A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO SOB O VIÉS PROTESTANTE
Luiz Ernesto Guimarães
Orientador: Prof. Dr. Fabio Lanza
RESUMO
A Teologia da Libertação é normalmente associada aos setores progressistas
da Igreja Católica. No entanto, sua elaboração ocorreu primeiramente no
campo protestante e se espalhou para outros ramos do cristianismo, e até
mesmo fora dele. Diante disso, o presente artigo busca analisar como ocorreu
a presença desse pensamento progressista nas igrejas protestantes que
demonstraram, no continente latino-americano, sinais de conservadorismo em
sua grande parte. No processo investigativo, foi selecionada a Conferência do
Nordeste, evento histórico em que a ala protestante progressista evidenciou-se.
A tese de doutoramento de Rubem Alves também foi analisada, em que a
Teologia da Libertação começou a ganhar sistematização teológica e
acadêmica pela primeira vez.
Palavras chave: Sociologia da religião; Teologia da Libertação; Protestantismo.
933
Introdução
A Teologia da Libertação é resultado do processo histórico,
político, social e econômico acontecidos especialmente na América Latina,
vinculado a alguns pensadores e religiosos cristãos que contribuíram para a
reelaboração
de
um
pensamento
teológico
que
possuísse
maior
contextualização com o continente latino-americano. A teologia “tradicional”,
importada dos moldes europeus, já não respondia e nem explicava a realidade
na qual as massas populares viviam – algo que, de fato, nunca aconteceu
efetivamente desde que esta aqui chegou com os primeiros colonizadores.
Na metade do século XX, quando teve início a formulação da
Teologia da Libertação, havia a demanda de uma nova elaboração teológica. O
interesse desses religiosos era fazer com que a classe dominante dos diversos
países latino-americanos não ocupasse o papel principal em contraponto com a
classe pobre e trabalhadora, a maioria da população na América Latina desde
a sua constituição como região colonizada pelos espanhóis e portugueses
católicos.
Uma considerável parte dos religiosos ligados ao pensamento
teológico de libertação está associada à Igreja Católica, mesmo porque possui
um contingente maior na América Latina do que as igrejas protestantes1. O
concílio Vaticano II (1962 – 1965) também teve importante contribuição para
trazer para o campo católico latino-americano uma base para que o
pensamento de libertação desenvolvesse sob um contexto específico.
1
O termo protestante é comumente usado em textos e pesquisas científicas referindo-se aos grupos
religiosos oriundos da Reforma Protestante do século XVI (BELLOTTI, 2010). Diante do crescimento
numérico que o protestantismo vem experimentando na América Latina, várias ramificações foram
surgindo dentro dessas igrejas. A necessidade de caracterizar e distinguir grupos tornou-se necessário: o
termo protestantismo histórico refere-se às igrejas ligadas aos primeiros reformadores, sendo também as
igrejas fundadas há mais tempo, como as igrejas Anglicana, Luterana, Presbiteriana, Batista e Metodista;
o termo pentecostalismo refere-se às igrejas constituídas no Brasil já no início do século XX, como
Congregação Cristã do Brasil e Assembleia de Deus. Há também a utilização do termo neo-pentecostal,
embora não seja aceito unanimemente por pesquisadores e teólogos. Quando esse termo é usado, refere-se
às igrejas mais recentes, como a Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça de
Deus, Renascer em Cristo e a Igreja Mundial do Poder de Deus. Não é objetivo da presente pesquisa
debater acerca dessas nomenclaturas utilizadas. Portanto, a utilização do termo protestante nesse trabalho
busca delimitar o objeto de pesquisa e assim referir-se às primeiras igrejas implantadas no continente
latino-americano.
934
Na América Latina, onde a tensão entre católicos e protestantes
foi maior em relação a outros continentes, não havendo muita aproximação
entre ambos, percebe-se que ao abordar o tema acerca da Teologia da
Libertação, existiu maior diálogo entre esses grupos religiosos, deixando de
lado ressentimentos historicamente existentes.
