EDITORIAL
S
e o “homem cordial” caracteriza o bem sucedido do laço social no
Brasil – muito embora a violência e sofrimento sob o qual se amassou sua equivalência simbólica –, não temos certeza de que seja
possível falar com a mesma soltura de um laço nacional. Forma de identidade com que os colonizadores tentaram emoldurar os novos agrupamentos e
dispersões sociais que produziram, ela se inspirou nas crescentes exigências unificadoras da modernidade. Curioso estandard, exigido aos povos, de
adotar formas organizativas uniformes e, é claro, supostamente “melhores”,
desde a ótica de quem delas precisa, para determinar sistemas padronizados tanto de produção como de intercâmbio, e que de maneira nenhuma leva
em conta a diversidade de referenciais simbólicos, que realmente organizam
a vida das comunidades.
No Brasil, essa diversidade não se limita, hoje, a retalhos de costumes, mas constitui um verdadeiro mosaico de línguas, no sentido próprio do
termo – ou seja, sem confundi-lo com idiomas. Mosaico fundado na articulação de diferenças que, reduzidas ao imaginário, tecem um tapete colorido
sob o princípio de uma eqüivalência simbólica dos sujeitos envolvidos.
Nada mais pertinente, então, do que nos interrogarmos acerca do
modo como aqui se lida com o Outro e que nos apresenta uma clínica de
convívio que em outras latitudes notadamente fracassa.
Estão chegando, para isso, os prezados colegas da Association
Freudienne Internationale – AFI, da França, Itália, Portugal, e de numerosas
instituições amigas dos mais diversos cantos do Brasil. Também, abrindo o
leque de nossa reflexão, contaremos com a enriquecedora contribuição de
antropólogos, historiadores, artistas, literatos, músicos, sociólogos e jornalistas. Bem-vindos todos os que vem participar do Congresso Brasil: descoberta v invenção e Colóquio Questões sobre o Outro.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 84, out. 2000
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NOTÍCIAS
NOTÍCIAS
CONGRESSO DE PSICANÁLISE DA APPOA
BRASIL: DESCOBERTA V INVENÇÃO
QUINTA 26/ 10
17h 30min Saguão Entrega das credenciais
19h
Sala 01 Abertura oficial do Congresso
19h 30min Sala 01
Apresentação da Orquestra de Flautas da Escola
Municipal “Heitor Villa- Lobos”
20h 30min Sala 01
CONFERÊNCIA: “BRASILEIRO: PROFISSÃO DESEJANTE” – Robson de Freitas
Pereira (APPOA)
SEXTA 27/ 10
9h
Sala 01
Mesa 1: FORMAÇÕES NO BRASIL CONTEMPORÂNEO
“Os sentidos da vida na rua” – Luciana Moro (Ter.Ocup / RJ)
“A subjetividade hoje: Os paradoxos da servidão voluntária” – Dóris Rinaldi (Psic.,
RJ)
“Brasil, laço social, laço indentitário” – Isabel Marazzina (APPOA, SP)
9h
Sala 02
Mesa 2: O TEMPO E O VENTO
“Da carta de Caminha à carta roubada: que caminhos percorremos?” – Otávio
Winck Nunes (APPOA)
“História e Ficção: Reflexões Psicanalíticas sobre o tempo” – Walter Firmo de
Oliveira-Cruz (Psic, RS)
“Entre a história, a ficção e a experiência” – Valéria Rilho (APPOA)
10h 45min Intervalo – Cafezinho
11h 15min Sala 01
CONFERÊNCIA: “PRETO E BRANCO NA FUNDAÇÃO DO BRASIL” Maria Belo (Psic,
Portugal)
13h
Intervalo para o almoço
14h 30min
Sala 1
Mesa 3: RAÍZES DO BRASIL
“A origem do Brasil: do mito compartilhado à versão individual” – Carmen Backes
(APPOA)
“Colombo entre nós...” – Miriam Chnaiderman (Psic, SP)
“Que origem?” – Ivan Corrêa (Psic, PE)
16h 15min Intervalo – Cafezinho
16h 30min Sala 01
Mesa 4: PELAS TABELAS
“A cultura do Futebol” – Ruy Carlos Ostermann (Jornalista, RS)
“A presença do futebol no cinema brasileiro” – Giba Assis Brasil (Cineasta, RS)
16h 30min Sala 02
Mesa 5: BRASIL, RAÇA E COR
“Ensaios brasileiros” – Maria Auxiliadora Sudbrack (APPOA)
“O agregado e o registro cultural” – Ana Maria da Costa (APPOA)
17h 30min Sala 01
CONFERÊNCIA: “OS COSTUMES DO BRASIL” – Octávio Souza (Psic, RJ)
19h
Fim dos trabalhos de sexta- feira
SÁBADO 28/ 10
9h
Sala 01
Mesa 6: UM OLHAR SOBRE O BARROCO
“Não estamos mais no tempo do barroco” – Christiane Lacôte (Psic, França)
“Contingências do sagrado” – Mario Fleig (APPOA)
“O barroco: a arte da contraconquista” – Edson Luis André de Sousa (APPOA)
9h
Sala 02
Mesa 7: O SOM DO BRASIL
“A invenção do Brasil em música” – Celso Loureiro Chaves (Músico, RS)
“Música brasileira; mídia e indústria fonográfica” – Augusto Maurer (Músico, RS)
10h 45min Intervalo – Cafezinho
11h
Sala 1
CONFERÊNCIA: “SINGULARIDADES OU UNIVERSALIDADE? O ÍNDIO TUPINAMBÁ
NA OBRA DE JEAN DE LERY” – Roland Chemama (Psic, França)
12h 30min Intervalo para almoço
14h 30min Sala 01
Mesa 8: VISÕES DO PARAÍSO
“O culto do corpo na cultura brasileira” – Henriete Karam (APPOA)
“Visão do paraíso? A mulher brasileira: corpo, carnaval e psicanálise” – Jaime
Betts (APPOA)
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Reproduzimos, aqui, o programa do nosso Congresso:
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“Um Brasil inventado fora do Brasil” – Eliana Calligaris (APPOA, EUA)
“Diotima: é um fato de estrutura ou de cultura?” – Cecília Hopen (Psic., França)
14h 30min Sala 02
Mesa 9: MINHA PÁTRIA, MINHA LÍNGUA
“Em busca de filiação pro-cura” – Anna Irma Callegari (APPOA)
“Paradoxos da lalangue (alíngua) que corresponde à língua Portuguesa – Isabel
Consídera (Psic, RJ)
“O desejo do analista na atualidade” – Mauro Mendes Dias (Psic., SP)
16h 15min Intervalo – Cafezinho
16h 30min Sala 01
Mesa 10: AS VIRTUDES DA CASA
“Comida e Simbolismo” – Maria Eunice Maciel (Antr, RS)
“Rio Grande: travessias entre pais de nome e nomes-do-pai” – Ângela Lângaro
Becker (APPOA)
“Nós entre laços da tradição” – Silvia Carcuchinski Teixeira (APPOA)
16h 30min Sala 02
Mesa 11: FORMAS E CORES BRASILEIRAS
“Preservação do Patrimônio Cultural: a invenção de um conceito” – Ana Lucia
Meira (Arq.,RS)
“Ainda não está aqui o que você procura” – Élida Tessler (Art. Plast, RS)
“A tradição brasileira no estilo internacional: a quebra de paradigmas” – Evaldo
Luiz Schumacker (Arq.,RS)
18h
Sala 01
CONFERÊNCIA: “SAUDADE DA MALOCA - 500 ANOS SONHANDO COM OS ÍNDIOS” Contardo Calligaris (APPOA, EUA)
19h 30min Fim dos trabalhos de sábado
20h30min
Sede da APPOA
Coquetel de confraternização e lançamentos dos livros:
“Imigrações e fundações”
“O valor simbólico do trabalho”
“De um inconsciente pós-colonial, se é que ele existe”
DOMINGO 29/10
9h
Sala 01
Mesa 12: PAÍS DE TODOS OS SANTOS
“...Em nome do pai, dos filhos e de todos os espíritos” – Ângela Jesuíno-Ferretto
(Psic., França)
“Do religioso ao espetacular: a emoção de massa” – Marilda Batista (Antr., França)
“Religiões e religiosidade em 500 anos de Brasil: um olhar antropológico” –
Jorge Alberto Iriart (Antr, BA)
“Freud em Liquidação?” – Maria Ida Fontenelle (APPOA, DF)
9h
Sala 02
Mesa 13: MAR DE ESTÓRIAS...
“Memórias de brasilidade” – Maria do Carmo Campos (Prof. Literatura, RS)
“Aquarela do Brasil: identidade e cor local” – Lucia Serrano Pereira (APPOA)
“O mal-estar em Machado de Assis” – Enéas Costa de Souza (APPOA)
“A linhagem das memórias e a ficção atual” – Luis Augusto Fischer (Prof. Literatura, RS)
11h15min
Sala 01
CONFERÊNCIA: “BRASIL: UM CASO DE POLITEÍSMO BEM SUCEDIDO” – Alfredo
Nestor Jerusalinsky (APPOA)
12h45min
Sala 01
Encerramento do Congresso
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COLÓQUIO - QUESTÕES SOBRE O OUTRO
Este Colóquio, organizado em conjunto com a Association Freudienne
International - AFI, abre um espaço de discussão entre psicanalistas marcados por diferentes formações culturais.
Para a psicanálise, o Outro não é somente o semelhante, mas, fundamentalmente, um lugar regido pelas leis da linguagem, onde se articulam as
dimensões do Simbólico, Real e Imaginário.
Respeitando estas leis, onde não há mais verdade universal, é que
psicanalistas europeus e americanos poderão abordar os diferentes efeitos
na prática clínica. Assim teremos oportunidade de debater temas como:
identidade e identificações, as figuras religiosas do Outro, a transferência,
as vicissitudes do gozo, as dificuldades da formação, o infantil e o Outro, a
dialética da alienação/separação e o lugar do Pai e do Mestre, entre outros .
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Visando incentivar a discussão, as mesas de trabalho serão plenárias, com debatedores. Durante os dias 30 e 31 de outubro, o evento acontecerá nos períodos de tarde e noite.
PROGRAMA
SEGUNDA 30/10
14 h
Sala 02
“A questão do Outro. Lacan leitor de Heidegger” – Mario Fleig
“Por que é tão difícil renunciar a gozar do Outro? “ – Roland Chemama
“ L’enfant et l’Autre” – Jean Bergés
18 h
Sala 02
Feira do Livro – Painel ( presença de Christiane Lacôte), debate e lançamento do
livro:
“O inconsciente pós-colonial, se é que ele existe” – vários autores.
TERÇA 31/10
14h30min Sala 02
“Aliénation et séparation” – Bernard Vandermerch
“Identidade nacional: interpretações do Outro?” – Maria Roneide Cardoso Gil
“Memória e transmissão da experiência” – Ana Maria Medeiros da Costa
18h30min Sala 02
“Remarques sur le transfert” – Christiane Lacôte
“Desafios de uma tradução” – Edson Luiz André de sousa
“Culturalíngua” – Alfredo Néstor Jerusalinsky
Debatedores propostos:
Alfredo Jerusalinsky, Ângela Jesuíno-Ferreto, Contardo Calligaris, Cecília Hopen,
Jean Bergés, Leda Bernardino, Lígia Gomes Victora, Lucia Serrano Pereira, Maria Ângela Cardacci Brasil, Maria Belo, Octávio Souza, Robson de Freitas Pereira.
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COLÓQUIO E SEMINÁRIO DE VERÃO
A reunião entre membros do Cartel da América Latina, da AFI, e integrantes da Coordenação do Congresso “Brasil: descoberta v invenção”, que
aconteceu em Paris, na última semana de agosto, definiu nomes e rumos
para o Colóquio “Questões sobre o Outro”.
Ficou acertado que as reuniões de trabalho do Colóquio acontecerão
em sistema de plenária, a fim de facilitar e incrementar as discussões. Vários colegas psicanalistas que vivem na França confirmaram sua presença e
participação, tais como: Jean Bergès, Bernard Vandermesch, Cecilia Hopen,
Christiane Lacôte, Roland Chemama, Angelo Jesuíno Ferreto, Denise Saint
Fare Garnot e Gianini Vandermesch.
Quanto ao Seminário de Verão, que versou sobre o seminário 11 de
Lacan, Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, foi interessante
acompanhar uma discussão que tem tudo para fornecer subsídios para o
nosso Congresso.O evento anual da AFI, aconteceu entre os dias 26 e 29 de
agosto passado, no auditório SA. Germain des Prés, e foi assistido por cerca de 350 pessoas oriundas de diversos países de Europa e da América.
Lucia Serrano Pereira
O TRAUMÁTICO NA ADOLESCÊNCIA
Rodolpho Ruffino esteve mais uma vez conosco no dia 26 de agosto
de 2000. Nesta ocasião, a temática do seminário foi dedicada à aproximação do conceito de “neurose traumática” à adolescência.
Para Freud, a neurose traumática não seria uma estrutura específica,
mas uma formação neurótica passível de sobrepor-se a uma estrutura. É
nesta via que Ruffino pensa a adolescência.
Contribuindo para nossa discussão, contamos, neste encontro, com
apresentação de Eliana Dable de Mello e Eda Tavares a respeito do caso de
uma adolescente institucionalizada. Na história desta menina, o sintoma se
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apresenta sob a forma de colocação em ato de um sexual não simbolizado.
O real emerge como irrepresentável devido a uma impossibilidade de estar
inscrita enquanto filha, sendo tomada como objeto.
A partir das questões le-vantadas por este caso, avançamos na discussão acerca da adolescência como neurose traumática.
Ruffino coloca que a puberdade é um momento de instauração do
trauma: algo advém ao sujeito inesperadamente. O real eclode e o sujeito é
chamado a dar uma resposta e encontrar uma saída.
A adolescência configura-se hoje como uma neurose traumática, pois
diante do declínio da função social da imago paterna, a puberdade é abandonada ao puro real. Nossa cultura não conta com dispositivos simbólicos rituais, cerimônias- capazes de oferecer uma representação para a irrupção
do real trazida pela puberdade.
Considerando estas questões e, ao mesmo tempo, apontando uma
direção do trabalho com adolescentes, Ruffino nos lembra que as pulsões
sexuais são passíveis de representação e que o acidental - o trauma - pode
vir a ser constitucional.
Deste modo, o trabalho de análise de um adolescente pode permitir
uma simbolização, viabilizando ao sujeito implicar-se diante deste real que
irrompe abruptamente.
Estas foram algumas das questões levantadas pelo seminário de agosto
e que certamente serão retomadas ao longo dos próximos encontros. No dia
16 de setembro, Ruffino voltou à Porto Alegre e nos falou sobre o lugar do
analista e a clínica com adolescentes.
Lembramos que as datas dos próximos encontros serão 11 de novembro e 16 de dezembro (data alterada), das 09 às 14h.
Ana Laura Giongo Vaccaro
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A DETERMINAÇÃO LITERÁRIA DO SUJEITO MODERNO
Se hoje estamos numa espécie de dissolução da modernidade – já
falamos inclusive em pós- modernidade, desmodernização, etc – poderíamos pensar que, talvez, nem se sustente mais a idéia de que somos sujeitos literários. Este tema já havia sido trabalhado, na APPOA, por Maria Rita
Kehl, no final do ano passado, quando nos apontava que a forma literária
romance atravessa a nossa subjetividade de uma tal maneira que quase nos
fica invisível. No primeiro encontro do seminário A determinação literária do
sujeito moderno, Maria Rita Kehl retoma este tema, desenvolvendo a partir
das possibilidades de sustentarmos que as formas romanescas e narrativas
sejam tão determinantes no modo de nos representarmos, de projetarmos
nossas vidas, ou se as formas de vídeo-clip é que teriam uma analogia mais
perfeita com os modos de subjetivação dos jovens de hoje.
Para refletirmos evoca uma certa tradição da modernidade, que seria
a quebra dos modos tradicionais de pensar, a possibilidade de escolher nossas filiações de pensamento, sem pressupor que somente uma inscrição
fosse a correta e que fora desta estaríamos condenados, etc. Mas a partir
daí – além de nos chamar atenção para o esquecimento dessa tradição -,
destaca que é no romance moderno, onde vemos que os personagens são
dotados de uma certa liberdade: de escolher seus destinos e imprimir sua
marca pessoal nas suas escolhas, sofrendo inclusive suas conseqüências.
O que já é uma grande mudança em relação à tradição literária medieval.
Salienta muitas outras características do romance moderno como, por exemplo, a tentativa de imprimir na história de nossas vidas algum sentido, em
que há sempre a esperança de que o personagem, o narrador ou o autor nos
faça entender algo dessa vida dispersa, errática, desamparada, etc. É claro
que Maria Rita nos lembra que esse não é o único modo de subjetivação
para o sujeito humano. Antes do romance havia uma organização narrativa
que nos subjetivava, os sujeitos se inseriam num fluxo maior de palavras ou
tentavam fazer de sua vida um certo corte que os diferenciasse da grande
torrente de palavras que formavam a cultura. O interessante que Maria Rita
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Kehl nos traz algumas questões de Walter Benjamin, especificamente quando este dá uma noção do antes e depois na passagem desses dois modos
de subjetivação, sem podermos esquecer que essa mudança subjetiva acontece lentamente. Lembra-nos W. Benjamim no momento em que este diz
que a narrativa está em extinção, porque poucas pessoas conseguem transmitir a própria experiência. Ele vai chamar de experiência alguma coisa que
é de certo modo transmissível. É como se o vivido só se tornasse experiência quando transmitido, mesmo que a transmissão se desse no âmbito tão
pequeno e isolado que é o consultório do analista. Seria como se nos apropriássemos do vivido na hora em que reflexivamente contássemos para nós
mesmos (ou para o semelhante) o que estamos vivendo. E, apropriar-se da
experiência é tentar fazer UM com aquilo de nós que está se perdendo a
cada minuto do vivido. Entretanto, Benjamim, segundo Maria Rita Kehl, fala
também da impossibilidade de transmissão hoje, em função das alterações
rápidas demais na paisagem humana.
Sim, porque à medida que, aparentemente, o consumo da literatura
diminuiu, passou-se a divulgar opiniões com pouca base crítica, elogios excessivos ou demolições absolutas, sem suficiente argumentação e com uma
grande rapidez. Com a popularização da imprensa, sempre buscando aumentar as vendas, procurando fatos que chamem a atenção, um dia determinado episódio vira manchete, noutro dia esta notícia é substituída por outra e
assim por diante. Já pode-se perceber os próprios escritores, muitas vezes,
entrando nesse hábito alimentício, publicando livros Light para serem consumidos rapidamente. Uma imitação das formas da mídia, ou temas de impacto e um estilo rápido e seco, concorrendo com as páginas policiais dos
jornais, ou melhor, com os noticiários.
Mas, como disse Maria Rita Kehl, se a informação, depois de alguns
dias, não vale mais nada, é preciso tentar transmitir a experiência do vivido,
compartilhar o vivido com o outro, numa função análoga à da narrativa moderna, na qual possamos assistir um questionamento da subjetivação. E, assim, pensar na violência da formação imaginária e não simplesmente estar
submetido à violência transmitida pelas imagens. A informação perde sua
força se ficar no mero registro de informação, o que nos faz perder a sua
dimensão de trágico. Um exemplo disso é que hoje, podemos contemplar
atrocidades que nossos avós não suportariam, e a cada dia surgirá algo
mais aterrorizante. Maria Rita Kehl diz que precisamos produzir efeitos de
outro jeito para elevar nosso patamar de sensibilidade; ou será que precisamos cada vez mais impacto para nos sensibilizarmos?
