: Jorge ama uma mulher
que não é compatível com sua condição social. A mãe do rapaz se mostra contrária a essa
união, mas Estela descobre que também o ama. No entanto, Estela, dominada pelo
orgulho, rechaça a possibilidade de uma união, pois, em seu entendimento, entregar-se
a Jorge seria assumir seu papel de agregada. Assim, a mulher passa a dissimular seus
sentimentos, tornando-se superior ao amado por meio da frieza para com ele.
Apesar de Estela esconder seus sentimentos, é Valéria que domina por ser mais
experiente na arte da dissimulação. Ou seja, Valéria, desde o primeiro momento, percebe
que há um perigo a ser vencido: Jorge não pode casar-se com Estela:
Valéria reparou na atitude dos dois; mas como possuía a qualidade de dissimular as
impressões, não alterou nem o gesto nem a voz. Os olhos é que nunca mais os deixaram.
(ASSIS, 1975; p.102)
Sempre vigilante, e apesar de todos os percalços, Valéria despacha o filho para o
Paraguai. Porém, antes de morrer, casa Estela com Luís Garcia, sendo este o segundo
trinômio da trama: Estela – Valéria – Luís Garcia.
Aqui se configura uma pequena mudança: todos são a favor do casamento. Em
primeiro lugar, Valéria vê nesta união a resposta para seus problemas; por isso, oferece o
dote de casamento para Estela. Em vista desse fato, percebe-se claramente a maestria de
38
Iaiá Garcia |Machado de Assis
Valéria:
Com essa ideia opressiva entrou ela na casa da viúva, cuja recepção lhe desabafou o
espírito do mais espesso de suas preocupações. Valéria beijou-a, com um gesto mais
maternal que protetor. Nem lhe deixou concluir a frase de agradecimento; cortou-a com
uma carícia (...) dissimulação generosa, que Estela compreendeu, porque também
possuía o segredo dessas delicadezas morais.
Ou seja, Estela acaba por reconhecer em Valéria alguém superior às suas forças. A
orgulhosa agregada não conseguiu separar-se de sua protetora, pois, reconhecendo-lhe
a superioridade na arte da dissimulação, não lhe sobra recursos a não ser retornar à
esfera de proteção da viúva.
Logo após esse episódio, Estela e Luís Garcia discutem sobre o projeto de se unirem:
— Creio que nenhuma paixão nos cega, e se nos casarmos é por nos
julgarmos friamente dignos um do outro.
— Uma paixão de sua parte, em relação à minha pessoa, seria inverossímil,
confessou Luís Garcia; não lha atribuo. Pelo que me toca, era igualmente
inverossímil um sentimento dessa natureza, não porque a senhora não pudesse
inspirar, mas porque eu já não o poderia ter.
— Tanto melhor, concluiu Estela; estamos na mesma situação e vamos
começar uma viagem com os olhos abertos e o coração tranqüilo. Parece que em
geral os casamentos começam pelo amor e acabam pela estima; nós começamos
pela estima; é muito mais seguro.
Do diálogo entre as personagens não deriva, por certo, um julgamento amoroso,
pois se trata de um julgamento moral, que fora impulsionado pela mãe de Jorge. A
mesma senhora que, para recompensar esse matrimônio, entrega o dote de Estela. A
união entre o indiferente Luís Garcia e a orgulhosa viúva é uma união de características
que não se confundem, mas que podem vir equilibrar a economia doméstica da casa de
Iaiá Garcia. O real motivo do casamento para Luís é Iaiá, que já reconhecera Estela como
uma mãe possível, mas que em sua ingenuidade não participou dos planos de Valéria.
Jorge retorna da guerra para descobrir a amada em matrimônio com seu melhor
amigo, e a mãe morta. Lembremos que os dois primeiros trinômios de tensão da
narrativa tiveram como motivo inspirador as próprias resoluções de Valéria. Devemos
lembrar ainda que uma personagem fora dos trinômios serve de catalisador dos
acontecimentos – no primeiro trinômio, temos Luís Garcia; no segundo, Iaiá. O próximo
trinômio apresentará Iaiá como uma de suas peças fundamentais.
Agora temos Luís Garcia – Iaiá Garcia – Jorge. É Iaiá, centro deste trinômio, que
desenvolve a dinâmica da narrativa. Aqui trata-se do casamento como salvaguarda de
uma situação: Iaiá pretende casar-se com Jorge pelo amor que tem ao pai. Vejamos como
se configura o problema:
(...) Luís Garcia disse algumas palavras a respeito do filho de Valéria.
— Pode ser que eu me engane, concluiu o cético; mas persuado-me que é um bom
rapaz.
Iaiá Garcia |Machado de Assis
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Estela não respondeu nada; cravou os olhos numa nuvem negra, que manchava a
brancura do luar. Mas Iaiá, que chegara alguns momentos antes, ergueu os ombros com
um movimento nervoso.
— Pode ser, disse ela; mas eu acho-o insuportável.
E ainda:
A verdadeira causa era nada menos que um sentimento de ciúme filial. Iaiá adorava
o pai sobre todas as coisas; era o principal mandamento de seu catecismo. Instigara o
casamento, com o fim de lhe tornar a vida menos solitária, e porque amava Estela. O
casamento trouxe para casa uma companheira e uma afeição; não lhe diminuiu nada do
seu quinhão de filha.
Iaiá viu, entretanto, a mudança nos hábitos do pai, pouco depois de convalescido, e
sobretudo desde os fins de setembro. Esse homem seco para todos, expansivo somente
na família, abriria uma exceção em favor de Jorge (...)
A primeira motivação de Iaiá é separar Luís Garcia de Jorge por conta de um ciúme
filial. Entretanto, o que acontece é o oposto: pouco a pouco, Jorge aproxima-se de Iaiá
sem perder a admiração de Luís Garcia. Em realidade, essa admiração moral aumenta. E
Iaiá ainda não tinha os planos de casamento. Até então, seu objetivo era afastar Jorge de
seu pai.
No capítulo X, há a mudança na resolução de Iaiá. E, seguindo a ordem da narrativa,
um fator externo desencadeia a mudança: a releitura de uma das cartas de Jorge nos
tempos de guerra, releitura para o pai e leitura para Estela e Iaiá – que “lê” os olhos da
madrasta.
Iaiá, mesmo com um pretendente certo, começa a aproximar-se de Jorge. Procópio
Dias, o pretendente cuja moral é execrada tanto pelo narrador quanto por Jorge, precisa
viajar para recuperar uma herança. O afastamento de Procópio, como anteriormente o
afastamento de Jorge, configura a aproximação das personagens, que terminará no
matrimônio de ambos. Procópio pede a Jorge para cuidar de Iaiá. E Iaiá inicia seu plano
para conquistar o antigo amado de Estela. Como já vimos, o objetivo de Iaiá não é a
disputa mas a salvaguarda de seu pai, pois ela sabia o perigo que representava Jorge em
sua casa.
A filha de Luís Garcia, enfim, consegue seu objetivo. Jorge jura-lhe amor e os dois
iniciam os preparativos para o casamento. Contudo, o pai de Iaiá encontra-se enfermo e
acaba por falecer.
Regida pelo orgulho, Estela percebe logo que Iaiá deseja casar-se com Jorge por
algum motivo além de seus próprios sentimentos. Vejamos a reação da personagem à
situação em que é mera espectadora:
O procedimento da enteada, a súbita conversão às atenções de Jorge, toda aquela
intimidade visível e recente, acordara no coração de Estela um sentimento, que nem aos
orgulhosos poupa. Ciúme ou não, revolvera a cinza morna e achou lá dentro uma brasa.
(...)
(...) O orgulho vencera uma vez; agora era o amor, que, durante anos de jugo e
compressão, criara músculos e saía a combater de novo. A vitória seria uma catástrofe,
porque Estela não dispunha da arte de combinar a paixão espúria com a tranquilidade
40
Iaiá Garcia |Machado de Assis
doméstica; teria as lutas e as primeiras dissimulações; uma vez subjugada, iria direto ao
mal.
Vemos que os ciúmes de Estela continuam relacionados a uma situação em que o
orgulho é o verdadeiro motivo, pois, mesmo reconhecendo o amor de Jorge, ela
pretende provar que é moralmente superior. Com a morte de Luís Garcia, no capítulo XV,
Estela poderia desobrigar-se dos impedimentos morais que a colocaram na situação
acima mencionada. Todavia, devemos lembrar que Estela era também mãe de Iaiá. Esse
fato, gerado pela convivência das duas em casa do pai de Lina, poderia ser exatamente o
sucesso da nova empreitada da viúva: casar os até então noivos Jorge e Iaiá.
Porém, Iaiá não desejava mais casar com o filho de Valéria. Vejamos os motivos:
Mas duas circunstâncias a induziram ao desfecho; era a primeira a
revelação de Procópio Dias, confirmação de suas suspeitas; a segunda foi o
espetáculo que se lhe ofereceu aos olhos, naquela noite, logo depois de se
despedir do noivo. Sabendo que a madrasta estava no gabinete do pai, ali foi ter
e espreitou pela fechadura; viu-a sentada com a cabeça inclinada ao chão,
desfeito o penteado, mas desfeito violentamente, como se lhe metera as mãos
em um momento de desespero, e caindo-lhe o cabelo em ondas amplas sobre a
espádua, com a desordem da pecadora evangélica. Iaiá não a viu sem que os
olhos se umedecessem.
— Que se casem! disse a moça resolutamente.
Embora ainda ame Jorge, a menina decide desfazer a promessa porque sua
madrasta o ama e não há impedimento moral algum para que se faça a união. É aqui que
vemos como a “puberdade moral” de Iaiá torna-a superior aos procedimentos de Estela:
Ergueu-se e procurou beijá-la. A madrasta recuou instintivamente a cabeça; era um
gesto de repugnância, que a fisionomia ingênua e pura de Iaiá para logo dissipou. Em tão
verdes anos, sem nenhum trato social, era lícito supor na menina tamanha dissimulação?
Sim, pois Iaiá sabia da paixão de Jorge e do amor que Estela tentava esconder. É
claro que o orgulho de Estela passa a interpretar as atitudes de sua enteada como “um
impulso desinteressado”. Porém, o leitor sabe que não se trata disso, mas de uma
batalha, em todo o romance, de fingimentos para atingir determinados objetivos em
torno do contrato social chamado casamento. Estela, perdida em meio à batalha das
ilusões, ainda ama Jorge, que não mais a ama.
Entretanto, Estela não deseja casar com Jorge, pois seu orgulho a impede. Assim,
após o noivo de Iaiá recorrer à futura sogra por meio de uma carta, Estela decide intervir.
Vai ao encontro da jovem e inicia o mais longo diálogo do texto, resultando em um
casamento por amor e o afastamento de alguém, neste caso, Estela, que deixa o Rio de
Janeiro e, ao fazer isso, demonstra que a única coisa a escapar ao naufrágio das ilusões é
a moral, respondendo assim a indeterminação dada pela palavra “coisa” na frase final
do romance: “Era sincera a piedade da viúva. Alguma coisa escapa ao naufrágio das
ilusões”.
Iaiá Garcia |Machado de Assis
41
O Realismo e o Naturalismo
UVA 2015.1
Pintor Paul Desire Trouillebert, París, Francia,
REALISMO
Realismo exterior
Aproveitamento das conquistas da ciência.
Objetividade na fotografação da realidade concreta.
Obra de arte como arma de combate das indústrias decadentes (Burguesia, Clero
e Trono)
O exagero de tais características originou o NATURALISMO.
o Aluízio Azevedo
o Inglês de Sousa
o Adolfo Caminha
o Domingos Olímpio.
Realismo interior
Preconiza como realidade objetiva não a aparência, mas a essência dos seres e
das coisas de onde procura vasculhar a psicologia íntima dos personagens:
Machado de Assis e Raul Pompéia.
O prolongamento dessa linha converge para a prosa simbolista.
A prosa regionalista
Coelho Neto e Afonso Arinos
A presença do conto
Origens:
Revolução Industrial.
Avanço científico e tecnológico.
Teorias científicas: Positivismo, Evolucionismo, Experimentalismo.
O escritor deve acercar-se impessoalmente dos fatos, sendo objetivo e tendo
42
Análise das Obras | UVA 2015.1
como apoio a Ciência.
França: Gustave Flaubert (Madame Bovary, 1856)
Brasil: Machado de Assis (Memórias Póstumas de Brás Cubas)
Características:
Veracidade: A existência como se dá nos sentidos: Senso de responsabilidade e
análise da realidade.
Contemporaneidade: As habilidades do dia a dia; os dramas do momento.
Materialismo: Nada de transcendentalismo; os fenômenos físicos ou
psicológicos tem origem na matéria.
Narrativa lenta: Prefere a narração à descrição, tem valorização dos detalhes.
Objetividade: Os autores realistas são mais que tudo objetivos: preocupam-se,
quase obsessivamente, em mostrar as coisas como elas são de fato, e não como
gostariam que fossem.
Atitude de crítica e de combate: Para os autores realistas, o romance não se devia
limitar a um simples passatempo, leitura inconsequente para as horas de lazer;
era, isto sim, um poderoso instrumento de crítica e de combate a instituições
arcaicas e ultrapassadas, como – acreditavam eles – a Igreja Católica. Esse direito
de crítica, os realistas exerceram, muitas vezes, de maneira violenta e impiedosa.
Espírito analítico: Nas obras realistas, vê-se que os autores analisam a realidade
profunda e minuciosamente a fim de evitar visões grosseiras e deformadas pela
observação comum. Esse espírito analítico explica, facilmente, o gosto pela
observação, manifestado por quase todos os escritores realistas.
Determinismo na atuação das personagens: Como diz o Prof. Domício Proença
Filho, “nenhuma atitude do personagem pára o seu comportamento”.
Preferência pela Narração: Ao contrário dos românticos – fortemente descritivos
– os realistas optam, quase sempre, pela narração, gênero mais objetivo e menos
propício a divagações filosóficas por parte do autor. Acrescente-se que a
narração dos realistas é quase sempre lenta, devido ao gosto desses autores pelo
detalhe.
Correção Gramatical: Uma das principais características do realismo: senhores
do idioma com que trabalham, os realistas primam pela linguagem correta e
elegante, fruto de contínua preocupação com a perfeição formal.
Linguagem próxima da realidade: A linguagem dos realistas não chega a ser
coloquial – como lograram conseguir os modernistas – mas já se aproxima
bastante da realidade, livre de rebuscamentos e de floreios retóricos.
Quadro comparativo:
Realismo
Pontos em comuns
Naturalismo
Faz romance de tese
documental.
Fundamentação filosófica
idêntica: Positivismo e
Determinismo.
Faz romance de tese
experimental.
Análise das Obras | UVA 2015.1
43
Focaliza o sociológico.
Detém a análise em
determinado ponto.
É indireto na
interpretação; deixa
subtendido: o leitor tira
suas conclusões.
Diferem na aplicação das
teorias.
Focaliza o patológico.
São ambos anticlericais e
antiburgueses.
Não detém a análise, vai até
o fim.
Querem retratar e educar
a sociedade.
É direto na interpretação;
expõe conclusões; cabe ao
leitor aceitá-las ou discuti-las.
NATURALISMO
A delimitação do Naturalismo como estilo literário tem gerado algumas
controvérsias: para alguns autores, está o Naturalismo contido no Realismo, sendo, na
realidade, apenas um momento deste; para outros, trata-se de um estilo à parte, como
características próprias e bem definidas. Concordamos com o porf. Afrânio Coutinho,
um dos mais respeitados críticos literários do Brasil, quando se diz ser o Naturalismo um
Realismo a que se acrescentam certos elementos, o que distingue e toma inconfundível
sua fisionomia em relação a ele. O mais correto seria talvez falarmos de NaturalismoRealismo; aqui, por conveniência didática, estamos considerando os termos
separadamente. Vejamos, então, quais são os elementos que caracterizam o
Naturalismo; como um estilo literário, diferenciando-o do Realismo que acabamos de
estudar.
Características:
Conceito de homem natural: Para os naturalistas, o homem é antes de tudo, um
animal, sujeito às leis físico-químicas da Natureza e profundamente influenciado
pelo meio-ambiente.
Tematização do patológico: Há, nos autores naturalistas, uma acentuada
preferência por temas de natureza patológica, como os desvios da sexualidade
(homossexualidade, incesto, bestialismo).
Amoralismo: Percebe-se, facilmente, nas obras naturalistas, uma nítida
preocupação com as regras e preceitos da moral, de que resulta o amoralismo
que, não rara vezes, surpreende e até choca o leitor.
Cientificismo: Para os naturalistas, só as leis científicas sobre a Natureza é que são
válidas; concepções teológicas e metafísicas, que transcendem a Ciência, não
têm, para eles, nenhum valor. Os escritores Naturalistas foram influenciados por
três princípios científicos-filosóficos em voga na segunda metade do século XIX:
o Determinismo (que estabelece relações de causa e consequência entre todos os
fenômenos observados na Natureza); o Positivismo (que apresenta leis para
explicar o comportamento e as transformações por que passa a sociedade); e o
Evolucionismo (segundo o qual todos os seres vivos da face da terra, animais,
vegetais, estão em contínua transformação).