A adesão por parte de setores protestantes à Teologia da
Libertação, mesmo sendo pequena em relação aos católicos, produziu
repercussão em seu mundo religioso e aqueles que aderiram a esse
pensamento de libertação, correram riscos semelhantes aos católicos, dentro e
fora de suas instituições religiosas – que não chegaram, nem entre católicos,
nem entre protestantes, a tomar uma posição unânime sobre o tema.
A contribuição da sociologia da religião faz-se importante nesse
trabalho, por ser a religião uma das várias vertentes culturais e, portanto,
passível da abordagem sociológica. Os autores clássicos da Sociologia – Émile
Durkheim, Karl Marx e Max Weber - utilizaram o caráter religioso na formulação
do método sociológico, especialmente Max Weber (MARIZ, 2011). De acordo
com Paula Montero, as diversas escolas sociológicas “partem do suposto
comum de que a religião, diferentemente da fé, pode ser objeto de pesquisa
empírica, pois por ser fruto de criação coletiva está sujeita às mesmas regras
lógicas que organizam qualquer fenômeno humano” (MONTERO, 2003, p. 38).
Peter Berger, de igual modo, destaca a importância da religião
no seio social ao afirmar que “toda sociedade é um empreendimento de
construção do mundo. A religião ocupa um lugar destacado nesse
empreendimento” (BERGER, 1985, p. 15).
A principal contribuição de Marx à sociologia da religião, de
acordo com Michael Löwy, foi de que a religião era “simplesmente uma das
formas da ‘produção espiritual’, cuja história não pode ser desvinculada do
desenvolvimento econômico e social global da sociedade” (LÖWY, 1997, p.
161).
935
Marx também percebeu na religião, como fenômeno social, a
possibilidade de atuar sob dois sentidos, diametralmente opostos entre si:
existe a possibilidade de um posicionamento de legitimação do status quo,
proporcionando a manutenção de uma ordem estabelecida, ou pode também
exercer um papel de contradição a essa ordem, atuando junto às classes
sociais desfavorecidas. Assim como Marx, Engels também observou na religião
a sua paradoxal dualidade: “seu papel na sacralização da ordem estabelecida,
mas também, conforme o caso, seu papel crítico, contestatório e até
revolucionário” (LÖWY, 1997, p. 162).
Para analisar o discurso produzido pelos protestantes acerca da
Teologia da Libertação, foram utilizadas as contribuições de Mikhail Bakhtin
(2009) e Eni Orlandi (1999), seja o discurso falado ou escrito, observando o
sentido produzido no texto falado ou escrito. Além da tese de Rubem Alves
(2012), esse artigo também contou com o depoimento do teólogo Júlio
Zabatiero (2012) como fonte primária.
1. A Conferência do Nordeste
O ano de 1962 tornou-se um marco histórico tanto para a Igreja
Católica, quanto para as igrejas protestantes, ao inserir o contexto sóciopolítico desse período na reflexão teológica. Para a Igreja Católica, foi o ano
em que o papa João XXIII deu início ao Concílio Vaticano II, convocado no ano
anterior. Para muitos, foi o início de um novo momento na Igreja,
especialmente ao se tratar de questões de cunho social – embora não tenha
sido esse o único assunto tratado nesse Concílio.
Já no protestantismo, a Conferência do Nordeste ocorrida
também no ano de 1962, tornou-se referência tão importante quanto o Vaticano
II para o catolicismo, guardadas as devidas proporções, embora o seu
reconhecimento pelos fiéis protestantes seja bem menor – pela pequena
ênfase dada normalmente por grande parte das igrejas ao tema político-social.
Entretanto, destaca-se o seu legado transmitido à próxima geração do
protestantismo brasileiro, em especial, àqueles alinhados à esquerda.