Será que não temos uma rede simbólica suficientemente forte para
nos ajudar, permitindo que isso que eu vivencio faça algum sentido para o
outro? indaga-se a colega. Para que o vivido seja transmitido é preciso que
haja uma espécie de rede de significantes mais ou menos estruturados,
mesmo que seja um dado novo – o que torna possível que o sentido apareça
para o outro. Neste sentido, Benjamim vai dizer, segundo ela, que o que o
narrador está transmitindo tem a ver com uma certa sabedoria, daí decorre a
função utilitária da narrativa, seja ela em forma de contos de fadas, lendas
etc. Isso tem um sentido de passagem e transmissão. Tentamos o tempo
todo fixar alguma coisa no tempo, a fim de que não se perca para sempre. O
narrador sempre vai imprimir sua marca individual na narrativa. Ele pode ser
o décimo segundo na cadeia de narrativa ao contar aquela lenda, mas ele vai
colocar sua marca. Se ele imprime a sua marca biográfica na narrativa, ele
também vai contar que essa narrativa imprime sua marca na sua biografia.
Como ele foi afetado por essa narrativa... Ele não só é o autor de uma transmissão, pois um dia lhe foi transmitido e significou para ele um novo saber
sobre a vida, foi útil para ele. Esse é o sentido do elo na cadeia.
Lembra Norbert Elias quando diz que o conceito do sujeito moderno,
em se colocar cada vez mais individualista e autônomo, faz com que acabe
esquecendo de seu pertencimento a todas as formas coletivas que o determinam. Talvez, na modernidade, conclui a colega, essa cadeia que estamos
inseridos seja feita de elos mal ligados, falhos, mas mesmo assim continuará sendo uma cadeia. Pois, não nos reconheceríamos como humanos nem
como parte da humanidade se fôssemos puramente autônomos.
Então, quando W. Benjamin fala na breve memória do narrador, que
em geral é recuperada através de um pequeno fragmento do vivido, e que de
certa forma garante uma transmissão, hoje, segundo Maria Rita Kehl, não
podemos dizer o mesmo, pois o fragmento não garante nada, não serve
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como produção de sentido para nossas vidas, talvez, por estarmos num
mundo cada vez mais desagregado.
Luzimar Stricher
GRUPO TEMÁTICO SOBRE MELANCOLIA
A melancolia, embora há muito descrita como patologia e referida na
literatura, guarda seus mistérios. Diferente da psicose maníaco-depressiva e
de traços melancólicos presentes na neurose, inscreve-se nos limites dessas estruturas clínicas. O conceito de neurose narcísica e a diferença entre
luto e melancolia postulados por Freud ajudam a melhor situá-la. Se o melancólico não sabe o que perdeu é na medida em que a constituição do
objeto perdido é particularmente problemática, faltando o objeto da falta (o
que a aproxima, aliás, da drogadição, bulimia e anorexia). Esse objeto não
constituído e, por isso, não perdido, leva ao quase-nada/quase-alguma-coisa, ao qual o melancólico se identifica. A partir daí a inibição e negativismo
generalizados e uma falta de consistência de si são conseqüências freqüentes no quadro em questão.
Alguns traços melancólicos presentes na neurose podem confundir o
diagnóstico. Na histeria eles, por vezes, associam-se ao que, na constituição da feminilidade, esta neurose transformou em desvantagem. Isto é, uma
menos valia ligada ao não-fálico da mulher, fruto da fixação naquilo que não
ganhou e que não é.
Na neurose obsessiva, a ligação ao objeto desprezível demandado
pelo Outro pode estabelecer um fascínio pelo nada, a ponto de dar matizes
melancólicos a esta neurose.
A diferença com a PMD envolve discutir a forclusão e um mecanismo
específico da melancolia, aspecto tratado de formas diversas por alguns autores a serem abordados ao longo das reuniões desse grupo proposto.
Coordenação: Lúcia Alves Mees
Data: 28 de setembro, às 20h30min
Local: Sede da APPOA
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BÔNUS DO XEROX
A Secretaria informa que está em uso o “bônus do xerox”.
O que é? Uma ficha com espaços a serem utilizados conforme a
necessidade do usuário, e que corresponde a um crédito de R$ 10,00,
eqüivalente a 100 (cem) cópias.
Foi confeccionado para facilitar a aquisição dos textos a serem trabalhados.
Secretaria
MUDANÇA DE ENDEREÇO
Conceição Beltrão – Consultórios:
Porto Alegre: Rua Mostardeiro, 291 conj. 403, Fone: (51) 222 3275
Caxias do Sul: Av. Julio de Castilhos, 2001 conj. 16, Fone (51)9968 7200
ERRATA
No texto “O pé esquerdo do academicismo sobre bebês, psicanálise e
estimulação precoce”, de Julieta Jerusalinky – publicado no Correio da APPOA,
n. 83, set. 2000, p. 28-34 – não constam as notas de rodapé, devido a um equívoco no processo de editoração. Na tentativa de recuperar as lacunas decorrentes
destas omissões, procuramos, abaixo, fazer uma indicação, o mais precisa possível, da posição no texto de cada chamada de nota de rodapé.
* NOTA 1: Epígrafe – citação no início do texto
1
FREUD, Sigmund. A questão da análise leiga (1926). In: _____. Edição
standard brasileira da obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro : Imago, v. 20, p. 244.
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* NOTA 2: p. 29 (na 5ª linha do 4º §)
“... apresenta balbucio dirigido a outras pessoas e sorriso social2.”
2
Indicador descrito por Spitz.
* NOTA 3: p. 31 (na 3ª linha do 1º §)
“... em uma discussão clínica3:”
3
Trata-se de uma discussão realizada em equipe interdisciplinar no
CEPAGIA, Brasília.
* NOTA 4: p. 31 (na 6ª linha do 2º§)
“... posta a funcionar para a realização do desejo4”
4
Ver a este respeito: BERGÈS, Jean. Função estruturante do prazer. Escritos da criança, n. 2, Porto Alegre, Clínica Interdisciplinar Dra. Lydia Coriat, 1988.
* NOTA 5: p. 31 (na 11ª linha do 2º§)
“... em lugar de passivizar5 o sujeito”
5
Opomos aqui a passividade própria da infância que logo se articula em
um movimento pulsional que consiste em, por exemplo, “fazer-se olhar”, “fazerse escutar”, “fazer-se pegar”, para uma situação na qual é simplesmente tocado,
olhado, movido por outro que não abre a brecha para que o bebê possa devir
como sujeito de desejo.
lhar para dar conta do modo como se inscrevem em nossa clínica. Esta temática
é abordada no texto A temporalidade na clínica de bebês (1999), Tese defendida
no FEPI, Buenos Aires, Argentina.
* NOTA 8: p. 32 ( 2ª linha do 4º§)
“...poder articular o futuro anterior ao brincar8”
8
A este respeito, ver:
BERGÈS, Jean. A criança e a psicanálise. Porto Alegre : Artes Médicas,
1997.
JERUSALINSKY, Alfredo. Psicoanalisis en problemas del desarrollo infantil. Buenos Aires : Nueva Visión, 1988.
* NOTA 9: p. 34 (1ª linha do 1º§)
“Trata-se de uma menina – Mariana – de aproximadamente três anos 9”
9
Este caso clínico foi por mim atendido, junto à Equipe de Estimulação
Precoce do Hospital Durand, em Buenos Aires, Argentina.
* NOTA 6: p. 31 (última linha do 3º§)
“...limitação que se impõe desde a representação psicanalítica que é
tomada6.”
6
Ver a este respeito: BERGÈS, Jean. Lesão real e lesão fantasmática.
Escritos da criança, n. 2, Porto Alegre, Clínica Interdisciplinar Dra. Lydia Coriat,
1988.
* NOTA 7: p. 32 (última linha do 1º§)
“... são suas intervenções clínicas 7.”
7
Quando se provém da psicanálise, “estímulo” e “precoce” geralmente
não resultam palavras muito confortáveis para nomear a intervenção com bebês.
Mas é justamente por não resultarem confortáveis que elas nos põem a traba-
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SEÇÃO TEMÁTICA
CALLIGARIS, C. Terra à vista...
TERRA À VISTA
COLUNAS DE PORTO SEGURO1
N
este mês de outubro estaremos realizando o Congresso Brasil: descoberta v invenção, após mais de um ano de trabalho preparatório.
Momento este, de um evento, que visa compartilhar e tornar público
o resultado das elaborações geradas neste período. Recorte reflexivo que
permite uma releitura de sua trajetória.
Neste terceiro Correio dedicado ao tema do Congresso (nº 71, agosto/
99 - “500 anos re-inventando o Brasil”; nº81, julho/2000 - “Um país chamado
Brasil”), foram reunidos textos que aglutinam mais algumas construções
que visam inspirar-nos para o Congresso e para as questões que ele aponta.
Destacaram-se aqui textos que remetem a algo de uma origem: aos índios,
a Porto Seguro, à África e ao que disso reconhecemos, que foi se incorporando e habita em nós. Movimento de produção/constituição de uma identidade?
Um percurso que não se esgota nele mesmo, traçando caminhos,
pensando encruzilhadas, chegando a pontos que permitem elaborar questões a respeito de nosso país, sem por isso dar conta de sua imensidão.
Uma produção que não se pretende conclusiva ou definitiva, assim como 500
anos de Brasil são apenas um ponto em um percurso que se estende no
passado e no futuro.
Boa leitura e bom Congresso!
Eda Tavares
Carlos Henrique Kessler
Contardo Calligaris
A CAMINHO DE PORTO SEGURO
arece que foi inventada uma língua especial para os 500 anos. Chama-se o “precaucionês”. Ninguém quer anunciar, mencionar (celebrar nem se fala) o aniversário dos 500 anos sem primeiro prevenir a
platéia contra toda explosão de ufanismo maníaco. É assim: “fique bem frio,
que não há nada para celebrar, de qualquer jeito não aconteceu nada de
importante. Se algo aconteceu foi muito errado e deu em algo pior ainda”.
Todos parecem preocupados com a “versão oficial”. Só que, à primeira vista,
a verdadeira versão unânime e oficial parece ser justamente o “precaucionês”
que manda desconfiar da “versão oficial”. Ainda não encontrei manifestações
(oficiais ou não) de entusiasmo cego que justifiquem atitudes tão precavidas.
Temos razões acumuladas para desconfiar do que é “oficial”. No balanço dos 500 anos de Brasil, a administração pública não sai muito bem na
foto.
Mas nem tudo o que é coletivo é oficial. Concordemos que, depois de
500 anos, ainda não está consolidado o sentimento de um destino comum e
solidário. Nesta condição, será que podemos nos dar o luxo de renunciar a
compartilhar um aniversário?
P
***
Venho para São Paulo de TAM. O aniversário é lembrado (ninguém se
alarme: sem entusiasmos excessivos) por uma carta do presidente da companhia, etc. Converso com meus vizinhos de vôo: o aniversário é do desco-
1
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Crônicas publicadas na “Folha de São Paulo” dos dias 19, 20, 21, 22 de abril de 2000
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SEÇÃO TEMÁTICA
brimento ou do Brasil? Meus interlocutores não querem festejar o descobrimento, que foi uma catástrofe para os índios. Se fosse do Brasil, dizem que
seria diferente, mas é do descobrimento.
Não entendo direito. O aniversário de alguém é no dia de seu nascimento, mas comemora sua vida toda, bem ou mal soleniza o que ele se
tornou. É por isso que eventualmente celebramos o aniversário da morte de
um próximo, mas nunca celebramos o aniversário de um morto.
O precaucionês quer evitar a auto-satisfação babaca, que obviamente
não cabe. Mas quem disse que um aniversário deve ser um momento de
exaltação auto-satisfeita? Os aniversários são ocasiões de encarar a realidade, revisar o percurso, constatar os erros, projetar remédios. As marchas
dos Índios e do Movimento dos Sem Terra (com as 500 invasões projetadas),
por mais que os organizadores receiem que elas atrapalhem a ordem, fazem
parte integrante dos “festejos”. Que aniversário seria para o Brasil, se nesta
ocasião não pudesse pensar seus fracassos como comunidade, se não se
confrontasse com as caras de seus excluídos?
DUAS FESTAS
Porto Seguro – Sabe aquelas festas de casamento onde a noiva é de
origem (dizem) mais humilde do que o noivo? Os pais do noivo, que pagam a
conta, receiam que a família da noiva estrague a festa – que não se comportem direito e não façam bonito aos olhos dos convidados importantes e oficiais. Daí eles tentam organizar uma festa na sala e outra na cozinha. O
estereótipo diz que a festa da cozinha é sempre mais interessante e verdadeira do que a da sala.
O estereótipo está confirmado em Porto Seguro na celebração dos
500 anos. Há as comemorações oficiais e há os quatro dias da “Conferência
dos 500 anos dos Povos Indígenas” — sob a sigla: “Resistência indígena,
negra e popular”, que torna a manifestação mais abrangente. Como previsível, a conversa da cozinha e da maloca é a mais relevante.
O governo devia sonhar com índios dançando felizes na chegada de
Cabral. Colocaram até um imenso cocar como arco de triunfo na entrada de
CALLIGARIS, C. Terra à vista...
Porto Seguro.
Mas é melhor que no aniversário se repita a separação que nos assola. Até em sua brutalidade, com a PM destruindo o monumento índio de
Coroa Vermelha. É melhor para pensar.
***
O único evento das comemorações oficiais que poderia ser popular é
o espetáculo “cênico e pirotécnico” intitulado “O Dia em que o Brasil Nasceu”. Com efeitos especiais de luzes, fumaça, água e laser, vai contar a
história do Brasil em 50 minutos. Construíram arquibancadas para 10 mil
pessoas. Acredite se puder: na noite do dia 22 é só para o presidente, os
convidados e a imprensa. Mas, me asseguram prontamente para evitar críticas, o espetáculo será repetido no dia seguinte para o povo de Porto Seguro.
Legal!
Quando era criança, li e escutei histórias de generais e líderes corajosos que ganharam batalhas impossíveis apenas porque ousaram marchar à
frente de suas tropas. Ou, no mínimo, juntos com elas. Será que o nosso
Presidente nunca ouviu falar nisso? Ou, então, acha que não há nenhuma
batalha decisiva para ganhar?
***
“500 anos – Avaliando o Passado – Refletindo sobre o Presente e o
Planejamento Futuro”. Esta frase está na faixa da União das Nações Indígenas do Acre e Sul da Amazônia, esticada, hoje, bem na entrada da Conferência. Ela diz exatamente para o que pode servir um aniversário como este.
Diz também porque vim passar estes dias aqui.
***
Em Seattle, se reuniu a Organização Internacional do Comércio, mas
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SEÇÃO TEMÁTICA
CALLIGARIS, C. Terra à vista...
o evento foi a aparição inesperada de uma nova revolta. A coisa acaba de se
repetir em Washington com o FMI e o Banco Mundial. O verdadeiro evento foi
nas ruas. Em Porto Seguro, o evento é em Coroa Vermelha. Não sei se, e
como, o seriado continua. Mas promete.
INVADIDOS, INVASORES E BRASILEIROS
Porto Seguro - Na Conferência dos Povos Indígenas em Coroa Vermelha, escuto os discursos roucos, tensos, comovidos. Por um lado, os índios
se fazem porta-vozes de todos os excluídos da história do Brasil. Isso funciona sem problema.
Por outro lado, lembram a tragédia deles: como repetem os oradores,
são 500 anos de invasão e extermínio. “Antes de 1500 cada dia era dia de
índio”. É verdade, mas agora é complicado distribuir os crachás da história.
A oposição entre invasores e invadidos é emaranhada. É tarde para
resolvê-la pensando em planos de resistência e de guerra. Os índios, com a
exceção de alguns silvícolas, não são mais os mesmos que receberam
Nicolau Coelho nestas praias. Hoje, eles vestem suas saias de palha, pintam o rosto e o corpo, mas sabem que, para muitos, é uma maneira de se
lembrar de quem eles foram. Um artifício temporário.
Os pretensos brancos sabem que desde o descobrimento escravizaram, exterminaram os índios, mas não pararam de sonhar com sua pureza.
E com sua beleza. Não pararam de idealizá-los. Eles sabem, também (não
precisa de Gilberto Freire para isso, é uma verdade confirmada pelo DNA), o
quanto é freqüente que haja uma índia no passado da família.
***
“Descobrimento” é um termo problemático. “Achamento”, que é a palavra de Pero Vaz de Caminha, se presta à mesma complicação. Os portugueses, segundo eles, “descobriram” os índios. Ora, os índios já sabiam de
existir bem antes da chegada dos portugueses. E poderiam dizer que descobriram os portugueses e suas caravelas, 500 anos atrás.
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Mas “os brasileiros”, a descendência dos marujos portugueses que
pularam no mar e decidiram ficar com os índios, foram o quê?
A “invenção” dos brasileiros (e portanto do Brasil) teria minha preferência, pois colocaria o acento sobre o que os portugueses e os índios (e depois
os negros e todos os outros) fizeram juntos.
Para isso, precisaria acreditar que todos compartilhem hoje um pouco
do mesmo destino. Que tenha uma invenção comum, além do prazer de
misturar genes.
***
Na Conferência dos Povos Indígenas, R., brasileira “branca”, deixa
cair uma lágrima. Índios, malocas e indiadas, ela está vendo pela primeira
vez na vida. Mas, as histórias que ela escuta lhe doem como se fossem as
suas. Chora de pena? De culpa? Chora de divisão. Justamente porque estas
histórias são também suas.
***
A miscigenação complica e cria dificuldades semânticas entre invasor e invadido, colonizador e colonizado.
Se os 500 anos não tivessem produzido tamanha exclusão, quem
sabe a coisa se resolvesse na possibilidade de dizer todos, hoje: “nós, brasileiros”.
PALANQUES DE COSTAS PARA O MAR
Porto Seguro – No dia 26 está prevista a Missa dos 500 anos de
Evangelização. Será em Coroa Vermelha, no mesmo lugar onde foi celebrada a primeira missa no Brasil. Aparentemente, é o único evento das comemorações que seja aberto ao povo. Esperam-se 100 mil fiéis e turistas.
O altar, no centro de um palanque, é a própria pedra que ficará como
lembrança dos 500 anos. Outro palanque é para os 600 co-oficiantes e as
autoridades. Logo na frente, há os setores de cadeiras “para os mais chega-
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SEÇÃO TEMÁTICA
CALLIGARIS, C. Terra à vista...
dos”, como me diz um segurança. Além disso, espaço aberto para quem
quiser.
Infelizmente, segundo os Pataxós, os palanques estão sendo
construídos parcialmente em cima das ruínas do Monumento da Resistência
Indígena que a PM destruiu. Talvez os bispos não tenham nada a ver com
isso. Mas é uma curiosa repetição: o palanque da missa esmagando o monumento índio. A história se repete como farsa.
Os palanques dão as costas para o mar. Pode acontecer que Deus,
indisposto com os maus-tratos aos humildes, mande um vento de sudeste.
Neste caso, como aconteceu quando Nicolau Coelho encontrou os índios
pela primeira vez, o mar bateria nas costas. E, como 500 anos atrás, não
daria para ouvir nada da missa e dos eventuais discursos. É apenas uma
sugestão.
e música nas praias. Há os índios, a CUT, o MST e a Conen (Coordenação
Nacional de Entidades Negras) ameaçando esculhambar a festa. Há os jornalistas estrangeiros fascinados com os índios, felizes de reencontrar um
Brasil exótico.