44
Análise das Obras | UVA 2015.1
Análise da Obra
A Carne
Júlio Ribeiro
UVA 2015.1
RESUMO
Linguagem
Uma técnica comum ao escritor naturalista é o abuso dos pormenores descritivonarrativos de tal modo que a estória caminha devagar, lerda e até monótona. É a
necessidade de ajuntar detalhes para se dá ao leitor uma impressão segura de que tudo é
pura realidade. Essas minúcias se estendem a episódios, a personagens e a ambientes
que obviamente serão colocados em segundo plano em nosso resumo. Num episódio,
por exemplo, há minúcias de tempo, local e personagens. E móveis de uma sala até os
objetos mais miúdos.
Não se pode dizer que a linguagem do romance é regionalista; pelo contrário, o
padrão da língua usada é geral e o torneio frasal, a estrutura morfossintática é
completamente fiel aos padrões da velha gramática portuguesa.
ELEMENTOS DA NARRATIVA
Foco narrativo
O autor escolheu o seu ponto-de-vista narrativo: a terceira pessoa do singular, um
narrador onisciente e onipotente, fora do elenco dos personagens. Como um
observador atento e minucioso dentro das próprias fórmulas apertadas do naturalismo.
Temática
A temática central é sem dúvida a carne, o título já diz tudo sofre a temática, é
submissão da carne de Lenita frente à ciência, ao racional, ao lógico.
Por inúmeras vezes se é feita alusão ao termo que dá título ao romance, o primeiro
enlace com esse fenômeno é no capítulo III, quando ela vê o gladiador do alto do céu no
lodo da terra, sentir-se ferida pelo aguilhão da carne, espolinhar-se nas
concupiscências do cio, como uma negra boçal, como uma cabra, como um
animal qualquer... era a suprema humilhação.
A partir começa o embate de seu espírito com seu corpo, chegou a entender sua
condição.
Depois mudava de pensar: não estava doente, seu estado não era
patológico, era fisiológico. O que ela sentia era o aguilhão genésico, era o
mando imperioso da sexualidade, era a voz da carne a exigir dela o seu tributo
de amor, a reclamar o seu contingente de fecundidade para a grande obra da
perpetuação da espécie.
Análise das Obras | UVA 2015.1
45
Tempo
Cronológico sem flashback.
Sobre isso nada se é dito, o leitor tem apenas uma dica quando Barbosa, interrogado
sobre a questão da escravatura fala sobre as campanhas abolicionistas, então pressupõe
que se passe entre 1880 a 1888, quando se tem a abolição da escravatura.
No entanto, no capítulo XI, na carta que Manuel envia a Lenita, coloca-se a data, 22
de janeiro de 1887. No capítulo seguinte inicia-se dizendo: Até 1887 vivia-se em pleno
feudalismo no interior da província de São Paulo.
Espaço
O ambiente se passa dentro de uma fazenda de cana de açúcar no interior de São
Paulo, o local exato não nos é revelado, até mesmo quando Manuel escreve para Lenita, o
autor trata de nos omitir quando no começo da carta transcreve Vila de ***** o que
mostra a real intenção de omitir o nome do lugar.
Entretanto, ao passo que o autor nos omitiu o nome, não dispensa em detalhes o
ambiente, a cada capítulo, principalmente a partir do terceiro, a natureza, o espaço físico,
tão importante no Naturalismo vai exercendo sobre a moça uma força incrível, aquela
natureza vai tendo a responsabilidade de torná-la mais feminina, mais humana, afastada
daqueles estudos científicos.
Essa mesma natureza vai dando uma euforia de erotização à personagem central
que é impossível de domar.
Uma exalação capitosa subia da terra, casava-se estranhamente à essência
sutil que se desprendia das orquídeas fragrantes: era um misto de perfume
suavíssimo de cheiro áspero de raízes de seiva, que relaxava os nervos, e
adormecia o cérebro.
Lenita hauriu a sorvos largos esse ambiente embriagador, deixou-se vencer
dos amavios da floresta.
A personagem se entrega a tais encantos.
A terra casava suas emanações quentes, ásperas, elétricas com o mormaço
lúbrico da luz do sol coada pela folhagem.
Em cada buraco escuro, em cada fenda de rocha, por sobre o solo, nas hastes
das ervas, nos galhos das árvores, na água, no ar, em toda a parte, focinhos,
bicos, antenas, braços, élitros desejavam-se, procuravam-se, encontravam-se,
estreitavam-se, confundiam-se, no ardor da sexualidade, no espasmo da
reprodução.
O ar como que era cortado de relâmpagos sensuais, sentiam-se passar
lufadas de tépida volúpia. Sobressaía a todos os perfumes, dominava forte um
cheiro acre de semente, um odor de cópula, excitante, provocador.
Lenita estava preguiçosa. Internava-se na mata e, quando achava uma
barroca seca, uma sombra bem escura, reclinava-se aconchegando o corpo na
alfombra espessa de folhas mortas, entregava-se à moleza erótica que estilava
46
A Carne |Júlio Ribeiro
das núpcias pujantes da terra. Voltava à casa, estendia-se na rede, com uma
perna estirada sobre outra, com um livro que não lia caído sobre o peito, com a
cabeça muito pendida para trás, com os olhos meio cerrados, e assim quedava-se
horas e horas em um lugar cheio de encantos.
Não só os elementos naturais exercem essa força como também os animais, desde
os quadrúpedes aos insetos. É essa mesma natureza que a faz comtemplar a execução de
reprodução de bovinos e o encontro animalesco de um casal de escravos.
É também através dessa natureza que o autor justifica a mudança de personalidade
da moça quando a mesma começa a ter comportamentos estranhos, como por exemplo,
sentir prazer na dor.
Essa mesma natureza também lhe serve de diversão quando também passa a caçar
animais com destreza de homem.
Personagens
Lenita, ou Helena: Era filha de Lopes Matoso, que após a morte do mesmo vai para
a fazenda no interior de São Paulo morar com o tutor de seu pai o coronel Barbosa, pai de
Manuel, desde moça recebera uma educação exemplar digna de elite, nunca pensou em
casamento.
Descrição: Moreno-clara, alta, muito bem lançada, tinha braços e pernas roliças,
musculosas, punhos e tornozelos finos, mãos e pés aristocraticamente perfeitos,
terminados por unhas róseas, muito polidas. Por sob os seios rijos, protraídos,
afinava-se o corpo na cintura para alargar-se em uns quadris amplos, para
arredondar-se de leve em um ventre firme, ensombrado inferiormente por velo
escuro abundantíssimo. Os cabelos pretos com reflexões azulados caíam em
franjinhas curtas sobre a testa indo frisar-se lascivamente na nuca. O pescoço era
proporcionado, forte, a cabeça pequena, os olhos negros vivos, o nariz direito, os
lábios rubros, os dentes alvíssimos, na face esquerda tinha um sinalzinho de
nascença, uma pintinha muito escura, muito redonda. Pág. 26
Manuel Barbosa: Um tipo esquisitão que era velho até para ser pai de Lenita e
acaba se apaixonando pela moça.
Descrição:
O homem que aí vinha não era o Barbosa da véspera, era uma
transfiguração, era um gentleman em toda a extensão da palavra.
A testa alta, estreita, lisa, mostrava-se a descoberto, com uma zona muito
alva à raiz do cabelo: esse, cortado, à meia cabeleira, recurvava-se a frente em
uma elegante pastinha à Capoul, a que dava certo realce muitos fios cor de prata.
A Carne |Júlio Ribeiro
47
O rosto era regularíssimo, estava muito bem barbeado. À palidez da véspera
sucedera uma cor sadia de pele clara, mordida, bronzeada pelo sol. A boca, de
tipo saxônio puro, encimada por um bigode cuidadosamente aparado e seu tanto
ou quanto grisalho, abria-se em um sorriso bondoso e franco, mostrando dentes
fortes, regulares, muito limpos. Estatura esbelta, pés delicados, mãos muito bem
feitas, muito bem tratadas. Pág. 80
Lopes Matoso: Pai de Lenita, não teve uma vida feliz ao perder os pais, mas teve a
orientação de coronel Barbosa, que lhe deu os ensinamentos necessários para viver, ao
alcançar a maioridade recebeu toda a fortuna que lhe cabia e só não recebeu do coronel
uma esposa porque só tinha um filho.
Logo tratou de casar, casou-se com uma prima, passados dois anos teve Helena
(Lenita), que lhe custou a vida da esposa.
O pai criara a filha com muito gosto e lhe deu educação de primeira linha, até para
casar o pai consultava a filha, a mesma sempre recusava, pois só queria estudar.
Infelizmente, em um fatídico dia teve uma congestão pulmonar e morreu logo em
seguida, sua ausência marca bastante a filha que só vai sendo esquecido na chegada de
Manuel Barbosa.
Coronel Barbosa: Senhor avançado em idade, com mais de 80 anos, havia sido o
tutor de Lopes Matoso e agora seria o de Lenita após a perca do pai, vivia sozinho com a
esposa que tinha problemas de audição. Boa parte do tempo vivia no quarto sofrendo
com seu reumatismo.
Joaquim Cambinda: Feiticeiro com mais de 80 anos, fora uma herança vinda da tia
de coronel Barbosa, o coronel vendo-o velho não lhe deu trabalho, mas sim uma casa.
Acaba sendo no capítulo XII queimado pelos próprios escravos ao descobrirem que ele os
envenenava para dar prejuízos ao coronel Barbosa.
Descrição: Era horroroso esse preto: calvo, beiçudo, maxilares enormes, com as
escleróticas amarelas, raiadas de laivos sangüíneos, a destacarem-se na pele
muito preta. Curvado pela idade, tardo, trôpego, quando se erguia e, envolto na
sua coberta de lã parda, dava alguns passos, similhava uma hiena fusca,
vagarosa, covarde, feroz, repelente. Tinha as mãos secas,aduncas; os dedos dos
pés reviravam-se-lhe para dentro, desunhados, medonhos. Pág. 63
ENREDO
I
O livro inicia falando que Lopes Matoso não fora um homem feliz, perdera a mãe e
o pai muito novo e teve a sorte de ter como tutor o coronel Barbosa, após conseguir
atingir a maioridade recebeu a fortuna como herança e logo tratou de aumentá-la,
48
A Carne |Júlio Ribeiro
depois casou e teve uma linda filha, entretanto perdera a esposa no parto.
Seu nome é Lenita, ou Helena, mas não é a do Estácio, a do Machado de Assis é
mais comportadinha, a desse resumo é mais safadinha.
A moça recebeu a melhor das educações
Lenita teve então ótimos professores de línguas e de ciências; estudou o
italiano, o alemão, o inglês, o latim, o grego; fez cursos muito completos de
matemáticas, de ciências físicas, e não se conservou estranha às mais complexas
ciências sociológicas. Tudo era fácil, nenhum campo parecia fechado a seu vasto
talento.
O pai vendo tal evolução percebeu que seria bom para a filha casar, pois a mesma
andava muito isolada com livros e estudos. Logo, muitos candidatos apareceram, todos
foram dispensados.
Um belo dia o pai acordou passando mal e morreu naquela mesma manhã, a dor da
moça, agora herdeira de tudo, pois era filha única, era imensa.
Depois de passar a dor tratou de dar rumo a sua vida e escreveu para o coronel
Barbosa pedindo que a acolhesse, o coronel mandou resposta alegando que a sua esposa
ficara feliz em saber da visita de uma mulher já que o casal, ambos avançados em idade,
só tinha um filho, um tanto esquisitão que vivia a caçar em outras regiões.
Uma semana depois lá estaria ela de mudança na fazenda do antigo tutor de seu pai.
Curiosidades do capítulo I
1 – A esposa de Lopes Matoso era sua prima;
2 – O pai de Lenita a consultava sobre os pretendentes;
3 – Lopes Matoso morre de congestão pulmonar;
4 – Lenita estava com 22 anos.
II
Lenita começou a sentir o impacto da ausência do pai dias depois, a monotonia da
fazenda, que o autor nos faz questão de descrever, abateu-a, e dias depois de recusas em
comer e estar na mesa de jantar, nas raras vezes que jantavam juntos (coronel e esposa),
passou a vomitar e desmaiou, todos estavam a seu serviço, mandaram chamar um
médico, depois de examiná-la e vê-la acordar de súbito, aplicou-lhe uma injeção e
garantiu melhoras para o dia seguinte.
Curiosidades do capítulo II
1 – O médico chamava-se Dr. Guimarães;
2 – Lenita ganha dois escravos de presente do coronel, uma mulata e um
rapazote.
A Carne |Júlio Ribeiro
49
III
É nesse que o naturalismo se aflora, que vemos uma mudança repentina no caráter
comportamental da jovem moça.
Começou primeiro por acordar no dia seguinte muito calma, ao longo de alguns dias
perdeu aquele desejo viril de ciência e passou a ler obras de caráter mais romântico.
Depois sentiu vontade de sofrer por alguém pobre ou que estivesse sofrendo,
lembrou que se fosse mãe teria sempre filhos a depender de seus carinhos, até melhorou
o humor.
Estava se feminizando.
Um belo dia, estava sozinha na sala, deitada na rede, quando reparou em uma
estátua de um gladiador de bronze, após ser ferido pela luz, a moça teve desejos que
nunca experimentara.
Ergueu-se, acercou-se da mesa, fitou com atenção a estátua: aqueles braços,
aquelas pernas, aqueles músculos ressaltantes, aqueles tendões retesados,
aquela virilidade, aquela robustez, impressionaram-na de modo estranho.
Dezenas de vezes tinha ela estudado e admirado esse primor anatômico em
todas as suas minudências cruas, em todos os nadas que constituem a perfeição
artística, e nunca experimentara o que então experimentava.
Depois desejou algo mais.
Atormentava-a um desejo de coisas desconhecidas, indefinido, vago, mas
imperioso, mordente. Antolhava-se-lhe que havia de ter gozo infinito de toda a
força do gladiador se desencadeasse contra ela, pisando-a, machucando-a,
triturando-a, fazendo-a em pedaços.
E tinha ímpetos de comer de beijos as formas masculinas, estereotipadas no
bronze.
...
o que sentia era o desejo, era a necessidade orgânica do macho.
Lenita procurou se livrar desses desejos e se recolheu aos seus aposentos, à noite, ela
menstruou, aquele evento lhe era comum desde os quatorze anos, começara a estudar
anatomia para entender o evento, mas aquele fora diferente, a empregada foi lhe buscar
novas vestes. Barbosa foi até o quarto dizendo ser seu novo pai e que não lhe escondesse
se estivesse doente.
Depois de passado algumas horas ela tem uma alucinação, ela sonha com o
gladiador dominando-a, possuindo-a.
Lenita ofegava em estremeções de prazer, mas de prazer incompleto, falho,
torturante. Abraçando o fantasma de sua alucinação, ela revolvia-se como uma
besta-fera no ardor do cio. A tonicidade nervosa o erotismo, o orgasmo,
manifestava-se em tudo, no palpitar dos lábios túmidos, nos bicos dos seios
cupidamente retesados. Em uma convulsão desmaiou.
50
A Carne |Júlio Ribeiro
IV
A jovem moça acordou ainda melhor, estava em uma disposição inabalável, divertiase pelo ambiente a procurar algo a fazer, depois começou a caçar, fazia-o pelo prazer da
aventura, até que um dia viu uma lagoa, decidiu ali mesmo tomar banho, nua, o
ambiente a incitava a tal comportamento, ali ela amou a si mesma, via na loucura de sua
carne seu corpo e aquele ambiente que a erotizava um resumo, uma só coisa.
O autor aproveita para descrever com delongas o ambiente e os aspectos físicos da
personagem central (ver Lenita, personagens), ela se banhou e se deliciou com tal banho,
uma espécie de gozo a consumia.
Depois de finalizado o banho foi feliz ver o coronel que lhe deu conhaque, de início
rejeitou, mas logo pediu mais e repetiu.
Curiosidades do capítulo IV
1 – Lenita nesse capítulo começa a sofrer um ataque pelo ambiente que a
seduz comprovando assim a maior tese do naturalismo, o homem é um produto
do meio.
Uma exalação capitosa subia da terra, casava-se estranhamente à
essência sutil que se desprendia das orquídeas fragrantes: era um misto
de perfume suavíssimo de cheiro áspero de raízes de seiva, que relaxava
os nervos, e adormecia o cérebro.
Lenita hauriu a sorvos largos esse ambiente embriagador, deixou-se
vencer dos amavios da floresta.
Apoderou-se dela um desejo ardente, irresistível, de banhar-se nessa
água fresca, de perturbar esse lago calmo.
V
Nesse capítulo vai começar a moagem, a colheita da cana para o preparo de açúcar,
os funcionários bradavam de júbilo ao ver as carroças cheias de cana para descascar e
moer.
O narrador não deixa de fazer aqui características zoomórficas.
Dominava no ambiente aroma suave, sacarino, cortando espaços por uma
lufada tépida de cheiro humano áspero, de catinga sufocante exalada dos
negros em suor.
Lenita não saia de perto do coronel e tudo queria saber e acabou por matar tais
desejos. Após saber de todos os processos da cana, desde de sua saída até o comércio
começou a fazer cálculos, coronel Barbosa chega a dizer que ficaria até milionário se
tivesse casado com ela.
As curiosidades de Lenita não pararam por aí, começou a perguntar sobre o filho do
coronel, quando viria das caçadas, e passou então a desejá-lo em secreto, ansiava a sua
A Carne |Júlio Ribeiro
51
chegada.
