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O Afogamento
E
la acordou. Piscou na escuridão total. Abriu bem a boca e respirou
pelo nariz. Piscou de novo. Sentiu uma lágrima escorrer, sentiu‑a dissolver o sal de outras lágrimas. Mas a saliva havia parado de descer pela
garganta; a boca estava seca e rachada. O objeto estranho fazia pressão
dentro de sua boca, forçando as bochechas como se fosse explodir sua
cabeça. Mas o que era aquilo? O que era? Seu primeiro pensamento ao
acordar foi de querer voltar. Voltar para a profundeza escura e quente
que a havia envolvido. Ainda estava sob o efeito da injeção que ele tinha aplicado, porém ela sabia que as dores logo chegariam, sabia pelas
batidas lentas e surdas que marcavam a pulsação, e pela passagem espasmódica do sangue pelo cérebro. E ele, onde estava? Logo atrás dela?
Prendeu a respiração para captar os ruídos. Não ouviu nada, mas notava
uma presença. Como um leopardo. Alguém lhe contara que o leopardo
era tão silencioso que podia esgueirar‑se para pertinho da presa no escuro, e podia ajustar o fôlego para respirar no mesmo ritmo que você. Podia prender a respiração quando você prendia a sua. Ela tinha certeza de
que podia sentir o calor do corpo dele. O que ele estava esperando? Ela
voltou a respirar. No mesmo instante sentiu o hálito de alguém na nuca.
Ela se virou, golpeou, mas acertou apenas o ar. Ela se encolheu, tentou se
encolher, se esconder. Em vão.
Quanto tempo havia ficado desacordada?
O efeito da droga estava quase no fim. A sensação durou apenas uma
fração de segundo. Mas foi o suficiente para dar‑lhe o presságio, a promessa. A promessa do que estava por vir.
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O objeto estranho que havia sido colocado na mesa diante dela tinha o tamanho de uma bola de bilhar e era feito de metal brilhante, com pequenos
furos e figuras e símbolos. De um dos furos despontava um fio vermelho
com um laço na ponta, que num instante a fez pensar na árvore de Natal
que iriam decorar na casa dos seus pais no dia 23 de dezembro, dali a sete
dias. Com bolas brilhantes, duendes natalinos, corações, luzes e bandeiras
da Noruega. Dali a oito dias, eles cantariam músicas tradicionais natalinas, e ela veria os olhos dos sobrinhos e das sobrinhas brilhando na hora
de abrir os presentes. Havia tantas coisas que ela devia ter feito de outra
forma. Tantos dias que ela devia ter aproveitado melhor, com mais honestidade, devia tê‑los preenchido com alegria, fôlego e amor. Tantos lugares
por onde havia apenas passado, tantos lugares para onde planejava ir. Os
homens que havia conhecido, o homem que ainda não havia conhecido.
O feto que havia tirado aos 17 anos, os filhos que ainda não tinha. Tantos
dias desperdiçados em troca dos dias que achava que teria.
Então, ela não pensou mais em nada além da faca brandida diante de
si. E a voz macia que ordenou que inserisse a bola na boca. Ela fez o que
lhe havia sido mandado; claro que fez. Com o coração martelando, abriu
a boca o máximo que pôde e empurrou a bola para dentro, deixando o fio
para fora. O metal tinha um gosto amargo e salgado, como lágrima. Então,
sua cabeça foi forçada para trás, e o aço queimou a pele quando a lâmina
da faca encostou em seu pescoço. O teto e o cômodo eram iluminados por
um lampião encostado à parede num canto. Cimento frio e cinzento. Além
do lampião, havia ali uma mesa de plástico de camping branca, duas cadeiras, duas garrafas de cerveja vazias, duas pessoas. Ele e ela. Ela sentiu o cheiro da luva de couro quando um dedo puxou de leve o laço do fio vermelho
que pendia da boca. E no mesmo instante, sua cabeça pareceu explodir.
A bola se expandiu, pressionando o interior da sua boca. Mas, por
mais que estendesse a mandíbula, a pressão era constante. Ele a havia
examinado com uma expressão interessada e concentrada, como um
dentista que verifica se o aparelho ortodôntico está ajustado corretamente. Um leve sorriso indicou satisfação.
Passando a língua, ela descobriu que havia pinos saindo da bola, e
eram estes que pressionavam o céu da boca, a carne macia da parte interna, os dentes, a goela. Ela tentou dizer alguma coisa. Ele escutou com
paciência os sons desarticulados que saíam da sua boca. Quando ela
desistiu, ele fez que sim com a cabeça e pegou uma seringa. A gota na
ponta da agulha cintilou à luz do lampião. Ele sussurrou no ouvido dela:
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— Não mexa no fio.