Boa surpresa: os turistas nacionais deixam com vontade praias e piscinas para visitar os sítios do aniversário. Muitos ônibus circulando pela orla
— onde o limite é de 40, mas a menos de 70 só circula pedestre. É isso, não
falta ninguém. Está na hora de dizer com muito carinho e sem ironia: Feliz
Aniversário, Brasil!
***
Ao lado da cruz de Coroa Vermelha, um grupo de pataxós vende seu
artesanato. Quer seja por justo orgulho, quer seja para seduzir o turista,
estão todos de saia de palha, rostos e corpos pintados. Duas meninas do
grupo são francamente loiras. Se aproxima um brasileiro turista, de calção
de náilon até o joelho, Raider no pé, chapéu da Nike, óculos Ray-ban e uma
barriga de cerveja que, nua e protuberante neste sol, daqui a pouco vai pegar
fogo. Ele quer tirar uma foto de lembrança com o pataxó de cocar, o qual
aceita. Olho o quadro: o brasileiro fantasiado de férias, de fato, tem traços
índios muito mais marcados do que o pataxó. Será que mais tarde, olhando
as fotos do feriado dos 500 anos, ele se dará conta?
***
O cenário do aniversário está posto. Há as autoridades receosas da
baderna popular. Há a polícia para protegê-las. Há as elites nos condomínios
de luxo, os pobres nos barracos e a classe média aproveitando o feriado. Sol
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IRIART, J. A. B. A possessão como um idioma...
A POSSESSÃO COMO UM IDIOMA:
HERMENÊUTICA DE UM CASO DE
“POSSESSÃO POR EXU”
EM UMA CIDADE DO INTERIOR DA BAHIA 1
Jorge Alberto Bernstein Iriart2
O
evento que me proponho a analisar neste artigo aconteceu em Cachoeira, Bahia, durante o trabalho de campo para minha tese de
doutorado. Durante um período de aproximadamente um ano, morei
em um bairro popular da cidade bem próximo a um terreiro de candomblé. O
fato que pretendo abordar aqui, no entanto, não diz respeito ao candomblé
enquanto instituição religiosa com sua hierarquia e seu corpo de iniciados,
mas sobretudo à forma como a cosmologia do culto se encontra presente na
vida cotidiana das pessoas da comunidade com as quais tive a oportunidade
de conviver.
O evento a que me refiro aconteceu em uma noite de domingo de
primavera, já próximo da meia-noite, quando o repouso de todos no bairro foi
perturbado por fortes gritos de mulher. Eu, assim como outras pessoas, me
dirigi à janela para saber o que estava acontecendo. Os gritos provinham de
longe, provavelmente de uma das colinas circunvizinhas. No dia seguinte, o
evento da noite anterior foi um dos temas principais de conversa no bairro.
Segundo me contaram, os gritos provinham de uma colina situada no outro
lado do vale, e se tratou de uma mulher que havia sido tomada por Exu.
Ainda segundo os relatos, ela se debateu durante duas horas e quatro ho-
1
Este artigo representa uma adaptação resumida de um dos capítulos de minha tese de
doutorado intitulada : “ Les femmes dans le Candomblé. Expérience religieuse et idiome
de la possession dans la vie de femmes de Cachoeira, Brésil” (Iriart, 1998).
2
O autor é doutor em Antropologia pela Universidade de Montréal, Canadá, e trabalha
atualmente como professor e pesquisador do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia.
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mens não foram suficientes para dominá-la. Dona Laura3, mãe-de-santo que
mora nas proximidades do local onde tudo se deu, foi chamada para enfrentar a entidade que só partiu depois de muita luta, deixando a pessoa que ela
havia possuído em um estado deplorável.
Intrigado pelo que aconteceu, resolvi visitar o local onde tudo se passou, conversar com as pessoas que presenciaram o fato e, se possível, com
a pessoa que foi tão violentamente possuída por uma entidade tão temível
como Exu. Três dias após o ocorrido, moradores do bairro me conduziram
até a casa de Edna, uma jovem mulata de 24 anos, simpática e de aparência
frágil. Ela guardava no corpo algumas marcas do evento de domingo à noite,
mas se mostrava bem disposta e concordou em nos contar sua versão dos
fatos. Várias questões me vinham à cabeça, mas fundamentalmente eu me
perguntava: Como se pode explicar o que aconteceu? Que significados esse
episódio, que as pessoas estão interpretando como possessão por Exu,
pode condensar no contexto sociocultural de Cachoeira?
O EVENTO NA NARRATIVA DE EDNA
A narrativa que Edna construiu para explicar o que se passou na noite
de domingo é permeada por uma série de pequenos detalhes que remetem a
uma interpretação dos fatos baseada na cosmologia do candomblé. Ela estava convencida que havia sido enfeitiçada e tomada por um Exu e sua narrativa situa sua leitura do episódio sob esta perspectiva. Na realidade, todo seu
discurso se constrói em referência ao que as pessoas vieram a lhe contar
posteriormente sobre o desenrolar dos fatos, pois ela afirma não ter nenhuma lembrança do que lhe ocorreu durante o tempo em que estava em transe.
Para nos explicar o que aconteceu naquela noite de domingo, Edna
remonta ao dia em que ela e seus quatro filhos, oriundos de relacionamentos
anteriores, vieram morar na casa de Paulo, seu atual companheiro. A família
de sua cunhada, que morava em casa uma casa vizinha à sua, nunca aceitou muito bem seu relacionamento com Paulo e passou a hostilizá-la a partir
3
Todos os nomes citados no texto são pseudônimos.
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SEÇÃO TEMÁTICA
IRIART, J. A. B. A possessão como um idioma...
do momento em que souberam que ela estava grávida. Segundo Edna, eles
deixavam entender, a partir de alusões indiretas, que ela tinha um comportamento moralmente duvidoso e, mais recentemente, passaram a acusá-la
abertamente de ser uma prostituta. Edna atribui o ódio de sua cunhada a
uma disputa existente entre esta última e Paulo pela casa onde eles moram
atualmente que é uma herança de família. Nos últimos tempos, a tensão
entre Edna e a família de sua cunhada aumentou bastante tendo chegado a
ameaças de agressão física. Esta tensão se refletiu também na relação
entre Edna e Paulo, sendo que, poucos dias antes do acontecido, este último a ameaçou com uma faca por motivos fúteis. Edna disse ter reagido à
agressão imediatamente respondendo com a frase: “Antes de você derramar
o sangue dela eu derramo o seu!”. Em seu discurso, ela interpreta sua resposta, referindo-se a si mesma na terceira pessoa, como uma evidência de
que alguma coisa já estava se manifestando em seu lugar. Depois do ocorrido, ela e seu marido deixaram de se falar e a coabitação tornou-se insuportável. Como Edna não estava trabalhando e tinha cinco filhos para sustentar,
sendo que um deles não havia ainda completado um ano, sua situação não
lhe deixava muitas alternativas. Ela conseguiu, no entanto, se mudar levando
seus filhos para um pequeno quarto de aluguel que uma amiga lhe conseguiu.
Nos dois dias que se seguiram à sua mudança, Edna faz referência a
uma série de pequenos detalhes e acontecimentos que denotam que ela não
estava mais em seu estado normal. Na noite de domingo, quando sua amiga
a convidou para sair de casa, ela relata que, apesar de não ter o hábito de
beber, já havia tomado muita cachaça. Durante a caminhada, segundo sua
amiga lhe contou mais tarde, Edna tornou-se muito violenta e começou a
agredir sua amiga a tapas e mordidas correndo em seguida em direção à
ladeira onde morava com seu marido.
“O pessoal da ladeira aqui diz que só viu eu subir gritando que tinham
matado meus filhos e que queriam me matar também (...)”.
Frente ao inusitado, as pessoas foram correndo chamar Paulo e contam que, quando este chegou, Edna disse: “foi ele que matou os meus
filhos!”.
“Diz que depois dessa hora ‘o negócio’ começou a arrancar meus
cabelos todos, que eu comecei a bater minha cabeça no chão e que me
amarraram com dois fios, dois no braço, dois na perna. Aí minha comadre
disse que subiu, eu estava chorando, dizendo: quem me amarrou? quem me
deixou aqui? o que é que eu estou fazendo aqui amarrada? Aí que todo
mundo disse: não sei, espere Paulo vir que ele foi chamar sua mãe. Aí disse
que eu abaixei a cabeça de novo e quando levantou disse que já não era eu
ali de novo. Diz que quando eu fiz assim os fios se partiram. Dois fios que eu
consegui torar. (...) Diz que eu arrumei minha cabeça no chão, desci aqui
que foi onde veio descobrir quem foi, quem não foi que mandou pra mim…,
diz que quem tava comigo, que não foi eu só, quem tava comigo foi... (…)
Exu Caveirinha, que mandaram pra mim, que ele bebeu muito sangue, e
deram muita galinha a ele, e muito bicho de pata, deram a ele só pra ele vim
fazer esse trabalho aqui. Que ele veio para vir acabar comigo e com meus
filhos. Mas só que antes de ele chegar, disse que já tinha gente chegado na
frente dele. (...)
(…) Aí o Exu gritou aí, falou o nome de quem foi, quem não foi
que fez: Sandra, Rose, Cremilda”. Quando perguntamos a Edna quem são
essas pessoas ela conta que são as sobrinhas de seu marido e acrescenta:
“Porque antes disso tudo acontecer, elas gritou aí que queriam ver eu viver
aqui, que se eu não saía por bem ia sair por mal. Aí fora eu estendendo
roupa. Com poucos dias eu saí mesmo daqui e quando eu saí aconteceu
esses negócios comigo”.
(...) “O marido da irmã de Paulo ainda disse que queria vim me bater
na hora que o negócio começou a gritar e dizer quem foi que mandou, quem
não mandou. O pessoal disse: se você quer ir você vai, agora se você vai
agüentar… se você tá pensando que é ela que tá ali. A força que tá ali não é
a força dela não! Que ela, um tapa que dá, ela já tá caindo e ali quatro
homens não conseguiu pegar!”
(...) Ai o negócio começou a gritar: “Vocês nunca viu farofa e cês quer
ver, salte um pra fora pra vocês ver o que é farofa aqui na rua. Diz que o
negócio ainda chamou tudo aqui pro pau. Cês tão pensando que eu sou ela
que cês dá de bica, que vocês fala que ela é isso, que vocês fala que ela não
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presta, que ela é mulher da rua, que ela é mulher do brega? Ela é ela, não
sabe responder, mas eu sei responder no lugar dela!” Diz que todo mundo
aqui bateu a porta. (…) que foi na hora que o marido da outra quis vir pra
bater. Quer dizer que com aquilo o negócio se sentiu aflito, se ele tava
querendo sangue mesmo ele ia achar muito sangue para beber. Porque
como Dona Laura mesmo disse: “Puxa, uma pessoa magrinha dessa onde
foi achar tanta força que eu ainda recebi um coice!”.
Concluindo sua narrativa do evento, Edna relata que suas primeiras
lembranças são de quando acordou no dia seguinte e notou que estava vestida de branco, tinha uma guia de contas ao redor do pescoço e um contraegum de sisal no braço e que seu corpo exalava o aroma das ervas do banho
de folhas que Dona Laura lhe havia dado.
A HERMENÊUTICA DA AÇÃO
É interessante notar que o personagem principal dos fatos que acabamos de expor não é iniciada no candomblé e que o evento da possessão não
se produziu em um contexto ritual mas no espaço da vida cotidiana. As
ações e o jogo de interpretações que construíram o evento, no entanto, são
permeadas por associações simbólicas, valores e práticas associadas ao
culto. Apesar das particularidades deste caso, não se deve apreendê-lo como
um fato isolado ou excepcional. Ao longo do trabalho de campo, foi possível
recolher um bom número de narrativas sobre o que aparece na literatura
como “possessão bruta”. 4 Esta recorrência nos sugere que nos deparamos
IRIART, J. A. B. A possessão como um idioma...
com um idioma5 cultural, ou mais exatamente com uma dimensão de um
idioma mais amplo, o idioma da possessão, o qual o caso de Edna pode nos
auxiliar a compreender em seus vários níveis de significações.
Nossa abordagem da cultura privilegia uma perspectiva interpretativa
que utiliza, seguindo o caminho aberto por Geertz (1973) e Ricœur (1986),
recursos fornecidos pela análise literária. Deste ponto de vista, o fato que
nós acabamos de descrever pode ser apreendido metaforicamente como a
produção de um “texto” disponível para a interpretação. Esse texto cultural
constitui o enquadramento no interior do qual os atores sociais possuem
uma margem de liberdade para escrever seus próprios “roteiros” e interpretar
os “roteiros” dos outros atores. Nesse sentido, a possessão pode ser apreendida como uma “mise en scène”6, onde os atores desempenham papéis
(alguns baseados sobre roteiros bem desenvolvidos e outros que deixam
muita margem para a improvisação) e cujo texto final é construído em um
processo interativo 7. Os agentes que participam do desenrolar da ação são,
como sugere Azzan Junior (1993), “atores no texto”, o que remete ao fato
que eles desempenham um papel, ao mesmo tempo em que são “autores do
texto” que é produzido coletivamente.
A compreensão das múltiplas significações do caso de Edna implica,
entretanto, como argumentam Bibeau, Corin e Uchoa (1993), a necessidade
de transcender as narrativas dos atores sociais para se atingir a dimensão
metanarrativa dos significados do evento, que nos remete aos significantes
chaves da trama pessoal, social e cultural na qual o evento se inscreve.
Como sugerem esses autores, é necessário quebrar as camadas superficiais de significação do texto ou do fato cultural para fazer surgir o subtexto
que se encontra freqüentemente escondido.
4
A denominação de possessão bruta é evocada na literatura (Bastide, 1958:22) para
marcar a diferença entre o transe de uma pessoa não iniciada e a possessão controlada
que se produz geralmente em um contexto ritual por uma pessoa iniciada no culto. A análise
do caso de Edna, no entanto, nos leva a defender a idéia de que, apesar de sua manifestação descontrolada, este tipo de transe já demanda da pessoa um domínio razoável do idioma
da possessão, pelo menos em uma de suas manifestações possíveis.
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5
O conceito de idioma da possessão é desenvolvido por Crapanzano ( 1977 ).
Como propõe Michel Leiris (1989), um “théâtre vécu” (teatro vivido) onde os atores se
encontram completamente imersos nos papéis que desempenham.
7
O transe, como sugerem os antropólogos canadenses Lambek (1981) et Boddy (1989),
pode ser analisado como um “texto de possessão”.
6
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SEÇÃO TEMÁTICA
O projeto hermenêutico de Ricoeur se mostra um recurso interessante para nos ajudar a desenvolver este jogo interativo entre os atores sociais
(suas leituras do evento e seus jogos de interpretação) e a desvendar as
significações mais amplas associadas ao evento que nós nos propomos a
compreender. A teoria do texto e da “ação concebida como um texto”, desenvolvidas por Ricœur (1986), pode nos ser particularmente útil para a análise do caso de Edna.
Segundo Ricoeur, a ação humana pode ser interpretada por um
paradigma análogo àquele do texto. Assim, da mesma forma que o texto se
constitui a partir de quatro características fundamentais, que constituem sua
textualidade (o que instaura sua diferença com relação à linguagem falada),
a ação significativa pode ser objetificada por traços análogos (o que a diferencia do ato em si). Em outras palavras, a interação humana pode viver uma
transformação análoga àquela do discurso quando este é fixado pela escrita
e, uma vez fixados, tanto o discurso quanto a ação significativa podem se
tornar objetos de uma hermenêutica. Para Ricœur (1986 : 199), os quatro
traços fundamentais da teoria do texto e da ação são: 1) a fixação da significação, 2) a dissociação da intenção mental do autor (ou ator), 3) a evocação de referências não ostensivas e 4) o leque universal de seus destinatários. Nós desenvolveremos estes quatro pontos na seção seguinte aplicandoos à compreensão do evento desencadeado pelo comportamento inusitado
de Edna.
IRIART, J. A. B. A possessão como um idioma...
O EVENTO E SUAS REFERÊNCIAS OSTENSIVAS
A primeira característica da teoria da ação apreendida como um texto
desenvolvida por Ricoeur diz respeito ao fato de que a significação da ação
não se confunde com o evento em si, assim como o discurso não se confunde com o ato da fala. A fixação da ação, que equivale à transformação operada pela escrita no paradigma do texto é, nesse caso, sua inscrição na
memória da coletividade através de suas significações que sobrevivem ao
efêmero do evento. Em outras palavras, o que perdura na memória coletiva
não é a ação de Edna em si mesma, mas o fato de que um espírito a pos-
suiu, com toda a cadeia simbólica associada a este acontecimento no contexto sociocultural de Cachoeira.
A cosmologia religiosa do candomblé é aqui um dos textos culturais
de base que orientam a “mise en scène” de Edna e que fornece um
enquadramento a partir do qual o evento pode ser interpretado. Assim, quando o repouso das pessoas do bairro foi perturbado no domingo à noite pelos
gritos de Edna e que a atenção de todos foi atraída por seu comportamento
inusitado e agressivo, é a este conjunto de textos culturais disponíveis que
as pessoas que tomaram parte no desenrolar dos fatos lançaram mão para
interpretar o evento e a ele reagir. Em um contexto sociocultural mais próximo de nossa tradição ocidental moderna, o comportamento de Edna seria
provavelmente interpretado como uma crise emocional de natureza psicológica que indicaria a prescrição imediata de medicamentos ansiolíticos. Como
nós pudemos constatar, no entanto, no contexto cultural local, a interpretação das pessoas que participaram do drama seguiu outra lógica. As pessoas compreenderam rapidamente, a partir da presença de vários elementos
simbólicos na “performance” de Edna, que ela estava tomada por um espírito, e que seu caso exigia, antes de tudo, a presença de uma mãe ou pai-desanto, que são as pessoas mais bem preparadas para lidar com esse tipo de
problema.
O “texto de possessão” se constrói, então, em um processo de
interação onde uma interpretação leva a outras interpretações e assim por
diante. O fato que alguém possa ser tomado de forma inusitada por uma
entidade como Exu não é colocado em questão pelas pessoas da cidade.
Trata-se de um fato possível, que se produz de tempos em tempos e que
ninguém nega a existência. Quando o espírito que possuiu Edna se identificou, desvendou a razão de sua chegada e revelou os nomes das pessoas
que o haviam enviado para realizar a tarefa, tornou-se claro para todos os
presentes que o conflito que opunha Edna e a família de sua cunhada havia
descambado para a feitiçaria. Todavia, os membros da família dos supostos
feiticeiros interpretaram primeiramente o comportamento de Edna como uma
provocação por parte de alguém que havia abusado do álcool e, irados, ma-
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nifestaram a intenção de afrontá-la. Em resposta, o Exu que a tomava os
chamou para lutar e tornou públicos os rumores que eles divulgavam a seu
respeito como, por exemplo, o fato dela ser uma “mulher da rua”. Os vizinhos, então, intervêm dissuadindo o marido da irmã de Paulo de afrontar
Edna, fazendo vê-lo que não era uma frágil mulher que estava lá, mas alguma
coisa de muito mais forte que havia tomado conta dela. A gravidade dos
eventos que se produziram, assim como a forma impressionante como Edna
se transformou durante o episódio (que nos foi comentada por várias pessoas), não deixou muita margem, a seus opositores, para desqualificar a possessão como dissimulação. Mesmo se todo mundo sabe que o transe pode
ser simulado, a maioria das pessoas com as quais nós tivemos a oportunidade de falar estavam convencidas que Edna foi tomada por um Exu. Além
disso, a presença da entidade foi legitimada por uma mãe-de-santo respeitada que conduziu as negociações que levaram a partida da entidade. Assim,
os membros da família da cunhada de Edna não puderam negar a veracidade
da possessão e procuraram, ao invés, provar que não haviam feito nenhum
“trabalho” contra Edna. Logo após o ocorrido, eles pediram ao pai-de-santo
do terreiro de São Félix (onde, segundo os rumores, o trabalho havia sido
feito) que confirmasse publicamente que eles não eram responsáveis pelo
que se havia passado.