Ao final de um dia ela viu um escravo passando e lhe implorou que lhe tirasse os
ferros, pois a ferida estava em carne viva. Foi pedir ao coronel que a atendeu, mas
avisando-a que o mesmo logo logo fugiria.
Curiosidades do capítulo V
1 – Manuel Barbosa é descrito pelo pai como um esquisitão que se trancava
em seu quarto com os livros, isso interessa a moça.
2 – Manuel estava em Paranaparema.
VI
A moagem terminou, a fauna começou novamente a exercer um poder sobre ela,
era um poder erótico, sensual.
Depois disso, apresentou um comportamento estranho.
Ficara cruel: beliscava as criolinhas, picava com agulhas, feria com canivete
os animais que lhe passavam ao alcance. Uma vez um cachorro reagiu e mordeua. Em outra ocasião pegou num canário que lhe entrara na sala, quebrou-lhe e
arrancou-lhe as pernas, desarticulou-lhe uma asa, soltou-o, findo com prazer
íntimo ao vê-lo esvoaçar miseravelmente, com uma asa só, arrastando a outra,
pousando os cotos sangrentos na terra pedregosa do terreiro.
O escravo que ela pediu que lhe tirasse os ferros fugira, mas logo fora capturado, o
coronel para se vingar disse que ele apanharia com o bacalhau.
Quando Lenita descobriu que o escravo apanharia não tardou em curiosidade para
ver, queria por que queria ver, passou dias a vigiar a senzala, quando foi chegado o dia,
correu mato adentro e com uma tesoura abriu um buraco para espiar.
Demorou até que Mané Bento abriu a senzala e lá estava o negro amarrado, disse
algumas injúrias e começou a lhe dar as surras.
Compassado, medido, erguia-se o bacalhau, descia rechinante, lambia,
cortava.
O sangue ressumou a princípio em gotas, como rubins líquidos, depois
estilou contínuo, abundante, correndo em fios para o solo.
O negro retorcia-se como uma serpente ferida, afundava as unhas na terra
solta do chão, batia com a cabeça, bramia, ululava.
- Uma! duas! três! cinco! dez ! quinze! vinte! vinte e cinco!
Parou um momento o algoz, não para descansar, não estava cansado; mas
para prolongar o gozo que sentia, como um bom gastrônomo que poupa um
acepipe fino.
Saltou por cima do negro, tomou nova posição, fez vibrar o instrumento em
sentido contrário, continuou o castigo na outra nádega.
- Uma! duas! três! cinco! dez ! quinze! vinte! vinte e cinco!
52
A Carne |Júlio Ribeiro
Os uivos do negro eram roucos, estrangulados: a sua carapinha estava suja
de terra, empastada de suor.
O caboclo largou o bacalhau sobre o estrado do tronco e disse:
- Agora uma salmorazinha para isto não arruinar.
E, tomando da mão do administrador uma cuia que esse trouxera, derramou
o conteúdo sobre a derme dilacerada.
O negro deu um corcovo; irrompeu-lhe da garganta um berro de dor,
sufocado, atroz, que nada tinha de humano. Desmaiou.
O mais impactante é a reação de Lenita que vibrava com todo aquele sofrer.
Lenita sentia um como espasmo de prazer, sacudido, vibrante; estava pálida,
seus olhos relampejavam, seus membros tremiam. Um sorriso cruel, gelado,
arregaçava-lhe os lábios, deixando ver os dentes muito brancos e as gengivas
rosadas.
O silvar do azorrague, as contrações os gritos do padecente, os fiar de
sangue que ela via correr embriagavam-na, dementavam-na, punham-na em
frenesi: torcia as mãos, batia os pés em ritmo nervoso.
Queria, como as vestais romanas no ludo gladiatório, ter direito de vida e de
morte; queria poder fazer prolongar aquele suplício até à exaustão da vítima;
queria dar o sinal, pollice verso, para que o executor consumasse a obra.
E tremia, agitada por estranha sensação, por dolorosa volúpia. Tinha na
boca um saibo de sangue.
Curiosidade do capítulo VI
1 – Bacalhau era um chicote de couro duplo com ponta de ferro.
VII
Lenita estava ciente que poderia estar doente, mas logo chegou à conclusão que
não, seu problema não era patológico, era fisiológico.
Coronel Barbosa a informou da chegada breve do filho que se sucederia daqui a
poucas horas, ela toda contente ficou e até se arrumou para isso.
Quando chegou o tal desejado Manuel, todo molhado da chuva, todo barbado,
todo maltrapilho, com cheiro de cachaça e reclamando de enxaqueca apenas se
apresentou para a moça e saiu friamente para o quarto.
A moça que se tinha toda enfeitada ficou arrasada, desapontada, e decidiu que se
mudaria para a cidade, não mais ficaria ali, teria o marido que quisesse, pois era rica, ou
melhor, o amante que quisesse, casar só na velhice.
VIII
As repugnâncias continuavam, não aguentava ter que ficar cruzando com aquele
troglodita barbudo. Estava disposta a deixar a fazenda.
A Carne |Júlio Ribeiro
53
Quando passado um dia chegou Manuel, totalmente novo, totalmente heroico,
belo ao estilo de George Cloney. (Ver Manuel Barbosa, descrição, em personagens)
Os dois passaram a conversar principalmente sobre botânica, quando chegou a hora
de almoçar chegam juntos como se fossem bons amigos.
Barbosa elogiou Helena com êxito que a deixo ruborizada de vergonha.
Depois disso, é uma amizade incomum, os dois principiaram a estudar juntos,
eletrologia, depois estudaram Grego e Latim, depois estudaram Biologia, chegaram até a
virar a noite lendo Darwin, se naquela época tivesse Enem...
Ambos começam a ter sentimentos um pelo outro, o dela era mais ardente, o dele
mais prudente, pois se achava velho demais, e julgava impróprio aquele sentimento que
nascia dentro de seu peito.
IX
Uma empresa faliu e o coronel perdeu dinheiro, o filho seria enviado para tentar
resgatar algum mísero dinheiro. Ela começou a sofrer por antecipação, chegou a dizer
que faria as malas dele.
Então, ao sair da mucama, estando sozinha, viu a cama daquele homem, e sentiu
seu cheiro, ela deitou sobre o espaço em que ela deduziu que o mesmo deitava e
Inconscientemente, automaticamente, atraída, puxada pelos nervos, Lenita
pôs as mãos no colchão fofo, curvou-se, aproximou a cabeça.
Da travesseira, misturando-se a um aroma suave de água de Lubin,
desprendia-se um cheiro animal bom, de corpo humano, são, asseado.
Lenita, haurindo essa emanação sutil, sentiu quer que era elétrico abalar-lhe
o organismo: era um anseio vago, uma sede de sensações que a torturava.
Quase em delíquio, deixou-se cair de bruços sobre a cama, afundou o rosto na
travesseira, sorveu a haustos curtos, açodados, o odor viril, esfregou, rostiu os
seios de encontro ao fustão áspero da colcha branca.
Sentia quase o mesmo que sentira na noite da alucinação com o gladiador,
um prazer mordente, delirante, atroz, com estranhas repercussões simpáticas,
mas incompleto, falho.
Trincou nos dentes a cambraia da fronha, gemendo, ganindo em contrações
espasmódicas.
A mucama entrou e achou que ela estivesse passando mal, segurou-a e logo se
acalmou. Desde então ficou estranha como se uma vergonha se apoderasse dela
Barbosa em suas reflexões ficava com saudade também, mas vendo o
comportamento estranho de Lenita, ficou disposto a acabar com aquele sentimento e
saiu às 3 horas da manhã para a cidade.
No dia seguinte, a falta de Manuel é grande, chegou a calcular o tempo e a distância
que estavam naquele momento.
Depois fora para o mato, influenciar-se pelo erotismo da fauna quando viu a cópula
de dois bovinos e depois ouviu a transa sensual de dois escravos.
54
A Carne |Júlio Ribeiro
A carne estava-a torturando, ela se reclinou e foi visitar triste o velho Barbosa que
estava com crises de reumatismo.
X
Nesse capítulo é iniciado uma descrição da dança popular dos escravos, o autor
chama de samba, inicialmente um assumiu a posição e dança de forma frenética e
desordenada, até que outro foi e desafiou, ganhou e assumiu a liderança da dança.
Os escravos repetiam o refrão Eh, pomba eh, dando a entender nitidamente que se
tratava de uma possessão demoníaca. O narrador trata de descrever a dança de
macumba com característica zoomórficas quando diz que como reptando-o para que
saísse do terreiro. Logo, após tratou de descrever Joaquim Cambinda, (ver em
personagens) preto velho e feiticeiro, ele foi ovacionado quando entrou no meio do
círculo de dança, todos lhe pediram bênçãos.
Após parar a festa, começou uma cerimônia que introduzia Jerônimo, outro escravo,
na sociedade São Miguel das Almas.
Depois ensinou uma série de superstições, umas medonhas outras bem ridículas.
Depois fechou o corpo do rapaz, com uma série de feitiços.
Passou a domar por hipnose uma negra, penetrou com agulhas seu corpo e depois
ela caiu retorcida ao chão, pegou uma enxada e lascou em seu corpo, nada a negra
sentia, só depois ele desfez o feitiço e deu ordem para o samba continuar.
Curiosidades do capítulo X
1 – É interessante notarmos o registro da mistura linguística entre o
português e o africano quando Joaquim quando fala com Jerônimo:
-Zelómo, disse Joaquim Cambinda, ussê penso bê nu quê ussê vai
fazê, lapássi?
- Penso, mganga.
- Intonsi, ussê qué mêmo si rissá ni rimanári ri San Migué rizáma?
- Qué, mganga.
2 – A palava mganga, pode-se entender como mestre, senhor do tempo.
XI
A narrativa volta-se novamente para Lenita, a falta de Barbosa lhe tirava a paz, toda
vez mandava o garoto ir ao correio para ver se tinha correspondências endereçadas a ela,
mas nada.
Até que um belo dia, chegou a tão sonhada carta, ele se trancou no quarto, fez toda
uma cerimônia para abrir a carta, e a leu, o autor transcreve a carta, o que não deveria
nem ter feito, a carta não fala nada sobre os dois, fica por horas falando do clima de
Santos, da comida, das pessoas, enfim, depois fala da natureza, das serras, dos negócios,
ao final de várias páginas ela sentiu felicidade ao dizer que pedia perdão por se demorar,
A Carne |Júlio Ribeiro
55
pois a imaginava ao lado dele, e isso a satisfez.
Ela estava apaixonada coitada.
Ao final a personagem central se compara a mulher de Potifar, que ao saber das
qualidades de José se apaixonara por ele, assim como ela por Manuel.
Curiosidade do capítulo XI
1 – É interessante na carta dois pontos:
1.1 A descrição do ambiente, novamente presente na obra.
1.2 A questão naturalista da obra:
Não sinto saudade da nossa convivência, de nossas palestras aí no
sítio.- a expressão saudade tem poesia demais e realismo de menos. O
que há é necessidade, é fome, é sede da companhia de quem me
compreenda, de quem me faça pensar... da sua companhia.
XII
Lenita passou então a caçar com plena avidez, acordava sempre cedinho para fazer
suas caças matinais e sempre ao lado dela levava uma escrava como companhia, em
poucos minutos caçou um Jacu, uma pomba, um tucano e vários outros pobres bichos.
Até que um belo dia Lenita foi surpreendida pelo retorno de Manuel dentro da
floresta, a felicidade foi imensa.
Os dois foram conversando até a hora do almoço, na hora de comer tudo ia bem,
quando um escravo entrou alegando que Maria Bugra, uma escrava da fazenda estava
com a moléstia, a situação da pobre era deplorável, estava com a boca fechada toda
curva e com as unhas cravadas no pulso, Manuel tentou lhe dar um remédio para fazê-la
vomitar, não surtindo efeito, o filho do coronel disse que era só esperar a hora da morte.
Foi naquele momento que ele começou a conjecturar para o pai a suspeita de
envenenamento ainda mais quando ao perguntar o que ela bebeu, o escravo respondera
que fora um café vindo da casa de Joaquim, Manuel começou a falar para o pai que
naquela fazenda ele havia reparado que há plantas venenosas que de lá se tirava uma
substância tóxica de nome atropina, muito rara por sinal.
O coronel mandou chamar o feiticeiro, que após a ameaça de ir para o tronco
admitiu que matava os escravos só para dar prejuízos ao coronel, matou os próprios
companheiros de senzala para assistir sua falência, até o reumatismo que ele sentia era
feitiço dele.
Os escravos revoltados, pois muitos perderam esposas, filhos e maridos, pegaram o
velho a força, levaram para uma pedra enorme, jogaram-lhe petróleo e o cremaram ali
mesmo.
XIII
Logo no início do capítulo é feita uma analogia às condições estruturais e
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A Carne |Júlio Ribeiro
econômicas das fazendas em São Paulo com os feudos da Idade Média.
A fazenda paulista em nada desmerecia do solar com jurisdição da Idade
Média. O fazendeiro tinha nela cárcere privado, gozava de alçada efetiva, era
realmente senhor de baraço e cutelo. Para reger os súditos, guiava-se por um
código único - a sua vontade soberana. De fato estava fora do alcance da Justiça:
a lei escrita não o atingia.
Contava em tudo e por tudo com a aquiescência nunca desmentida da
autoridade, e, quando, exemplo raro, comparecia à barra de um tribunal por
abuso enorme e escandalosíssimo de poder, esperava-o infalivelmente a
absolvição.
O que por sua vez mostra que a cremação de Joaquim não fora relevante, tudo
voltou a sua normalidade, Lenita voltou a caçar com o Barbosa, e ele lhe preparou uma
surpresa, uma choça, de manhã, mais cedo que o de costume, acordou a companheira
de caça e junto de sua escrava a levou para dentro da casinha para esperar um animal,
quando ela acertou uma cutia sentiu um prazer imenso.
Ao vê-la ferida, prostrada, a exalar o derradeiro débil alento, o prazer de
Lenita foi tão intenso, que dobraram-se lhe as penas, e ela caiu de joelhos,
erguendo para Barbosa um olhar repassado de gratidão.
Levantou-se, largou a espingarda, tomou o animal, sopesou-o com ambas as
mãos, a tremer, dementada pelo triunfo, em arrancos de risos nervosos.
Voltaram a choça a esperar mais caça, Lenita acertou com proeza dois porcos
selvagens e foi ganho o dia, voltaria com a escrava e Manuel ficaria para levar os porcos
com um escravo, depois o narrador nos mostra uma cobra caçando um rato. Na ida para
casa, Lenita é mordida por uma cascavel, a escrava chamou-o e ele mascou tabaco e
sugou o veneno da perna do moça, na volta, tensa e dramática, a moça desmaiou duas
vezes, mas estaria em repouso logo em seguida.
Com medo de morrer, Lenita declarou seu amor por Manuel, ele apenas a beijou na
testa dizendo que ela não morreria, ali estava lançada a cartada da moça.
O coronel quase morreu ao saber da picada da cobra, aporrinhou o filho por horas a
respeito do tratamento dado a moça obrigando o filho a explicar até mesmo a vasta área
de cardiologia que tinha conhecimento, depois de recuperada, Manuel perguntou-lhe se
já estava pronta para outra, ela respondeu que sim, que havia ficado experiente e
desejava estar na ativa logo em breve.
XIV
Lenita melhorou, mas Manuel andava agora pelos cantos envergonhado pela
declaração da moça, saia para a floresta sobre o pretexto de caçar, mas nada fazia lá,
estava enlouquecido por ela, algo o dominava, no meio da selva, da mata fechada,
concluía: por que não a amá-la? Por que não a possuí-la, por que não gozá-la?
Não vamos esquecer aqui caro leitor deste resumo que Manuel é casado, no
entanto, na altura do campeonato, tudo isso não importava, pois que fosse, o autor
A Carne |Júlio Ribeiro
57
ainda nos apresenta uma opinião bem interessante do casamento.
Que é o casamento atual senão uma instituição sociológica, evolutiva como
tudo o que diz respeito aos seres vivos, sofrivelmente imoral e muitíssimo
ridícula? O casamento do futuro não há de ser este contrato draconiano,
estúpido, que assenta na promessa solene daquilo exatamente que se não pode
fazer. O homem, por isso mesmo que ocupa o supremo degrau da escada
biológica, é essencialmente versátil, mudável. Hipotecar um futuro incerto,
menos ainda, improvável, com ciência de que a hipoteca não tem valor, será tudo
quanto quiserem, menos moral. Amor eterno só em poesias piegas. Casamento
sem divórcio legal, regularizado, honroso, para ambas as partes, é caldeira de
vapor sem válvulas de segurança, arrebenta.
Tal fragmento mostra a ideia visionária que o autor nos revela já naquela época à
respeito do casamento.
Nessas idas e vindas chegou a esbarrar com Lenita, mas o mesmo só lhe beijou a
testa, o autor chega a lhe comparar a um seminarista pela primeira vez com uma mulher.
Entretanto, Lenita estando no quarto não conseguia dormir, ela via os ponteiros
passando e decidiu ir ao quarto de Barbosa, deita ao seu lado sugando pelo cheiro sua
masculinidade, ele acordou perguntando quem era, após saber quem é, beija-lhe
freneticamente.