936
A Conferência do Nordeste – como ficou conhecida – ocorreu
entre os dias 22 e 29 de julho de 1962, em Recife – PE, nas dependências do
Colégio Agnes Erskine, ligado à Igreja Presbiteriana do Brasil. Esta foi a quarta
reunião organizada pelo Setor de Responsabilidade Social da Igreja da
Confederação Evangélica do Brasil (BURITY, 2011).
De acordo com Joanildo Burity, a Conferência contou com 167
participantes,
representando 14 diferentes denominações
protestantes (entre as quais batistas,
congregacionais, presbiterianos, episcopais,
luteranos,
pentecostais,
reformados,
metodistas livres) e delegados de cinco igrejas
dos Estados Unidos, México e Uruguai, como
observadores. Dezessete estados do país,
incluindo Pernambuco, estavam representados.
Foi, realmente, a maior e mais significativa das
promoções do SRSI, e também a última, já
que, em 1964, logo aos o golpe militar, o
departamento foi extinto pela CEB (BURITY,
2011, p. 172).
A Conferência do Nordeste não foi um congresso composto por
religiosos exclusivamente da esquerda protestante e nem era esse o seu
objetivo principal. A discussão sobre igreja e sociedade não diz respeito
apenas a um ponto de vista político. Foi o que ocorreu. No entanto, o
pensamento das lideranças progressistas obteve maior eco, o que faz dessa
Conferência, até hoje, marco histórico entre os setores militantes do
protestantismo brasileiro.
Houve a presença de personagens importantes no cenário
religioso e político brasileiro, como é o caso de Richard Shaull, com notável
contribuição ao desenvolvimento do pensamento ecumênico e progressista na
América Latina. Waldo César, assim como Shaull, com formação em
Sociologia, exerceu a função de secretário executivo da Conferência do
Nordeste. Outras personagens importantes estiveram presentes nesse evento,
o que possibilitou sobressair a ala progressista, por exemplo, Leandro Konder e
937
Jacob Gorender. A presença de intelectuais como Gilberto Freyre, Celso
Furtado, Paul Singer e Juarez Rubem Brandão Lopes contribuiu para a
existência de um diálogo mais amplo, com a inserção de outras ciências na
formulação do pensamento político-teológico (BURITY, 2011).
Joanildo Burity (2011) em sua análise do prefácio do material
produzido na Conferência do Nordeste, destaca o fato de haver duas
apresentações: uma redigida pelo Rev. Amantino Vassão, representante da ala
conservadora da Igreja Presbiteriana do Brasil, sendo a outra redigida pela
presidente do SRSI, o Rev. Almir dos Santos.
Antes de pensarmos numa ingenuidade política
– convidar o adversário para avaliar os méritos
de uma ação da qual discorda – deve-se
entender o recurso como uma estratégia pela
qual se busca legitimar-se perante a
comunidade evangélica, sobre a qual os
conservadores ainda exerciam a hegemonia.
Da aceitação da regra do jogo chega-se ao
reconhecimento tácito do compromisso político
existente entre ambas as partes (BURITY,
2011, p. 173).
Além disso, Joanildo Burity (2011) afirma que o duplo prefácio é
a indicação clara do conflito político existente no campo religioso,
supostamente visto como aparelho ideológico do estado, resultando assim em
uma diversificação de forças dentro do protestantismo, refletindo os mesmos
antagonismos político e ideológico encontrados na sociedade.
Percebe-se no discurso religioso daqueles que aderiram a
Teologia da Libertação, que a Conferência do Nordeste foi um evento de
destaque na reflexão e formulação de um pensamento teológico crítico. O
teólogo Julio Zabatiero, refletindo sobre a Conferência do Nordeste, afirma que
foi um evento
bastante peculiar porque ela representava o
típico protestantismo da época no Brasil
bastante
plural
ideologicamente,
mais
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conservador do que progressista, mas a
Conferência do Nordeste teve um tom mais
progressista, um tom mais democrático, um
tom mais próximo do que mais tarde viria a ser
a Teologia da Libertação” (ZABATIERO, 2012).