A segunda característica da teoria da ação desenvolvida por Ricoeur
se refere a autonomia da ação significativa, que se separa de seu agente, de
forma a desenvolver seus próprios efeitos (o que constitui para Ricoeur sua
dimensão social), de forma similar à dissociação que ocorre entre as múltiplas significações de um texto e a intenção original de seu autor. Assim, o
“texto de possessão” que foi “escrito” a partir da performance de Edna não
lhe pertence completamente pois, de um lado, ele foi construído a partir da
interação de várias pessoas (seu marido, a família de sua cunhada, os vizinhos, a mãe-de-santo) e, de outro, porque ele engendra conseqüências que
escapam a intenção da pessoa que o desencadeou.
Um leitor animado de uma visão utilitarista poderia argumentar, no
entanto, que Edna utilizou a crença nos espíritos para subverter uma situa-
ção de poder que lhe era desfavorável. Mesmo que este tenha sido o caso,
se limitar a este nível de análise reduziria nossa compreensão do evento.
Parece-nos mais promissor pensar que a possessão de Edna por um Exu
pode ser concebida como um idioma cultural, através do qual ela pôde responder (de forma inconsciente ou pré-consciente) à hostilidade que ela sofria
por parte da família de seu marido. Através da mediação de um Exu, Edna
trouxe a público acusações e recriminações a estes últimos, o que não poderia fazer ela mesma. A possessão por esta entidade a colocou em uma
situação de irresponsabilidade por seus atos, o que a protegeu de seus
oponentes. Sua aflição foi também exposta a seus vizinhos que, em conseqüência do ocorrido, se implicaram no seu problema e se tornaram sensíveis
a seu sofrimento.
Ao que diz respeito às conseqüências do evento, é certo que a indiscrição do Exu, que desvendou a feitiçaria e confessou ter sido enviado com o
objetivo expresso de destruir a vida de Edna e de seus filhos, é uma revelação grave que atingiu a reputação de seus adversários. O filho da cunhada de
Edna, que é justamente uma das pessoas suspeitas de ter participado da
preparação do trabalho (por ser ogã do candomblé e por ter estado no bairro
dois dias antes do incidente acompanhado de seu pai-de-santo), negou categoricamente estar implicado. Ele se queixa do fato de que várias pessoas,
mesmo seu pai-de-santo, começaram a recriminá-lo e recusam-se a falar
com ele depois do acontecido. A submissão de Edna aos rituais de purificação e fortificação realizados pela mãe-de-santo também provocou uma mudança de seu status no bairro. Edna passou a trazer em seu corpo os sinais
visíveis de sua aproximação com o culto (os contra-egum no braço e a guia
de seu orixá). Ela tornou-se abiã no terreiro da mãe-de-santo que a tratou, o
que constitui o primeiro grau de inserção no culto. A iniciação torna-se assim uma opção possível e legítima para Edna, pois ninguém duvida que ela
tenha o que as pessoas referem como precisão8. Ela pode, também, contar
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8
Precisão é uma palavra freqüentemente utilizada pelas pessoas para fazer referência a
necessidade de alguém iniciar-se no culto.
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SEÇÃO TEMÁTICA
com a colaboração de seu marido, que impedia sua participação no candomblé, mas que frente a gravidade do acontecido, tornou-se mais flexível com
relação a esta possibilidade. Enfim, é muito provável que o evento acarrete
mudanças significativas na relação de Edna com seu marido e com a família
deste, apesar de ser cedo para descrever o rumo que estas mudanças tomarão.
AS REFERÊNCIAS NÃO OSTENSIVAS E A EVOCAÇÃO DE UM MUNDO
A terceira e a quarta características do paradigma da ação exposto
por Ricoeur permitem-nos, a partir da concepção da ação como um texto,
sair de seu nível referencial imediato, no caso o de um conflito interpessoal,
para explorar as referências não ostensivas por ele sugeridas. Como afirma
Ricœur (1986 : 208) : “La sémantique profonde du texte n’est pas ce que
l’auteur a voulu dire, mais ce sur quoi porte le texte, à savoir ses références
non ostensives. Et la référence non ostensive du texte est la sorte de monde
qu’ouvre la sémantique profonde du texte. C’est pourquoi ce qu’il nous faut
comprendre n’est pas quelque chose de caché derrière le texte, mais quelque
chose d’exposé en face de lui. Ce qui se donne à comprendre n’est pas la
situation initiale de discours, mais ce qui vise un monde possible...” Esse
mundo que se abre a partir da performance de Edna remete a todas as
associações simbólicas, as metáforas e significações que este texto, ou
fato cultural, tem ou pode suscitar a todos que a ele tem acesso.
O quarto critério de textualidade de Ricoeur, complementar do precedente, se refere a transcendência do texto com relação a situação de
interlocução entre o autor e as pessoas as quais ele é originalmente destinado, para se inscrever enquanto obra pública endereçada a uma série indefinida de leitores possíveis. Como afirma Ricoeur (1986), a ação humana, enquanto texto, pode ser interpretada como uma obra aberta onde a significação está em suspenso. A interpretação do texto e da ação se fazem num
processo de produção de sentido onde os “leitores” lançam mão de sua
experiência passada e presente, pessoal e coletiva. Nesta perspectiva, a
performance de Edna transcende a situação de diálogo entre ela, seu marido
e a família deste, para se inscrever enquanto texto de possessão mais abran-
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IRIART, J. A. B. A possessão como um idioma...
gente e aberto a quem quer que saiba lê-lo9. Esse texto abre um mundo
(aquilo sobre o que ele fala) que remete às categorias culturais chaves do
contexto sociocultural de Cachoeira, as divindades do candomblé e as relações que estas estabelecem com os seres humanos. Quais são, então, as
referências que se abrem a partir da possessão de Edna por um Exu naquela
noite de domingo?
Voltemos ao desenrolar dos acontecimentos. A possessão bruta se
manifesta como uma explosão de fúria desafiando qualquer forma de contenção. Possuída por um Exu, a frágil Edna se enche de uma força poderosa
que quatro homens não foram capazes de dominar. Seu comportamento
provoca medo. Ela torna-se subitamente metáfora de anomia e de caos. O
episódio da “possessão bruta” de Edna é permeado por todo o simbolismo
associado a Exu. Não é possível descrever aqui, por falta de espaço, toda a
riqueza de significados que esta divindade condensa. De forma bem resumida, no entanto, podemos dizer que ela é fundamental para o candomblé
enquanto força de transformação e de propulsão essencial ao processo de
reprodução da vida e do universo. Ocupando um lugar especial no candomblé (entre suas particularidades está o fato de que ninguém, salvo raras exceções, o tem como dono de sua cabeça10), Exu se caracteriza por uma ambigüidade moral sendo uma entidade que tanto pode fazer o bem quanto o
mal. Esta ambivalência está presente na forma como ele é percebido pelas
pessoas. Assim, ele é, ao mesmo tempo, indispensável mas associado a
tudo que é ruim, temido mas admirado, submisso mas poderoso, escravo
mas rebelde, protetor mas perigoso, compadre mas traidor, limpo mas poluidor.
Voltando agora ao caso de Edna, a imagem de uma mulher frágil que
se torna um animal feroz, que se flagela, que ameaça seu marido com uma
faca, que não respeita ninguém e cujos gritos acordam toda a vizinhança,
9
Edna faz sua leitura pessoal do evento e dos significados que a presença de divindades
marginais como Exu e Pomba-gira tomam em sua vida. Por falta de espaço, no entanto, não
poderemos abordar aqui este ponto.
10
Assim, no candomblé da Bahia, Exu não desce nos terreiros durante os rituais de possessão.
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SEÇÃO TEMÁTICA
IRIART, J. A. B. A possessão como um idioma...
lembra a todos da existência de Exu enquanto princípio da ruptura e da
desordem. A “possessão bruta” é aqui um elemento que contribui para a
construção do imaginário coletivo em torno dessa divindade, porque ao mesmo tempo em que ela se alimenta do texto cultural disponível, ela o atualiza
permitindo a sua reprodução, assim como a realização de novas leituras.
Mesmo tratando-se de um evento extraordinário e inesperado, poucos moradores dos bairros populares de Cachoeira diriam nunca ter presenciado, ou
ao menos ter ouvido falar, de alguém que tenha sido tomado por Exu. Esse
tipo de possessão representa provavelmente o contato mais próximo que as
pessoas experimentam com essa entidade em seu estado mais marginal.
Trata-se aí de Exu em estado bruto, ainda não dominado, o qual a manifestação assemelha-se à liberação de uma força explosiva e descontrolada.
Sua chegada súbita nesse contexto particular sugere a todos a existência
de alguma coisa que não está bem na vida da pessoa possuída e na comunidade que a circunda. Manifestar em si uma tal entidade é sinal de
desequilíbrio em sua relação com o mundo dos espíritos e com o mundo dos
homens, pois as pessoas que se encontram em harmonia com esses dois
domínios não estão sujeitas a esse tipo de possessão. Manifestado em seu
cavalo, Exu se permite transgredir as regras e convenções sociais afrontando os valores estabelecidos, assim como a autoridade dos que detém o
poder. Como afirma Trindade (1981 : 3), em seu artigo sobre o denso simbolismo associado a essa divindade, “Exu expressa simbolicamente as incertezas humanas frente aos debates com as condições sociais estabelecidas,
a afirmação de liberdade e autonomia do ser humano frente às imposições
naturais e sociais”.
A possessão bruta, como a que Edna foi protagonista e vítima, concretiza e atualiza o papel de Exu enquanto princípio dinâmico do universo
onde a instauração da desordem não remete simplesmente a um processo
destrutivo, mas principalmente a um movimento de desestabilização da ordem estabelecida tornando possível a reorganização das relações de poder.
Tal qual um texto, a performance de Edna evoca um mundo possível,
pois ela expõe em seu desenrolar a riqueza simbólica associada a Exu, em
que a ambigüidade moral remete a destruição e a maldade, mas, também, a
insubmissão, a revolta e a resistência. Assim, Exu contém em si o potencial
de reação, de liberação de uma força reprimida e de subversão de relações
de poder. Ele é, talvez, a entidade que melhor incorpora essa possibilidade
de resistência a uma situação de opressão11.
As pessoas do bairro não permanecem indiferentes ao que se passou
durante aquela noite de domingo, porque esse evento colocou toda a comunidade face a manifestação de Exu e de tudo que ele representa. Ele permite
às pessoas refletirem sobre suas próprias experiências a partir do idioma
cultural que a “mise en scène” de Edna expõe na frente todos. Ela fornece às
pessoas que se encontram em uma situação socialmente marginal elementos simbólicos para repensar aspectos de sua própria vida. O apelo à resistência que Exu veicula é, assim, reinterpretado pelas pessoas, segundo sua
própria experiência12.
É interessante notar que a resistência simbolizada por Exu é próxima
da resistência do oprimido13, quer dizer, de um movimento de insubordinação
baseado na astúcia e que age nos interstícios do poder sem opor-se-lhe
radicalmente. É significativo que uma mãe-de-santo, tentando nos explicar a
importância de Exu no candomblé, tenha construído uma analogia com a
profissão de empregada doméstica a qual pertencem muitas das iniciadas
do culto. Ela dizia: “Antigamente, as empregadas domésticas eram maltra-
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Não é por acaso que, na época da escravidão, foi ele que tornou-se o protetor dos negros
em sua revolta contra a opressão de sua condição. Como mostra Bastide (1958), era em Exu
que os escravos se apoiavam para tomarem suas ações mágicas contra os senhores
brancos.
12
Para um casal de jovens estudantes de Cachoeira que participam ativamente da organização do movimento de Consciência Negra na cidade, por exemplo, Exu e Pomba-gira não são
apenas entidades que participaram no passado da resistência dos negros à escravidão,
mas, também, divindades que permitem atualmente aos descendentes dos negros de tomarem consciência da discriminação e da opressão que eles sofrem ainda hoje na sociedade
brasileira.
13
Sobre este conceito ver Scott (1990).
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SEÇÃO TEMÁTICA
tadas e, em conseqüência, elas faziam as coisas de má vontade. Com Exu,
é a mesma coisa: se nós queremos que ele nos ajude, nós devemos saber
como tratá-lo”. Assim, como a empregada doméstica, Exu é um servidor
(uma entidade subalterna, sem a qual, entretanto, nada se faz no candomblé) e, da mesma forma que esta, ele exprime sua resistência e seu descontentamento pelo boicote e pela astúcia. De fato, seu poder se encontra nas
artimanhas e no jogo que não pode desafiar abertamente a ordem dominante, mas que a subverte de tempos em tempos.
CONCLUSÃO
A partir da análise de um caso de possessão por um espírito marginal
de uma pessoa não iniciada no candomblé, nós procuramos mostrar que,
apesar de seu aspecto anárquico, este tipo de transe já representa uma
forma elaborada de manifestação do idioma da possessão. O caso de Edna
coloca em evidência várias dimensões deste idioma, através do qual ela
pode exprimir, de uma forma culturalmente compreensível para as pessoas
da comunidade, seu sofrimento e seu sentimento de impotência frente a
uma situação de profunda aflição. A comunidade respondeu ao desenrolar
do evento e novas perspectivas foram abertas para Edna. No plano das relações sociais, o acontecido provocou a reorganização das relações entre as
pessoas implicadas nos fatos e desencadeou uma transformação identitária
importante em seu personagem principal. Além de fornecer a Edna um meio
de exprimir seu sofrimento, o idioma da possessão lhe forneceu, também,
elementos simbólicos, partilhados pela comunidade, que lhe permitiram construir um discurso e dar sentido a sua experiência.
Finalmente, este caso de possessão por Exu pode também ser apreendido como uma forma de resistência a uma situação de opressão. Sua
ação tem um efeito simbólico importante, pois ela reaviva na memória de
todos a existência de Exu, assim como as conseqüências da manifestação
de seu poder descontrolado que ameaça instaurar o caos no mundo dos
seres humanos. Esta resistência, entretanto, não representa uma completa
subversão da ordem social existente, permitindo, sobretudo, a criação de
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IRIART, J. A. B. A possessão como um idioma...
um espaço de jogo ou de manobra no interior da mesma.
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CAVALHEIRO, M. Mais além das montanhas...
MAIS ALÉM DAS MONTANHAS
TUPI OR NOT TUPI: A PALAVRA-ALMA
Marcelo Cavalheiro1
E
m 1991 eu fui convidado a um ritual Ute (índio de Utah, Estados
Unidos) – aí, durante os dias em que as cerimônias ocorreram, notei
pela primeira vez a importância da palavra, da enunciação, como
elemento organizador e espiritual na cultura indígena americana. Anos depois, em contato com amigos Navarros, pouco a pouco comecei a notar as
semelhanças entre minha própria cultura guarani (ou o que sobrou dela) e as
culturas indígenas norte-americanas – assim continuei, em visitas às ruínas
maias de Tulum e Koba no caribe mexicano, e aos pueblos e reservas da
Califórnia, a buscar traços de uma mesma cosmologia. Neste texto, volto ao
ponto de partida, analisando as culturas guaranis que sobrevivem no Paraguai
e os escritos de Soares de Souza, Nimuendajú e outros relatos históricos,
através das lentes de brasileiros (Viveiros de Castro) e estrangeiros (Clastres).
“Né e”, em guarani, significa palavra (enunciação), mas também significa alma, dois conceitos inseparáveis. A palavra-alma, no mito dos Namandus,
não é só o que segura o homem de pé, mas também o que lhe dá a língua,
e através da fala, a palavra-alma circula em nosso esqueleto.
A criança Namandu recebe seu nome-alma quando ela se levanta e
fala. Na cerimônia de nomeação, se por algum motivo o pajé ou karaí não
descobre o nome da criança, é sinal de que ela não sobreviverá. Por outro
lado, um pouco extremo – se somos etnocêntricos – era um costume Tupi,
dizia Soares de Souza, enterrar – deitá-los para sempre, considerar mortos,
aqueles que não pudessem falar mais: se sem palavra, sem alma.
Hegel foi quem postulou que “através do nome o objeto como ser
indíviduo nasce do eu”, de alguma forma parecida com a famosa frase de
Freud: assim, o negativo é convertido em ser através do poder da linguagem.
Criar é dar nomes, bem vindo à “ordem simbólica” lacaniana – a palavra,
1
Psicólogo.
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assassina das coisas, vem aí para representar “ao invés de” – uma vez que
tenhamos um nome nos representando, o nome continua depois de nós. Na
verdade, assim que somos nomeados, já não precisamos existir, pois exsistimos no nome, para sempre. Esse nome, vindo do pai – no caso dos
Guaranis, dos deuses – deve ser preservado. Um bom exemplo é o filme
Winslow Boy, que estreou aqui no ano passado e deve estar chegando ao
Brasil – muito bom, não vou estragá-lo prá vocês, nada direi: vão vê-lo!
Esse nome dado à criança tupi, ou advinhado, marca sua ex-sistência
a partir dos cardinais (Ru Ete ou leste, Tupa Ru Ete ou oeste, etc) apontando
para o nome-alma re-encarnado. É esse nome re-encarnado que mantém o
indivíduo ereto, de pé – os doentes, pouco a pouco, vão se deitando e se
calando, ou seja, vão perdendo sua conexão com as divindades. O mito
Namandu coloca o nascimento da ordem simbólica (palavra) junto com a
evolução do andar (ereto): quando o homem se levanta/fala, aí nasce para a
sociedade. Acho que este deve ser o melhor exemplo da resposta lacaniana
ao já cansado pêndulo do “nature versus nurture” – ou mesmo ao “split” alma
e corpo – é a ordem simbólica, dizem os lacanianos, que engendra tudo a
posteriori.
Em respeito à enunciação, para termos uma idéia de sua importância
na pirâmide hierárquica tupi-guarani, basta observarmos os rituais de “passagem” em que a tribo é dividida de acordo com seus poderes divinos: de
acordo com o “canto” de cada um: na base da pirâmide as crianças e os
adultos que não cantam; depois vem a maioria que talvez tenha um ou dois
“cantos” (os cantos representam a afinidade com os deuses) e que, caso se
precise, poderiam liderar as danças coletivas; quase no topo, os pajés (homens, mulheres) que possuem muitos cantos e por isso podem curar doenças, descobrir o nome das crianças, prever o futuro, etc; e, finalmente, o karaí (quaraí), um velho (homem) pajé que liderava a mais sagrada das cerimônias (o nimongaraí).
Até aí, muito interessante, e poderia terminar aqui. Mas quero apresentar uma versão que vai além de seu sentido antropológico, mais que uma
cosmologia da religião tupi-guarani, desejo apontar para um sintoma social
que já estava aí, mesmo antes dos europeus chegarem.