Ele tinha mesmo era que aproveitar, estava gasto, casado, enfim, Lenita era lucro, o
fato é que em dada hora ele desistiu de sua investida, considerava-se louco, desta vez
Lenita o atacou.
Deu-se uma inversão de papéis: em vista dessa frieza súbita, desse
esmorecimento de carícias, cuja causa não podia compreender, nem sequer
suspeitar; no furor do erotismo que a desnaturava, que a convertia em bacante
impudica, em fêmea corrida, Lenita agarrou-se a Barbosa, cingiu-o, enlaçou-o
com os braços, com as pemas, como um polvo que aferra a preia; com a boca
aberta, arquejante, úmida, procurou-lhe a boca; refinada instintivamente em
sensualidade, mordeu-lhe os lábios, beijou-lhe a superfície polida dos dentes,
sugou-lhe a língua...
E o prazer que ela sentia revelava-o na respiração açodada; no hálito curto,
quente; era um prazer intenso, frenético, mas... sempre incompleto, falho.
Barbosa arquejante tinha ímpetos de levantar-se, de tomar uma pistola, de
arrebentar o crânio.
Então nesse momento ela perde sua virgindade: “E um beijo vitorioso recalcou para
a garganta o grito dorido da virgem que deixara de o ser...”
E todo esse sexo dura até o amanhecer. No final, ela estava com a cabeça em
chamas, o sangue de sua virgindade ainda no lençol de Barbosa.
58
A Carne |Júlio Ribeiro
Curiosidades do capítulo XIV
1 – É interessante vermos o ataque que se faz ao romantismo dentro da
perspectiva realista:
O amor é filho da necessidade tirânica, fatal, que tem todo o
organismo de se reproduzir, de pagar a dívida do antepassado segundo a
fórmula bramática. A palavra amor é um eufemismo para abrandar um
pouco a verdade ferina da palavra cio. Fisiologicamente,
verdadeiramente, amor e cio vêm a ser uma coisa só.
2 – Repare que apesar de o sexo ser efetivado, o sentimento de prazer
sentido por Lenita é falho, é incompleto, já vocês entenderão o porquê.
XV
Lenita acordou tarde, Manuel só depois, ao se verem ela o beijou, ele, ainda
envergonhado pediu que ele fosse ao seu quarto, pois podiam vê-la, ela diz não se
importar.
Ao final do dia ela recebeu uma carta com uma proposta de casamento do doutor
Mendes Maia, o coronel consultou a moça, esta rejeita para a felicidade de Manuel.
XVI
Lenita mandou dispensar a mucama naquela noite para que Barbosa a visitasse, o
que ocorreu logo em seguida era um encontro de duas feras, eles se devoravam, Manuel
gozava à Lenita em características clássicas, típica do racionalismo naturalista “como
Pigmalião à Galatéia, como Michelângelo ao Moisés.”
Os gritos, os gemidos vão aumentando eles perceberam que no quarto era perigoso
e vão para a mata, coisa de bicho, bem a moda naturalista, então é lá que ocorreu o
encontro intenso, marcante, delirante e Lenita gozou, gozou que desmaiou.
Um dia Barbosa não a visitou, então ela foi até lá, ele tinha fortes dores de
enxaqueca, ela queria sexo, ele a dispensou, dica para os rapazes que leem esse resumo,
nunca dispense uma mulher quando ela está tarada.
Lenita saiu contrariada, irritada, mas no dia seguinte cuidou com carinhos e desvelos
de uma enfermeira, quando Barbosa vomitou, ela tudo presenciou imóvel.
No dia seguinte, Barbosa estava reestabelecido e mandou que lhe trouxessem
comida.
Curiosidades do capítulo XVI
1 – Há dentro da obra uma mistura de classicismo com zoomorfização
intensa principalmente quando Manuel não podia conter: com um grito
rouco, áspero, sufocado, de bode em cio, atirava-se, ela atirava-se
também, e ambos caíam sobre um sofá, sobre o assoalho, estreitando-se,
mordendo-se, devorando-se.
A Carne |Júlio Ribeiro
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2 – Percebe-se na obra que o narrador nos conduz a uma dedução de fatos
quando diz Desceu um pouco, deitou-se de bruços e, arrastando-se como
um estélio... É nesses três pontinhos que você deduz o que aconteceu, mas não
é por causa disso que o narrador não se prende a detalhes.
XVII
Um acidente ocorreu na moagem e Manuel teria que viajar para Ipanema. Ela já
começava a imaginar na saudade anterior, mas como fora recentemente dispensada, não
sentia falta, pelo contrário sentia-se fria, indiferente, aborrecida quase; achavao a ele grosseiro, vulgar, impertinente, ridículo, chato.
Na hora da partida apertou-lhe a mão; viu-o montar a cavalo, dar de rédeas,
seguir vagaroso em uma nuvem de pó que se levantava da estrada; distinguiulhe o gesto de adeus que lhe fez ele ao transpor o viso da colina, ao sumir-se-lhe
da vista.
E não se entristeceu;
Todos os negros já comentavam dos dois.
Ela sozinha foi ao quarto de Manuel para xeretar, e viu quatro papéis dobrados,
uma medalha muito oxidada de Nossa Senhora da Aparecida, flores secas e
várias bolinhas de lã branca, desfiada.
Ela abriu o primeiro papel, um maço de cabelo escuro e liso, o segundo era um
bilhetinho pedindo que ele fosse ao encontro de alguém, o terceiro era um relato sobre
um encontro de uma mulher de olho verdes e o quarto bilhete uma poesia erótica
destinada a uma mulher de olhos azuis.
Aquilo a destruiu, chegara a amarga conclusão que estaria se envolvendo com um
devasso, um colecionador de mulheres, só ali deduziu serem quatro, e os outros
apetrechos? Seis ou sete mulheres, aquilo era revoltante.
Tinha ido pedir à ciência superioridade sobre as outras mulheres; e na árvore
da ciência encontrara um verme que a poluíra.
Ela culpava a carne.
Quisera voar de surto, remontar-se às nuvens, mas a carne a prendera à
terra, e ela tombara, submetera-se; tombara como a negra boçal do capão,
submetera-se como a vaca mansa da campina. Revoltada contra a metafísica
social, pusera-se fora da lei da sociedade, e a consciência castigava-a, dando-lhe
testemunho de quanto ela descera abaixo do nível comum da mesma sociedade.
E tudo passou a lhe irritar a lhe causar náuseas, vômito, tudo lhe era enjoativo,
começou a conjecturar a sua possível gravidez, pegou o calendário e confirmou, estava
grávida.
Depois de dois dias presa dentro do quarto, anunciou para o coronel que partiria
para São Paulo, o velho quase enfartou, pediu que não fosse, mas ela estava irredutível,
inabalável em sua decisão. Na despedida, o coronel chorava feito criança, e ela se foi.
60
A Carne |Júlio Ribeiro
Curiosidades do capítulo XVII
1 – A causa do acidente foi uma criança negra que prendeu os braços nos
engenhos e o pai travou as roldanas com uma barra de ferro
XVIII
Barbosa chegou querendo fazer surpresa, mas não a encontrou, quando soube da
partida de Lenita caiu sentado, ficou arrasado, teve inúmeras vezes vontade de choro,
aquilo era cruel, era nefasto.
As peças novas da moagem chegaram, ele era o arquiteto, o serralheiro, o escravo, o
moageiro, tudo fazia para esquecê-la, de noite tomava morfina, o açúcar ficou tão bom
que começou a fazer fama pela região o coronel achava bom, mas sabia que o filho não
estava normal, aquela Lenita.
Então passados dias ele recebeu uma carta de Lenita, nela horas a fio a
descrever a cidade de São Paulo, depois de algumas páginas Lenita revela
Estou grávida de três meses mais ou menos.
Preciso de um pai oficial para nosso filho: ora pater est is quem instae
nuptiae demonstrant.
Se tu fosses livre, fazíamos justas na igreja as nossas nuptias naturais, e tudo
estava pronto. Mas tu és casado, e a lei de divórcio, aqui no Brasil não permite
novo enlace: tive de procurar outro.
"Tive de procurar" é um modo de dizer: o outro deparou-se-me, ofereceu-seme; eu me limitei a aceitá-lo e ainda impus-lhe condições.
É o Dr. Mendes Maia.
A criança, se for menino, chamar-se-á Manuel; se for menina, Manuela.
Aquilo era o golpe fatal, depois de Manduca chamar-lhe de longos palavrões ele
injeta veneno em suas veias e se deita, fica imóvel, não se mexe mais, somente a mente
funciona, então o autor parte para um desfecho magnífico, o que para mim seria a morte
mais penosa e torturante da literatura que eu faço questão que a leiam, muito obrigado!
- Manduca! Manduca!
Era a voz do pai que o chamava.
Barbosa ficou triste: queria responder e não podia.
- Teresa!
- Sinhô!
- Onde está Manduca? Você não o viu?
- Vi, meu sinhô. Ele está aí no quarto dele. Estava se banhando. Ainda há pouco
Pedro e José saíram com a banheira.
- Que diabo, não responde... Só se está dormindo.
E o coronel dirigiu- se ao quarto, entrou.
Ao dar com o filho nu da cintura para cima, estendido de costas na cama, pálido,
imóvel, olhos abertos, fixos, o coronel deu um salto.
A Carne |Júlio Ribeiro
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- Manduca! Que é isso Manduca?!
E agarrando, abraçando o filho, sacudia-o nervosamente.
O corpo de Barbosa, flácido, quente, cedia aos esforços do pai, como um cadáver
antes da rigidez.
E o cérebro, ativo, lúcido, em exercício pleno de funções, vivia, compreendia, sentia,
tinha vontade, queria falar, queria responder ao pai; mas já não tinha órgão, estava
isolado do mundo.
- Meu filho morreu! Meu filho morreu! bradou o coronel, e saiu desatinado,
correndo com as mãos na cabeça.
A esses gritos deu-se um como milagre.
A velha entrevada firmou as mãos nas guardas da chaise-longue, fez um esforço
supremo, ergueu-se, caiu de joelhos e começou a engatinhar para o quarto do filho,
movendo as juntas quase anquilosadas de um modo que seria ridículo, se não fosse
horroroso.
Em camisa, em uma seminudez indecente, escorregando pelo assoalho, às sacadas,
aos solavancos, como um inseto mutilado, foi, chegou onde estava o filho, abeirou-selhe da cama, levantou-se; agarrou-se no colchão, guindou-se com dificuldade dolorosa,
abraçou o corpo por sua vez, colocou-lhe nos lábios os seus lábios de velha, moles,
franzidos, frios.
Aos beijos da mãe, beijos que não podia retribuir, Barbosa sentiu-se tomado de um
sentimento estranho de uma ternura filial que nunca dantes conhecera.
Mãe! Pai!
Por que se não devotara com todas as suas poderosas faculdades a minorar os
sofrimentos daquele casal de velhos, a suavizar-lhes as misérias da senectude?!
Descrente de amigos, descrente de amantes, descrente da esposa, ateu, farto do
mundo, enjoado até de si, fora pedir aos gelos da ciência exclusivista a morte, a extinção
dos últimos afetos.
Tomara-se egoísta, tomara-se cruel.
E tinha ainda o que lhe prendesse ao mundo: tinha pai, tinha mãe, tinha a quem se
devotar, tinha para quem viver!
Que vingança cruel a da natureza!
Entregara-o de mãos atadas aos caprichos de uma mulher histérica que se lhe
oferecera, que se lhe dera, como se teria oferecido, como se teria dado a qualquer outro,
a um negro, a um escravo de roça, não por amor psíquico, mas para satisfazer a carne
faminta...
Repleta, farta, essa mulher o abandonara.
Nas cinzas quase frias das suas crenças mortas ateara-se o lume do amor, o fogo da
fé brilhara um momento, mas prestes se extinguira, e a escuridão voltara mais tétrica.
Lenita fora procurar e achara um homem vil que lhe vendia o nome para coberta do
erro, que a aceitava por esposa, desonrada, grávida...
Grávida... Ela estava grávida, ele ia ser pai...
E ela fugia dele, levava-lhe o filho e ainda o ludibriava, descrevia-lhe em cínica
missiva as suas observações de viajante, as suas impressões de artista! Fazia ainda mais,
62
A Carne |Júlio Ribeiro
dava-lhe parte do seu enlace com o minotauro prévio e consciente, informava-o de que o
seu filho, o filho dele, Barbosa, tinha de dar o nome augusto de pai a um homem sem
brios, a um chatim refece de honra.
E ele morria, por amor dessa mulher, morria porque ela lhe quebrantara o caráter,
morria porque ela o prendera nos liames da carne, morria porque sem ela a vida se lhe
tomara impossível... Covarde!
O remorso personificado na figura lastimosa e quase hedionda de sua desgraçada
mãe ali estava sobre ele, abraçando-o, devorando-o, bebendo-lhe os últimos alentos.
Oh ! ele queria viver!
E não era impossível.
Se houvesse quem entendesse de fisiologia, quem estabelecesse a respiração
artificial, até que fosse completamente eliminado o veneno, arredar-se-ia a morte, a vida
voltaria.
Mudassem as circunstâncias, outrem fosse o paciente, e Barbosa salvava-o.
Mas por si, para si, nada podia fazer: enclausurado no corpo, como o lepidóptero na
crisálida, estava impotente, estava aniquilado: nem sequer lhe era concedido o consolo
triste de pedir, de implorar o perdão da pobre mãe, da mísera entrevada, a quem a
angústia curara em um momento.
A placidez da morte sem dor, da morte pela paralisia dos nervos motores, converteuse em um suplício atroz, pavoroso, para cuja descrição não tem palavras a linguagem
humana.
Morto e vivo!
Tudo morrera: só vivia o cérebro, só vivia a consciência e vivia para a tortura...
Por que não ter despedaçado o crânio com uma bala?
A paralisia invadiu os últimos redutos do organismo, o coração, os pulmões, sístole e
diástole cessaram, a hematose deixou de se fazer. Um como véu abafou, escureceu a
inteligência de Barbosa, e ele caiu de vez no sono profundo de que ninguém acorda.
FIM
Curiosidades do capítulo XVIII
1 – O que mais chega a perturbá-lo é que se achava homem maduro, dono
de muitas amantes e se deixou entregar o coração a uma mulher como aquela,
pois estava apaixonado por ela.
Nota: todo as citações do livro foram tiradas da fonte RIBEIRO, Júlio. A
Carne. São Paulo: Martin Claret, 1999. (A Obra Prima de Cada Autor)
A Carne |Júlio Ribeiro
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Pré-Modernismo
UVA 2015.1
Autoria: Maria José Dantas Laranjeira
Fonte: http://www.coladaweb.com/literatura/pre-modernismo
Nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras do século XX, o Brasil também
viveu sua bélle époque. Nesse período, nossa Literatura caracterizou-se pela ausência de
uma única diretriz. Houve, isso sim, um sincretismo estético, um entrecruzar de várias
correntes artístico- literárias. O país vivia na época uma constante tensão.
Nesse contexto, alguns autores refletiam o inconformismo diante de uma realidade
sóciocultural injusta e já apontavam para a irrupção iminente do movimento modernista.
Por outro lado, muitas obras ainda mostravam a influência das escolas passadas:
realista/naturalista/parnasiana e simbolista. Essa dicotomia de tendências, uma
renovadora e outra conservadora, gerou não só tensão, mas sobretudo um clima rico e
fecundo, que Alceu Amoroso Lima chamou de Pré-Modernismo.
Quanto à prosa, podemos distinguir três tipos de obras:
1- Obras de ambiência rural e regional - que tem por temática a paisagem e o
homem do interior.
2- Obras de ambiência urbana e social - retratando a realidade das nossas cidades.
3- Obras de ambiência indefinida - cujos autores produzem uma literatura desligada
da realidade sócio-econômica brasileira.
Características:
A. ruptura com o passado - por meio de linguagem chocante, com vocabulário que
exprime a “frialdade inorgânica da terra”.
B. inconformismo diante da realidade brasileira - mediante um temário diferente
daquele usado pelo romantismo e pelo parnasianismo: caboclo, subúrbio,
miséria, etc..
C. interesse pelos usos e costumes do interior - regionalismo, com registro da fala
rural.
D. destaque à psicologia do brasileiro - retratando sua preguiça, por exemplo nas
mais diferentes regiões do Brasil.
E. acentuado nacionalismo - exemplo Policarpo Quaresma.
F. preferência por assuntos históricos.
G. descrição e caracterização de personagens típicos - com o intuito de retratar a
realidade política, e econômica e social de nossa terra.
H. preferência pelo contraste físico, social e moral.
I. sincretismo estético - Neo-Realismo, Neoparnasianismo, Neo-Simbolismo.
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Análise das Obras | UVA 2015.1
J. emprego de uma linguagem mais simples e coloquial - com o objetivo de
combater o rebuscamento e o pedantismo de alguns literatos.
Principais autores:
Na poesia: Augusto dos Anjos, Rodrigues de Abreu, Juó Bananére, etc..
Na prosa: Euclides da Cunha, Lima Barreto, Graça Aranha, Monteiro Lobato, Afonso
Arinos, Simões Lopes, Afrânio Peixoto, Alcides Maia, Valdomiro Silveira, etc...
