Você tem fome de que?
Sete histórias, relato de um atendimento grupal de pacientes obesos.
A obesidade é uma doença crônica multifatorial, caracterizada pelo aumento de peso
corporal, devido ao acúmulo de gordura no organismo. É associada a um maior risco de
diversas doenças e de morte. Um dos tratamentos atuais indicados para a obesidade
mórbida é a cirurgia bariátrica, que visa à redução da ingestão alimentar e o aumento da
saciedade. O presente trabalho tem como objetivo apresentar as observações realizadas
em um grupo destinado a pacientes candidatos a realização de cirurgia bariátrica e a
pacientes que já haviam passado pela cirurgia e tinham voltado a ganhar peso, o que
demonstrou que a obesidade não é uma doença, mas um sintoma em si e, portanto o
tratamento não pode nem deve ser reduzido puramente a um ato cirúrgico restritivo.
Palavras-chave: Obesidade, Cirurgia bariátrica. Saciedade. Doença. Sintoma
Abstract
Obesity is a chronic multifactorial disease characterized by increased body weight due
to fat accumulation in the body. It is associated with an increased risk of any diseases
and death. One of the treatments for morbid obesity is bariatric surgery, which aims to
reduce food intake and maintain satiety. This paper aims to present the observations in a
group with patients eligible for bariatric surgery and with patients who had already gone
through surgery and had regained weight, which showed that obesity is not a disease but
a symptom itself. Therefore the treatment can not be reduced purely to a surgical
procedure.
Keywords: Obesity, bariatric surgery, satiety, disease, symptom.
Introdução.
Considerada por sua prevalência e pelo progressivo crescimento na população
mundial, as referências à obesidade como “a epidemia do século” e “um grave problema
de saúde pública” repetem-se no início de quase todos os artigos sobre a temática. Por
esse motivo, o presente trabalho abordará o manejo psíquico do tratamento do grupo e
não tratará a questão do ponto de vista médico ou organicista.
Contextualizar a obesidade nos dias de hoje demanda também expor a dicotomia
do corpo em evidência x ambientes obesogênicos. Nessa relação perversa, ao mesmo
tempo em que é solicitada uma normatização dos corpos, é oferecida de forma
desordenada, a alimentação excessiva. A sociedade que vende “o muito” é a mesma que
exige o oposto, “o pouco”.
O presente trabalho tem como objetivo expor as observações feitas em um
grupo de psicoterapia que ocorria em um ambulatório privado de saúde, destinado a
pessoas com idade a partir de 49 anos, que eram candidatas à cirurgia bariátrica ou já
haviam passado por ela e tinham voltado a ganhar peso. Apesar da indicação, nenhum
dos pacientes já operados havia dado início ao processo psicoterápico pós-cirúrgico,
apenas realizavam a avaliação para cirurgia, porém ao voltar a ganhar peso mostravamse dispostos a integrarem o que a princípio tinha como objetivo ser um grupo de
acolhimento para que a voz fosse dada voz a quem a comida calava.
Era constituído por sete pacientes que apresento a seguir:
Descrição dos Casos.
Lourdes fora encaminhada por uma endocrinologista e como a grande maioria
dos candidatos a cirurgia, tinha como maior motivação já ter esgotado todas as
possibilidades de tratamento de perda de peso. Pesando aproximadamente 140 kgs e
medindo 1.55 de altura, enquadrada na categoria do que atualmente se chama de
superobesidade. Chegou ao atendimento individual acompanhada da filha, e muito
assustada com a avaliação nutricional que acontecera um pouco antes: “Ela me disse
que era pra eu tirar a cara feia porque ali não tinha criança e fechar a cara não vai me
ajudar em nada, espero que a senhora seja boa comigo”. -SIC
Era natural de Minas Gerais, filha de uma família de quinze irmãos, não
alfabetizada, trabalhou durante a vida como faxineira de um órgão público até a morte
de seu filho de dezessete anos, quando com o auxílio dos colaboradores do órgão,
segundo ela fora aposentada por depressão.