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Claro que não quero minimizar o dano, o genocídio, a destruição da
cultura indígena depois da chegada do homem branco. Mas acho que hoje,
pouco a pouco, estamos nos dando conta de que as muitas guerras e o
nomadismo quase-suicida das muitas tribos da nação guarani também foram importantes para o declínio e hoje quase extinção dos povos. Levo um
interesse pessoal neste assunto: parte minuano, parte charrua, sou descendente dos índios das missões (e, claro, dos jesuítas e conquistadores portugueses e espanhóis que encontraram nas índias daqui o prazer sem limite –
sem pai – que nunca encontrariam nas europas).
Por exemplo, entre 1539 e 1549, dez a doze mil tupi-guaranis abandonaram suas comunidades agriculturais na costa brasileira e se mandaram
para a boca do Amazonas no Peru. Milhares de guaranis morreram nestas
migrações, naturalmente (fome, doenças), ou depois de serem escravizados
por portugueses, espanhóis e incas. Estas informações, com mais detalhes, e outros dados que apresento aqui, podem ser encontrados numa série
de estudos antropológicos de brasileiros e estrangeiros. Devo citar alguns:
principalmente, “La Terre Sans Mal: Le Prophetisme Tupi-Guarani”, de Helene
Clastres (Paris); “Los Mitos de Creacion y de Destruccion del Mundo como
Fundamentos de la Religion de los Apapokuva-Guarani”, de Curt Nimuendajú
(Lima); e “Arawete: Os Deuses Canibais”, de Eduardo Viveiros de Castro
(Rio de Janeiro) – traduzido aqui como “From the Enemy’s Point of View:
Humanity and Divinity in an Amazonian Society” – (escreverei mais a respeito deste último em meu próximo ensaio no assunto, a respeito do canibalismo) – li traduções do francês, espanhol e português (!) para o inglês, língua
que hoje me é mais fácil ler e me comunicar (meu espanhol e português
pouco a pouco vão me deixando!).
O karaí, mais poderoso que os pajés e os caciques, muitas vezes
liderava tribos inteiras em journeys que cruzavam o Brasil, em todos rumos
(como você acha que guaranis da Amazônia foram acabar no Paraguai?) em
busca da terra prometida, a terra onde mal não existe. No século dezesseis
a maior parte dos tupis se encontravam no norte, do Amazonas ao litoral; e
os guaranis no sul (chiriguanos, minuanos, etc, na fronteira com o Império
Inca). Algumas tribos, os caianguas (índios da floresta), escaparam à coloni-
zação jesuíta e se esconderam na boca do rio Iguatemi – as três tribos
guaranis que hoje ainda sobrevivem no Paraguai (os mbyas, os chiripas e os
pans) certamente descendem dos caianguas. Mas mesmo estes, e principalmente os outros, foram totalmente influenciados pela cultura jesuíta, tornando impossível estudar as comunidades que re-nasceram das ruínas da
destruição das missões em 1660.
Para tentar entender a cosmologia guarani, é preciso saber que eles
acredita(va)m na inevitável futura destruição do mundo. Essa visão mormônica
do apocalipse ainda pode ser encontrada hoje: o cataclismo do passado vai
destruir a terra incompleta e doentia, na promessa de um novo (re)começo.
A cada três ou quatro anos, de manhã cedo, de cara para o sol nascente, o
karaí pronuncia seu discurso: sua palavra enunciada, considerada divina (sua
voz infantil é a própria voz dos deuses), promete o acesso à terra prometida.
Como? O karaí diz a todos para pararem de plantar e caçar (renunciar a seu
dia-à-dia) e a esquecerem leis morais (entreguem suas filhas para quem
quiserem) – assim, a ordem social é questionada – só assim podemos nos
encontrar com os deuses “além das grandes montanhas”. Depois de intermináveis danças e o mito da enchente (um mito fundamental da cultura guarani)
ser recontado, tribos inteiras abandonavam suas aldeias e saíam em caravanas à procura da terra prometida, sendo esta a única maneira de escapar do
apocalipse. Essas migrações duravam mais ou menos dez anos.
Então perguntas: essa terra-sem-mal, que mal é esse que essa terra
não tem?
A descrição da terra prometida é mais ou menos assim: comida cresce nos campos sem que se precise plantar, flechas sempre acertam a caça,
não se precisa trabalhar, it’s party all the time!, bebedeiras, danças... Entreguem suas filhas para quem quiserem? Aí se apagam as duas proibições
incestuosas dos guaranis (de primos e tios maternos), e mais, se tudo é
permitido, então incesto não existe – tudo vale! Então o que é o mal? O mal
é a sociedade, o trabalho, as proibições, a lei. A terra prometida é esse
universo perverso.
Perverso no sentido leigo – porque a versão romântica do perverso de
acordo com o neurótico é besteira –, o perverso, no sentido clínico, sofre
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tentando fazer valer a lei do pai (do Outro), onde, a imortalidade não está no
sacrifício de se trocar/fazer representar por um nome (entrar na ordem simbólica), mas na abolição disso mesmo, das leis éticas, morais, do sacrifício
do trabalho, etc.
Para o guarani, o homem nasce Deus, e é a sociedade que mata sua
divindade através da nomeação (o Nome-do-Pai lacaniano, a castração
freudiana, etc) – que o separa dos deuses, tornando-o incompleto. A falta,
aqui, só acontece quando entramos na ordem simbólica – pois a comparação, a seriação, só é possível em relação a outros (o ser social).
Acontece que a busca da Terra Sem Nenhum Mal, uma espécie de
fuga narcisística, que por ser coletiva, estava destinada ao fracasso. As migrações não só diluíram a sociedade indígena, mas também lhe destruíram
por completo. A fuga quase-perversa do narcisismo nos leva ao único ato
verdadeiro: o suicídio. Como narciso, os guaranis embriagados em busca do
orgasmo sem fim se afogaram em seu próprio sonho.
Os guaranis sabiam que a única solução para seu futuro era a
autodestruição. As sociedades indígenas americanas estão no mesmo caminho, mas de um suicídio mais lento, através de drogas e álcool.
Os sobreviventes sabem que nós somos a última geração, que esquecemos dos deuses e das tradições, e já não alcançaremos a terra prometida
além das montanhas.
Aqui nos Estados Unidos, ou mesmo outros índios mestiços como
eu, na Europa e pelo mundo afora, não temos nada a dizer, pois a palavra/
alma perdeu sua força. O discurso dos últimos guaranis só pode enunciar
seu próprio fim. O silencio dos deuses (um fato negativo: a falta de sinais
divinos) confirma que a distância entre nós e nossos antepassados é maior
do que nunca.
“Nós somos as últimas gerações
Não nos abstemos de nada
Não sabemos como nos comportar
Por isso Karai Ru Ete, Karai Chy Ete
Não quer mais nos dizer as palavras para nos guiar
em obter os princípios de força”
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PINTO, M. R. P. Eternos aprendizes...
ETERNOS APRENDIZES DE DRUMMOND
Maria Rosane Pereira Pinto1
F
alar em poucas linhas de um autor que passou mais de cinqüenta
anos escrevendo e que representa nossa grande literatura do século
XX é extremamente difícil. O leitor exegeta de Drummond haverá de
perdoar a excessiva simplicidade e a ausência de metodologia que constata
aqui. Na verdade, o motor encorajador da escritura deste comentário é o fato
de se tratar de um autor que dispensa apresentações magistrais, embora as
mereça, pois mesmo para os que nunca leram Drummond, sua obra é absolutamente familiar. Não nos damos conta, talvez, mas ‘’drummondiamos’’
muito mais do que pensamos.
Drummondiamos não apenas porque somos verdadeiros peritos em
encontrar pedras no meio do caminho, com as quais nem sempre sabemos
o que fazer. Drummondiamos também quando a banalidade da existência
não nos inibe, quando buscamos sua grandiosidade em atitudes elementares como a de conversar com a vizinha de ônibus, da qual sequer nos lembramos o nome ou, talvez, nem o saibamos mesmo. Nada nos é mais corriqueiro do que um ônibus lotado, lugar privilegiado para sentimentos ambíguos, encontros fortuitos e toda sorte de digressões. Praticamos, mais dia,
menos dia, a Extraordinária Conversa... deste narrador dos Contos de Aprendiz.
Também não nos é estranha a essência do personagem do conto O
Gerente. Este corretíssimo funcionário de banco que se delicia comendo
dedos de senhoras, que nos faz mergulhar no surrealista e no vampiresco ao
mesmo tempo, é o mesmo que procuramos todos os dias pesquisando nossa crônica policial, quem sabe para melhor nos assegurarmos de nossa
medida de normalidade.
1
Psicanalista.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 84, out. 2000
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SEÇÃO TEMÁTICA
PINTO, M. R. P. Eternos aprendizes...
No fundo, a história de Flor; Telefone, Moça já nos foi contada um dia
por um parente mais velho que gostava de nos falar de almas do outro mundo. Do mesmo modo, todos um dia, quando crianças, tivemos A Louca do
bairro ou da cidade, sobre a qual repousava toda uma fantasmagoria coletiva,
o que faz com que, enquanto leitores, nos sintamos um pouco co-autores do
conto. Esta mesma ‘’partilha’’ se repete na história da tragédia física e moral
dos dois adolescentes interioranos de O Sorvete. Sabemos o quanto as
maravilhas urbanas, que encontramos nas elegantes confeitarias de nossas
capitais, se transformam comumente em verdadeiros pesadelos de deglutição.
Como Drummond, somos obcecados pela infância. Brigamos ou
compactuamos com o desamparo ou com a superproteção de nossas crianças. Isto nos aproxima da importância particular dos personagens infantis de
contos como A Salvação da Alma, Nossa Amiga, ou O Sorvete. Conhecemos de perto os episódios que Drummond nos oferece com seus personagens crianças em suas relações: a predominância do mais forte sobre o
mais fraco, a crueldade, a diferença entre o comportamento individual e em
grupo, a predisposição ao devaneio, a ingenuidade e a malícia que se alternam, etc. Mais freqüentemente, a criança drummondiana é protagonista de
experiências vividas no interior, ou, como ele diz: ...em nossa cidade que é
antes uma enorme fazenda. Este é, aliás, um traço que coloca em relevo
seu caráter de memorialista, tanto na prosa quanto na poesia.
As experiências do menino do interior do Brasil que foi Drummond
conservam suas marcas profundas na obra do escritor e poeta. Este “retirante’’ intelectual do interior de Minas desvela em sua escritura os efeitos da
distância dolorosa das experiências da infância. Em sua obra, que se produziu durante mais de meio século e que percorreu diferentes momentos históricos de nosso país, em nenhum momento há lugar para a exaltação patriótica. Lendo Drummond aprendemos que a pátria do homem é sua infância e
os lugares onde foi vivida, é a experiência de cada um em seu lugar de
origem. A pátria é este universo para sempre perdido e, no entanto, presente
em tudo o que fazemos: Itabira é apenas um retrato na parede, mas como
dói! (Confissões de Itabirano).
Neste sentido é que podemos dizer que “brasilidade’’, esta noção tão
empregada atualmente, em Drummond é visceral. Ser brasileiro, para
Drummond, é estar no mundo, entregue à humana condição, à humana contingência. Desde seu primeiro poema publicado em livro (Alguma Poesia,
1930), é dela que nos fala o poeta :
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Quando nasci, um anjo torto, desses
que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos, ser gauche na vida
E quem não pensa neste “anjo safado”, neste “querubim chato’’, quando se depara com os percalços da vida ? Esta gaucherie que Drummond
cultiva em sua obra, esta excentricidade, esta inadequação, não é ela parte
integrante de nossa tragédia cotidiana? E o que dizer de “José’’, com quem
convivemos todos os dias em nossos momentos de impasse e desilusão?
E agora, José?
A festa acabou,
A luz apagou,
O povo sumiu,
A noite esfriou...
Este José “sem nome’’ que todos somos um pouco na genealogia das
nações, este José com a chave na mão querendo abrir a porta que não
existe, ainda mais gauche que Carlos, ao qual dizemos sempre, como
Drummond: mas você não morre, você é duro, José! (José e outros, 1942).
Como todos nós, Drummond também identificou sua gaucherie no
personagem do vagabundo de Chaplin: Ó Carlito, meu e nosso amigo, teus
sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e de esperança (A
Rosa do Povo, 1945). Esta estrada de pó e de esperança não é a mesma
que percorremos com a labilidade que nos é própria de “viver à sombra’’ e de
estar presentes no mundo, caminhando, como José, sem saber para onde?
Carlos, José, Carlitos, somos um pouco de cada um, “anjos caídos’’
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SEÇÃO TEMÁTICA
da pátria drummondiana. Por isso, como Drummond, guardamos esta
especificidade infantil de nosso humor e nossa ironia. Narcisos brincalhões,
desde pequenos aprendemos a cantar nosso hino nacional às avessas, para
nós o verdadeiro. O Brasil que nos concerne é uma espécie de ‘’Brejo das
Almas’’ drummondiano. Não tem problema se algum dia acreditamos piamente no que diz a canção de Duque Estrada, sem nunca ter conseguido
decorá-la. O importante é que tenhamos encontrado, “no meio do caminho
da nossa vida’’, Drummond, este lutador com a palavra que até hoje nos
ensina a ler e achar graça da psicopatologia da nossa vida cotidiana de
brasileiros, e a cantar um hino nacional mais parecido conosco:
Precisamos descobrir o Brasil!
Escondido atrás das florestas,
com a água dos rios no meio,
o Brasil está dormindo, coitado.
Precisamos colonizar o Brasil
PINTO, M. R. P. Eternos aprendizes...
de que quaisquer outras, nossos erros também.
E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões…
os Amazonas inenarráveis…os incríveis João-Pessoas…
Precisamos adorar o Brasil!
Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão
no pobre coração já cheio de compromissos…
se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.
Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?
‘’Hino Nacional’’ (O Brejo das Almas, 1925-1930).
Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros,
assimilaremos finas culturas,
abriremos dancings e subvencionaremos as elites.
O que faremos, importando francesas
muito louras, de pele macia,
alemãs gordas, russas nostálgicas para
garçonettes dos restaurantes noturnos.
E virão sírias fidelíssimas.
Não convém desprezar as japonesas…
Cada brasileiro terá sua casa
com fogão e aquecedor elétricos, piscina,
salão para conferências científicas.
E cuidaremos do Estado Técnico.
Precisamos louvar o Brasil
Não é só um país sem igual.
Nossas revoluções são bem maiores
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SEÇÃO TEMÁTICA
COSTA, A. M. M. da. O primeiro cineastra.
O PRIMEIRO CINEASTA
Ana Maria Medeiros da Costa
A
taxonomia parece um processo tão diferenciado e específico, que
raramente percebemos o quanto dele usamos corriqueiramente. No
entanto, nomear é, fundamentalmente, classificar. Com isso domamos o mundo, as coisas e o próprio corpo, que se tornam nossos instrumentos nas trocas sociais. Poderia mesmo pensar-se na empreitada de uma
vida resumindo-se no detalhe de tentar classificar o que não constitui classe.
A ordenação do mundo, tanto quanto nosso lugar nele, dependem disso.
Essas questões me retornaram ao assistir um filme sobre Silvino Santos
Silva, que pode ser considerado o primeiro cineasta que o Brasil produziu.
Entenda-se que ainda não se tratava da indústria do cinema brasileiro, porque são eventos das duas primeiras décadas de 1900, logo, dos primórdios
da linguagem cinematográfica. Silvino foi desenvolver sua técnica com os
próprios irmãos Lumière, em cujo estúdio fez estágio. Assim, a linguagem
cinematográfica chega ao Brasil praticamente desde sua invenção. Arriscarei algumas idéias partindo do caminho peculiar deste cineasta.
Silvino era português (nascido em 1886) e, conforme relata em sua
biografia, resolve vir para o Brasil aos 17 anos, numa típica inclinação à
aventura. Ele deixa entrever que uma frase foi suficientemente forte para
nortear sua vida, tendo-a encontrado aos 10 anos, lendo uma enciclopédia:
“Amazonas, o maior rio do mundo”. A leitura convoca um olhar: “Esta visão
encantou minha alma”. Aquilo que é maior, que sempre é vivido na história
individual como enigma de um lugar estrangeiro, pareceria requerer uma nova
linguagem. É assim que, no Brasil, primeiro a fotografia e depois a filmagem
de documentários, irão constituir recortes de sua inscrição na terra estrangeira. Tanto a fotografia (ele fazia o trabalho do típico lambe-lambe), quanto o
documentário, se inscrevem como sistemas classificatórios. No entanto, os
testemunhos deixados revelam a sensibilidade de um artista na tentativa de
apreensão do real. As imagens que ficaram são de uma criatividade e beleza
surpreendentes.
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A estreita imbricação entre arte e classificação parece ter se constituído num processo bastante abrangente, referente a um período mais inicial
de nossa história. Muito tem-se discutido sobre o que foi a necessidade de
constituição de uma identidade brasileira afetando a literatura, por exemplo.
Tanto é assim que é da literatura que surge o melhor testemunho da história
do Brasil. Mas ao que responde e quais as conseqüências dessa imbricação?
A função classificatória tem diferentes referências dentro do campo
da psicanálise. No texto sobre a negação1, por exemplo, Freud delineia suas
matrizes: dentro/fora; eu/outro; afirmação (união)/negação (expulsão). Lacan
propôs essas mesmas questões como a construção de uma dialética mínima: alienação/separação. Vêmo-la operando nos ensaios da criança com os
objetos e a realidade. A escolha e nomeação do objeto transicional2, por
exemplo, constitui propriamente uma função totêmica. É ali que se dá suporte aos primeiros traços da contagem – tal qual o exemplo que Lacan lembra,
dos traços do caçador de tempos imemoriais, marcando num osso cada
animal abatido. Morte, intervalo, presença/ausência, palavra e animação do
mundo, todas essas funções definidas a partir do animal/objeto totêmico.
Um exemplo que me pareceu extremamente ilustrativo dessa função
totêmica, ligada ao objeto transicional, surgiu-me a partir do nome que um
menininho deu a seu travesseirinho: “nanádele”. O terceiro implícito nessa
forma de nomear (o que aparece no “dele”) conjuga objeto e desejo da mãe
num mesmo ato. Evidente que o “naná dele” quem primeiro nomeou foi à
mãe. Nesse sentido, na medida em que se fixa num objeto intermediário,
poderia ser pensado como uma espécie de apelo de seu desejo a uma mediação, ali onde a noite apresenta-se como dissolução de limites. O dormir é
sempre problemático para mãe e filho. Que o objeto contenha o limite do
Outro – tanto no sentido de que sua presença porta a ausência, quanto no
sentido de contenção, de limitar – tranqüiliza.
1
FREUD, S. La negacion. In: _____. Obras completas. Madrid : Biblioteca Nueva, 1974.
As reflexões que se seguem foram desenvolvidas no trabalho “Objetação”, que apresentei
no Congresso “A interpretação dos sonhos”, promovido pela Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro, em agosto de 2000.
