A Humanidade contra o Estado
Ricardo Seitenfus
Somente com intervenção estrangeira é possível alcançar um patamar
mínimo de convivência política no Haiti. A importante participação brasileira
prevista por nossas autoridades numa futura missão de paz no conturbado país
caribenho é uma demonstração de solidariedade com um dos povos mais
martirizados e pobres do planeta.
A idéia de que cada sociedade deva resolver de forma autônoma seus
dilemas nacionais – sustentáculo do princípio da não-intervenção – é
absolutamente inaplicável em certas situações como, por exemplo, no caso
haitiano. Jamais este país conheceu ao longo de sua história sequer vestígios
de democracia.
A vontade da maioria sempre foi esmagada pela força. Não se trata de
uma cláusula de efeito ou de estilo mas uma cruel realidade. A violência
política, defendida há poucos dias publicamente pelo Padre Aristide, integra o
que ele considera ser um traço da cultura haitiana e constitui elemento do
caráter nacional de seu povo. Se conduzirmos o raciocínio do ex-presidente à
sua lógica ele nos leva a concluir que cada povo tem o direito de usufruir de
sua própria guerra civil. Ora, nada é mais desumano que a demonstração de
indiferença frente ao sofrimento de outrem. Foi essa indiferença que permitiu o
genocídio nazista e que, infelizmente, repetiu-se há dez anos atrás em Ruanda
onde foram assassinadas mais de 800 mil civis.
A tardia descoberta da dimensão do extermínio judeu e de outras
minorias fez com que a Humanidade tomasse uma corajosa e difícil decisão: as
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linhas de fronteiras dos Estados não deverão ser mais estanques quando a
barbárie é perpetrada. O sacrossanto dogma da soberania – em nome do qual
atrocidades foram cometidas contra seus próprios nacionais – foi pela primeira
vez questionado. Era sem tempo pois é preciso lembrar que recentes
pesquisas, como as de Rummel publicadas na obra “Assassinados pelo
Governo”, provam que durante o século XX – marcado por duas guerras de
alcance mundial – a luta pelo poder no interior dos Estados provocou conflitos
e guerras civis que causaram mais de 150 milhões de mortes, cifra bem
superior ao número de vítimas das guerras internacionais.
As intervenções devem respeitar as seguintes condições: iniciativa
coletiva sob o respaldo das organizações internacionais, no caso do Haiti a OEA
e a ONU; o armamento utilizado será exclusivamente defensivo; o objetivo a
médio prazo é a restauração do statu quo ante e a longo prazo a criação de
instituições representativas que permitam a expressão da vontade de todos.
Finalmente, a intervenção deve proporcionar a restauração dos serviços
públicos e lançar as bases para o desenvolvimento econômico e social.
Pode-se questionar se os Estados interventores não estão agindo em
nome de seu interesse nacional e não no interesse da Humanidade. O exemplo
iraquiano ilustra esse permanente risco. Quem conhece minimamente o
paupérrimo Haiti sabe que não há como tirar partido material da intervenção
pois inexistem vantagens para o interventor.
A questão que se coloca não é concordar ou discordar da intervenção de
caráter humanitário, mas sim a maneira como ela será concretizada. Os
desajustes do sistema internacional não podem e não devem servir de biombo
para eximir-se da responsabilidade. Quando a Humanidade tomar consciência
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que ela deve ultrapassar e transcender o Estado nacional caso este continue a
agir somente movido por interesses egoístas e mesquinhos, ela criará o seu
próprio Conselho de Segurança da Humanidade que terá como objetivo o
respeito dos direitos fundamentais e naturais do Homem, de todos os homens.
Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 55, integrou a Missão da ONU/OEA no Haiti em 1993 e é
autor do livro Haiti, a soberania dos ditadores (Editora Sólivros, 1994). É doutor em Relações
Internacionais pelo Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais da Universidade de
Genebra. Professor Titular de Direito Internacional Público e de Organizações Internacionais na
Universidade Federal de Santa Maria (RS) e Diretor da Faculdade de Direito de Santa Maria.
Seus livros mais recentes são Relações Internacionais e Legislação Internacional, ambos
publicados em 2004 pela Editora Manole.
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