X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação - SEPesq
Centro Universitário Ritter dos Reis
O Edifício Como Elemento Construtivo
da Memória da Cidade de Porto Alegre
Hélade de Oliveira Lorenzoni
Mestranda em Arquitetura e Urbanismo
Centro Universitário Ritter dos Reis
[email protected]
Resumo: Esse artigo traz reflexões sobre a importância da arquitetura de cunho não monumental na
construção da memória da cidade. A domesticidade na arquitetura coadjuva com a monumentalidade
servindo-lhe de referência. No intuito de aprofundar esse quesito mergulho nos conceitos filosóficos de
Rybczynski, entre outros. O foco da pesquisa se debruça sobre as casas em fita. O advento de seu
aparecimento no cenário mundial e seu desenvolvimento. Para tal, o aporte teórico procede de Leonardo
Benévolo. Essa verificação apresenta a tipologia das casas em fita da Rua Félix da Cunha e Travessa
Venezianos, em Porto Alegre, RS, Brasil e discute a importância que possuem sob o ponto de vista do
conjunto arquitetônico. Como foco de estudo, tem-se dados da construção e profissionais envolvidos,
suas relações com o entorno, ao longo do tempo e a conexão com o desenvolvimento da cidade e seus
costumes. O estudo concretiza-se através de pesquisa bibliográfica fundamentada em análises
espaciais, sociais, econômicas e ambientais apoiadas em Célia Ferraz. A investigação preliminar revela
a relevância da preservação desses conjuntos como elementos contadores da história da cidade. A
arquitetura acompanha o homem e reflete seu andar, por isso representa um ótimo objeto de estudo.
Palavras-chave: Arquitetura domiciliar. Casas em fita. Memória.
1 Introdução
Em cualquier época de la história, el modo em que el hombre há construído su
vivienda há reflejado la visión que percibía de si mismo como parte del mundo
en el que vivía. Al contrario que en tiempos pasados, cuando el estatus social
se medía por poseer uma residência tan grande como gruesa era la cuenta
corriente, la era moderna se ve envuelta em una tendência hacia la casa de
pequeñas dimensiones.
Hugo Kliczcowski
Desde que o homem é homem, tem sua passagem registrada através de
monumentos. Muito deles, são edificações, construções em grande escala que lhe conferem
a magnitude pretendida através da dimensão construída, assim como as pirâmides da
planície de Guisé.
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Registro de igual espectro, porém desprovido da pretensão dos monumentos e das
grandes construções, são as edificações de caráter domiciliar popular. Menores em escala,
mas não em importância, principalmente quando analisadas sob o ponto de vista do
conjunto e da memória que evocam. O foco aqui são as casas em fita e o advento de seu
surgimento.
2 CAPÍTULO 1
Nos primeiros cinco séculos, após a queda do império romano e as consecutivas
invasões bárbaras, evidencia-se uma grande crise econômica. Em decorrência disso a
dispersão para o campo da população em busca de sustento extraído da terra determinou a
ruína das cidades.
O modelo econômico baseado na agricultura e pecuária e na divisão das terras com
liderança centralizada no Suserano é o âmago da sociedade feudal. Nesse novo modelo a
cidade perde sua importância como centro administrativo.
No final do séc. X, a população aumenta e junto com ela a produção agrícola, o
comércio e a indústria. Surgem as primeiras Cidades-Estado e a população desses burgos
fortificados, chamada burguesia.
Uma parte da nova população, que não encontra trabalho nos campos, refugiase nas cidades: cresce assim a massa dos artesãos e dos mercadores, que
vivem à margem da organização feudal. A cidade fortificada da Alta Idade
Média – a qual se adapta bem o nome de burgo – é por demais pequena para
acolhê-los; formam-se, assim, diante das portas, outros estabelecimentos, que
se chamam subúrbios e em breve se tornam maiores do que o núcleo original.
É necessário construir um novo cinturão de muros, incluindo os subúrbios e as
outras instalações(igrejas, abadias e castelos) fora do velho recinto. A nova
cidade assim formada continua a crescer da mesma forma e constrói outros
cinturões de muros cada vez mais amplos. Nessa cidade, a população artesã e
mercantil – a burguesia, como será chamada – está em maioria desde o início;
pretende, pois, se subtrair ao sistema político feudal, e garantir-se as condições
para sua atividade econômica: a liberdade pessoal, a autonomia judiciária, a
autonomia administrativa, um sistema de taxas proporcionais às rendas e
destinadas a obras de utilidade pública(entre os quais, em primeiro lugar, as da
1
defesa: as fortificações e os armamentos).