Desde o primeiro encontro, Lourdes relacionava o ganho excessivo de peso à perda do
filho. Da primeira vez em que falou sobre o assunto emocionou-se excessivamente;
“Todo dia, a gente acordava junto e saia pra trabalhar juntos, tomava o mesmo ônibus,
ele descia primeiro e eu não muito depois, naquele dia quando cheguei no trabalho,
não me deixaram entrar, a polícia tava me esperando na porta, me disseram que meu
filho tinha acabado de morrer, porque reagiu a um assalto e eu dizia, que não, que era
impossível porque o cheiro dele ainda tava no meu ombro,... ele sempre vinha deitado
no meu ombro, só acreditei quando cheguei lá, o corpo dele tava jogado no chão, a
polícia falou que ele tinha alguma coisa na mão que ninguém sabia o que era, quando
cheguei , vi que era um relógio que ele tinha comprado no final de semana, ele só abriu
a mão pra mim, pra mais ninguém, daí percebi que quiseram roubar o relógio que ele
tinha comprado e ele não quis dar, então morreu com um tiro. Foram duas mortes
nesse dia, a dele e a minha.”. -sic
Nos atendimentos individuais que se seguiram Lourdes alegava sempre que era difícil
chegar, morava longe, pegava três ônibus e com o peso excessivo tinha dificuldade para
se locomover, mas nunca faltava aos atendimentos. Usualmente vinha acompanhada de
uma filha e da neta, mas quando aprendeu o caminho começou a vir sozinha.
Relatava ser ainda mais difícil perder peso, tinha certeza que não conseguiria sem
medicação ou cirurgia, mas seguia em acompanhamento com uma nutricionista e
quando começou a perder espantou-se, relatando que emagrecia sempre e muito bem.
Começou a se arrumar, tingiu os cabelos, colocava vestidos bonitos e vinha sempre
perfumada, mas sempre relatando muita preocupação com o marido que nos últimos
meses tinha tido o corpo tomando por psoríase e encontrava dificuldade na rede pública
de atendimento.
1-Lourdes revelava curso de pensamento muito concreto, e quando falava das perdas de
pessoas importantes da sua vida, falava sempre de uma forma como se seu corpo fosse
misturado ao do outro; uma vez faltou ao atendimento, na semana seguinte relatou que
sua irmã estava internada em uma cidade no Rio de Janeiro e tinha ido visitá-la,
explicando que tinha ficado mal com a notícia da saúde da irmã disse:
“Se eu não sou gêmea dela porque quando ela fica mal lá, eu sinto aqui?”- Sic.
Também fazia parte do grupo, 2-Mara, casada, dona de casa, mãe de três filhos,
que tinha obesidade grau II e diabetes, veio encaminhada pelo cirurgião e nunca fez
psicoterapia, embora há quinze anos, tenha tentado suicídio se jogando na linha do
metrô. Com a fala calma e o semblante sereno, relatava que não pensava em fazer a
cirurgia até que seu médico indicou muito mais pelas questões clínicas gerais do que
pelo excesso de peso.
3-Ivana, 65 anos, fora encaminhada pelo psiquiatra, tinha passado pela cirurgia há sete
anos, e reduzido 100 kgs. Relatava que havia ficado compulsiva por compras. Ela que
morava no interior de São Paulo e tinha um cargo político bem remunerado, não
conseguia pagar suas contas, por esse motivo fora trazida a capital para que as irmãs
pudessem supervisioná-la. Relatava nunca ter casado, por não querer relacionar-se com
ninguém. Era virgem. Ivana gostava de ser exemplo no grupo, sentia que tinha muito
para contribuir por já ter passado pelo processo de cirurgia com tanta perda de peso.
4-Rita, 60 anos, era cadeirante, teve poliomielite quando criança, tinha feito uma
cirurgia obstrutiva intestinal e após perder 40 kgs, tinha engordado por volta de vinte
quilos. Era sempre alegre e nunca demonstrava profundidade em seus pensamentos,
para ela tudo sempre estava bem, só queria emagrecer e não perder a pouca mobilidade
que tinha.
5-Carmen 62 anos, estava 50 kgs acima do peso considerado normal, era viúva, mãe de
três filhos, tinha ficado cega há cinco anos por conta de diabetes, mostrava-se muito
preocupada, pois caso não melhorasse sua saúde geral poderia precisar de hemodiálise.
Tinha muito medo de realizar a cirurgia, sua irmã, com quem morava, tinha feito o
procedimento há cinco anos e depois dele começou a beber abusivamente, tendo
perdido o emprego, os bens e a saúde.