Análise das Obras | UVA 2015.1
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Análise da Obra
Olhai os Lírios do Campo
Érico Veríssimo
UVA 2015.1
VIDA E OBRA DE ÉRICO VERÍSSIMO
Erico Verissimo nasceu em Cruz Alta (RS), em 17 de dezembro de 1905, e faleceu em
Porto Alegre, em 28 de novembro de 1975. Na juventude, foi bancário e sócio de uma
farmácia. Em 1931, casou-se com Mafalda Halfen Von Volpe, com quem teve os filhos
Clarissa e Luis Fernando. Sua estreia literária foi na Revista do Globo, com o conto
‘’Ladrões de gado’’. A partir de 1930, já radicado em Porto Alegre, tornou-se redator da
revista. Depois, foi secretário do Departamento Editorial da Livraria do Globo e também
conselheiro editorial, até o fim da vida.
A década de 30 marca a ascensão literária do escritor. Em 1932, publica seu primeiro
livro de contos, ‘’Fantoches’’, e em 1931 o primeiro romance, ‘’Clarissa’’, inaugurando o
grupo de personagens que acompanharia boa parte de sua obra. Em 1938, tem seu
primeiro grande sucesso: ‘’Olhai os lírios do campo’’. O livro marca o reconhecimento de
Erico no país inteiro e, em seguida, internacionalmente, com a edição de seus romances
em vários países. Escreve também livros infantis, como ‘’Os três porquinhos pobres’’, O
urso com música na barriga, ‘’As aventuras do avião vermelho’’ e ‘’A vida do elefante
Basílio’’.
Em 1941 faz uma viagem de três meses aos Estados Unidos a convite do
Departamento de Estado norte-americano. A estada resulta na obra ‘’Gato preto em
campo de neve’’, primeira de uma série de livros de viagens. Em 1943, dá aulas na
Universidade de Berkeley. Volta ao Brasil em 1945, no fim da Segunda Guerra Mundial e
do Estado Novo. Em 1953 vai mais uma vez aos Estados Unidos, como diretor do
Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana, secretaria da
Organização dos Estados Americanos (OEA).
Em 1947, Erico Verissimo começa a escrever a trilogia ‘’O tempo e o vento’’, cuja
publicação só termina em 1962. Recebe vários prêmios, como o Jabuti e o Pen Club. Em
1965 publica ‘’O senhor embaixador’’, ambientado num hipotético país do Caribe que
66
Análise das Obras | UVA 2015.1
lembra Cuba. Em 1967 é a vez de ‘’O prisioneiro’’, parábola sobre a intervenção dos
Estados Unidos no Vietnã. Em plena ditadura, lança ‘’Incidente em Antares’’ (1971),
crítica ao regime militar. Em 1973 sai o primeiro volume de ‘’Solo de clarineta’’, seu livro
de memórias. Morre em 1975, quando terminava o segundo volume, publicado
postumamente.
OBRAS
Fantoches (1932)
Clarissa (1933)
Música ao Longe (1935)
Caminhos Cruzados (1935)
Um Lugar ao Sol (1936)
Olhai os Lírios do Campo (1938)
Saga (1940)
Gato Preto em Campo de Neve (narrativa de viagem, 1941)
O Resto é Silêncio (1943)
Breve História da Literatura Brasileira (ensaio, 1944)
A Volta do Gato Preto (narrativa de viagem, 1946)
As Mãos de meu Filho (1948)
Noite (1954)
México (narrativa de viagem, 1957)
O Senhor Embaixador (1965)
O Prisioneiro (1967)
Israel em Abril (narrativa de viagem, 1969)
Um Certo Capitão Rodrigo (1970)
Incidente em Antares (1971)
Ana Terra (1971)
Um Certo Henrique Bertaso (biografia, 1972)
Solo de Clarineta (memórias, 2 volumes, 1973, 1976)
O Tempo e o Vento
Parte I: O Continente (2 volumes, 1949)
Parte II: O Retrato (2 volumes, 1951)
Parte III: O Arquipélago (3 volumes, 1961-1962)
Infanto-juvenis
A vida de Joana D'Arc (1935)
Meu ABC (1936)
Rosa Maria no Castelo Encantado (1936)
Os Três Porquinhos Pobres (1936)
As Aventuras do Avião Vermelho (1936)
As Aventuras de Tibicuera (1937)
Olhai os Lírios do Campo |Érico Veríssimo
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O Urso com Música na Barriga (1938)
Outra Vez os Três Porquinhos (1939)
Aventuras no Mundo da Higiene (1939)
A Vida do Elefante Basílio (1939)
Viagem à Aurora do Mundo (1939)
Gente e Bichos (1956)
Frases de Efeito
"– Então é porque tenho vivido e aprendi a ver.
– Tens apenas vinte e cinco anos...
– Conheci um homem que tinha sessenta e ainda não tinha aprendido a conhecer-se
a si mesmo."
"O vulto da igreja antiga: sempre uma sugestão de Deus, dentro e fora de nossos
pensamentos... Por que não se revela Ele dum modo mais definido? Na forma dum
milagre, por exemplo..."
"Ele sentia vontade de beijá-la. E por que não a beijava? Olívia podia repeli-lo, ficar
magoada... Mas que importava. O mundo ia acabar, os homens se matavam, a vida era
cruel. Um dia ambos estariam apodrecendo debaixo da terra."
"– Se Deus existe, então por que não se revelou?
– Porque até Deus precisa de oportunidades."
"– Só foge da solidão quem tem medo dos próprios pensamentos, das próprias
lembranças.
– Talvez...
– Mas se tu soubesses como a solidão pode nos enriquecer..."
"O crânio do operário estava todo esfacelado, seu rosto absolutamente
irreconhecível. (...)
– Mandem tocar de novo as máquinas – disse o gerente. – Não podemos ficar
parados. Tempo é ouro.
Ouro... Por que era que os homens não se esqueciam nunca do ouro? Ouro lhe
lembrava outra palavra: sangue. Tempo também era sangue. Ouro se fazia com sangue."
"– E agora?
Ele encolheu os ombros.
– É a pergunta que faço todos os dias a mim mesmo."
"Enfim ali estava uma criatura que se interessava por ele, que o amava de maneira
profunda. Que tudo dava e nada pedia..."
68
Olhai os Lírios do Campo |Érico Veríssimo
"Estive pensando na fúria cega com que os homens se atiram à caça do dinheiro. É
essa a causa principal dos dramas, das injustiças, da incompreensão da nossa época. Eles
esquecem o que têm de mais humano e sacrificam o que a vida lhes oferece de melhor: as
relações de criatura para criatura. De que serve construir arranha-céus se não há mais
almas humanas para morar neles. (...) É indispensável trabalhar, pois um mundo de
criaturas passivas seria também triste e sem beleza. Precisamos, entretanto, dar um
sentido humano às nossas construções. E quando o amor ao dinheiro, ao sucesso nos
estiver deixando cegos, saibamos fazer pausas para olhar os lírios do campo e as aves do
céu’’.
“Nós somos homens, Filipe, e vivemos quase como máquinas. Essa ânsia de
progredir, de acumular dinheiro, de construir, faz a gente esquecer o que tem de
humano.”
“As perguntas das crianças em geral são as que nos deixam mais atrapalhados.”
“Eugênio ouviu os mexericos sem se perturbar. Limitou-se a sorrir e depois que ficou
a sós não pôde deixar de se perguntar a si mesmo como lhe fora possível encarar os fatos
duma maneira tão desligada, tão superior e serena? Se lhe tivessem contado aquelas
infâmias em outro tempo, ele teria sentido dor física, teria ficado num estado de absoluta
prostração, numa angústia que se prolongaria durante dias e dias. Os homens eram
perversos – concluiu ele. Mas depois se corrigiu: – Havia homens muito perversos. Não
bastariam as misérias reais da vida, aquelas de que ele tinha todos os dias dolorosas
amostras na sua clínica? Algumas pessoas acham um prazer depravado em inventar
misérias. Como podia uma criatura de alma limpa andar pelos caminhos da vida?
Lembrou-se das palavras de Olívia numa de suas cartas. Tu uma vez comparaste a vida a
um transatlântico, e te perguntaste a ti mesmo: 'Estarei fazendo uma viagem
agradável?'. Mas eu te asseguro que o mais decente seria perguntar: 'Estarei sendo um
bom companheiro de viagem?' Realmente, os homens em geral eram maus
companheiro de viagem. Apesar da imensidão e das incertezas do mar, apesar do perigo
das tempestades, do raio e da fragilidade do navio, eles ainda se obstinavam em serem
inimigos uns dos outros. O sensato seria que se unissem em uma atitude de defesa e que
se trocassem gentilezas a fim de que a viagem fosse mais agradável para todos.”
“Pensemos apenas nisto: não fomos consultados para vir para este mundo e não
seremos consultados quando tivermos de partir. Isso dá bem a medida da nossa
importância material na terra, mas deve ser um elemento de consolo e não de
desespero.”
“Mas atentando mais nas pessoas e nos fatos ele chegava à conclusão de que o que
via, o que podia apalpar, cheirar e ouvir não era tudo. Havia algo de indefinível para além
da matéria.”
Olhai os Lírios do Campo |Érico Veríssimo
69
“Ele sabia que nunca havia de chegar à Verdade. Quando muito conseguiria
vislumbrar pequenas verdades.”
“Os homens viviam demasiadamente preocupados com palavras, pulavam ao redor
delas e se esqueciam dos fatos. E os fatos continuavam a bater-lhes na cara.”
“O espírito de gentileza podia salvar o mundo. O que nos falta é isso: espírito de
gentileza. Boas maneiras de homem para homem, de povo para povo.”
“Se naquele instante – refletiu Eugênio – caísse na Terra um habitante de Marte,
havia de ficar embasbacado ao verificar que num dia tão maravilhosamente belo e macio,
de sol tão dourado, os homens em sua maioria estavam metidos em escritórios, oficinas,
fábricas... e se perguntasse a qualquer um deles: 'Homem, porque trabalhas com tanta
fúria durante todas as horas de sol?' – ouviria esta resposta singular: 'Para ganhar a vida.'
E no entanto a vida ali estava a se oferecer toda, numa gratuidade milagrosa. Os homens
viviam tão ofuscados por desejos ambiciosos que nem sequer davam por ela. Nem com
todas as conquistas da inteligência tinham descoberto um meio de trabalhar menos e
viver mais. Agitavam-se na terra e não se conheciam uns aos outros, não se amavam
como deviam. A competição os transformava em inimigos.”
ANÁLISE DA OBRA
‘’Olhai os lírios do campo’’ é um dos mais famosos de Érico Veríssimo e foi publicado
em 1938 - Modernismo de Segunda Fase.
A ambientação urbana da história dá margem à abordagem dos efeitos de um
capitalismo devastador sobre a vida dos personagens. O romance narra a trajetória
existencial do personagem principal, Eugênio, seus contatos sociais e seus dilemas
interiores. Portanto, a narrativa centra-se em seus conflitos e vicissitudes.
Nesta obra deve-se destacar o lirismo romântico da história de Eugênio, descobrindo
que o dinheiro não traz felicidade, exatamente nos moldes do romance urbano de 30, de
caráter socialista. Destaca-se também sua ambição traçada a partir de uma vida difícil,
que alimenta-o de amargor e determinação na busca de sua afirmação material. E ainda,
o grande sucesso dessa dramática história de amor, pode ser creditado à habilidade do
autor de construir personalidades psicológicas complexas: ninguém é só bom nem só
ruim na obra.
Para retratar essa relação problemática do homem com a sociedade, Érico Veríssimo
construiu o romance ‘’Olhai os lírios do campo’’ de maneira que o personagem principal
fosse mostrado em dois momentos. No primeiro momento, ele é conduzido, em seus
comportamentos, pelas expectativas sociais; obedece aos valores de sua classe, é incapaz
de perceber-se enquanto ser. Ele faz de tudo para ter sucesso e ser aceito: trabalha em
função de uma máscara e não do próprio rosto. No segundo momento, o romancista
mostra os processos de transformação de Eugênio: da condição de indivíduo coisificado,
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Olhai os Lírios do Campo |Érico Veríssimo
guiado mais pela expectativa dos outros do que por si mesmo, para a condição de
indivíduo autônomo e consciente de si, sujeito de suas próprias decisões.
A narrativa, portanto, se divide em duas partes com 12 capítulos cada uma, sendo a
primeira o cruzamento de dois níveis temporais: o presente e o passado. Assim, nesta
narrativa de vários planos temporais, entrelaça-se uma crítica à sociedade fútil e vazia, ao
acúmulo de riquezas e à consequente hipocrisia das relações sociais. A primeira parte é
intensa e cheia de um interesse que jamais enfraquece. Na segunda parte, porém, esse
interesse declina, e a história se dilui numa série de episódios anedóticos sem unidade
emocional.
Ambiente
O ambiente do romance é a cidade de Porto Alegre. As personagens vivem na
metrópole de ruas movimentadas, tráfego intenso, automóveis, telefones, cinemas e
teatros; edifícios altos, gente rica, monopólios; gente pobre, sindicatos, miséria e
doença. Vivem os movimentos da contradição e da crise.
Foco narrativo
Toda a narrativa é formalmente estruturada na terceira pessoa a partir de um ponto
de vista externo do narrador.
Personagens
Eugênio Fontes: homem profundamente pessimista, infeliz e complexado.
Profissão: médico. Filho de um alfaiate pobre, Eugênio teve uma infância e adolescência
cheias de dificuldades. À medida que ia crescendo, nutria um misto de vergonha e
repúdio a si mesmo em decorrência da pobreza de sua família. Sua motivação era "ser
alguém", adquirir posição social e não ter que passar pelas humilhações que julgava ter
passado na infância. Na faculdade, conhece uma jovem, Olívia, pela qual se apaixona e
nutre um relacionamento de amizade, cumplicidade e amor. Porém, devido a sua
ambição, Eugenio deixa Olívia para casar-se com uma jovem rica. Passa a viver uma vida
de aparências, adultérios e eternas contradições, deixando para trás seu verdadeiro amor
e a filha que teve ela, Anamaria.
Olívia: grande amor de Eugênio e colega de trabalho. Olívia é mais uma das clássicas
figuras femininas de Érico, que transparece doçura e compreensão frente às inquietudes
dos personagens masculinos, mas que não esconde uma grande força e determinação.
Assim como Eugenio, Olívia cursa a faculdade de medicina em Porto Alegre com
dificuldades. A sua visão realista e compreensão do comportamento humano fazem com
que ela encare seu relacionamento com Eugenio de forma honesta, entendendo as
limitações que este poderia ter em virtude da ambição e das eternas contradições
emocionais do médico. Olívia também pode ser encarada, de certa forma, como uma
representante feminista de Erico, pois apesar de aceitar as limitações de Eugenio, ela luta
em manter a carreira de médica e cria a filha Anamaria sozinha.
Olhai os Lírios do Campo |Érico Veríssimo
71
Eunice: esposa de Eugênio. Rica, fútil e vazia. Filha do empresário Vicente Cintra,
conquista Eugênio com sua fortuna, casando-se com ele e se tornando a oportunidade
de que o médico necessitava para se destacar na sociedade.
Angelo: pai de Eugênio. O próprio Eugênio nos revela pormenores sobre seu pai e
seus sentimentos para com ele:
Eugênio viu um vulto familiar surgir a uma esquina e sentiu um desfalecimento.
Reconheceria aquela figura de longe, no meio de mil... Um homem magro e encurvado,
mal vestido, com um pacote no braço, o pai, o pobre Ângelo. Lá vinha ele subindo a rua.
Eugênio sentiu no corpo um formigamento quente de mal-estar. Desejou - com que
ardor, com que desespero! - que o velho atravessasse a rua, mudasse de rumo. Seria
embaraçoso, constrangedor se Ângelo o visse, parasse e lhe dirigisse a palavra.
Alcibíades e Castanho ficariam sabendo que ele era filho dum pobre alfaiate que saía pela
rua a entregar pessoalmente as roupas dos fregueses... Haviam de desprezá-lo mais por
isso. Eugênio já antecipava o amargor da nova humilhação. Olhou para os lados,
pensando numa fuga.
Inventaria um pretexto, pediria desculpas, embarafustaria pela primeira porta de loja
que encontrasse. Ouvia a voz baixa e calma de Castanho... o "conceito hegeliano..."
Podia entrar naquela casa de brinquedos e ficar ali escondido, esperando que Ângelo
passasse... Hesitou ainda um instante e quando quis tomar uma resolução, era tarde
demais. Ângelo já os defrontava. Viu o filho, olhou dele para os outros e o seu rosto se
abriu num sorriso largo de surpreendida felicidade. Afastou-se servil para a beira da
calçada, tirou o chapéu.
- Boa tarde, Genoca! - exclamou.
O orgulho iluminava-lhe o rosto.
Muito vermelho e perturbado Eugênio olhava para a frente em silêncio, como se não
o tivesse visto nem ouvido. Os outros também continuavam a caminhar, sem terem dado
pelo gesto do homem.
A sensação de felicidade, entretanto, desaparecera de Eugênio. Sentia-se culpado.
O que acabara de fazer era desumano, ignóbil, chegava a ser criminoso. Por que se
envergonhava do pai? Não era um homem decente? Não era um homem bom? Não era,
em última análise, seu pai?