1
BENÉVOLO, Leonardo. História da Cidade; São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 259.
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Após a segunda metade do séc. XVIII, com o advento da máquina a vapor, há uma
extrema modificação no cenário citadino. Impulsionada pela falência da economia agrária,
que levou a fome aos campos e pelo êxodo rural consequente, ocorre uma explosão
demográfica. As cidades não acompanham o seu potencial de absorver urbanisticamente
esse contingente excepcional de camponeses em busca da promessa de trabalho oferecida
pelas indústrias, além de seu próprio crescimento.
Nessa nova cidade industrial, movida a carvão, a periferia é ocupada de forma distinta
das ampliações medievais, mesclando bairros pobres aos de luxo assim como as indústrias,
sem que algum plano prévio sirva de guia.
Novos tipos de conjuntos habitacionais surgem, para sanar a carência de moradias
populares para os operários da indústria. As casas em fita entram em cena.
O crescimento rapidíssimo das cidades na época industrial produz a
transformação do núcleo anterior (que se torna o centro do novo organismo), e
a formação, ao redor desse núcleo, de uma nova faixa construída: a periferia...
A periferia não é um trecho de cidade já formado como as ampliações
medievais ou barrocas, mas um território livre onde se somam um grande
número de iniciativas independentes: bairros de luxo, bairros pobres, indústrias,
depósitos, instalações técnicas. Num determinado momento estas iniciativas se
fundem num tecido compacto, que não foi, porém, previsto e calculado por
ninguém... os ricos tem casas mais isoladas – vilas ou vilazinhas -, os pobres
tem habitações menos isoladas: casas em fileira ou moradas sobrepostas em
edifícios de muitos andares. 2
As casas em fita ou fileira caracterizam-se por compartilharem as vedações laterais e
muitas vezes o espigão da cobertura também, constituindo-se de uma construção em linha
com aberturas à frente e atrás. Alguns exemplos apresentam fossos de luz centrais.
Em Porto Alegre o cenário de cidade industrial chega tardiamente, na última década do
século XIX e primeira metade do séc. XX. Com um mercado consumidor relativamente
amplo, baseado no agronegócio e na produção policultora da colônia, o estabelecimento de
uma produção industrial foi propício. Outro fator determinante no crescimento e
desenvolvimento industrial em Porto Alegre foi a diminuição dos artigos importados no
mercado devido à recessão causada pelas duas grandes guerras mundiais. Destaque dessa
2
BENÉVOLO, Leonardo. História da Cidade; São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 565.
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produção, além dos ramos tradicionais, têxteis e alimentícios, a indústria metalúrgica firmouse como uma das mais importantes.
Em decorrência da explosão industrial, um rápido crescimento populacional assola a
cidade.
Com pouco mais de cinquenta mil habitantes em 1890, a curva da população
sofreu uma inflexão no seu aceleramento, mantendo-se uniforme até 1940,
quando mais uma vez o processo de crescimento acelerar-se-ia. A maior taxa
de crescimento no período foi a do decênio 1900-1910, com quase 6% de
crescimento anual. Ao final do período (tomando o dado de 1940 como
representativo), a cidade contava com 275mil habitantes. 3
As casas da Travessa Venezianos aparecem para suprir a necessidade de
moradia não só para os operários da indústria assim como para o vertiginoso crescimento da
população na época da administração de Alberto Bins. Logo após surgem as casas em fita
da rua Félix da Cunha, na administração de Loureiro da Silva, como alternativa de moradia
de aluguel para a classe média. Nos próximos capítulos esses dois conjuntos habitacionais
serão tema de discussão.
3 CAPÍTULO 2
Última Canção do Beco
Beco que cantei num dístico
Cheio de elipses mentais,
Beco das minas tristezas,
Das minhas perplexidades
(Mas também dos meus amores,
Dos meus beijos, dos meus sonhos),
Adeus para nunca mais!
Vão demolir esta casa.
Mas meu quarto vai ficar,
Não como forma imperfeita
3
FERRAZ DE SOUZA, Célia e MÜLLER, Dóris Maria. Porto Alegre e sua Evolução Urbana. UFRGS, 2007,
p 76
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Neste mundo de aparências:
Vai ficar na eternidade,
Com seus livros, com seus quadros,
Intacto, suspenso no ar!
Manuel Bandeira
CASAS DA TRAVESSA DOS VENEZIANOS
Situadas entre as ruas Joaquim Nabuco e Lopo Gonçalves, na Travessa dos
Venezianos, o conjunto tombado pela municipalidade consta de dezessete casas
populares. A cidade é Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul e o bairro é Cidade
Baixa.