Por ter ocorrido em 1962, ou seja, dois anos antes do golpe
militar, os setores progressistas que aturam na Conferência do Nordeste só
não obtiveram maiores resultados no Brasil por causa da perseguição imposta
pelos militares a esse grupo, o que contribuiu para o arrefecimento de tal
movimento. Não obstante a isso, o alinhamento de lideranças protestantes à
ditadura militar também corroborou para diminuir o crescimento de grupos
religiosos de esquerda. Isto fez, portanto, que, logo após a formulação da
Conferência do Nordeste, que ganhou expressão entre a esquerda protestante,
quase tudo que foi postulado veio a se perder – ou, no mínimo, ficar estagnado
pouco tempo depois – com a entrada dos militares no cenário político brasileiro.
Embora a Conferência do Nordeste tenha sido realizada em
1962 e, portanto, em um período em que a Teologia da Libertação ainda não
havia sido formulada sistematicamente – o que ocorrerá somente em 1969,
com a publicação da tese de Rubem Alves – percebe-se nessa Conferência
uma abertura para grupos que nessa época já estavam engajados e desejosos
por transformações sociais no Brasil. Assim como o Vaticano II para a Igreja
Católica, que ofereceu elementos para a elaboração de uma teologia reflexiva
e crítica, no que se refere às contribuições da Igreja na sociedade, a
Conferência do Nordeste também foi para o protestantismo, de certo modo,
uma forma de corroborar para a postulação de um novo paradigma que já
estava em formação nesse setor, mas que ainda não havia se concretizado de
uma maneira objetiva.
Além da Conferência do Nordeste, outros eventos e encontros
organizados pelas igrejas protestantes ocorreram no Brasil e na América
Latina, que, juntamente com essa Conferência de 1962, contribuiu para a
formulação
de
um
pensamento
cristão
distinto
daquele
produzido
hegemonicamente, defensor do status quo. Temos, por exemplo, a Conferência
939
de Edimburgo – Escócia (1910), a Conferência do Panamá (1916), o
Congresso Internacional para a Evangelização Mundial em Lausanne – Suíça
(1974), a Declaração de Jarabacoa – República Dominicana (1983) etc. A
abordagem à Conferência do Nordeste nessa pesquisa relaciona-se ao fato de
ter ocorrido em um período que antecedeu ao golpe militar de 1964 e por ter
sido realizada em uma das regiões mais carentes do Brasil.
Assim, a Conferência do Nordeste, juntamente com outros
eventos formulados pelo protestantismo latino-americano, serviu de apoio e
fomentou o desenvolvimento do pensamento social cristão (CAVALCANTI,
2012). No entanto, a Teologia da Libertação não foi o único resultado desse
processo ocorrido nos setores progressistas. Outros movimentos, correntes e
organizações também foram sendo desenvolvidas. Como exemplo, temos:
Fraternidade Teológica Latino-Americana (FTL), Aliança Bíblica Universitária
(ABU), Visão Mundial etc.
2. Rubem Alves: precursor da Teologia da Libertação
Rubem Alves seguiu a mesma vertente teológica de seu
professor do Seminário Presbiteriano de Campinas, Richard Shaull2. Sua tese
de doutorado, que é fonte primária desse trabalho, publicada em 1969,
demonstra já em seu título uma proposta teológica associada ao pensamento
de libertação que se formulava naquele momento: Towards a Theology of
Liberation3. No entanto, desde a defesa até a publicação de sua tese, Alves
enfrentou oposição das mais variadas e, para publicar seu texto, precisou
alterar o título para A Theology of Human Hope4. Afinal, libertação não era um
tema muito recorrente no pensamento teológico da época. O que estava em
voga era o tema sobre a esperança, evidenciada especialmente nos escritos do
teólogo alemão Jürgen Moltmann5.
