A PRESIDENTE NA CHUVA
Guilherme Fiuza
O brasileiro é, antes de tudo, um crédulo. Deem-lhe um pretexto para ter fé em alguma
coisa, e ele se lambuza de esperança. Não poderia ser diferente com a sucessão presidencial.
Até os críticos de Luiz Inácio da Silva resolveram enxergar um novo tempo com a ascensão
da "presidenta". É como se o país saltasse do último capítulo de Sílvio de Abreu para o
primeiro de Gilberto Braga. Hora de acreditar em outro enredo.
E eis que a grande vedete desse tal novo tempo é o silêncio de Dilma Rousseff.
Mesmo os que se opunham ao truque eleitoral do PT, em que Luiz Inácio tirava sua coelha da
cartola e lhe dava corda para governar, estão vendo mudança em tudo. Se Lula falava demais,
o silêncio de Dilma significa austeridade e trabalho. O Brasil acordou em 2011 decidido a
acreditar na "especialista em gerência". Assim é, se lhe parece. Somos 190 milhões de
Gilbertos Bragas.
Na vida real, porém, continua valendo o velho ditado (ou a melhor versão dele): de
onde menos se espera é que não vem nada mesmo. Como se viu na campanha eleitoral, e
antes dela, a especialista em gerência nem sempre conseguia completar um raciocínio.
Tropeçava em números, se confundia com percentuais, torturava conceitos - incidentes não
muito típicos de especialistas em gerência.
Para quem não esperava nada de Dilma Rousseff, ela correspondeu plenamente como
presidente eleita. Sumiu de cena. Não deu uma palavra nem sobre a guerra nos morros do Rio.
E, quando seu governo começou, a presidente continuou firme em seu exílio existencial.
Nunca antes na história deste país um mandato presidencial começara assim, com cara de
feriado.
Nenhuma medida importante, nenhuma reforma estrutural, nada além de tiradas como
o "PAC da miséria", para entreter a imprensa. A julgar pelas manchetes, o futuro inaugurado
por Dilma era um lugar onde o PT e o PMDB disputam o balcão estatal, enquanto a vida
nacional faz figuração ao fundo. Aí vieram as chuvas.
A tragédia na Região Serrana do Rio veio atrapalhar o script dos novos tempos. A
presidente não poderia mais ficar governando em off, regendo a partilha fisiológica do Estado
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Jornalista e autor de vários livros, entre eles Meu Nome não é Johnny, adaptado para o cinema. Discute grandes
temas da atualidade, com informação e muita opinião principalmente sobre política. Este artigo de opinião foi
publicado em O GLOBO no dia 21 de janeiro de 2011.
detrás do seu silêncio mitológico. Dilma apareceu. Deu um pulo nas cidades devastadas e,
antes de retornar ao exílio, falou aos brasileiros numa entrevista coletiva. Foram 40 minutos
inesquecíveis.
A especialista em gerência rompeu seu silêncio para dizer que "o Rio vive um
momento muito forte". O país já estava com saudades da precisão de suas mensagens. Mas ela
não parou por aí. Declarou que a ocupação de áreas de risco no Brasil é regra, não exceção.
Esta foi a afirmação destacada nas manchetes - para se ter uma ideia da densidade do discurso
da presidente no meio da catástrofe.
Ao falar em moradias de risco, Dilma fez uma inflexão importante: "Agora vou
defender o presidente Lula." De fato, em meio ao flagelo das enchentes, com suas centenas de
mortos, feridos e desabrigados, era urgente defender o presidente Lula. A presidente passou
então a elogiar as maravilhas do programa Minha Casa, Minha Vida, idealizado por seu
padrinho, como uma espécie de pílula do dia seguinte para os desabamentos: "O Minha Casa,
Minha Vida não investe em área de risco. Nós não incentivamos a população a construir em
área de risco."
Uma informação providencial para uma situação de emergência. Se alguém confundiu
esse discurso com comício populista, cumpre esclarecer ao mau entendedor: isso é pura
sagacidade gerencial.
Dilma respondeu também sobre o problema da lentidão na liberação de verbas para as
áreas devastadas. Explicou que nenhum gestor público está autorizado a não prestar contas de
seus gastos. É realmente fundamental, numa hora dessas, a presidente da República informar
que está proibido o desvio de verbas federais. Coisa de Primeiro Mundo.
Completando a ação implacável do novo governo, quatro ministros de Estado subiram
ao palco da tragédia para falar ao país. Liderados pelo irrevogável Aloizio Mercadante,
ministro de Ciência e Tecnologia, eles leram uma lista de boas intenções extraídas de um
seminário meteorológico de um ano atrás. Segundo Mercadante, daqui a quatro anos um
sistema nacional de prevenção de catástrofes estará pronto, irrevogavelmente. E, daqui a dez
anos, uns 20% dos que morreram agora não morrerão mais. Um papo solto, sem stress, para
tranquilizar o pessoal da serra.
Com tanta eficiência, essa junta liderada por Mercadante poderia dar uma força ao
ministro da Educação na tragédia do Enem - onde o número de vítimas também não para de
crescer. Se não for possível, ao menos os estudantes desabrigados e os sem-universidade
poderão se orgulhar de ser governados por uma especialista em gerência.
Ao resto dos brasileiros, especialmente depois do pronunciamento histórico da
presidente durante a enxurrada, o melhor é continuar louvando o seu silêncio.
Na vida real, vale o ditado: de onde menos espera é que não vem nada mesmo.
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