1.
Não queria ser pomposa ou resvalar para uma erudição, que não tenho como
devia, nesta apresentação que vou fazer. Mas trago Dante e a Divina Comédia
para começar a falar convosco, esta tarde. Começa assim o longo poema, de 14
mil versos, que o poeta italiano escreveu no toscano que todos podiam entender,
e não em latim, apenas acessível a uma elite.
“No meio do caminho em nossa vida, eu me encontrei por uma selva escura porque
a direita via era perdida...”
Este ano, tive a sorte de visitar a casa de Dante, em Florença. De engrossar o
número de pessoas que circunda a velha casa de pedra, e que murmura num
italiano titubeante:
“Nel mezzo del cammin di nostra vita mi ritrovai per una selva oscura, ché la
diritta via era smarrita.”
Duas ou três portas abaixo, no mesmo bairro sinuoso, fica a capela onde Beatriz
rezava, e onde Dante a via, fugazmente.
Há uma estranha força nesses caminhos, e ainda mais num gesto insólito a que se
dedicam boa parte dos que visitam o local: escrevem notas, preces, dedicatórias
a Beatriz, que depositam num cesto de verga. Os bilhetes podem ser lidos por
outros, uma vez que não são lacrados ou depositados num contentor fechado.
São frases íntimas, como que tiradas de um diário, qualquer coisa que uma
pessoa escreve a si mesma fazendo um percurso enviesado e passando por
figuras inspiradores.
Juntei-me ao grupo dos que escrevem a si mesmos escrevendo a Beatriz. E, além
disso, escrevi a Beatriz e a Dante para lhes dizer como os meus caminhos se
tinham cruzado com os seus.
Foi através de Maria Filomena Molder. Simbolicamente quis juntar o nome da
minha professora àquele processo efabulador e àquele lugar.
Podem fazer troça à vontade. Digo sem pejo que escrevi numa nota para duas
criaturas quase mitológicas, numa igreja medieval, para selar a minha devoção, e,
mais do que tudo, a minha gratidão, por uma professora. O meu mundo é o das
fábulas. Acredito no seu poder gerador, de vida, e, sobretudo, de felicidade. É
neste tipo de rituais que me sinto eu.
2.
Vou deter-me no primeiro verso do poema.
Eu estava num ponto do caminho que já não é o começo quando fui aluna de
Maria Filomena Molder. Excepcionalmente, nesse ano, ensinou Filosofia
Medieval no segundo semestre. Escolheu a Divina Comédia como núcleo a partir
do qual iríamos estudar o pensamento medieval. Conseguem imaginar o
assombro de pensar o mundo a partir da poesia, da perplexidade, da
inquietação? E conseguem imaginar o que isso representa quando estamos
acompanhados de uma professora que nos leva pela mão, bem soltos, e não bem
presos, e que nos mantém presos por causa da sua força magnética, e que nos
atira constantemente para a liberdade? É uma condução imperiosa e subtil.
Dante encontrou no poeta Virgílio, que ele amava, o seu guia e tutor. Antes de
mais, uma coisa que aprendi: a poder usar a palavra amor, referindo-me, por
exemplo, a poetas, indo ao encontro do significado íntimo da palavra amor. E
pondo atrás das costas a carga específica que ela tem na vida de todos os dias.
Ama-se um texto, um autor como se ama uma mãe ou um marido? Claro que não.
Evidentemente falamos de diferentes planos de relação. Mas a acepção da
palavra é no essencial a mesma. E tem que ver com o que se intromete na nossa
vida e nos faz ser outros. Com o que nos muda e se torna parte constitutiva de
quem somos.
Virgílio, dizia eu, foi o pai putativo que acompanhou Dante nas trevas da selva
oscura. Mutatis mutandis, eu encontrei em Maria Filomena Molder essa certeza
de estar segura, o desafio, uma figura tutelar para a minha viagem. Evocá-la, e às
suas aulas, significa trazer uma miríade de pensadores, artistas, escritores,
pessoas que nos ajudam a sentirmo-nos menos sozinhos na nossa selva oscura.
Significa abrir portas e portas, sentir estranheza e sentir familiaridade. Significa
aquilo que Caetano Veloso sintetizou na canção Livro: “Porque a frase, o conceito,
o enredo, o verso (e, sem dúvida, sobretudo o verso) é o que mais pode lançar
mundos no mundo”
Não imagino que um professor possa ser melhor do que isto. Não imagino que a
escola possa ser melhor do que isto.
Um professor pode ser uma pessoa fulcral na nossa vida. Talvez deva ser uma
pessoa fulcral na nossa vida. Um interlocutor privilegiado. Alguém a quem
perguntar. Alguém que nos instala na vontade de compreender. Sobretudo,
alguém que nos ensina a pensar. Talvez seja isto a Filosofia.
3.
Do que estou a falar, quando devia falar da FCSH, que assinala os seus 36 anos,
quando devia falar da especificidade desta faculdade, é de mim e dos meus
encontros. Do que também fez de mim quem sou. É nesta apresentação,
heterodoxamente política, mas política, que falo de educação, do que entendo
que deve ser a preocupação primeira de uma faculdade. Numa linha, de criar nos
seus alunos uma apetência pelo saber, uma formação que é, para começar, e
como não pode deixar de ser, incipiente, mas que contém em si o gérmen da
curiosidade, também o da incompreensão, e os alicerces que servirão para a
construção do edifício. Numa palavra, pensar.