2
Richard Shaull (1919-2002) foi pastor, missionário e professor de teologia de origem norte-americana.
Atuou em alguns países da América Latina, especialmente Colômbia (1942-1950) e Brasil (1952-1959;
1985). Com formação em Sociologia, contribuiu para difundir o pensamento de libertação no continente
latino-americano, além de manter profundo diálogo com o movimento ecumênico.
3
Por uma Teologia da Libertação.
4
Uma teologia da esperança humana.
5
A principal obra de Jürgen Moltmann data de 1964, sob o título Teologia da Esperança.
940
De acordo com Alves (2012), no prefácio de sua tese, escrito
em 1987, a troca do título, substituindo libertação por esperança, não lhe trouxe
satisfação. Embora a esperança seja um tema relevante e que o agradasse, há
um aspecto de subjetividade, “é coisa interior. E isto não me bastava. Eu não
queria só continuar a ter esperança. Queria ser capaz de perceber os sinais de
sua possível realização, na vida dos indivíduos e dos povos. [...] A esperança
tinha de se exprimir como política” (ALVES, 2012, p. 51 – grifos do autor).
O período da produção de sua tese e de sua publicação – 1969
– é importante para se pensar a ênfase que Rubem Alves coloca sobre a
política. Afinal, não somente o Brasil, mas muitos países da América Latina
viviam em grande efervescência política e social, causadas pela tomada de
poder por governos ditatoriais. A supressão de movimentos democráticos e o
tolhimento da liberdade de expressão provocaram, no continente, uma onda de
terror e medo; quem se opusesse a tais lideranças governistas ficava
completamente vulnerável, sem quaisquer direitos assegurados, correndo até
mesmo o risco de morrer – ou “desaparecer”.
O protestantismo histórico, implantando no Brasil desde meados
do século XIX, ainda não havia expressado, pelo menos em aspecto prático, a
mesma postura encontrada nas primeiras igrejas do século XVI, cuja
interligação entre religião e política era comum.
A crítica que Rubem Alves (2012) realiza sobre esse mesmo
setor do protestantismo, do qual ele fez parte, atuando como pastor na cidade
de Lavras - interior de Minas Gerais (1958 – 1963) associa-se diretamente à
tese de Antônio Gouvêa Mendonça (2008), acerca de uma contemplação do
celeste porvir. Assim, em sua recusa ao termo esperança e o favorecimento da
palavra libertação, Alves busca romper com o pensamento protestante
tradicional, e ao mesmo tempo propor uma postura diferente, sendo o campo
político o lugar mais propício para a atuação religiosa em busca de liberdade
presente e, portanto, histórica.
941
Rubem Alves torna-se, portanto, um dos pioneiros da Teologia
da Libertação, mesmo tendo o título de sua tese alterado. Diante dos
problemas encontrados ao defender sua tese, Alves declara: “Não sabia que
aquele era um primeiro afluente, quase sem água e sem nome, de um grande
rio: teologia da libertação...” (ALVES, 2012, p. 53). José de Souza Martins, ao
escrever o Prefácio da 3ª Edição da obra de Antônio Gouvêa Mendonça (2008)
destaca Rubem Alves como o elaborador original da interpretação da Teologia
da Libertação, tendo o mesmo reconhecimento vindo de um dos mais
renomados teólogos da libertação, o padre Gustavo Gutiérrez. Dessa maneira,
é atribuído ao protestantismo o setor cristão em que a Teologia da Libertação
primeiramente foi formulada, ao contrário do que comumente se observa, ao
associar tal pensamento teológico à Igreja Católica.