Então aplicou a injeção no pescoço. Ela apagou em questão de ­segundos.
Ela ouviu sua própria respiração apavorada e piscou na escuridão total.
Tinha que fazer alguma coisa.
Colocou as mãos no assento da cadeira, que estava pegajoso por causa do próprio suor, e se levantou. Ninguém a impediu.
Deu alguns passos curtos até esbarrar em uma parede. Foi tateando
até sentir uma superfície lisa e fria. A porta de metal. Ela tentou levantar
o trinco. Não se mexia. Trancada. Claro que estava trancada. O que havia pensado que podia acontecer? Ouvia risos, ou o som tinha vindo de
dentro da sua cabeça? Onde ele estava? Por que estava brincando com
ela dessa maneira?
Faça algo. Pense. Mas para pensar precisava primeiro se livrar da bola
de metal antes que a dor a enlouquecesse. Enfiou o polegar e o indicador nos dois cantos da boca. Sentiu os pinos. Tentou em vão forçar os
dedos por baixo de um deles. Teve um acesso de tosse, acompanhado de
pânico por não conseguir respirar. Percebeu que os pinos fizeram a carne
ao redor da traqueia inchar, e que logo corria o risco de sufocar. Então
chutou a porta de metal, tentou gritar, mas a bola sufocou o som. Ela desistiu. Encostou‑se à parede. Prestou atenção. Eram os passos cautelosos
dele que ouvia? Estava ele se movendo ao redor, brincando de cabra‑cega
com ela? Ou era apenas seu próprio sangue pulsando nas orelhas? Ela
se encheu de coragem e forçou a boca para fechá‑la. Os pinos mal se
mexeram antes de empurrarem a boca para voltar a ficar aberta. Agora,
a bola parecia estar pulsando, como se houvesse se transformado em um
coração de aço, em uma parte dela.
Faça algo. Pense.
Molas. Os pinos tinham molas de pressão.
Os pinos foram armados quando ele puxou o fio.
— Não mexa no fio — tinha dito ele.
Por que não? O que aconteceria?
Ela deslizou pela parede até ficar sentada. Um frio úmido subia do
piso de cimento. Queria gritar de novo, mas não tinha forças. Calada.
Silêncio.
Todas as palavras que devia ter dito às pessoas que amava, em vez
daquelas que haviam preenchido o silêncio junto a pessoas por quem ela
não sentia nada.
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Não havia saída. Só ela mesma e essa dor enlouquecedora, a cabeça
prestes a explodir.
— Não mexa no fio.
Se ela o puxasse, talvez os pinos se desarmassem, entrando de novo na
bola, e ficaria livre das dores.
Os pensamentos percorriam os mesmos caminhos circulares. Há
quanto tempo já estava ali? Duas horas? Oito horas? Vinte minutos?
Se fosse tão simples, só puxar o fio, por que já não havia puxado? Por
causa da advertência de uma pessoa obviamente doente? Ou fazia parte
do jogo, convencê‑la a resistir a tentação de aliviar essa dor totalmente
desnecessária? Ou o jogo se tratava de desafiar a advertência e puxar
o fio para que… para que algo terrível acontecesse. O que aconteceria,
então? O que era essa bola?
Sim, era um jogo, um jogo medonho. Que ela tinha que jogar. A dor
era insuportável, a garganta estava inchada; logo ela sufocaria.
Tentou gritar outra vez, mas saiu apenas um soluço, e piscou e piscou
sem que saísse uma só lágrima.
Seus dedos encontraram o fio pendendo dos lábios. Puxou com cuidado até ficar retesado.
Estava arrependida de tudo que não tinha feito, claro. Mas se uma
vida de renúncias a tivesse colocado em qualquer outro lugar além daquele onde se encontrava, ela a teria escolhido. Só queria viver. Qualquer
vida que fosse. Simples assim.
Ela puxou o fio.
Agulhas dispararam das pontas dos pinos. Tinham sete centímetros de
comprimento. Quatro furaram as bochechas em ambos os lados, três
penetraram os seios nasais, dois subiram pela narina e dois saíram pelo
queixo. Uma agulha furou a traqueia e outra o olho direito. Várias agulhas penetraram a parte posterior do céu da boca e alcançaram o cérebro.
Mas não foi esse o motivo imediato da sua morte. Como a bola de metal a impediu de se movimentar, ela não conseguiu cuspir o sangue que
escorria das feridas para dentro da boca. Em vez disso, ele desceu pela
traqueia até os pulmões, fazendo com que ela não absorvesse oxigênio, o
que, por sua vez, levou à parada cardíaca, e o que o patologista chamou
no seu relatório de hipoxia cerebral; isto é, falta de oxigênio no cérebro.
Em outras palavras: Borgny Stem‑Myhre se afogou.
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