Ainda havia tempo de reparar o mal que fizera. Podia voltar, tomar Ângelo pelo
braço, carinhosamente, subir a rua com ele... Por que não fazia isso? "... aquele trecho do
Banquete..." - dizia Castanho. Sim, beijar a mão do pai, confessar-lhe a culpa, dizer do
seu remorso, pedir-lhe perdão, humilhar-se. Mas lá se ia acompanhando os outros como
um autômato. Voltou a cabeça, procurando. Ângelo tinha desaparecido.
Dr. Seixas: amigo de Eugênio e médico de pobres. Único personagem que tem
características humanas. Veríssimo pôs neste homem verdade: animou-o por dentro,
deu-lhe reflexos, deu-lhe instintos, deu-lhe uma maneira de ser de pessoa viva.
Personagem surgido “acidentalmente”, segundo o autor do romance, Dr. Seixas é um
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Olhai os Lírios do Campo |Érico Veríssimo
exemplo de personagem autônomo. É um médico pobre, grande, barbudo e de ar
agressivo. Sua voz era igualmente áspera e peluda, sua fala desbocada, mas seus olhos
refletiam bondade. Idealista, ele critica tanto a exploração capitalista do médico e o
desprezo do sistema econômico pelo ser humano como o valor conferido ao dinheiro:
Seu Eugênio, ouça o que lhe digo. O dinheiro é uma coisa nojenta. Um sujeito decente
não se escraviza a ele.(p.183). Ele lutava contra essa escravidão e pela igualdade de
direitos entre as pessoas, contagiando Eugênio e levando-o a uma nova concepção da
profissão. O Dr. Seixas encarna duas concepções de vida que mantêm entre si relações
opostas: uma utópica, confiante, e outra, pessimista. Para Dr. Seixas, sucesso era
conseguir salvar a vida de alguém e aliviar a dor dos outros. Ele reconduz Eugênio, como
médico, ao mundo da desigualdade e da pobreza, universo do qual ele, como
profissional, sempre tentara fugir.
Anamaria: filha de Eugênio e Olívia. Ela ajuda a manter viva na lembrança de
Eugênio a presença de Olívia e, ao mesmo tempo, como criança que é, sinaliza para a
esperança e a confiança de que o futuro pode ser diferente. Anamaria simboliza a
insistente afirmativa de Olívia de que a vida é feita de recomeços. A menina tem os olhos
sérios e profundos de Olívia e, ao mesmo tempo, desconfortáveis como os do pobre
Ângelo, pai de Eugênio. Sua presença retoma duas figuras diante das quais Eugênio
precisa se redimir: seu pai, que foi por ele desprezado, e a própria Olívia, que ele
abandonou por um casamento de conveniência. A presença da filha suscita-lhe
interrogações e o obriga a tomar decisões sensatas e responsáveis para com os outros.
Anamaria lhe permite uma compreensão da miséria humana e da necessidade de que o
conjunto das ações dos homens seja orientado para minimizá-la.
Observação: Devemos destacar que a dedicação, o altruísmo e a nobreza de Olívia
parecem inumanos. Não convencem. Pouco convincente também é a covardia de
Eugênio. A cena em que o vemos a fazer a sua primeira operação, do ponto de vista da
mera redação, está razoavelmente bem feita; do ponto de vista da verdade psicológica,
porém, é um absurdo. Um homem de estômago fraco e que tem horror ao sangue jamais
se dedicaria à cirurgia e, se se dedicasse, com o tempo acabaria por habituar-se a cortar a
carne dos pacientes sem que isso lhe provocasse arrepios, náusea ou medo. Acaso não
teria ele, como estudante, frequentado o necrotério e os ambulatórios da Santa Casa?
RESUMO DE ENREDO
Na primeira parte, merecem destaque a imagem inicial que o personagem faz de si
mesmo e os valores que a engendram.
Em flashback, temos o tempo presente: Eugênio dentro do carro em direção ao
hospital para reencontrar sua amada Eugênia, rememorando os fatos que fazem parte
do seu passado, onde, junto a ele, relembramos sua infância, seus traumas, seus
aprendizados com Olívia, o casamento com Eunice, a frustração, o sentimento de se ter
vendido para vencer.
Olhai os Lírios do Campo |Érico Veríssimo
73
Eugênio era um menino tímido e medroso. Teve uma infância pobre, era
ridicularizado na escola e tinha como objetivo máximo a ascensão social, faria de tudo
para um dia vencer na vida. Achava que o que tinha era feio e sem graça, das roupas até o
seu próprio corpo. Não se entrosava com os demais colegas de classe e por isso devotava
todo o seu tempo aos estudos. Sonhava em deixar de ser simplesmente o Genoca para
ser o Dr. Eugênio Fontes.
Tinha pena do pai, o alfaiate Ângelo, com quem não conseguia se comunicar
facilmente. O seu irmão, Ernesto, não esmerava-se na educação e acabou perdido na
vida. Com muito esforço, Eugênio consegue cursar Medicina. Na Faculdade conhece
Olívia - única mulher da turma. Na festa de formatura os dois se aproximam e fazem
sonhos e confissões juntos, sobre o futuro. Tornam-se grandes amigos.
Durante a revolução de 30, após uma operação mal sucedida no hospital militar,
Olívia convida Eugênio a sua casa e passam uma noite de amor. Dias depois, Olívia recebe
uma proposta para trabalhar em Nova Itália, e novamente se entrega aos braços de
Eugênio.
Durante um atendimento médico, Eugênio conhece Eunice Cintra - filha de um
riquíssimo proprietário. Eugênio casa-se com Eunice com objetivo único de ascender
socialmente. O sogro trata de arranjar um emprego de fachada ("assinar documentos")
numa de suas fábricas. Eugênio começa a freqüentar a alta sociedade, mas não se sente
parte dela. O seu complexo de inferioridade aumenta ao ver os contrastes desse outro
mundo, de emoções contidas, de meias-palavras. Conhece pessoas como Filipe Lobo,
construtor obstinado a construir o "Megatério", um arranha-céu, mas não se importava
com a família. Infeliz e perturbado, Eugênio reencontra Olívia que lhe apresenta a sua
filha, fruto do último encontro dos dois, Anamaria. Ao chegar no Hospital onde estava
Olívia, recebe a notícias de sua morte.
Na segunda parte, destaca-se o papel desempenhado pelo entrecruzamento de
vozes que afetam a imagem inicial do protagonista, conduzindo-o a uma progressiva
mudança de posição perante a existência.
Aqui temos o passado. Esta segunda parte desenvolve-se de maneira mais linear,
embora o passado se misture ao presente da filha. Passa-se após a morte de Olívia e é
intercalada com a leitura das cartas que ela escreveu para Eugênio sem nunca ter
enviado. Eugênio toma coragem e separa-se de Eunice - apesar de todos os
inconvenientes sociais. Vai além, passa a ser um médico popular, com ideias de socializar
a medicina. Trabalha com o Dr. Seixas, um velho médico que sempre atendeu aos pobres.
A memória de Olívia, nas cartas, nas fotos ou no olhar de Anamaria, o fortalece quando
pensa nas dificuldades.
O médico tornou-se na sociedade atual, aquele mediador entre a ciência, a técnica e
o sentimento humanitário. Pensando primeiro em si mesmo, egoisticamente, Eugênio
evolui para a solidariedade, através das colocações de Olívia, que embora morta, é um
personagem presente no romance, fazendo contraponto com Eugênio.
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Olhai os Lírios do Campo |Érico Veríssimo
PARTE I
I
Um médico sai do quarto de número 122, pede para Irmã Isolda, telefonar para o Dr.
Eugênio e avisá-lo que se trata de um caso perdido: ”ela sabe que vai morrer e quer vêlo”. Eugênio recebe o recado como um golpe, uma sensação de remorso e a certeza que
agora iria começar a pagar os seus pecados.
Mente para a sua esposa, Eunice, e pede para o motorista, Sr. Honório correr, pois se
tratava de um caso urgente.
II
Durante a viagem, recorda de um episódio de sua infância. No recreio, abaixando-se
para pegar uma bola, um aluno percebeu que suas calças estavam furadas. Gritou aos
outros meninos e meninas que em um coro estridente, zombavam de Eugênio, enquanto
que as lágrimas desciam pelo seu rosto.
O sentimento de humilhação de ser de família pobre; a professora cobrando a
mensalidade atrasada; o irmão fazendo parte do coro da zombaria; seus pés gelados pelo
frio que entrava da sola do sapato causavam-lhe revolta e vergonha. Em casa, observa o
pai, Sr. Ângelo, homem calado e murcho, envelhecido antes dos quarenta, cara
inexpressiva, olhos apagados, ar de resignação quase bovino, mais tossia que falava e
quando falava, era para queixar-se da vida; porém, sem amarguras, sem raiva. Eugênio
não conseguia amá-lo, afinal, ele tinha falhado na vida. Viviam fugindo de credores. Em
seguida, reparava em sua mãe. Ela era bonita, sim, mais bonita que muitas mulheres ricas
que ele conhecia. Dizia sempre que eles ainda haviam de ser felizes, e de viver com todo o
conforto. “Ninguém foge do destino - eram as palavras de D.Alzira - eu acho que, se ele
nos tem trazido tanta coisa ruim, um dia pode nos trazer coisas boas.”
Chega Florismal, amigo da família, tinha uma certa dignidade de estadista e
lamenta-se de não ser advogado. Sempre perguntava a Eugênio que fora Florismal e ele
respondia:
“ - Foi um dos doze pares da França.”
Falam sobre a guerra e naquela noite, Eugênio imagina que Deus, o Kaiser e o
Destino eram uma e a mesma pessoa.
“Deus o dono do mundo. O Kaiser queria vencer a Europa e o Destino era o
culpado de todas as coisas ruins que aconteciam no mundo.”
O automóvel corre e Eugênio revive imagens do seu passado. O pai humilhado, a
mãe se sacrificando por ele. Agora, ambos mortos, e o pior, se fosse lhe dado uma
oportunidade para recomeçar sua infância e adolescência, seria igual - não lograria amar
os pais como eles mereciam. Pensa em Olívia. Ela o amara e ele estava cego pelo sucesso.
Fez um casamento rico e hoje ele era simplesmente o marido de Eunice Cintra.
Olhai os Lírios do Campo |Érico Veríssimo
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III
Eugênio aos quinze anos achava-se feito. Deus realmente era ingrato, não lhe deu
riqueza, nem beleza. Lembra-se de seu primeiro amor, Margaret, a filha do diretor do
colégio e os primeiros desejos que seu corpo emanava. A mãe lavava toda a roupa branca
que se usava no colégio, dessa maneira ele podia lá estudar. Pensa em ser igual ao Dr.
Seixas e cuidar dos pobres futuramente.
A imagem de Mr. Tearle insiste em não sair de sua mente. Era o mais novo professor
do colégio, viera dos Estados Unidos e tinha lutado na guerra. Acabou se suicidando com
um tiro no peito em uma noite de tempestade.
A viagem continua. Pensa em seus três anos de casamento com Eunice e o erro que
tinha cometido. Ela era atraente, mas, o que mais o atraíra foi o seu dinheiro, a maneira
mais fácil de alcançar a fama. Em seguida, Olívia e Anamaria aparecem em seus
pensamentos.
“Que seria da menina, caso Olívia morresse?”
IV
Eugênio volta ao seu tempo de adolescência, sua amizade com Alcebíades, um dos
alunos mais ricos da escola e quando foi apresentado a Acélio Castanho, o ex-aluno, mais
notável que a escola teve. Um dia quando caminhavam juntos, viu o seu pai. Tentou
disfarçar, mas não havia mais tempo. Sr. Ângelo veio em sua direção, cumprimentou-o e
Eugênio o ignorou, como se não o conhecesse. Naquela mesma noite, na hora do jantar
não tinha coragem para encará-lo. De repente os olhos do pai buscam os de Genoca
(Eugênio) como se lhe pedissem desculpas.
“Honório corre. Anamaria cresceria sem pai, sem mãe..."
V
No dia da formatura, depois do discurso do Sr. Diretor, Eugênio sai, segurando o
diploma na mão, agora era ele se transformara no Dr. Eugênio Fontes. Fazia um ano que
ajudava o Dr. Teixeira Torres no hospital Sagrado Coração, o pai tinha falecido um ano
antes e seu irmão Ernesto, continuava a beber... Repara em Olívia, a única mulher da
turma. Ela estava encostada em uma das colunas, segurando um ramalhete de rosas
vermelhas. Olívia formara-se com sacrifícios; morava com um casal alemão, os Falk;
trabalhava em um Laboratório de Análises Clínicas e Eugênio nunca a tinha visto vestida
daquela maneira, radiante, feminina. Ele sempre a viu como um colega da turma. Olívia
diz que está esperando que um cavalheiro a convide para entrar em seu automóvel.
Eugênio não tem carro, mas oferece o seu braço e juntos decidem prestar uma
homenagem a um monumento ali perto, o do Patriarca. Falam sobre o futuro e Eugênio
mostra-se inseguro com o amanhã. Ele acreditava que o diploma faria desaparecer a sua
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Olhai os Lírios do Campo |Érico Veríssimo
sensação de inferioridade, no entanto, não tinha confiança em si e preocupava-se com a
impressão dos outros.
A viagem continua. Olívia disse-lhe uma vez:
“O que tu precisas é aceitar as criaturas. A humanidade não tem culpa da
maldade daqueles homens que te humilharam.”
VII
Eugênio sai do quarto da amiga, totalmente confuso.
A mãe o esperava, estava aflita e queria notícias sobre a operação.
”Não há de ser nada, ninguém pode com o destino.”
Eugênio questiona-se como será sua amizade com Olívia agora.
Tudo fora um momento de tontura...
Pergunta à mãe se tivera notícias de Ernesto e lembra-se daquela noite, em que ele
apareceu novamente no jornal como desordeiro. Eugênio foi firme: “um de nós é
demais nesta casa”.
Ernesto foi-se e não tiveram mais notícias dele.
“No carro, Eugênio, vê sua mãe morrendo e pedindo para ele procurar o
Nestinho, que o Nestinho era bom...Agora Olívia é que morria...”
VIII
Eugênio é chamado para socorrer uma criança, a mãe estava desesperada e depois,
o choro de Eugênio. Naquela noite, Olívia e Eugênio, jantaram no Edelweis, beberam,
dançaram e ele, sentiu vontade de beijá-la; porém, sem malícia ou sensualidade.
Olívia diz-lhe para que nunca se esqueça de olhar para as estrelas e conta que aceitou
a proposta do Dr. Bellini para organizar a maternidade do hospital, em Nova Itália.
Nesta noite, com as luzes apagadas, Eugênio se entregou a Olívia, como quem quer
aliviar o sofrimento dum doente com uma injeção sedativa.
O carro deslizava pela estrada. Eugênio repara que são vinte para as oito e
novamente se lembra do Mr. Tearle, que dizia que, quando alguma coisa acontece,
sempre passam vinte minutos ou faltam vinte minutos. Será que Olívia morreu?
Olha para as estrelas...
”Enquanto elas brilharem haverá esperança na vida.”
IX
Eugênio é chamado para atender a uma mulher que havia cortado o pulso,
acidentalmente, na casa dos Cintra.
Fazia um mês que Olívia havia partido e somente uma carta viera.
Olhai os Lírios do Campo |Érico Veríssimo
77
Dizia: “O Dr. Bellini é o homenzinho mais engraçado do mundo.”
Após o socorro, Eugênio ao virar-se, depara-se com uma mulher muito loura, vestida
de um roupão escarlate, que manda queimar o lençol sujo de sangue e em seguida,
ordena que o médico a acompanhe, oferece cigarros e trata-o como fosse um criado.
Observa Eugênio e pergunta-lhe a sua opinião sobre Freud. Acrescenta que ele era
uma espécie rara de homem, pois ainda ficava atrapalhado sozinho na presença de uma
mulher. Eugênio conclui que ela não passa de uma mulher rica e mimada, querendo
aparentar-se moderna.
Eunice continua dizendo que é o tipo de mulher que adora provocar reações.
Eugênio reage com palavras e na hora de sair, ela entrega-lhe uma nota de cinquenta
mil-réis.
Faltam quarenta minutos de viagem. Pensa em Anamaria, ela herdara de Olívia uma
expressão de suave seriedade. Lembra-se das palavras frias de Eunice dizendo que não
queria filhos, que eram mamíferos esfaimados que deformam o corpo.
Acélio Castanho falava em Platão; Cintra e Filipe em negócios; e Izabel, a esposa de
Filipe, procurava com olhares, Eugênio.
Pensa nos telefonemas de Eunice, os seus convites, os passeios de carro, até que em
uma noite, surpreendeu-se de mãos dadas com ela.
“Estaria apaixonado naquela época? Não podia negar que, ela era uma
mulher atraente.”
Olívia escrevia raramente e as cartas pareciam de homem para homem, enquanto
isso imaginava como seria ser genro de Vicente Cintra.
X
Olívia retorna de Nova Itália e Eugênio lhe pergunta se tinha recebido a carta. Afirma
que não gostava dela, que era em sua carreira que pensava...
Olívia diz-lhe que acredita que ele há de se lembrar desta noite, daqui a muitos anos.
Ele puxa-a contra o seu corpo e se entregam ao amor. No dia seguinte, Olívia parte
novamente para Nova Itália.
Pede para Honório correr mais e conscientiza-se de que não se preocupava mais com
Eunice e nem com as convenções sociais. Mas, que a vida deixaria de ter sentido se Olívia
morresse.