Ao formular a Teologia da Libertação, Rubem Alves (2012)
estabelece o diálogo com pensadores ligados não somente à teologia, mas
também à filosofia e às demais áreas das ciências sociais. Não poupa esforços
em criticar a igreja como instituição, propondo uma libertação da humanidade,
longe do jugo estabelecido pela religião. A Teologia da Libertação de Rubem
Alves não é institucionalizada, pertencente à religião. Qualquer pessoa pode
fazer parte dela, ainda que não pertença à religião cristã. O que se requer, em
Alves, é a consciência de pertencimento à humanidade que tem se tornado
inumana historicamente, e que necessita, portanto, humanizar-se, também
historicamente, por meio da contribuição da atuação política.
A proposta de libertação no pensamento de Alves propõe um
rompimento, um ato de negação com a realidade em que o homem aprisionado
vive. O evento de libertação, para o autor, “implica uma interrupção do curso
normal dos acontecimentos. A realidade tem de ser negada e resistida. Não se
lhe dá o direito de prosseguir no curso já determinado” (ALVES, 2012, p. 242).
Alves mostra-se taxativo e não vê outro meio, senão o da negação do
presente.
Na formulação de Alves, a teologia protestante, entretanto, “tem
criticado radicalmente todos os movimentos que se acham dominados pela
942
obsessão messiânica quanto ao que o homem possa fazer por meio de sua
atividade” (ALVES, 2012, p. 270). A fim de retirar do homem, ou seja, do
cristão, qualquer forma de culpa ou remorso por sua inércia quanto à
intervenção na história por seus próprios meios, Alves afirma que o
protestantismo advoga que a
humanização consiste uma dádiva da graça; o
homem pode ficar tranquilo, pois seu futuro não
cabe apenas a ele. Assim, a teologia
protestante pode declarar que, no contexto da
graça de Deus, o futuro não deve ser causa de
ansiedade para o homem, e sim objeto de sua
alegre expectativa. Desta forma, seu princípio
consistiu numa expressão da paixão pela
libertação humana através dos poderes do
Messias, poderes estes que libertam o homem
tanto da ansiedade e da obsessão messiânica,
causada por sua ilusão, quanto às
responsabilidades e possibilidades (ALVES,
2012, p. 271).
Ao se revelar ao homem nessa perspectiva, retirando dele o
espírito criativo na história, Alves conclui que “em vez de libertar o homem para
a criatividade, a graça torna-a supérflua ou impossível” (ALVES, 2012, p. 271).
Ou seja, um potencial que o protestantismo possuía em suas mãos, tendo
como exemplo os primeiros reformadores e as consequências resultantes de
sua forma de engajamento, foi desperdiçado, assumindo no Brasil e na
América Latina um sentido não apenas contrário, mas também contraditório, ao
entrelaçar libertação humana e alienação política em um mesmo sentido. Daí a
proposta de Alves (2012) em se criar uma nova linguagem – a “linguagem de
fé” – que é a junção da linguagem teológica, cristã, com a linguagem do
humanismo político. Por não haver diálogo entre ambas as linguagens, Alves
sugere a morte de cada uma para que surja a “nova linguagem de fé”, que ao
mesmo tempo promova a libertação humana, no presente, sem se esquecer da
futura, de âmbito religioso. Esse é o primeiro embrião do que veio a se tornar a
943
Teologia da Libertação, difundida nos setores do cristianismo – e até mesmo
fora dele6.
Considerações finais
O presente artigo buscou analisar a formulação e relevância da
Teologia da Libertação nos setores progressistas do protestantismo. Para
tanto, foi selecionado um evento que se tornou marco histórico entre os
protestantes brasileiros – a Conferência do Nordeste; foi também analisado o
processo de elaboração desse pensamento de libertação, abordando um de
seus principais expoentes, Rubem Alves.
A sociologia da religião trouxe contribuições relevantes na
elaboração da presente pesquisa, como referencial teórico. Em Marx, o
problema da religião atuar como ideologia ou, falsa consciência, foi levantado.