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O exemplo do “nanádele” serve para representar a construção do desejo humano como enigma. Esse é o momento em que se desliga do totem
(mata a coisa), interditando a palavra. A função de interdição da palavra está
colocada em que a palavra como enigma (aquela que diz do desejo) se chapa no “nanádele”: ali pode inscrever-se um traço sem nenhuma significação,
a partir do qual as outras palavras podem significar alguma coisa, deter seu
deslizamento. É assim que é possível que elas passeiem num circuito de
reconhecimento, de comunicação. Ali, temos o momento em que nomear dá
alma ao objeto. A historinha em quadrinhos do “Calvin”, de Bill Waterson,
apresenta o tigre Harold dessa forma. Essa condição em que nomear dá
alma, que constrói um território compartilhado nos acontecimentos
transicionais, compõe uma determinada condição da “língua” originária que
depois é “esquecida”, apesar de nunca superada completamente. A não superação retorna nas formações do inconsciente. Paulatinamente, a língua
vai perdendo sua condição nomeante – produtora da alma, da animação do
mundo e da realidade – restando unicamente sua função instrumental, de
ser instrumento de comunicação de um sentido, de uma identidade.
A outra função classificatória, mas que é decorrente do já abordado,
podemos situá-la no desdobramento do sujeito no ato de contar-se. Lacan a
evidencia de uma forma muito simples e direta, a partir da confusão da criança entre “ser” e “ter”, colocada na banalidade da frase que compõe o teste de
Binet: “Tenho três irmãos: Pedro, Ernesto e eu”. Muito mais do que um erro
lingüístico, ou de um parco domínio da dialética, esse enunciado evidencia
um processo mais geral incluído no domínio de uma língua: somente conseguimos “contar”, produzir descrições ou narrativas da realidade, desde que
consigamos “contar-nos”, incluir-nos como um entre outros. Isso implica em
sermos, ao mesmo tempo, aquele que conta e aquilo que é contado, sujeito
e objeto da língua. Também implica que, ao mesmo tempo, a língua contenha para nós uma função classificatória e descritiva, onde o intervalo – a
diferença – produza reconhecimento. Evidentemente, essa dupla função pode,
ou não, ser transmitida.
Esse rodeio tem o objetivo de situar, de forma aproximativa, como é
possível interpretar as diferentes linguagens que circulam nas trocas soci-
ais. A função totêmica é reinstalada constantemente, mesmo quando ela
permanece recalcada. Esse um que conta, opera, mesmo que não o enunciemos mais (como acontece na infância, conforme o exemplo que destacamos de Binet). É talvez pela razão de ter restado um objeto/cicatriz (como
na metáfora do “umbigo” do sonho) que se constituam diferentes escolhas
de linguagem para a circulação social (escrita, pintura, voz, etc.). A linguagem cinematográfica também será subsidiária da mesma lógica. Tanto a
câmera, quanto a tela, constituem recortes do/no real, produzindo uma janela por onde se transita de um lado a outro da ficção/real, tal qual um espaço
moebiano. É assim que essas imagens por vezes – não sempre – nos tiram
o fôlego, quando nos mostram o objeto olhar a que nos reduzimos. Só aí
percebemos que não há nada “por trás” do véu que nossa vã ilusão carregava, ao construir deuses e altares.
A função classificatória ocorreu-me pelas condições em que se produzem os filmes de Silvino. O documentário o situa como uma espécie de
cronista da família empresarial, que era representante da “civilização” da
borracha, império que desapareceu ou foi substituído. Seu primeiro trabalho
para esse empresariado foi como fotógrafo. A solicitação surgiu em função
de denúncias, na Europa, de que haveria trabalho escravo – de índios – nos
seringais. As fotos seriam para “provar” que as denúncias não teriam procedência. Foi também por esse “acaso” que ele veio a dominar a técnica da
filmagem, mandado a Paris pelo mesmo empresário, a fim de instruir-se com
os irmãos Lumière. Poderia pensar-se, em relação aos filmes de Silvino, que
cumpriam função semelhante à fotografia do lambe-lambe. Dirigiam-se a plasmar ícones do que poderia constituir-se como imagem ideal. No caso, a
imagem “de família”, daqueles que sustentaram e assentaram as bases de
um patriarcado tipicamente brasileiro. Silvino viveu entre eles, como agregado, até o fim de sua vida. Com a derrocada do império da borracha, sua
função reduziu-se a filmar o cotidiano da família com que morava. E ali aparecem imagens, no mínimo ridículas, do cotidiano da família, a começar pela
“energia” e potência matutinas de seu “chefe”, ao exibir-se para a câmera
fazendo ginástica.
No entanto, apesar desse lugar aparentemente “serviçal” de uma ima-
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gem – e isso é verdadeiramente um paradoxo – Silvino cria uma imagem de
Brasil: supostamente para o exterior, mas principalmente para representação interna. Seus documentários eram esperados e levavam multidões ao
cinema. A qualidade das imagens, que demonstravam um domínio e criação
com a técnica, talvez produzissem a ilusão de controle daquilo que, no Brasil, permanecia estrangeiro: a selva e o selvagem, capazes de se levantar do
totem a qualquer instante. O documentário “No Paiz das Amazonas” estreou
na semana de arte moderna, de 22, e representou o Brasil no exterior. Nesse
sentido, participou, junto com o espírito do movimento modernista brasileiro,
da busca de uma identidade nacional.
Partindo dessas colocações, faço-me algumas indagações que não
me parecem totalmente resolvidas:
– primeiro: como é possível, partindo dessa história, diferenciar “criatura” e “criador”. A interpretação sociológica mais ligeira indicaria Silvino como
objeto de uso e exploração do patriarcado da borracha. No entanto, como
bem o demonstra sua função, a partir da queda do lugar social desse mesmo
patriarcado, o que seria dessa imagem de potência sem o olhar de Silvino a
reconhecê-la (o que significa, também, participação em criá-la)? Lembremonos de como se plasma uma escolha pessoal de Silvino: representar/olhar/
imaginar o Amazonas foi a captura de sua vida.
– segundo: chama atenção a função do agregado nas representações
sociais do Brasil. “Agregado” é um dos nomes do anonimato do desejo.
Talvez ele tenha composto um hibridismo, sem poder constituir uma definição de escolha, na passagem do europeu ao brasileiro. Machado de Assis o
representa muito bem na sua obra. Por sinal, ele também foi um agregado –
pelo menos filho de agregados. O agregado, por ser um protegido, não pode
“enterrar” o pai totêmico. Ele se constitui numa espécie de pária, sem pátria.
Como não pode fixar totem, é pelo “duplo” que ele se representa, tal qual o
fantasma do pai de Hamlet. Nesse sentido, pode também ser uma figura
típica da modernidade.
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TESSLER, E. Labirintos de Hélio Oiticica...
LABIRINTOS DE HÉLIO OITICICA E OUTROS
LABIRINTOS BRASILEIROS
Élida Tessler
T
odo o conjunto de proposições de Hélio Oiticica joga com antinomias
e concentra grande tensão entre elementos opostos. Esta característica permitiu o surgimento de espaços entre uma coisa e outra, de
interstícios, de intersecções.
Entre estas, a principal é a que fez cruzar os terrenos da arte com os
da vida cotidiana. A cada novo projeto, Oiticica apresentava elementos que
falam de passagens, de percursos entre um ponto e outro, por vezes propondo caminhos tortuosos. Podemos reconhecer a forma labiríntica desde suas
primeiras pinturas produzidas entre 1956 e 1959 até seus últimos trabalhos
de 1979.
Labirintos por excelência, o Subterranean Tropicália Projects é uma
série de projetos (como o próprio título indica) que Hélio Oiticica concebeu,
sob forma de maquetes, durante a sua permanência em Nova Iorque, nos
anos 70. O denominador comum mais importante destes projetos é a intenção do artista, que parece adotar aqui um caráter altamente político. Hélio
Oiticica quis dar forma à sua preocupação em torno do problema da alienação face ao contexto brasileiro: a ditadura e suas conseqüências políticas e
culturais.
Como todos os seus outros espaços penetráveis, o Subterranean
Tropicália Projects foi constituído por elementos destinados a sensibilizar a
percepção do espectador-participador, a fim de estimular uma reação, uma
atitude, um ato criativo.
Todos os projetos possuíam elementos característicos de um labirinto: corredores, claros ou sombrios, iluminações em cores diversas, portas,
paredes de separações transparentes ou opacas (em tecido, em madeira,
em plástico, em voal ou em grades metálicas), diversos tipos de passagens
internas e externas do labirinto ou entre um compartimento e outro. Também
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SEÇÃO TEMÁTICA
estava previsto música, escadas, plataformas, cabines individuais, e ainda
diversos tipos de plantas, para criar o que Hélio Oiticica chamava por “jardimlabirinto”.
Diferentemente de outros penetráveis, nós encontramos, nesses novos projetos, espaços reservados às performances, isto é, a acontecimentos
programados para a participação ativa do espectador: “... as performances
serão diferentes conforme o local onde o projeto terá lugar. Minha primeira
idéia seria a de fazer um comentário crítico, o menos literário possível, sobre
os problemas de alienação diante do contexto brasileiro, procurando colocálos em relação com o contexto internacional”1.
As performances deveriam se desenvolver em espaços específicos no
interior do labirinto. Hélio Oiticica previu, por exemplo, um sistema de janelas ao longo de corredores por onde o espectador poderia debruçar-se e
olhar o que se passava do lado externo do corredor, mas sempre dentro do
circuito do labirinto.
Geralmente, os espaços de Subterranean Tropicália Projects eram
previstos para receber vários visitantes ao mesmo tempo. A simultaneidade
dos acontecimentos, isto é, o deslocamento das pessoas que entravam e
que saiam do labirinto, que iam e vinham pelos corredores, que subiam e
desciam pelas escadas, bem como o som dos passos, das conversas ou
mesmo da música tinha grande importância para a completa realização dos
projetos.
A simultaneidade dos espaços externos e internos é também uma
característica marcante de cada penetrável da série Subterranean Tropicália
Projects, como na série “Magic Square” que ele desenvolvera até 1979. A
visão total ou parcial dos espaços, as matérias que provocam os efeitos de
transparência, uma ou várias cores impregnando os espaços, todos esses
elementos contribuem para uma experimentação das relações dentro-fora.
Em PN-30 – Magic Square n°7 (1979) por exemplo, o penetrável era constitu-
TESSLER, E. Labirintos de Hélio Oiticica...
ído por paredes em grades metálicas pintadas de azul (um mesmo azul
total, dizia Oiticica) e o chão recoberto por cascalho muito fino, por vezes
misturado com cristais minerais que provocavam cintilações e reflexos azuis.
O artista previa ali uma noção de percurso onde o dentro e o fora eram
considerados em uma certa simultaneidade. O homem vive, e disso sabemos, em permanente entrecruzamento de espaços externos e internos em
seu próprio corpo.
A dança e a música também fazem parte da concepção dos projetos
da série em questão. Elas intensificam o caráter do tempo simultâneo. O
“PN 17-Stonia” (1974), por exemplo, apresentava em seu previsto espaço de
15 x 15m várias telas de algodão bastante encorpadas, superpostas, deixando pequenos espaços entreabertos por onde poderia passar o visitante. Tudo
isto ao som de Rollig Stones, pois em cada uma das peças tocava um
fragmento de músicas diferentes deste grupo de rock. Em seus escritos,
Hélio Oiticica indicava que a música de Rolling Stones em seu penetrável
não significava nenhuma espécie de homenagem. Tratava-se, isto sim, de
um convite à dança a partir do “máximo de simultaneidade intoxicante de
rocker”. 2
A estrutura prevista para suportar as telas de tecido separando os
espaços possuía um sistema que permitiria montar e remontar a arquitetura
do conjunto, como em um cenário de teatro. Hélio Oiticica previra, então,
para este projeto, a retirada, em determinado momento, de todas as divisões, deixando apenas a música de cada peça definir a diferença dos lugares. O resultado seria o de um vasto espaço livre para dançar, onde diferentes artistas fariam parte da manifestação, misturando-se ao público, incentivando as pessoas a se juntar à dança, em um ritmo de música superposta.
Sabe-se que Hélio Oiticica construiu maquetes para muitos penetráveis
inteiramente brancos, com implicações decisivas para o processo deste artista. Deteremo-nos agora em um penetrável totalmente preto, o “PN 16-
2
1
Hélio Oiticica. Galerie Nationale du Jeu de Paume, Paris, 1992 p.143
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Notas de Hélio Oiticica escritas em 31/01/74. Material inédito, consultado nos arquivos da
Fundação Hélio Oiticica
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SEÇÃO TEMÁTICA
Nada”3, que também fazia parte da série Subterranean Tropicália Projects.
Este projeto foi concebido a partir de um convite para expor em uma galeria
de São Paulo. Não estando muito interessado em uma idéia de exposição
convencional ou de retrospectiva, Hélio Oiticica decidiu preparar um projeto
de um espaço penetrável ao ar livre, para ser colocado em um parque ou um
jardim. O penetrável de 11 x 11 x 3m era dividido em várias peças conectadas.
Em uma das salas, o público seria confrontado a uma série de microfones
pendurados a partir do teto, e com uma indicação escrita, explicando que
cada participante poderia escolher um microfone e falar algo sobre o “NADA”:
“No PN, quando as pessoas se encontrarem diante do microfone, já terão
atravessado os corredores escuros e pretos: o primeiro conduz a uma primeira zona: nesta zona uma luz é projetada através do espaço, de um lado
a outro, para iluminar a parede que se encontra em frente; quando as pessoas entram, elas são violentamente surpreendidas pela luz e, quando elas
movem-se, suas sombras são projetadas na parede e no chão pintado de
preto (todas as paredes são pretas no PN16) – atravessando o corredor
seguinte em forma de, eles penetram em uma zona iluminada a partir do
centro do teto sobre um chão metálico, emitindo um reflexo opaco, como se
tratasse de sombras refletidas que atravessam o chão – e que se distanciam através do terceiro corredor escuro, que conduz à sala dos microfones”4.
Neste penetrável de Oiticica, a questão não era a de falar sobre um
assunto qualquer. Era preciso falar sobre o nada, ou talvez, nada dizer. Era
preciso se confrontar com uma imagem vazia de sentido, como dizia Hélio
Oiticica. Nós poderíamos dizer também que aquele ambiente com salas
escuras, com chão metálico, com o barulho seco de passos, as sombras, a
3
HélioOiticica escolheu a Praça da República, centro da cidade do Rio de Janeiro, como local
definitivo para a construção de seu labirinto. Como muitos outros, este projeto nunca foi
realizado.
4
OITICICA, Hélio. In: Hélio Oiticica. Galerie Nationale du Jeu de Paume, op.cit.p.154 (original
em inglês).
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TESSLER, E. Labirintos de Hélio Oiticica...
luz violenta que surgia de repente, eram uma alusão à situação de perseguição política e de tortura na qual o Brasil estava mergulhado.
CONSTRUÇÃO/DESCONSTRUÇÃO: UM PROGRAMA
À imagem do Merzbau do artista alemão Kurt Schwitters (a moradia
mesma do artista), os ninhos de Hélio Oiticica poderiam também ser vistos
como ambientes autobiográficos. Hélio Oiticica sempre considerou seus
apartamentos em Nova Iorque como obras, para as quais ele dava nomes:
“Babylonests” de 1971 a 1974 ou “Hendrixsts” de 1974 a 1978, ou como
“work in progress” onde todos os materiais eram suscetíveis de servir para
alguma coisa. Para citar Ponge (que pensava em Schwitters): “desta forma
lhe acontece, como para a andorinha a palha, qualquer coisa pode ser útil
para construir seu ninho: papéis colados, fios de ferro, restos de conversas,
lugares comuns...”5 . Os ninhos de Oiticica tinham uma certa divisão de
espaços bastante singular, não-convencional: tinham forma labiríntica. As
peças eram divididas em compartimentos, onde o visitante experimentava
sensações e percepções diferentes. Em cada um dos espaços, era possível
encontrar materiais de variadas origens e finalidades, para que o visitante
pudesse manipular e criar suas formas próprias. Esta idéia de abrigo, de
ninho, é encontrada explicitamente no trabalho “Éden”, apresentado pela
primeira vez em Londres, em 1969.
“Mundo-Abrigo” é um texto-programa de Hélio Oiticica, escrito em 1973.
Um escrito que é obra ao mesmo tempo, ele faz parte de uma série de
projetos dentro da idéia de um “work in progress”. O título nos conduz já às
verdadeiras proposições gerais de Oiticica: o mundo é um abrigo, ele pode
ser uma morada, ele pode ser construído coletivamente a partir de um exercício experimental da liberdade, consagrada fórmula de Mário Pedrosa. Neste texto, várias palavras nos ajudam a formular a seguinte idéia: a arte é uma
espécie de criação de um lugar. Vejamos a seqüência: mundo, abrigo, gua-
5
PONGE, Francis. Le peintre à l’étude, Paris : Gallimard, 1948, p.130.
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rida, éden, ambiente, playground, barracão, favela, casa, corpo-ambiente. O
ambiente toma lugar de obra. Bem como o “Merzbau” de Kurt Schwitters, as
proposições ambientais de Hélio Oiticica propõem o mesmo ideal Dadá de
abolição das fronteiras entre arte e vida cotidiana. A obra vem a ser um
espaço para receber o espectador. Ali, é possível estar. Seja um espaço em
freqüente transformação, um “work in progress”, seja uma obra que não é
facilmente transportável nem vendável, que não é pintura nem escultura, nem
arquitetura como estamos tradicionalmente acostumados a conceber, estes
são projetos de lugares concebidos especialmente para receber o espectador de corpo inteiro. O percurso e as reações provocadas pelos materiais
“fazem” a obra. O “habitante-visitante” faz o quadro, isto é, assim como em
Marcel Duchamp, o estatuto do artista é colocado em questão. Percorrer
alguns dos labirintos de Hélio Oiticica, analisando o contexto da arte brasileira contemporânea, configura-se como possibilidade de experimentação
de nossa realidade em vertiginosa e constante mutação.
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JERUSALINSKY, A. Pas de deux, pas de Dieu.
PAS DE DEUX, PAS DE DIEU
Alfredo Jerusalinsky
“Deus é astucioso mas honesto”
(Albert Einstein)
O
que faz discurso nos retorna como uma língua Outra no sujeito do
Inconsciente. É nessa alienação que o sujeito fala a verdade, não
porque se proponha a dizê-la, mas porque se equivoca.
A língua materna não aflora na sua forma original, mas perfurada – tal
e como acontece com a mãe do Complexo de Édipo –, barrada, ou, se
preferimos, atravessada pelo Outro. São diversas as maneiras de enunciar o
corte dos tules de ilusão que recobrem a relação primeva do sujeito com o
outro. Corte desse gozo primordial que, em lugar de devolver o sujeito ao real
– o que seria entregá-lo à tragédia eterna que Sófocles revela –, insere-o
numa ordem simbólica. Cego e no exílio, Édipo demonstra que sempre respondeu à ordem da verdade, embora a trama de sua vida o condenasse a
viver no engano. A palavra de Antígona reestabelece o vértice simbólico que
organiza essa verdade – não equivalente ao real – à qual Édipo sempre respondeu; enquanto foi a recusa de Laio à paternidade – fazendo mais caso de
sua imaginação do que da lei – o que lançou seu primogênito na trilha do
incesto e do parricídio reais, cuja ignorância não autorizava Édipo a cometêlo: ele mesmo tampouco duvida da equivalência de todo sujeito diante do
simbólico, muito além de sua ignorância acerca do real.
Afastado do fascínio da imagem do objeto que o seduz, o sujeito adquire boas razões para falar acerca do que não vê, não toca, não realiza,
como se o visse, o tocasse, o realizasse. Ou, no avesso, falar do que vê,
toca, realiza, como se não o visse, tocasse, realizasse. Não que o sujeito
necessariamente minta, mas, sim, inevitavelmente, se vê obrigado a atravessar o terreno do engano para ligar sua vida a alguma forma de verdade. É por
isso que o sujeito supõe sempre que há alguma coisa oculta a ser descober-
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 84, out. 2000
61
SEÇÃO TEMÁTICA
JERUSALINSKY, A. Pas de deux, pas de Dieu.