6-Márcia, 60 anos, tinha realizado a cirurgia há 01 ano e antes de perder o peso
esperado, começou a engordar novamente. Era manicure, tinha duas filhas, estava
casada há 30 anos, e seu marido era alcoólatra. Sempre mencionava a ingestão de
alimentos pequenos, a que chamávamos de gatilho: amendoins, balas, pequenos
chocolates, mas em grandes quantidades. Chegava sempre atrasada aos atendimentos e
referia estar esquecida. Sentia que comia demasiadamente sempre que via o marido
alcoolizado e tendo algum tipo de comportamento que considerava inadequado.
7- Elizabeth, 62 anos, estava 70 kgs acima do peso considerado saudável pela OMS,
relatava com muita fluidez que era alcoólatra em recuperação, estava sobre há 20 anos e
desde então frequentava reuniões dos alcoólicos anônimos quase todos os dias. Falava
que gostava de comer, mas que também era muito disciplinada, e desde que tinha
entrado para o grupo já havia emagrecido 05 kgs. Sentia-se confiante em relação à
cirurgia, achava ser apenas mais um obstáculo que iria vencer em sua vida. Tinha como
principal motivador manter a prótese de quadril adquirida pelo Sistema público de
saúde no ano anterior, e já tinha sido avisada pelo seu médico que caso não perdesse
muito peso, logo teria que ser novamente submetida a uma cirurgia.
8- Judith, 57 anos, estava 60 kgs acima do peso, relatava que sua motivação para
cirurgia era ficar bem com seu corpo, em algumas sessões individuais relatou que fora
vitima de abuso sexual na infância, bem como suas irmãs e filhas, todas também obesas.
As filhas já haviam sido submetidas à cirurgia e segundo ela estavam ótimas.
Acreditava que emagrecer era uma espécie de vingança e que assim conseguiria mostrar
ao pai que abusou e a mãe que fora conivente que não tinha sucumbido e não estava
aniquilada, era sua revanche.
Discussão
Fez- se notório o fato de todas, com exceção de Lourdes, terem tido algum tipo
de agravo no corpo, anterior ou concomitante a obesidade: o não exercício da
sexualidade, poliomielite, diabetes seguida por cegueira, alcoolismo e abuso sexual.
Sendo assim, eram corpos marcados e agora demarcados pela obesidade.
Existia um claro movimento de cisão com seus corpos, e quando levantávamos
essa temática referiam não entender a necessidade da retomada desse contato, embora
desejassem muito, não se viam da forma que eram, em algumas atividades imaginativas
iniciais, apresentavam pouca capacidade imaginativa. Era difícil ter uma representação
simbólica do corpo que tinham, no geral sabiam que estavam acima do peso, mas não
sabiam exatamente o quanto.
Lourdes seguia em um caminho oposto, em uma negação delirante, quando
voltou a engordar após um breve período de emagrecimento, relatava estar cada dia
mais magra, até mesmo percebendo a cintura ser torneada, o rosto minguando e os
braços afinando, via-se ainda com algumas curvas, mas longe de ser obesa.
Durante os atendimentos semanais, era constante na fala das pacientes o fato de
estarem protegidas pela gordura, de alguma forma parece que não se sentiam
convocadas para alguns aspectos da vida. E na impossibilidade de realizarem, comiam.
No momento do ato compulsivo do comer, relatavam que se sentiam impotentes perante
o alimento e que ele precisava fazer parte delas, era um corpo indiferenciado do
alimento, como o bebê com a mãe nos estágios fusionais do desenvolvimento.
Márcia era a porta voz do ataque compulsivo do comer e foi através de sua fala
inicial de comer sem se dar conta do gosto, da qualidade ou da quantidade de comida
ingerida que as outras pacientes começaram a relativizar o que comiam, e
gradativamente passaram a falar desses momentos em que eram dominadas pela
comida, com exceção de Lourdes que relatava que mesmo o marido sendo padeiro, nada
do que ele levava pra casa lhe apetecia o paladar.