Esse processo, meticuloso, complexo, laborioso, não pode
professores excepcionais, sem uma composição criteriosa dos
Há encontros que mudam uma vida, como já expus. E se um
tocado, desta maneira fulminante, por um professor, há já
preciosa que é resgatada. Que é salva.
ser feito sem
departamentos.
aluno se sentir
qualquer coisa
Que uma vez, ao menos, se dê uma epifania assim na vida de uma pessoa.
Que maravilha se isso acontecer na faculdade. E que maravilha se isto acontecer
numa universidade pública. E que maravilha, ainda, se aos professores é dada a
liberdade de ensinar assim. Sou dos que acreditam que um país só é país se tiver
serviços públicos de qualidade acessíveis a todos. Saúde e Educação, para
começar. Seria bom que os nossos governantes percebessem isto, que para mim
é elementar. Urge acabar com o desinvestimento na educação.
Gostava que não entendessem o que disse até aqui como um longo preâmbulo
para falar agora como falam as pessoas que mandam e fazem avançar o mundo.
O que faz avançar o meu mundo tem outros vocábulos na sua origem. E se falei
até agora, mais do que tudo, de uma professora, é porque ela encarna
grandemente isto que penso que uma faculdade deve ser. Mas acima de tudo está
a Filosofia, essa disciplina que no seu étimo quer dizer amor ao saber, e que nos
serve de instrumento para compreender o mundo, para nos compreendermos no
mundo. Acima de tudo está o aprender a pensar criticamente, a atitude de
interrogação e de questionamento. Estes são os nossos tesouros.
4.
Talvez deva agora dizer o que nos discursos canónicos vem no princípio. Dizer
da minha relação com a FCSH.
Eu não fui uma aluna regular nem extraordinária. Eu tinha quase 30 anos quando
me mudei do norte para Lisboa e para uma casa não muito longe da faculdade. Já
trabalhava há uns anos, já tinha feito rádio, televisão, imprensa.
Não tinha uma formação académica, até então. Entrei em Coimbra em Direito,
com 18 anos, e com média de 18. Acho que foi disso que gostei. De ter entrado
com média de 18. Mas, para ser sincera, o Direito não me interessava para nada.
E hoje acho que não seria possível tirar um curso de Direito. Não é a minha
cabeça. Não é o meu modo de me apropriar das palavras, dos conceitos e
interpretar o mundo. Não fiz uma única cadeira em Direito.
Quando decidi retomar os estudos, não tive dúvida de que não estudaria Ciências
da Comunicação, mas sim Filosofia. Melhor: ainda hesitei e pensei se não poderia
ser Estudos Portugueses... Sem grande resistência, foi Filosofia.
Porquê, se já trabalhava na área da comunicação? Porque intuí o que hoje posso
argumentar com firmeza: a Filosofia ensina-nos o mais precioso e basilar dos
procedimentos: a pensar. A partir daqui, como dizia o Caetano, pode-se lançar
mundos no mundo.
Sempre que falo com jovens que querem ser jornalistas e me pedem conselhos
sobre a melhor forma de prosseguir os seus intentos, falo da importância da
palavra, como célula primeira. É no pensar que nos fazemos humanos. É na
palavra, burilada, que ilumina o mundo onde antes era escuro, que nos fazemos
pessoas.
Que me perdoem os professores de Ciências da Comunicação, mas não percebo
porque se esforçam tanto os alunos para conseguir uma média altíssima e entrar
nesse curso quando podem fazer a diferença e adquirir competências singulares
se estudarem Filosofia ou Estudos Portugueses. As regras do comunicar são
importantes e há que aprendê-las, mas antes disso vem a relação com a palavra.
Que, na minha imaginação, deve ser amorosa e atenta. O resto aprende-se, e
muito se aprende fazendo.
5.
Também devia ter começado por dizer que não fui aluna da FCSH. Eu sou aluna
da FCSH. Actualmente frequento o mestrado em Filosofia, variante Estética.
Estou a ultimar uma tese que tem por objecto a afirmação e a negação da vida no
livro Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis. Ou seja, estou a
fazer um mestrado em Filosofia incidindo sobre literatura brasileira. Mais uma
vez, faço a apologia do cruzamento de caminhos, da multiplicidade de
abordagens. De uma coisa a que talvez chamem numa linguagem que não é a
minha transdisciplinaridade. Mas aceito e adopto a palavra.
O que eu disse de Maria Filomena Molder é em larga medida extensível aos meus
orientadores neste processo, os professores João Constâncio e Abel Barros
Baptista. O pudor impede-me de ser tão efusiva como posso ser com a Prof.
Molder, agora que se reformou e sei que não nos vamos voltar a encontrar na
qualidade de professora-aluna. Sempre ouvi dizer que dar graxa é foleiro. Mas
tenho de dizer que é bom encontrar na mesma universidade professores tão
inspiradores, e felizmente, além dos citados, encontrei outros ao longo dos anos.
Só abona a favor da casa.
Confesso que fiquei desapontada quando soube que este ano não tinha aberto
este mestrado. Soube entretanto que se trata, apenas, de uma interrupção. Faço
votos para que ele recomece já no próximo ano e alimente as expectativas de
tantos quanto alimenta as minhas. Se não abrir, venho cá para o ano barafustar, e
com claque ruidosa.
É também num tom ruidoso e caloroso que termino o meu testemunho,
agradecendo o convite para estar aqui e para me juntar à festa.
Bela faculdade! Gosto de fazer parte.
Anabela Mota Ribeiro
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1. Não queria ser pomposa ou resvalar para uma erudição, que não