XI
Era aniversário de Eugênio, 31 anos. Os amigos presentes conversando sobre o
“Megatério” que Filipe estava construindo e Dora, sua filha comenta que ele, gosta mais
do “Megatério” que dele. Ela amava um estudante judeu, Simão. Os pais se opunham ao
namoro e os namorados sofriam. Enquanto isso, os pensamentos de Eugênio estavam
fixos num anúncio de jornal: o endereço novo do consultório da Dra. Olívia.
Dez minutos para chegarem.
“Olívia está fora de perigo, Deus existe?!...”
78
Olhai os Lírios do Campo |Érico Veríssimo
XII
Eugênio revê o seu relacionamento com Izabel. Não tinha coragem de dizer-lhe que
não a amava. Na verdade, precisava sacrificar vítimas para conter o seu sentimento de
inferioridade.
Em seu emprego na fábrica do sogro, vive conflitos existenciais, mostra-se fraternal
para com a secretária e para com os outros empregados na intenção de comprar-lhes a
cumplicidade.
Um dia, um acidente mata um operário: Toríbio Nogueira, 37 anos, casado, cinco
filhos. O Sr. Cintra incumbe Eugênio para providenciar os encaminhamentos dentro das
leis trabalhistas e ironiza afirmando que ele tem jeito para essas coisas.
À noite quando todos saíram, Eugênio apanha seu chapéu e vai á procura de Olívia.
Confessa-lhe que sentiu sua falta e pergunta-lhe se um dia ela o amou.
Eugênio, em seguida, comenta que ela deve ter sofrido todo esse tempo, sem um
amigo, sozinha. Ela responde que ele deixou a melhor das recordações naquela última
noite. Leva-o para o seu quarto e Eugênio pode ver uma criança dormindo no berço.
Comovido, ele se reconheceu no bebê adormecido.
Passam pelo parque. Lembra-se que passeou com Olívia e Anamaria há poucos dias
por entre aquelas árvores. Depois daquela verdade, sua vida tinha mudado: visitava a
filha todos os dias e durante quinze dias, o seu convívio com Olívia foi intenso.
O carro estacionou a porta do hospital, Irmã Isolda vem recebê-lo e murmura que,
Olívia morreu ao anoitecer, na santa paz do Senhor. O seu corpo estava sendo velado na
capela.
PARTE II
XIII
Eugênio relê a carta que Olívia lhe escreveu, poucas horas antes de morrer. Era uma
carta de despedida, deixando Anamaria aos seus cuidados e avisando que na gaveta da
cômoda havia um maço de cartas que ela havia escrito de Nova Itália expressamente
“para não te mandar”.
Passou pelo “Megatério”, pensou em Filipe e em sua ambição.
XIV
Eunice ofereceu um jantar a Túlio Altamira, pintor paulista e ocorre uma discussão
entre Túlio e Acélio Castanho que defende que, só a castidade pode elevar o homem dos
animais irracionais.
XV
Eugênio sonha que está parado em uma calçada, observando as meninas de um
orfanato. Acorda desesperado, pensa em Anamaria. Agora passa a maior parte de seu
Olhai os Lírios do Campo |Érico Veríssimo
79
tempo na casa dos Falk, relendo as cartas de Olívia. Fica a refletir o que estava fazendo
naquele momento em que Olívia pensava nele e lhe escrevia. Talvez resfolgasse como um
animal nos braços de Izabel...
“Tinha tido apenas a ilusão de viver, mas na verdade andara morto entre os
homens.”
XVI
Eugênio, sempre que deixava a casa dos Falk, Anamaria perguntava por que ele não
dormia ali.
Essa situação estava sufocando-o, até que não aguentando mais, resolve contar
tudo a Eunice.
Eugênio chegou afirmar que foi patife em casar-se com ela, pelo dinheiro. Ela
responde que aquilo não era nenhuma novidade, que, por sua vez, havia casado com ele
por extravagância e pura piedade.
Eugênio deixou a casa de Eunice naquela mesma noite.
XVII
Eugênio montou seu consultório em duas salas de aluguel barato, num edifício
modesto e tinha como amigo e confidente, o Dr. Seixas. Seus pacientes eram em sua
maioria empregados do comércio, funcionários públicos, estudantes pobres e
prostitutas.
Sr. Cintra tentou fazer-lhe um acordo, uma viagem, mas, Eugênio estava decidido.
Eugênio passou a fazer as suas refeições com os Falk e fazia Anamaria dormir.
Uma noite quando relia as cartas de Olívia, o telefone tocou. Chamado urgente.
XVIII
Era Izabel. Queria saber se existia outra mulher na vida dele.
Eugênio compra o jornal para procurar o anúncio que havia colocado pedindo
informações sobre o paradeiro de Ernesto. Naquele dia no consultório, atendeu três
homens e duas mulheres com doenças venéreas. O sexto cliente era uma menina. O pai
queria saber se a filha ainda era virgem.
À noite, voltando de um chamado urgente encontrou Dora e Simão, sentados num
dos bancos da praça, bem na frente do “Megatério”. Dora conta que um professor falou
contra os judeus e que Simão tinha se retirado da sala de aula. Simão não vê esperanças
para o namoro entre eles. Seus filhos seriam desprezados pelos judeus e pelos cristãos.
Eugênio promete interceder, mas Simão diz que:
“O Eng. Filipe Lobo só compreende as criaturas de cimento armado e aço.”
80
Olhai os Lírios do Campo |Érico Veríssimo
XIX
Havia dias escuros na nova vida de Eugênio. Os jornais daquele dia anunciaram a
viagem de Eunice e do pai à Europa. Chegavam versões diversas sobre o seu rompimento
com Eunice: dizia-se que ele havia apanhado a mulher nos braços de Filipe, ou nos braços
de Acélio Castanho, que Eugênio era impotente sexual...
XX
Uma manhã Simão foi buscar Eugênio para ir socorrer-lhe o pai, Sr. Mendel
Kantermann. Depois de tirá-lo do perigo, Simão quis que ele conhecesse sua casa, sua
miséria, falava que a mãe só tinha um seio em virtude da crueldade dos homens. Quis
pagar-lhe a consulta e contou que mostrou toda a sua vida à Dora, para o prazer doentio
de torturá-la.
Em casa o Dr. Seixas o esperava para uma intervenção cirúrgica e em seguida, diz que
tinha uma supressa para ele. Era Florismal que estava internado. Conversaram sobre o
passado. Florismal morre depois de uma semana.
Aquela noite, Eugênio folheou o álbum de fotografias de Olívia. Nada sabia sobre o
seu passado. Havia uma foto ao lado de um rapaz e por baixo do retrato, havia um nome
e duas datas: Carlos - 1921-1923. Talvez fosse o homem que primeiro a tivera nos braços.
XXI
A clientela de Eugênio aumentava cada vez mais. Uns comentavam que ele queria a
medicina socializada porque tinha mentalidade de funcionário público, outros diziam
que ele era comunista...Teve em suas mãos um caso impressionante. Um antigo
funcionário público, trabalhador, honesto, resolve se internar num hospício, pois conclui
que está louco, justamente por portar essas qualidades.
Outros casos são: um casal, onde a mulher estava quase cega de ambos os olhos.
Não tinha caso de cegueira na família e começou a perder a visão aos poucos. Quando
Eugênio fica a sós com a mulher pergunta-lhe quantos abortos, ela praticara: Dez, e,
outro, um homem fino, da alta-sociedade, preocupado por estar fracassando na cama
com suas amantes.
Numa manhã de domingo, Eugênio, foi à casa de Seixas e indaga o motivo das flores
em cima da mesa da sala. Ele responde que vinham da parte do Dr. Ilya Dubov. Ele era um
homem solitário, não tinha parentes, nem amigos e não queria ficar esquecido depois de
morrer. Dizia à D. Quinota que estava lhe emprestando as flores, que quando morresse,
ela tinha que levar todos os sábados um buquê bem bonito à sua sepultura.
XXII
Dora e Simão aparecem no consultório de Eugênio. Ela estava grávida de três meses
e queriam que ele fizesse um aborto. Ele se nega a fazê-lo e diz que o melhor remédio é
Olhai os Lírios do Campo |Érico Veríssimo
81
contar tudo a Filipe. Ao ligar para Filipe, a secretária diz que ele não podia atender
naquele momento. Simão desafia Eugênio afirmando que tinham procurado um amigo,
mas que procuraria então qualquer desconhecido, uma parteira ou um médico que faria
o que ele negou-se a fazer.
Eugênio tenta impedir a saída deles, mas não quis usar de violência, acreditando que
tinha tempo de avisar Filipe, para que ele interviesse. Já no escritório de Filipe, Eugênio é
acusado como médico e responsável por não ter impedido à saída de Dora.
Passaram o resto da tarde à procura do casal. À noite, Seixas traz-lhe a notícia:
“A Anunciata, aquela cachorra, fez o aborto...veio uma
hemorragia...quando viu a coisa preta pediu socorro pro Rezende...O Rezende
não quis ficar com a responsabilidade...Chamou o pai de Dora...Não foi possível
fazer mais nada. A menina morreu ao escurecer. Simão ainda estava
desaparecido.”
XXVIII
Aquele final de inverno foi escuro e triste para Eugênio. A morte de Dora, a morte de
um velho cliente, Seixas vivendo atormentado pelos credores e pela bronquite crônica...
Uma noite, resolve ir ao teatro e vê Eunice, Sr. Cintra e Acélio Castanho. Ao passar
pelo “Megatério” pensa em Dora e em Olívia.
Em setembro acordou com os gritos da filha, mostrando-lhe o sol. À noite
conversando com Seixas diz que cada dia que passa era uma revelação para ele, que
estava encontrando na vida, em carne e osso, velhos conhecidos dos livros: Fausto,
Hamlet, Pigmalião.
Fausto entrou-lhe no consultório na pessoa de um homem de 68 anos, viúvo que ia
se casar com uma mocinha de 18 anos e queria algo que o fizesse rejuvenescer.
Hamlet, era uma guarda-livros, comia pouco, dormia mal, não acreditava em
ninguém e tinha uma ideia fixa de suicídio.
Pigmalião chamava Ramão Rosa, 50 anos, agiota, sua esposa fugira com um
sargento da Brigada Militar...
Pensa nas palavras de Olívia:
“Felicidade é a certeza de que nossa vida não está se passando inutilmente.
O erro é pensar que o conforto permanente, o bem-estar que nunca acaba e o
gozo de todas as horas são a verdadeira felicidade.”
Eugênio pergunta se Seixas tinha notícias de Simão.
“Não faria nenhuma loucura, pois o tempo cicatriza todas as feridas. Em
breve Dora desapareceria da vida de Filipe, de Isabel e de Simão, assim como a
própria Olívia havia de desaparecer da sua.”
XXIV
31 de dezembro. Faltavam dez minutos para a meia-noite. Eugênio parado na janela
observa o “Megatério” que seria inaugurado naquele dia. Ele só queria saber em que
81
Olhai os Lírios do Campo |Érico Veríssimo
estaria Filipe pensando no momento em que o governador declarasse inaugurado o
edifício.
A meia-noite, durante os cumprimentos, D. Frida deseja que Deus dê felicidades a
todos e saúde a Anamaria.
Seixas apareceu à meia-noite e vinte minutos, brindaram e saíram. Seixas estava
pessimista. Eugênio comenta que excelentes homens de governo dariam os médicos.
Seixas retruca, dizendo que na maioria dos casos, quando os médicos sobem aos postos
do governo, se esquecem de que são médicos e passam a ser apenas políticos.
Seixas olha para Eugênio e pergunta se ele vai mesmo salvar a humanidade. Eugênio
responde que:
“Antigamente só pensava em mim mesmo. Vivia como cego. Foi Olívia quem
me fez enxergar claro. Ela me fez ver que a felicidade não é o sucesso, o conforto.
Uma simples frase me deixou pensando: Considerai os lírios do campo. Eles não
fiam nem tecem e, no entanto nem Salomão em toda a sua glória se cobriu como
um deles.”
Eugênio continuava a falar que existiam duas espécies de crueldade: a crueldade que
se comete por cegueira, por incompreensão, e a crueldade que se comete por prazer. Por
isso que ele acreditava que havia um grande trabalho para médicos e professores. È uma
questão de reeducação.
“Uma revolução pode mudar um sistema de governo, mas não conseguirá melhorar
a natureza do homem, dizia Seixas. O ódio é masculino, o amor é feminino, completava.
Hoje quando a Quinota me abraçou à meia-noite chorou, a coitada. Tem sido
companheira de primeira. Há trinta anos numa noite como esta fiz lá promessas ...Mudar
de vida, ganhar dinheiro, comprar uma casa, um carro. Tudo continuou como antes.”
No fim do verão, Eugênio recebeu a notícia que, Eunice e Acélio iam embarcar para o
Uruguai, onde se casariam sob contrato. Abriu o jornal na coluna de pequenos anúncios,
onde pedira notícias de Ernesto. Havia de encontrá-lo, custasse o que custasse.
Continuou a folhear o jornal e lê que Dr. Filipe estava empenhado em nova realização.
Dobrou o jornal, pensando em Dora.
Naquele momento refletiu como pode um dia tão maravilhoso como aquele, os
homens estarem a trabalhar. Com certeza esses homens lhe responderiam que, era para
ganhar a vida. E, no entanto, a vida estava ali a se oferecer toda, numa gratuidade
milagrosa. Pediu para D. Frida arrumar Anamaria; pois, iriam dar um passeio. Quando a
filha se apresentou pronta, Eugênio reviu nela, a Olívia da noite da formatura.
Eugênio sentia-se em paz e feliz. De repente fica sério. Estava pensando na menina
que atendera a noite passada. Era magra, suja, triste, mal vestida e mal alimentada.
Existiam na cidade, no Estado e no país milhares de crianças nas mesmas condições. Não
bastava que ele se sentisse feliz, que tivesse Anamaria ao seu lado, alegre, bem vestida...
“Era preciso pensar nos outros e fazer alguma coisa em favor deles. Por que
não começar algum trabalho em benefício das crianças abandonadas? Seixas
com certeza o ajudaria.”
Amava as crianças e os moços. Achava que os adultos e os velhos estavam perdidos.
Olhai os Lírios do Campo |Érico Veríssimo
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“- Mas ninguém está perdido“ - falou Olívia em seu espírito. Ele havia
esquecido o som da voz dela. No entanto sabia que Olívia estava viva e que ela
marcara uma entrevista à sombra das árvores do parque, enquanto Anamaria
atirasse migalhas para os marrecos.
E de mãos dadas, pai e filha saíram para o sol.”
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Olhai os Lírios do Campo |Érico Veríssimo
Análise da Obra
Menino de Engenho
José Lins do Rego
UVA 2015.1
ELEMENTOS DA NARRATIVA
Foco narrativo
Narrado em 1ª pessoa por Carlos Melo (personagem), que aponta suas tensões
sociais envolvidas em um ambiente de tristeza e decadência, é o primeiro livro do ciclo da
cana-de-açúcar. Publicado em 1932, Menino do Engenho é a estréia em romance de José
Lins do Rego e já traz os valores que o consagraram na Literatura Brasileira.
Análise da obra
Durante a década de 30 do século XX, virou moda uma produção que se preocupava
em apresentar a realidade nordestina e os seus problemas, numa linguagem nova,
introduzida pelos participantes da Semana de Arte Moderna de 22. José Lins do Rego
seria o melhor representante dessa vertente, se certas qualidades suas não atenuassem
fortemente o tom crítico esperado na época.
A intenção do autor ao elaborar a obra Menino de Engenho, era escrever a biografia
de seu avô, o coronel José Paulino, que considerava uma figura das mais representativas
da realidade patriarcal nordestina. Seria também a autobiografia das cenas de sua
infância, que ainda estavam marcadas em sua mente. Mas o que se constata é que o
biógrafo foi superado pela imaginação criadora do romancista: a realidade bruta é
recriada através da criatividade do gênero nordestino.
É a história típica, natural e sem retoques de uma criança, Carlos, órfão de pai e mãe,
que, aos oito anos de idade, vem viver com o avô, o maior proprietário de terras da região
- coronel José Paulino.
Carlos é criado sem a repressão familiar e mesmo sem os cuidados e atenções que
lhe seriam necessários diante das experiências da vida. Vê o mundo, aprende o bem e o
Análise das Obras | UVA 2015.1
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mal e chega a uma provável precocidade acerca dos hábitos que lhe eram "proibidos",
mas inevitáveis de serem adquiridos.
Pela ausência de orientação, toma-se viciado, corrompido, aos 12 anos de idade.
Além dos problemas íntimos do menino, desorientado para a vida e para o sexo, temos a
análise do mundo em que vivia, visto por Carlos, que é o narrador-personagem.
Carlos vê o avô como um verdadeiro Deus, uma figura de grandiosidade inatingível.
O engenho é o mundo, um império, de onde o coronel José Paulino dirige e guia os
destinos de todos. E, em conseqüência, Carlos considera-se, e é considerado pelos
servos, escravos e agregados, o “coronelzinho” cujas vontades têm que ser
rigorosamente realizadas.
Descreve com emoção a vida dos escravos, a senzala, o sofrimento e os castigos do
“tronco”. Uma cena a ser destacada é a “enchente” do rio, vista com admiração e susto
por Carlos, constituindo uma descrição de grandiosidade bíblica.