Referiam que nessas horas, a comida era um anestésico momentâneo, era como
se comer amortecesse o sofrimento e apaziguasse suas angústias, mas sempre era
acompanhado de culpa, o que acabava resultando em mais ingestão de comida. Aqui,
entendo que o alimento se dava como um perpetuador do abandono do corpo, ao
comerem podiam continuar renunciando ao corpo, e abandonar esse lugar sem uma
intervenção maior, como a cirurgia bariátrica era quase impossível para elas.
Nesse sentido podemos levantar a hipótese de que comer, entraria como uma
forma de aliviar o desamparo original, quando Winnicott nos fala de uma angustia
impensável. Não estar repleta de comida era incomodo demais para ser suportado.
Outro traço marcante nos atendimentos era o fato de não se verem do tamanho
que estavam, mencionavam que quando tiravam fotos espantavam-se com o que viam, é
como se aqueles corpos não fossem delas, e não sabiam dizer em que momento foram
abandonados. Seixas (2009) nos fala de características subjetivas de passividade dos
obesos, que diante do seu próprio corpo optam por separarem-se deles.
No geral, apresentavam uma relação cindida com seus corpos e relatavam
frequentemente dificuldade de contato com eles. Era difícil se olhar, se ver, se tocar, e
seguiam em uma espécie de pensamento mágico sobre a possibilidade de como estariam
após a cirurgia.
Ao chegarem para o grupo, tinham uma ideia de que a cirurgia iria mudar todos
os aspectos de suas vidas, e o trabalho seguia no sentido de subjetivar a queixa, de
tornar simbólico o real, mesmo que muitas vezes fosse solicitado das pacientes uma
postura ativa da parte da analista, talvez porque estivessem acostumadas a essa conduta
em todos os outros tratamentos aos quais se submeteram.
Conclusão
Enquanto trabalho grupal muitos elementos foram levantados, e talvez
precisemos encaminhar para uma análise bem mais detalhada para entendermos a
riqueza da história de vida de cada uma dessas mulheres, sendo assim esse é um
trabalho ainda não concluído, também porque a temática da obesidade não se esgota,
transborda.
É comum que o paciente obeso seja encaminhado pelo clínico a um psicólogo,
com a ressalva de buscar uma abordagem cognitiva, para que o comportamento
alimentar seja remodelado, e me parece que muitas vezes o que ocorre, paralelo à
sistematização da queixa, é o empobrecimento da escuta.
Penso que para o trabalho do analista que atua com cirurgia bariátrica seja
esperançoso, é preciso que não se caia na armadilha da contagem de calorias e diários
alimentares, afim do ajuste no descompasso entre consumo e calorias e gasto energético.
O desafio é subjetivar a queixa e deixar o sintoma analítico surgir, e ai, parafraseando
Niraldo Santos: “Bem vindo sintoma analítico”.
Certa vez ouvi de uma paciente: “Na cirurgia bariátrica é como se o corpo
descesse de elevador e a mente de escadas, os acontecimentos não são conjuntos”,
talvez ela estivesse dizendo que um procedimento cirúrgico simplesmente não apaga as
marcas do desamparo no corpo.
Vale mencionar que quando intitulei essa reflexão, a denominei de “Sete
histórias, relato de um atendimento grupal de pacientes obesos” e ao reler os casos, me
dei conta de que eram oito histórias e não sete, então comecei a me questionar sobre
quem na fazia parte desse grupo e conclui que Lourdes, diferente das outras, não
conseguia se dar conta de seu próprio mal estar, e em um ato voraz, canibal e quase
psicótico, engolira o filho morto e desde então, comia pelos dois. Certamente, se
Lourdes se submeter a um ato dessa natureza, o resultado será catastrófico.
Diante do exposto, destaco que a cirurgia bariátrica pode ter severos agravos, e
ainda que possa ser bem sucedida do ponto de vista médico, no geral, na são, do ponto
de vista analítico. Ainda não estou certa, mas tenho pensando se a cirurgia não é o
aniquilamento da única forma de resistência que esses sujeitos encontraram, caso não
fosse, porque essas pessoas voltam a engordar?
Talvez, o desafio para o obeso não seja somente emagrecer, mas sustentar um a
leveza do corpo e, portanto, levanto a seguinte questão: Em nome de que, comem as
pessoas que precisam de cirurgia bariátrica?
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Sete histórias, relato de um atendimento grupal de pacientes