Talvez seja por isso que, em algumas crianças psicóticas, a interferência de uma língua
estrangeira – como tem acontecido com o espanhol do autor deste artigo – se insere em
determinado momento do transcurso da “cura” como um ponto de capitón originado numa
metáfora não paterna, mas que faz a função “tradutora” da língua materna sob a forma de
uma suplência. Tal observação também foi feita por Maud Mannoni com as crianças de
Bonneuil que, no sistema de acolhimento familiar substitutivo, eram destinadas a famílias
residentes nas fronteiras. A tal ponto que, em algumas discussões de casos clínicos,
chegava a considerar a pertinência desse procedimento como prescrição.
2
Sem a transcrição feita por seus discípulos, o Curso de Lingüística, de Ferdinand de
Saussure, não teria existido. Qual teria sido o destino dos Seminários de J. Lacan sem as
diversas transcrições feitas por seus alunos? Até onde teria chegado a obra freudiana,
como a de Descartes ou de Galileu Galilei, sem a discussão virulenta e contraposta com o
Outro de seus respectivos tempos. Todos eles se viram arrancados do conforto de sua
língua materna e obrigados à criação de uma língua capaz de expressar seus novos conceitos, ou seja, lançados a uma posição, em que um saber até então ignorado lhes retornava
como discurso.
Quem sabe foi justamente esse o motivo de Lacan enfrentar com bom humor
o plágio: “Se forem plagiar alguns significantes, prefiro que sejam os meus”.
Também poderia se dizer que o mesmo ocorre quando se trata de mal-entender.
Estas pontuações estabelecem o fundamento para considerarmos as
seguintes questões:
1) Não é necessário ler um autor na sua língua original para compreendê-lo, pelo simples motivo de que ninguém, embora o leia no seu idioma de
origem, o lê na sua “língua original”, nem ele próprio.
2) O texto retorna ao autor, a ele mesmo, numa “língua Outra” na
mesma medida em que faz discurso, ou seja, na mesma medida em que
oferece interesse para “todos” porque interfere nas formações do sujeito do
inconsciente por meio da língua.
3) Isso é que permite a transmissão do saber de um discurso (como
por exemplo, a transmissão da Psicanálise) dos falantes de um idioma aos
falantes de outro. Sem que sua formulação original em outra língua faça
obstáculo para isso.
4) O que pode fazer obstáculo não é precisamente da ordem do original do idioma – que se enlaça ao materno da língua nos vestígios de letra que
sua sonoridade conserva –, mas exatamente a torção que a cultura – enquanto discurso – impõe na ordem simbólica desse dizer. Dito de outro modo,
é na medida em que a língua se torna “de todos” os membros de uma certa
cultura que ela suporta as torções próprias do percurso dessa cultura entre o
equívoco e a verdade. É aí que caberia um novo conceito: Culturalíngua.
Por essas razões, quando se trata de indagar sobre as relações coloniais, a possibilidade de produção de um novo discurso, o enlace de saber
entre o mestre e seu discípulo, a posição do sujeito do inconsciente na
relação entre amo e escravo, e, sobretudo, a relação entre diferentes culturas, parece-nos mais interessante vasculhar nas diferenças simbólicas do
que tomar como ponto de partida supostas diferenças de compreensão pela
língua, em que se formula originalmente um discurso que prevalece ou se
cultua. É, precisamente, a ordem simbólica que nos dará a pista, no seu
modo de articulação lógica, da posição em que opera a instância do Outro;
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 84, out. 2000
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 84, out. 2000
ta no objeto que percebe; ou que há um objeto oculto a descobrir onde nada
percebe. Dito de outra maneira, sabe que sua percepção está orientada por
um engano, governada pelo equívoco da linguagem que organizou seu olhar.
Mas, paradoxalmente, é essa mesma linguagem a que lhe permite se referir
àquilo que está além de sua percepção, marcar o rumo de sua indagação e,
talvez, de sua descoberta. É no equívoco, na falha, onde encontra a pista da
verdade que procura.
Isso é o que nós, humanos, temos em comum: a verdade e o equívoco. Isso é o que o discurso carrega de um sujeito a outro, de uma língua a
outra, de uma cultura a outra. Ainda, poderíamos dizer, de uma teoria a
outra.
Aí reside o fundamento de um idioma ser traduzível a outro. Mas,
antes disso, é onde se alicerça a possibilidade que a língua materna tem de
se transformar na língua de “todos”. 1 Para qualquer autor, a passagem para
ordem da escrita lhe permite se “escutar” numa dimensão de alteridade que
sua voz somente lhe permitiria sob uma condição alucinatória. Assim, as
conseqüências de sua obra se tornam, para ele mesmo, inteligíveis, nessa
língua outra que suporta tanto a verdade quanto o equívoco. Falada por outro,
transcrita, escrita, ou interpretada, sua fala tem chance de fazer discurso. 2
1
62
63
SEÇÃO TEMÁTICA
decisiva na cultura e determinante para o sujeito do inconsciente, no que se
refere a seu gozo e seu desejo.
Por exemplo, no Bulletim da Association Freudienne Internationale3
do mês de junho último, os colegas do Cartel d’Amerique Latine questionam
que o autor desse artigo “pensa poder ali – nos textos de Charles Melman
referidos – ler que a barra entre S1 e S2, entre significante mestre e saber,
levaria o colonizado a uma posição de loucura”. Como “pensa poder ali ler?”.
Passo a citar o texto do Dr. Charles Melman: “... como se o corte – no
discurso do mestre – se encontrasse deslocado e viesse a funcionar entre
S1 e S2”. Em seguida passa a considerar que um corte em tal posição
coloca o sujeito numa tal relação como o objeto “não como se ele tivesse
sido perdido, mas como se ele tivesse sido roubado”4. Não é essa a posição
do objeto na paranóia? E continua: “Neste dispositivo que escrevi no quadro,
o Outro é sempre o grande Outro, sempre ameaçador, habitado por forças
obscuras que o mestre não conseguiu civilizar”5. Não parece essa uma figura
muito próxima do Pai Real, sobretudo quando consideramos as referências,
alguns parágrafos antes, acerca do ideal de antropofagia como uma “ambição de que seja bem-sucedida uma introjeção sem conseqüência simbólica
alguma”. E, ainda: “A figura neurótica particular que me parece vir se inscrever sobre essas fórmulas é aquela que eu chamaria de histeria pseudo-paranóica”6, a que outros psicanalistas notadamente tem chamado de loucura
histérica. Antes, fica pontuado que “... se é verdade que entre S1 e S2 vem
esse corte, não funcionaria mais essa simpatia que está na base do laço
social” e “ a falta de solidariedade entre S1 e S2 solicita uma ação... violenta,
JERUSALINSKY, A. Pas de deux, pas de Dieu.
para mantê-los”7 Parece até aqui fartamente justificado sustentar a idéia de
que Charles Melman alude a um “enlouquecimento” do colonizado, termo
que usamos no nosso artigo “A psicanálise e o cocar”, no qual em momento
algum usamos o termo “psicose” (o que, obviamente, não é por acaso, mas
por um cuidado especial com a diferença conceitual). Usamos, sim, o termo
forclusão, não atribuído a Charles Melman (que não o escreve), mas sustentado como interpretação própria e que acreditamos apropriada para entender
o processo que se estende durante as três gerações que marcam o tempo
lógico da “superação” do efeito traumático da invasão colonial (e que não
correspondem a três gerações cronológica ou sociologicamente medidas):“A
forclusão na medida em que ela opera – e um processo de conquista e de
colonização é certamente um desses casos – provêm de um apagamento da
função simbólica do significante na inscrição fantasmática da terceira geração”8. Neste mesmo sentido, Ângela Jesuíno Ferreto escreve: “... o nome
próprio, no contexto da colonização, parecia perder essa função de indicar
um lugar originário do sujeito, de lhe garantir um lugar simbólico no Outro,
como se não tivéssemos sido adotados numa operação simbólica de nomeação”9. Isso, prezados amigos, na conceituação de Jacques Lacan se chama forclusão. De modo que, na medida em que é possível – como afortunadamente é – tirar conseqüências e ensinamentos do texto de Charles Melman,
uma das conseqüências poderia ser esta. Embora esta conseqüência não
coincida com as suas explicitações ou suas intenções, mesmo porque em
psicanálise sobre intenções não é pertinente escrever, e, por outro lado,
escrever só sobre explicitações seria repetir o que já está escrito. Isto, além
de aborrecido, seria inútil.
Em torno do quê se desdobra, então, nossa interessante polêmica à
respeito do Outro e a colonização ? Parece-me, insisto, que há dois pontos
3
Veja-se o número 88, juin 2000, p.21 “La psychanalyse et le cocar. Les limites éthiques du
discours colonial”.
4
MELMAN, Charles. Casa grande e senzala. In: Um inconsciente pós-colonial . Porto Alegre : Artes
e Ofícios, 2000, p.18.
5
Idem, ibidem p.19.
6
Id., ib., p.19.
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 84, out. 2000
7
Id., ib., p.18.
JERUSALINSKY, Alfredo. A psicanálise e o cocar. Correio de APPOA, n. 71, agosto 1999.
FERRETO, Ângela Jesuíno. Outro: instruções de uso. Correio de APPOA, n.71, agosto
1999. p.30.
8
9
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 84, out. 2000
65
SEÇÃO TEMÁTICA
fundamentais: a regulação simbólica e sua falência, da função da palavra
face ao real. O problema se instala quando o Real se torna enganoso, e a
palavra toma um vôo de verdade que não sustenta. Lacan, a esse respeito,
nos aponta: “Para que algo, seja o que for, possa referir-se, respeito ao sujeito e ao Outro, a algum fundamento no real, é necessário que haja em algum
lugar, algo que não engane. O correlato dialético da estrutura fundamental
que faz da palavra de sujeito a sujeito uma palavra que pode enganar, é que
também exista algo que não engane. Essa função... se cumpre sob formas
muito diversas segundo as áreas culturais nas que opera a função eterna da
palavra. Seria um erro acreditar que sempre são os mesmos elementos,
igualmente qualificados, os que tem cumprido essa função.” E, mais adiante: “A noção de que o real, por delicado de penetrar que ele seja, não pode
nos jogar sujo, que não nos engana de propósito, é, ainda que ninguém
tenha se detido realmente nisso, essencial para a constituição do mundo da
ciência..Uma vez dito isto, aceito que a referência ao Deus não enganoso,
único princípio admitido, está fundada nos resultados obtidos na ciência.
Nunca, com efeito, temos comprovado nada que nos demonstre no fundo da
natureza um demônio enganoso”. 10 Foram necessários vários milênios de
civilização judaico-cristã para estabelecer a natureza como princípio não enganoso, que se formaliza no discurso cartesiano.
O problema de Schreber é que ele mora num discurso que exige esse
Deus verdadeiro e é aqui que Deus o engana. O problema do colonizado se
instala quando começa a comprovar que seus deuses rateiam e que os novos e brilhantes deuses recém-chegados mentem em nome de um Deus que
não mente.
FRAGA, P. D. “No limite”...
“NO LIMITE”:
DARWINISMO SOCIAL E IDEOLOGIA DO CONTROLE 1
Paulo Denisar Fraga2
“A idéia de que o mundo quer ser enganado tornou-se mais verdadeira do que, sem dúvida, jamais pretendeu ser”.
(Theodor Adorno e Max Horkheimer)
A
Rede Globo apresenta “No limite”, seu mais novo sucesso televisivo,
na verdade uma versão tupiniquim do programa “Survivor” (Sobrevivente), da CBS americana.
A notória aceitação do programa pelo grande público poderia sugerir
que esse é o único critério para avaliá-lo, com aplausos. Realmente, como
tudo que a indústria cultural fabrica, “No limite” parece imperiosamente simpático. Mas uma rápida análise crítica do seu conteúdo já revela o seu caráter instrumental, a serviço de formas refinadas de controle dos indivíduos, e
da perpetuação das condições sociais geradas pela dominação.
O enredo do programa não só é expressão nua e crua do modo de vida
da sociedade capitalista, como também reprodução consciente e ativa da
ideologia que lhe corresponde. A força dessa ideologia não está no que ela
diz, mas na sutileza do que sugere e inculca homogênea e sistematicamente. Por isso, é preciso dissolver o fetiche da imagem perfeita e compacta
para vislumbrar alguns dos seus traços manipuladores e entender a natureza
regressiva da ideologia que perpassa essa série.
Lidando não com atores ou manchetes da vida real, o apelo realista do
programa, que lhe confere sucesso, corre por conta de duas equipes, que
sob situações predeterminadas, competem entre si num jogo cujos desafios
10
LACAN, Jacques. Seminário 3, Las Psicosis. Cap.”De un Dios que engaña y de uno que no
engaña”. Buenos Aires : Paidós, 1984, p. 95-8.
66
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 84, out. 2000
1
Texto originalmete publicado no Caderno Cultura do Jornal Zero Hora, em 26/08/2000
Professor do Departamento de Filosofia e Psicologia da UNIJUÍ, RS
2
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 84, out. 2000
67
SEÇÃO DEBATES
FRAGA, P. D. “No limite”...
implicam diretamente sobre as condições de sua existência, tais como alimentação e abrigo. Como uma espécie de paródia do trágico, o programa
familiariza-se com o público pela reprodução imagética de uma noção mais
ou menos comum à vida social em crise: a de que viver tornou-se um desafio.
“No limite” realiza a sublimação estetizada do dilaceramento da vida
humana na sociedade capitalista. Mas, no sistema da indústria cultural, toda
sublimação é repressiva, porque é distração da sensibilidade crítica em favor
do convite à diversão com formas variadas do sofrimento humano. A alma do
programa é a competição, hiperpotencializada pela promessa ilusória de que
a escalada da fama está ao alcance de qualquer um. Mas nele tudo está
muito certinho. Os que perecerem no caminho é porque se mostraram menos “aptos”. Afinal, a concorrência dá a todos a sua chance, já que ela,
como manifestação da “liberdade”, nunca tolhe o “justo” lugar dos “mais capazes”. É a estetização do darwinismo social, perfectibilização reacionária
da idéia de que a vida social não é para todos, e que só os “mais aptos”
podem perseverar. É por isso que no topo da pirâmide de “No limite” só cabe
um único indivíduo, assim como no capitalismo só cabe uma classe social.
Mas “No limite” não se deixa flagrar facilmente. Comporta em si indivíduos dos mais diferentes estratos sociais. A sugestão é de que o problema
não está no sistema da desigualdade social, e que a miséria não é questão
de revolução, mas de vontade própria e determinação individual. É assim que
o belo cenário natural, a utilização de uma linguagem com termos nativos da
língua guarani, e o reconhecimento das equipes como Sol e Lua, astros da
natureza, correspondem à exigência liberal de naturalização da concorrência, ao mesmo tempo que recalcam a compreensão dos conflitos sociais
como resultado das desigualdades da sociedade de classes.
Na hora de decidir quem sai do grupo após uma derrota, cada um que
vota justifica-se entre a acusação e o lamento, espécie de autodefesa para
espiar a razão de todos os problemas na figura singular daquele outro indivíduo, tudo seguindo a cega e mórbida lógica de que o sistema como um todo
jamais pode ser questionado. Os telespectadores sentem-se realizados na
exclusão do “mauricinho”, do “mandão”, e torcem pelos componentes mais
humildes e solidários do programa. Não se percebe que isso funciona psico-
logicamente como uma válvula de escape para a qual o sistema canaliza a
insatisfação social, oferecendo o descarte individualizado de alguns dos seus
efeitos, enquanto desvia a atenção do conjunto de suas causas. Na inquisição
do indivíduo sabota-se o próprio sentimento da indignação humana, para que
esta nunca ouse se alçar à imaginação sob a forma do coletivo.
Porém, o ritual pareceria ser democrático; afinal de contas, as pessoas votam. Claro, a indústria cultural sempre precisou sustentar a ilusão do
respeito à liberdade de escolha para esconder que fabricou o próprio consumidor ao manipular o homem pela raiz, ou seja, na elaboração de suas mais
íntimas necessidades. É assim, como disse Marcuse, que “sob o jugo de
um todo repressivo, a liberdade pode ser transformada em poderoso instrumento de dominação”, já que “o alcance da escolha aberta ao indivíduo não
é o fator decisivo para a determinação do grau de liberdade humana, mas o
que pode ser escolhido e o que é escolhido pelo indivíduo”3. Ora, no interior
do “ritmo de ferro” dos programas da indústria cultural, ninguém escolhe
livremente nada, pois tudo já está previamente calculado, das perguntas às
respostas. Afinal, como escreveram Adorno e Horkheimer, “só a vitória universal do ritmo e da reprodução mecânica é a garantia de que nada mudará,
de que nada surgirá que não se adapte”4.
O fato de ser um indivíduo aquele que vencerá a competição de “No
limite” não significa nenhuma afirmação da individualidade. Pelo contrário, é
expressão concreta da negação da humanidade como gênero, pois pressupõe a eliminação de todos os outros em vista de um. De fato, a indústria
cultural, como advertiram Adorno e Horkheimer, só realiza o homem como
ser genérico maldosamente, onde, sob o achatamento das diferenças individuais, “cada um é tão somente aquilo mediante o que pode substituir todos
os outros: ele é fungível, um mero exemplar”. Assim, não interessa quem
fique ou quem saia, pois todos já estão reduzidos a engrenagens da mesma
máquina. A expectativa sobre quem vai sair ou vencer é vazia. Não obstante,
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 84, out. 2000
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 84, out. 2000
68
3
MARCUSE, H. A ideologia da sociedade industrial. 6.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 28.
ADORNO, T., HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. 7.ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1997, p. 126.
4
69
SEÇÃO DEBATES
SILVA, I. P. da. O lugar simbólico do pai.
é ostentada com força total, pois dessa tensão depende a eficácia do sistema em canalizar a atenção do público para a sua forma pré-fabricada de ver
o mundo, finalidade perante a qual a alegada preocupação com os índices de
audiência não passa de meio e disfarce.
O método de “No limite” está inscrito em um processo mais amplo de
consolidação progressiva da vida administrada, em que a diversão sádica
com a especulação dos limites e mazelas da vida privada do outro carrega
um veio totalitário. Não é à toa que a idéia das webcâmeras da internet, que
transmitem 24 horas por dia a vida de algumas pessoas, é o mesmo método
de cobertura que garante o sucesso de “No limite”, e encontra a sua inspiração original no Grande Irmão, o ditador do livro/filme 1984, de Georg Orwell,
cujo olho eletrônico vigiava ininterruptamente a vida cotidiana das pessoas.
Eis um dos motivos pelos quais a apologia acrítica dos teóricos do deslumbramento não é suficiente para esconder os aspectos regressivos da internet,
os quais reatualizam toda a força crítica do conceito frankfurtiano de indústria cultural.
Enquanto cidades espalham câmeras por todos os lados, estrategistas projetam uma vida urbana em que os indivíduos seriam monitorados por
cartões, que usariam para acessar todo e qualquer lugar, desde a porta de
suas casas. Mas, a melhor fórmula de controle ainda é rebaixar a cultura ao
extremo de transformar o sofrimento em diversão. A indústria cultural está
apenas inculcando formas subjetivas de diversão, que, quando saírem completamente da virtualidade para a vida real, terão arregimentado tantas tendências irracionais que a sociedade inteira salivará diante do controle totalitário.