Também vêm à tona as superstições e crendices comuns entre as camadas
populares, como a do “lobisomem”.
O romance tem como cenário a região limítrofe entre Pernambuco e Paraíba, o que
pode ser deduzido pelas descrições da paisagem e da vida dos engenhos de açúcar.
Os bandidos e cangaceiros, comuns na região, são mostrados como única forma de
reação social de um povo oprimido.
Espaço
O romance tem como cenário a região limítrofe entre Pernambuco e Paraíba, o que
pode ser deduzido pelas descrições da paisagem e da vida dos engenhos de açúcar.
Os bandidos e cangaceiros, comuns na região, são mostrados como única forma de
reação social de um povo oprimido.
O nome da fazenda de engenho chama-se Santa Rosa.
Contextualização
O contexto histórico deste livro é o Brasil colônia e seu regime escravocrata. A
localização geográfica se dá no nordeste brasileiro, nos solos de massapê (argiloso) da
zona da mata no Estado da Paraíba. As relações sociais vividas na época são o ponto alto
do livro, onde a figura quase heróica do coronel mistura o poder econômico da fazenda
de engenho, com o poder político de prefeito da cidade, concentrada na mesma pessoa:
Coronel José Paulino. Estes fatores e muitas das características citadas no romance estão
presentes na história da sociedade brasileira da época da escravidão, principalmente da
região nordestina.
Personagens
Martinho Carlinhos - É o narrador do romance. Órfão aos quatro anos, tornou-se
um menino melancólico, solitário e bastante introspectivo. De sexualidade exacerbada,
mantém, aos doze anos, a sua primeira relação sexual, contraindo “doença-do-
86
Menino de Engenho |José Lins do Rego
mundo” - a popular gonorréia.
Coronel Zé Paulino - É o todo-poderoso senhor de engenho - o patriarca absoluto
da região. Era uma espécie de prefeito - administrava pessoalmente, dando ordens e
fazendo a justiça que ditava a sua consciência de homem bom e generoso.
Tia Maria - Irmã da mãe de Carlinhos (Clarisse), torna-se para este a sua segunda
mãe. Querida e estimada por todos pela sua bondade e simpatia, era chamada
carinhosamente de Maria Menina.
Velha Totonha - É uma figura admirável e fabulosa. Representa bem o folclore
ambulante dos contadores de histórias.
Antônio Silvino - Representa bem o cangaceiro sempre temido e respeitado pelo
povo, em virtude de seu senso de justiça, tirando dos ricos e protegendo os fracos.
Compõe bem a paisagem nordestina.
Tio Juca - Não chega a representar um papel de destaque no romance. Por ser filho
do senhor de engenho, fazia e desfazia (sobretudo sexo com as mulatas), mas não era
punido. De certa forma, representa o papel de pai de Carlinhos.
Lula de Holanda - Embora ocupe pouco espaço, o Coronel Lula é uma personagem
relevante, pois representa o senhor de engenho decadente que teima em manter a
fachada aristocrática.
Prima Lili – Uma das primas de Carlos, já vem muito doente, ele morre, o que lhe
causa muita dor.
Clarisse – Mãe de Carlos, assassinada logo no começo da obra.
Sinhazinha - Embora não fosse a dona da casa (era cunhada do Coronel), mandava
e desmandava no governo da casa-grande. Era odiada por todos por seu rigor e
carranquice, e pode ser identificada com as madrastas ruins dos contos populares.
Negras - Restos do tempo de escravidão, destacam-se a negra Generosa, dona da
cozinha, a vovó Galdina, que vivia entrevada numa cama.
Zefa Cajá – Negra com quem Carlos terá sua primeira relação sexual.
Enredo
O romance, narrado em primeira pessoa, apresenta uma estrutura memorialista, em
quarenta capítulos. O tempo flui cronologicamente: o narrador (Carlinhos) tem quatro
anos quando a narrativa começa e doze, quando termina o livro.
A mãe do narrador (Clarisse) está morta, assassinada pelo pai no quarto de dormir.
“Por quê?” Ninguém sabia compreender”. O menino, apesar de pequeno, sente o
impacto da morte da mãe e a solidão que esta lhe deixa. “Então comecei a chorar
baixinho para os travesseiros, um choro abafado de quem tivesse medo de chorar”.
Menino de Engenho |José Lins do Rego
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O pai então é levado para o presídio. Era uma pessoa nervosa, um temperamento
excitado, “para quem a vida só tivera o seu lado amargo”. Num momento de
desequilíbrio, matara a esposa com quem sempre discutia. O narrador o recorda com
saudade e ternura. O narrador lembra também, com ternura e carinho, a mãe tão
precocemente ceifada pelo destino. Recorda as suas carícias, a sua bondade, a sua
brandura. “Os criados amavam-na”. Era filha de senhor de engenho, mas “falava para
todos com um tom de voz de quem pedisse um favor”.
Um mundo novo espera o narrador. “Três dias depois da tragédia, levaram-me para
o engenho do meu avô materno. Eu ia ficar ali morando com ele”. Conduzido pelo tio
Juca, que viera buscá-lo, encanta-se com tudo que vê: tudo é novidade naquele mundo
novo. A imagem que sempre fizera do engenho era a “de um conto de fadas, de um
reino fabuloso”. À primeira vista, a realidade ia comprovando fantasia.
No engenho, é levado para receber a bênção do avô e da preta velha Tia Galdina e
ganha uma nova mãe – a tia Maria. No dia seguinte, com o mergulho nas águas frias do
poço, o narrador está batizado para a nova vida que vai começar. Aos poucos, o narrador
vai penetrando no mundo novo do engenho. Levam-no para ver o engenho e ele fica
deslumbrado com o seu mecanismo. Tio Juca vai-lhe explicando todos os detalhes.
Os primos chegam para passar as férias na fazenda e o narrador se solta de vez “já
estava senhor de minha vida nova”; passeios, banhos proibidos, brincadeiras, sol o dia
todo e as recomendações de Tia Maria. Ao lado da fada boa e terna que era tia Maria,
vivia no engenho uma velha de nome Sinhazinha que “tomava conta da casa do meu avô
com um despotismo sem entranhas”. “Esta velha seria o tormento da minha meninice”.
Todos a temiam e fugiam dela. “As negras odiavam-na. Os meus primos corriam dela
como de um castigo”.
A prima Lili – A“magrinha e branca”; “parecia mais de cera, de tão pálida. Tinha a
minha idade e uns olhos azuis e uns cabelos louros até o pescoço”. “Na verdade a prima
Lili parecia mais um anjo do que gente”. E tal sucedeu com a pobrezinha: um dia,
amanheceu vomitando preto e morreu, para desconsolo do narrador, que se afeiçoara
muito a ela. Com a morte de Lili, o desvelo e os cuidados de tia Maria com o narrador se
acentuam. Era tempo das primeiras letras, mas nada entra na sua cabeça, pois só pensava
na liberdade nas patuscadas no mundo lá fora. Ainda recorda do flagelo das secas: as
aves de arribação.
O cangaceiro Antônio Silvino faz uma visita de cortesia ao engenho Santa Rosa. Há
uma grande expectativa sobretudo por parte dos meninos. O famoso cangaceiro chega e
é recebido pelo senhor de engenho. A partir, entretanto, o narrador demonstra o seu
desencanto: “Para mim tinha perdido um bocado de prestígio. Eu fazia outro, arrogante
e impetuoso, e aquela fala bamba viera desmanchar em mim a figura de herói”. É que o
mito se tornou real, descendo do seu pedestal. Organiza-se um passeio ao sítio do Seu
Lucino, nas proximidades do engenho. No caminho, gente que voltava da feira com seus
quilos de carne. A caravana chega ao sítio e são recebidos com a boa hospitalidade
sertaneja. À tardinha, voltam todos para casa, quando os moleques começam a falar de
mal-assombrados.
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Menino de Engenho |José Lins do Rego
O narrador leva a sua primeira surra pelas mãos da velha Sinhazinha. Ficou desolado
o dia todo, e à noite, foi dormir pensando na vingança: “Queria vê-la despedaçada entre
dois cavalos como a madrasta da História de Trancoso.”
A cheia do Paraíba chegou devastadora, matando gente e animais, destruindo
plantações e casas. A gente do engenho refugia-se na casa do velho Amâncio, fugido da
fúria das águas. A enchente tinha sido arrasadora e as águas chegaram a penetrar na
casa grande. Os prejuízos eram enormes .
As primeiras letras, enfim, vieram com a bela Judite, mulher do Dr. Figueiredo. Com
ela, começam a surgir os primeiros lampejos do amor. “Sonhava com ela de noite, e não
gostava dos domingos porque ia ficar longe de seus beijos e abraços”.
Depois mandaram-no para uma escola onde tinha todas as regalias, em meio da
miséria geral, por ser o “neto do Coronel Zé Paulino”. Paralelamente às letras, começa a
iniciação sexual, apesar da pouca idade. Com Zé Guedes, moleque que o levava e
buscava na escola, aprendeu “muita coisa ruim”. Com o primo Silvino e outros andou
fazendo muita “porcaria” com as cabras e vacas da fazenda.
Nas visitas e incertas do Coronel José Paulino à sua propriedade, está patente todo o
seu poder de senhor de engenho, de patriarca absoluto daquelas terras.
A religião no engenho se restringia aos limites do quarto de santos com suas
estampas e imagens. O Coronel Zé Paulino não era um devoto, e mesmo a tia Maria,
sempre preocupada com rezas e orações, não era de freqüentar igreja e comungar. Na
semana santa, especialmente na Sexta-Feira da Paixão, havia um recolhimento natural
em obediência à tradição.
O cabra Chico Pereira está amarrado ao tronco para receber a punição pelo malfeito:
A vítima, a mulata Maria Pia, jogara-lhe a culpa, e o senhor patriarcal, inflexível, ordenara
que o moleque assumisse. Convidada a jurar sobre o livro sagrado, a mulata confessa.
Uma traquinagem de criança e um ato de heroísmo – eis a síntese deste capítulo. O
primo Silvino, querendo provocar um desastre, coloca uma pedra enorme na linha de
trem para vê-lo tombar. O narrador imagina a cena terrível com gente morta e ferida e,
num gesto heróico, atira-se diante do trem e rola a pedra dos trilhos.
Pelo engenho, corria o boato de que um lobisomem estava aparecendo na Mata do
Rolo. “Diziam que ele comia fígado de menino e que tomava banho com sangue de
criança de peito”. Seria José Cutia? Além do lobisomem, outros duendes da superstição
popular povoaram a infância do narrador: o zumbi, as caiporas, as burras-de-padre etc.
A velha Totonha com suas histórias fabulosas encantam o narrador. Quando passava
pelo engenho era uma festa. Suas histórias, sempre de reis e rainhas comoviam. Ela sabia
como ninguém contar uma história. Mas “o que fazia a velha Totonha mais curiosa era a
cor local que ela punha nos seus descritivos (...) Os rios e as florestas por onde andavam
os seus personagens se pareciam muito com o Paraíba e a Mata do Rolo. O seu Barba
Azul era um senhor de engenho de Pernambuco.
“A senzala do Santa Rosa não desaparecera com a abolição. Ela continuava pregada
à casa-grande, com suas negras parindo, as boas amas-de-leite e os bons cabra do eito e
as boas cabras do cifo”. Apesar de terem sido aforriados, muitos ficaram no engenho. Aí
Menino de Engenho |José Lins do Rego
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estava a velha Galdina, doente e alquebrada, Generosa, que mandava na cozinha da
casa-grande e a demoníaca Maria Gorda.
Tal como um monarca, o senhor de engenho, sentado no seu trono, ia ouvindo as
queixas e pedidos dos seus súditos.
Mais um passeio. Agora é ao engenho do Oiteiro. Saem cedo e vão de carro-de-boi.
Destaca-se aqui a habilidade do carreiro Miguel Targino na condução dos bois. Por onde
passa a comitiva é recebida com festejos e cortesia. Destaca-se em cada lugar a
hospitalidade e gentileza do povo simples e humilde. Tia Maria, a senhora do Santa Rosa,
retribui a tudo com simpatia.
A morte trágica da mãe o marcou profundamente e, apesar das brincadeiras e
traquinagens com os moleques, era um menino melancólico que buscava sempre a
solidão.
Contadores de histórias— os mestres de ofício dos quais o narrador se tornou
amigo. É através deles que ele fica conhecendo o Capitão Quincas Vieira, irmão mais
novo do Coronel Zé Paulino, que morreu brigando.
Um antigo sonho do narrador se realiza: ganhou um lindo Carneiro para montaria.
Chamava-se Jasmim. Entretinha-se com ele boa parte do tempo e, com isso, os canários
ganharam a liberdade. Nos seus passeios com Jasmim, na solidão do entardecer, a
melancolia de sempre, “arrastava-me aos pensamentos de melancólico”.
Da história triste do Santa Fé e seu senhor decadente - O Coronel Lula de Holanda,
surgiu um dos grandes romances de José Lins: Fogo Morto. O Santa Fé é um engenho em
decadência, símbolo de um mundo que está prestes a ruir. Em vão, o Coronel tenta
manter a fachada com seu cabriolé. Um pouco mais e o Santa Fé estará de fogo morto.
A doença tira a liberdade do narrador por um bom espaço de tempo. Era o puxado,
“uma moléstia horrível que me deixava sem fôlego, com o peito chiando, como se
houvesse pintos sofrendo dentro de mim”. Amargou, por causa do puxado, muitos dias
de solidão e de cama.
O narrador penetra no quarto do tio Juca e na sua intimidade: “uma coleção de
mulheres fluas, de postais em todas as posições da obscenidade”.
A descrição de um incêndio de largas proporções faz brotar de todos os cantos a
solidariedade do sertanejo. Mais uma vez sobressai aqui a figura do avô, com sua
autoridade e com seus gritos de ordem para conter o fogo que ia devastando o canavial.
Um exército de homens miseráveis e esfarrapados trabalham no eito: “estavam na
limpa do partido da várzea”. “Às vezes eu ficava por lá, entretido com o bate-boca dos
cabras”. Muitos desfilam pelo capítulo — uns com suas virtudes, outros com seus
defeitos. Em todos, um ponto comum: a vida de servidão, a miséria, a degradação.
Após a ceia, o Coronel Zé Paulino gostava de contar seus casos de escravos a
senhores de engenho, antes e depois da abolição. As ruindades do Major Ursulino com
os negros sempre se destacam nas suas histórias. Gostava também de relembrar a visita
de Dom Pedro ao Pilar e tinha grande orgulho de sua casta branca e nobre.
O amor desperta forte no coração do narrador que possuía então oito anos. Era
Maria Clara, uma prima civilizada do Recife, que estava ali com a família para passar
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Menino de Engenho |José Lins do Rego
férias. A paixão é violenta: os passeios, o beijo, as lágrimas da partida.
A loucura solitária e miserável do pai remete o narrador a doentes (como o Cabeção
e o doido) e a maus presságios que o deprimem. O seu puxado atormenta-o e os
cuidados o aprisionam: “a minha vida ia ficando como a dos meus canários prisioneiros”.
Por outro lado, a sexualidade precoce encontra na negra Luísa uma comparsa das
“minhas depravações antecipadas”; “só pensava nos meus retiros lúbricos com o meu
anjo mau, nas masturbações gostosas com a negra Luísa.”
O casamento da tia Maria foi digno da opulência e grandeza do senhor de Engenho
do Santa Rosa. Atraiu gente de toda a redondeza e do Recife. É com tristeza que tudo é
descrito pelo narrador que perde a sua segunda mãe: “E pela estrada molhada das
chuvas de fim de junho, lá se fora a segunda mãe que eu perdia”. Até mesmo o Jasmim, o
carneiro montaria, fora-se nessa, servindo de almoço e jantar, juntamente com outros,
aos inúmeros convidados.
Você, no mês que entra, vai para o colégio”. Arranjavam-se os preparativos, e, com o
casamento de tia Maria, “vivia a desejar o dia da minha partida”. Já estava grandinho
(cerca de doze anos) e não sabia quase nada. Sabia ruindades, puxava demais pelo meu
sexo, era um menino prodígio da porcaria.
Lá fora, a chuva caía fazendo crescer as plantações: “os pés de milho crescendo, a
cana acamando na várzea, o gado gordo e as vacas parindo”.
Uma briga entre dois negros se encerra com a morte de um deles que deixou mulher
e cinco filhos órfãos. Levam preso o assassino, mas a alma do morto continuou pairando
pelo engenho sob a forma de assombração.
Tinha uns doze anos quando conheci uma mulher, como homem”. E, com ela,
apanhou doença-do-mundo a qual ia operando nele uma transformação: o menino de
calça curta ia ficando na curva do tempo e dali, precocemente, ia brotando um rapazinho
de sexualidade exacerbada. “Recorriam ao colégio como a uma casa de correção”.
Enfim chega a época de o depravado menino ir para o colégio. “Uma outra vida ia
começar para mim ". Tudo ia ficando para trás com o trem em movimento.
Carlinhos “levava para o colégio um corpo sacudido pelas paixões de homem feito e
uma alma mais velha do que o corpo”. Era o oposto de Sérgio, em O Ateneu, que
“entrava no internato de cabelos grandes e com uma alma de anjo cheirando a
virgindade.”
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