Será que essa característica alcança a totalidade do campo religioso? Ou será
que, em algum momento esse posicionamento pode ser alterado, diante de um
contexto político-social específico, como foi no caso da ditadura militar no
Brasil, que fez com que vários setores da sociedade, inclusive a religião, se
reunissem para refletir sobre as mudanças sociais que eram necessárias e
como cada grupo poderia contribuir nesse processo de transformação social?
Percebe-se assim que a Teologia da Libertação exerceu
influência significativa em alguns setores do cristianismo, tanto na Igreja
Católica como nas igrejas protestantes históricas, nas décadas de 1970 e
1980, período em que chegou a seu ápice, especialmente no catolicismo, com
as Comunidades Eclesiais de Base. No protestantismo, a sua presença ocorreu
com menor intensidade. Mesmo sendo necessário maiores investigações sobre
o tema, algumas hipóteses podem ser elencadas sucintamente: primeiramente,
a Teologia da Libertação ficou reservada a um grupo elitizado, já politizado e,
portanto, sem grandes contribuições práticas a fazer àqueles que a aderiram.
6
Jung Mo Sung (2008) afirma que a proposta da Teologia da Libertação alcançou não apenas setores do
cristianismo (católicos e protestantes) como também pessoas que já não mais faziam parte dessas igrejas,
mas que ainda se identificavam com o pensamento cristão.
944
Alguns pastores, professores de teologia e alunos dos seminários protestantes
foram o seu principal público. Fora desses ambientes, eclesiástico ou de
ensino, a Teologia da Libertação teve pouco espaço e oportunidade de
desenvolvimento. A falta de um espaço propício para isso, como é o caso das
CEBs na Igreja Católica, corroborou para que esse pensamento se prendesse
a pequenos grupos de intelectuais, fazendo dele também um pensamento
teológico intelectualizado, incompreendido pela população mais humilde –
justamente aquela que deveria ser alcançada e mobilizada a um engajamento
político-social.
Em segundo lugar, a Teologia da Libertação se estabeleceu
entre
as
igrejas
protestantes
graças
a
um
movimento
que
ocorria
paralelamente nesse período em toda a América Latina: o ecumenismo. Todos
os encontros, reuniões, palestras, seminários etc. foram na companhia de
outros segmentos do cristianismo, especialmente por católicos romanos, que
tiveram maior facilidade no envolvimento com a Teologia da Libertação. Se por
um lado nota-se que o protestantismo estava se abrindo para um diálogo
interconfessional, algo incomum dentro de igrejas muito conservadoras e
alheias a pensamentos e teologias diferentes; por outro, nota-se que os
espaços encontrados dentro do protestantismo não foram suficientes para a
formulação e difusão de um pensamento que exigia um novo modelo de igreja,
demonstrando assim, que tais instituições religiosas não estavam preparadas
para receber em seu interior tal pensamento progressista.
Por fim, percebe-se que a Teologia da Libertação nas igrejas
protestantes não obteve os mesmos resultados encontrados em alguns setores
católicos, por exemplo, devido ao fato de contar com grande parte de seus fiéis
pertencentes à classe média, enquanto que no catolicismo havia um grupo
mais eclético, inclusive com grande representatividade de classes mais
humildes. Isso fez com que não fosse criado nenhum atrativo no escopo
proposto na Teologia da Libertação entre um público que não estava muito
interessado em transformações sociais, engajamento político e críticas ao
modelo eclesiástico estabelecido. Antes, sua preocupação se voltava para
945
questões de ordem espiritual, algo típico do protestantismo tradicional
brasileiro.
O artigo não compreende a totalidade do tema analisado,
demandando ainda novas pesquisas que aprofundem o assunto. Serve, porém,
para lançar luz à compreensão da religião sob uma perspectiva sociológica,
fazendo desse aspecto cultural um importante campo de pesquisa na
atualidade.
946
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Depoimento oral:
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dependências da Faculdade Unida, na cidade de Vitória – ES.
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