70
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 84, out. 2000
O LUGAR SIMBÓLICO DO PAI
Ieda Prates da Silva
P
ropomos algumas considerações para pensar sobre o lugar paterno
na família e na sociedade, nos dias atuais. Quando falamos de lugar
paterno, não nos referimos ao pai de carne-e-osso: ao pai biológico,
ou ao pai adotivo, ou ao padrasto, ou ainda a quaisquer outras formas sob as
quais um homem venha a exercer a paternidade. E sim, estamos querendo
situar o que vem a ser o lugar de um pai, ou seja, sua função. Pois se trata
de que algo funcione ali.
Em nosso trabalho, temos nos deparado no dia-a-dia, tanto da clínica,
quanto da instituição escolar, assim também como nas notícias veiculadas
pela mídia, com um desmoronamento das funções necessárias à sustentação da trajetória que leva uma criança (passando pela crise da adolescência)
à condição de adulto. Há algo que tem fracassado aí, muito insistentemente
na contemporaneidade. Exemplos deste fracasso invadem as escolas, sob
a forma de falta total de limites, da recusa do sujeito de responsabilizar-se
por seus atos, da desvalorização da palavra – seja do aluno, seja do professor –, do incremento de reações agressivas e delinqüentes. A supervalorização
da aparência e dos bens de consumo são igualmente exemplos deste fracasso simbólico.
Mas, o que tudo isto tem a ver com o pai? Nada, poderíamos dizer, ou
quem sabe, muito pouco.
Trata-se justamente da diferença entre a figura real e a função simbólica do pai. Ou seja, não importam as idiossincrasias pessoais, as qualidades, os defeitos, os erros e acertos deste ou daquele pai. A função está para
além: para que um pai funcione, do ponto de vista simbólico, é preciso que o
seu lugar esteja sustentado, na família e na sociedade. Mas o que sustenta
este lugar?
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 84, out. 2000
71
SEÇÃO DEBATES
RESENHA
Temos visto que o lugar paterno na família está freqüentemente desvalorizado, ou ausente, enfraquecido ou totalmente anulado, por coisas do tipo:
“ele é um bêbado”, “ele está desempregado”, “ele ganha menos do que a
mulher”, “ele bate nos filhos”, ou então, “ele só trabalha, não ajuda em casa,
nunca está com a família”, etc. Quer dizer, o pai não pode ocupar seu lugar,
porque ele é humano, cheio de erros e falhas. O pai passa a valer por si, e
não por algo que ele represente. Então, ou ele é um modelo de homem bem
sucedido e moderno, portador das insígnias que valem no seu tempo (por
exemplo: ter carro, dinheiro, bom emprego e dividir as tarefas da casa), ou
ele não é nada, um joão-ninguém que não tem direito a ocupar o lugar paterno e a se responsabilizar por ele.
O lugar do pai, na família e na cultura, está sustentado pelo discurso.
Isto é, pelo lugar que o pai ocupa no discurso familiar e social. Isto se refere
à função estrutural que leva um filho a separar-se do corpo e do desejo da
mãe, a crescer, a querer aprender, a poder lidar com as frustrações, a lutar
contra os limites – pessoais ou sociais –, a restringir seus interesses em
nome de um coletivo. Enfim, a função simbólica do pai não é nada mais,
nada menos, do que aquilo que nos habilita a viver em sociedade.
É bastante difícil este equilíbrio entre o exercício e o desfrute de nossa singularidade, de nossos desejos e prazeres, e a convivência grupal. Freud,
em vários textos (principalmente em Psicologia das massas e análise do eu
e Mal-estar na civilização), nos alertou sobre essa dificuldade.
É na medida que o pai representa algo para além dele, ou seja, que
está representado no discurso como portador de um determinado valor ou
saber, que ele poderá transmitir para o filho um lugar de reconhecimento, de
filiação. A filiação não se refere só aos progenitores, mas também em relação a um nome, a uma história, a uma língua, a uma cultura, enfim, insere o
filho em uma cadeia simbólica na qual ele poderá se reconhecer e fazer algo
de novo, de seu, a partir desta tradição que ele recebeu. O filme “Central do
Brasil”, de Walter Sales, é uma ilustração poética e extremante tocante do
que vem a ser esta função simbólica do pai, que transcende a figura do pai
de carne-e-osso.
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IMAGINÁRIAS MAS NÃO INVISÍVES
PESAVENTO, Sandra J. O imaginário da cidade: visões
literárias do urbano. Porto Alegre : Ed. Universidade, 1999.
393p.
G
ostaria de conhecer Paris? Sim? Que
bom, neste caso podemos convidar alguém que nos pode mostrá-la, digamos,
de uma maneira que dificilmente conseguiríamos
percebê-la. Tenho um amigo, Baudelaire, que,
com certeza, adoraria fazê-lo; ele conhece Paris como ninguém. O quê? você prefere Balzac, Hugo... ou ainda Zola? Tudo
bem, deixo você escolher agora. Quando estivermos voltando e passarmos
pelo Rio de Janeiro não abrirei mão de Machado! Ah, claro, desde que você
não deixe de convidar Saint-Hilaire quando estivermos novamente em Porto
Alegre. Na verdade, nem mesmo Porto Alegre me é tão familiar quanto penso.
Bem, um pouco perplexo, talvez você pense que o texto acima esteja... de leve desagregado; bastante, para falar a verdade. Você teria razão se
não pudéssemos nos valer da literatura para tentarmos entender um pouco
melhor o mundo em que vivemos. Aqui, especificamente, o espaço urbano.
Esta é, ao menos, a proposta da professora do Departamento de História da
UFRGS e autora consagrada, Sandra Jathay Pesavento, em O imaginário da
cidade – visões literárias do urbano.
Partindo da noção de que nossa contemporaneidade é atravessada
pela primazia das imagens construídas enquanto representações, a literatura seria, no dizer de Sandra, um olhar privilegiado, “capaz de conferir sentidos e resgatar sensibilidades aos cenários citadinos”. O escritor aí, na condição de espectador/criador de uma cidade do pensamento, de uma cidade
que não se resume a seus prédios, plantas e documentos, mas que emerge
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 84, out. 2000
73
RESENHA
RESENHA
enquanto vida, enquanto sentimento: “O espaço urbano, na sua materialidade
imagética, torna-se, assim, um dos suportes da memória social da cidade”.
Não devemos portanto, perder de vista que a história é também uma forma
de ficção; uma construção que se propõe a apresentar aquilo que seria da
ordem de uma realidade possível.
Espaço: Paris, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Tempo: do final do século XVIII ao início do século XX. Período e espaços urbanos escolhidos por
Sandra, que, cruzando registros históricos e literários, remonta cenários dificilmente imaginados por nós e impossíveis de serem reproduzidos aqui, em
umas poucas linhas. Entretanto, para dar idéia do que se trata, uma pequena preciosidade de Victor Hugo em Notre Dame de Paris: “le mur murant
Paris rend Paris murmurant” · É preciso dizer mais? Passamos de uma
cidade fétida, tomada por ratos, aos grandes bulevares da capital do mundo,
no século XIX. Cidade vício coexistindo com a cidade virtude; luz e sombra,
metrópole da multidão e da solidão. Sandra não perde de vista Walter Benjamin e a possibilidade das “contra-imagens rompendo o contínuo da história”
(...) “dando margem à inteligibilidade pelo contraste”. A Paris de Balzac,
Victor Hugo, Baudelaire, Zola e tantos outros, com certeza são muito distintas e repletas de contradições que nem mesmo o cartesianismo urbano do
Barão de Haussmann1 pôde dar conta.
O que dizer então de um Rio de Janeiro que praticamente entra no
século XIX marcado fortemente por um traço colonial, tomado simbolicamente como defasagem e atraso cultural? De uma cidade que diferente de muitas outras da América Latina não foi planejada, concebida idealmente2? A
transferência da Corte Portuguesa em 1808 para o Rio veio justamente acen-
tuar a precariedade da cidade. As transformações de Paris produziriam seus
efeitos além mar. Não tínhamos um Haussmann, mas um Passos formado
pela École des Ponts et Chaussées 3!
Bem, finalmente chegamos a Porto Alegre, “nascida entre a guerra e
a paz”, murada sem ter sido medieval, capital fronteiriça e forjadora de uma
identidade “calcada nos valores da guerra, da honra e da bravura” e acrescida
ainda da estabilidade dos casais açorianos. Fora algum ufanismo progressista mais isolado, o que se via com certa freqüência era o lamento pelo
provincianismo excessivo de Porto Alegre. Mesmo os esforços de José
Montaury em modernizar a cidade no início do século, eram ridicularizados e
minimizados: sonhava-se com Buenos Aires, Rio de Janeiro, Paris... e acordava-se na “grande aldeia provinciana”. Coisas de um tempo passado. Ou
será que não?
Enfim, um livro que nos diz de Paris, do Rio de Janeiro e de Porto
Alegre, mas que nos instiga a pensar Pelotas, São Gabriel, Santo Ângelo...
e onde mais quer que encontremos a Cidade. Lembrando Ítalo Calvino em
Cidades Invisíveis, “As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que
suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas
as coisas escondam uma outra coisa”.
Walter Firmo de Oliveira-Cruz
1
O Barão de Haussmann foi prefeito de Paris por 17 anos (1853-1870), tendo sido responsável por grandes transformações na cidade.
2
A exposição dos 500 anos do Brasil, no Museu de Arte de São Paulo – MASP, bem
demonstra a forte preocupação existente no planejamento urbano. Temos aqui no RS o
exemplo de São Miguel das Missões.
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3
Talvez possamos brincar um pouco com as palavras, lembrando que Haussmann, em
alemão é Homem-casa, e que Passos estudou na escola de pontes e vias.
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RESENHA
RESENHA
A ADOLESCÊNCIA
CALLIGARIS, Contardo. A adolescência. Coleção Folha
Explica. São Paulo : Publifolha, 2000. 81p.
A
Publifolha, empresa editorial ligada à
Folha de São Paulo, lançou uma coleção
nos moldes do que foi, na década de 80,
a coleção Primeiros Passos da editora Brasiliense. Era uma coleção dirigida ao público leigo
que desejasse uma iniciação a algum assunto
contemporâneo e árduo. Foi um sucesso e faço
votos que FOLHA Explica, essa nova coleção,
também o seja. Quem dirige a coleção é Arthur Nestrovski.
Um dos primeiros livros dessa coleção é sobre a adolescência e coube a tarefa ao psicanalista Contardo Calligaris. O livro tem o tom da série, é
para leigos.
Octave Mannoni dizia que era equivocado deixar a psicoterapia nas
mãos de jovens analistas, pois é necessário ser muito experiente para saber
fazer esse trabalho. É preciso ser um grande analista para saber entrar e sair
da psicanálise conforme a necessidade do paciente, ou, no caso dos textos
de Calligaris, com a do leitor. Como nos artigos que escreve na Folha de São
Paulo, Contardo visita esse tema controverso com leveza.
A adolescência é tratada, muitas vezes, como se fosse uma patologia
que acometesse aos outros, da qual se pudesse passar ao largo, na qual o
autor finge que a sua, ou a de seus filhos, teria sido mais “normal”. Temas
como a delinqüência ou a toxicomania são abordados como se fosse possível transpor uma adolescência sem algum tipo (por mais pálido que seja) de
experiência delinqüente ou etílico-toxicômana.
Não poucos bons psicanalistas já trabalharam e publicaram, empenhados na árdua tarefa de explicitar a operação adolescente como um esta-
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 84, out. 2000
do inevitável e intrínseco de ser no mundo contemporâneo, separando o fenômeno da banalidade biologicista a que fora entregue. Muitos destes inclusive
descreveram a adolescência de uma forma humana (sem sirenes e outros
alarmes tocando), como uma crise de crescimento e transição.
Este trabalho não traz inovações teóricas, mas se mostra uma síntese de grande utilidade aos analistas. Faz também uma boa amarração da
questão da adolescência com uma leitura muito particular que Contardo faz
do individualismo.
Além disso, o interesse deste texto está na linguagem, na cadência e
no público alvo, ou seja, qualquer um. Não é fácil desenvolver teses como a
de que o adolescente vive de acordo com o recalque de seus pais, que encarna os ideais destes e de seu tempo, dizer que “a adolescência é a interpretação dos sonhos dos adultos”. Isso pode até ser dito, mas o difícil é
fazer mais do que provocar a compreensão do leitor, é fazê-lo balançar a
cabeça enquanto está lendo, num gesto inconsciente de ver-se interpretado
pelo livro.
Assim como o terapeuta, que sabe o momento de colocar o analista
em cena (e o de tirá-lo), o escritor deve e pode fazer o mesmo: fazer o leitor
oscilar da posição do curioso para a de sujeito do que lê. Afinal, nunca lemos
algo à toa, as escolhas de leitura são tão sintomáticas como qualquer outra
coisa.
A adolescência é uma espécie de vivência-valise dos grandes temas
de quem pensa o ser no mundo hoje. Por isso não estranha que Contardo se
ocupe deste tema: “a adolescência é o ideal coletivo que espreita qualquer
cultura que recusa a tradição e idealiza a liberdade, independência e insubordinação”, lembra o autor sobre a pertinência do assunto. Impossível não
encontrar aí a definição de todo e qualquer um como pai e filho desta época.
Muito mais efetivo do que um longo tratado teórico sobre a questão do
individualismo, este pequeno livro (em tamanho) faz a grande operação analítica de encharcar o leitor com uma elaboração que deixa de ser teórica,
para ser tocante, envolvente.
Da adolescência sabe-se qual é a porta de entrada, ou seja, as trans-
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RESENHA
AGENDA
formações pubertárias, mas pouco de por onde é a saída, pois não temos
uma definição clara do que seja ser adulto. Entre essa maturação biológica
e o reconhecimento como sujeito na sociedade, situa-se uma moratória,
conceito retomado de Erik Erikson por Calligaris. Numa época de poucos
parâmetros e muitos ideais inatingíveis, a infinitude desse processo soa como
algo de muito familiar.
Podemos até confundir individualismo com egoísmo e pensar que somos diferentes, altruístas, acima das fraquezas destes novos homens tão
sem consistência, mas não neste livro, ali nos vemos. Tanto quanto o autor
se permite ser próximo do leitor, há um convite para um exame das mazelas
de ter nascido hoje e não ontem, de termos sido adolescentes. A adolescência em questão é a nossa.
Diana Lichtenstein Corso
OUTUBRO – 2000
Dia
Hora
------26 a 29
Local
Reitoria da UFRGS
30 e 31
2, 9, 16,
23 e 30
4, 11,
18 e 25
5
5
7
------20h30
Reitoria da UFRGS
Sede da APPOA
20h30min
Sede da APPOA
21h
20h30min
10h
Sede da APPOA
Sede da APPOA
Novo Hamburgo
7
14h
Caxias do Sul
9 e 23
21h
Sede da APPOA
10
16 e 23
17
21
20h30min
20h30min
20h30min
9h-14h
Sede da APPOA
Sede da APPOA
Sede da APPOA
Sede da APPOA
À confirmar
Sede da APPOA
Atividade
Congresso de Psicanálise da APPOA
Brasil: descoberta v invenção
Colóquio: Questões sobre o Outro
Seminário “A técnica psicanalítica”- Responsável: José Luiz Caon
Seminário “O método psicanalítico”- Responsável: José Luiz Caon
Reunião da Mesa Diretiva
Reunião da Comissão de Biblioteca
Seminário “A psicossomática: interdisciplina
e transdiciplina” - Responsável Jaime Betts
Jornada Preparatória ao Congresso e Colóquio: Psicanálise e Literatura.
Seminário “O trabalho das passagens...” Responsáveis: Ana Maria da Costa, Edson
de Sousa e Lucia Serrano Pereira
Reunião do Serviço de Atendimento Clínico
Reunião da Comissão do Correio da APPOA
Cartel Preparatório ao Congresso
Seminário “A determinação literária do sujeito moderno” - Responsável: Maria Rita Kehl
Seminário “A topologia fundamental de
Jacques Lacan” - Responsável: Ligia Víctora
PRÓXIMO NÚMERO
TESTEMUNHOS DE UM PERCURSO DE ESCOLA
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 84, out. 2000
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 84, out. 2000
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Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events
in the last decade. London, Hogarth, 1992.)
Criação da capa: Flávio Wild - Macchina
ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE
GESTÃO 1999/2000
Presidência - Alfredo Néstor Jerusalinsky
a
1 . Vice-Presidência - Lucia Serrano Pereira
2a. Vice-Presidência - Maria Ângela Brasil
1o. Tesoureiro - Carlos Henrique Kessler
2a. Tesoureira - Simone Moschen Rickes
1o. Secretário - Jaime Alberto Betts
2a.Secretária - Marta Pedó
MESA DIRETIVA
Ana Maria Gageiro, Ana Maria Medeiros da Costa, Ana Marta Goelzer Meira,
Cristian Giles, Edson Luiz André de Sousa,Gladys Wechsler Carnos,
Ieda Prates da Silva, Ligia Gomes Víctora, Liz Nunes Ramos,
Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Mario Fleig, Robson de Freitas Pereira,
e Valéria Machado Rilho.
EXPEDIENTE
Órgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre
Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-150 Porto Alegre - RS
Tel: (51) 333 2140 - Fax: (51) 333 7922
e-mail: [email protected] - home-page: www.appoa.com.br
Jornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956
Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.
Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (051) 318 6355
Comissão do Correio
Coordenação: Maria Ângela Brasil e Robson de Freitas Pereira
Integrantes: Ana Laura Giongo Vaccaro, Francisco Settineri, Gerson Smiech Pinho,
Henriete Karam, Liz Nunes Ramos, Luis Roberto Benia, Luzimar Stricher,
Marcia Helena Ribeiro e Maria Lúcia Müller Stein
S U M Á R I O
EDITORIAL
1
NOTÍCIAS
2
SEÇÃO TEMÁTICA
16
TERRA À VISTA COLUNAS
DE PORTO SEGURO
Contardo Calligaris
17
A POSSESSÃO COMO UM IDIOMA:
HERMENÊUTICA DE UM CASO DE
“POSSESSÃO POR EXU” EM UMA
CIDADE DO INTERIOR DA BAHIA
Jorge Alberto Bernstein Iriart
24
MAIS ALÉM DAS MONTANHAS
TUPI OR NOT TUPI:
A PALAVRA-ALMA
Marcelo Cavalheiro
40
ETERNOS APRENDIZES DE
DRUMMOND
Maria Rosane Pereira Pinto
45
O PRIMEIRO CINEASTA
Ana Maria Medeiros da Costa
50
LABIRINTOS DE HÉLIO OITICICA
E OUTROS LABIRINTOS
BRASILEIROS
Élida Tessler
55
PAS DE DEUX, PAS DE DIEU
Alfredo Jerusalinsky
61
SEÇÃO DEBATES
67
”NO LIMITE”: DARWINISMO SOCIAL
E A IDEOLOGIA DO CONTROLE
Paulo Denisar Fraga
67
O LUGAR SIMBÓLICO DO PAI
Ieda Prates da Silva
71
RESENHAS
73
“IMAGINÁRIO DAS CIDADES”
73
“A ADOLESCÊNCIA”
76
AGENDA
79
N° 84 – ANO IX
OUTUBRO – 2000
BRASIL: DESCOBERTA v INVENÇÃO
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“homem cordial” caracteriza o bem sucedido do laço social no Brasil