Figura 1 Porto Alegre, Vista aérea da Travessa dos Venezianos. Fonte: Google Earth
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As casas da Travessa Venezianos, com arquitetura de origem portuguesa,
conhecidas como casas de porta e janela, apresentam uma construção muito simples.
Desprovidas de ornamentos, organizam-se em fileira. Esse grupo foi edificado no início do
século XX com fins locatícios, para abrigar a população de baixa renda que morava naquela
redondeza na época e foi atraída pela oferta de trabalho nas indústrias incipientes em Porto
Alegre. Constituem-se de um típico exemplar de habitações populares de muitas cidades
brasileiras e têm no conjunto seu real valor histórico.
Figuras 2 e 3 Porto Alegre, Travessa Venezianos Fonte: Google imagens
A Cidade Baixa, antes um bairro pobre de periferia, hoje é um centro boêmio e a
Travessa dos Venezianos abriga pizzaria, atelier de artes além de residências.
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4 CAPÍTULO 3
CASARIO À RUA FÉLIX DA CUNHA
Figura 4 Porto Alegre, Vista aérea da Rua Félix da Cunha. Fonte: Google Earth
O conjunto tombado pela prefeitura municipal, por iniciativa dos moradores consiste em
oito casas geminadas, mais uma destacada. Localiza-se na Rua Félix da Cunha (do número
1143 ao 1215), no bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre, RS.
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A construção da década de trinta foi executada pela firma Azevedo-Moura &
Gertum e o projeto é do arquiteto tcheco Egon Weindorfer, coordenador do setor de
arquitetura desta empresa àquela época.
O objetivo do projeto, como o que permeou as casas da Travessa Venezianos era
o aluguel imobiliário, porém, diferentemente daquele, essas casas eram direcionadas à
classe média.
Cada casa está pousada sobre um lote de mais ou menos cem metros quadrados,
em média 6,90X14m cada. Apresentam três pavimentos e despojamento de ornamentos na
fachada, exceto floreiras em ferro e entablamento texturizado, além de telhado contínuo de
duas águas, característica das casas em fita.
Hoje compartilham atividades mistas como morar e trabalhar. O bairro prosperou e os
residentes convivem com os vizinhos comerciantes.
5 CAPÍTULO 4
Os conjuntos acima referidos apresentam uma arquitetura de cunho domiciliar
despojada. Desprovidas de maiores ornamentos, são casas simples, de construção em fita.
Apesar de representarem estilos diferentes, de possuírem datas de construção de
períodos distintos e sua arquitetura não ser monumental, ambos os conjuntos são tombados.
A domesticidade aqui é um elemento importante no que diz respeito à memória da cidade e
da população.
A domesticidade é um conjunto de emoções sentidas, e não um único atributo.
Ela está relacionada à família, à intimidade, à devoção ao lar, assim como a
uma sensação da casa como incorporadora – e não somente abrigo –destes
sentimentos. Foi a atmosfera da domesticidade que permeou as pinturas de
Witte e de Vermeer.4
A memória da cidade, verificada através das edificações, é um elemento
importante na construção da identidade de um povo. De acordo com Ostergosa, “a memória
é constituída de impressão, de experiência e sua importância e significado especial estão no
fato de que ela é o que nós retemos e o que nos dá a nossa dimensão de sentido no
mundo”.( OSTERGOSA, 2009, p1).
4
RYBCZYNSKI, Witold. Casa: pequena história de uma ideia. Rio de Janeiro: Record, 1996, p 85.
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CONCLUSÃO
A história da cidade é contada de inúmeras maneiras, a arquitetura é uma delas.
O que lembram, então, os edifícios antigos? O valor sagrado que os trabalhos
que homens de bem, desaparecidos e desconhecidos, realizaram para honrar
seu Deus, organizar seus lares, manifestar suas diferenças. Fazendo-nos ver e
tocar o que viram e tocaram as gerações desaparecidas, a mais humilde
habitação possui, da mesma forma que o mais glorioso edifício, o poder de nos
pôr em comunicação, quase em contato, com elas.5
A memória da cidade apresenta várias facetas, todas importantes na construção
da identidade do povo. A memória é imprescindível para a saúde social.
A arquitetura residencial e de tipologia em fita, analisada sob o ponto de vista do
conjunto, também expressa e consolida a memória de condições dignas de vida na cidade
de Porto Alegre. Através dela podemos contar nossa história e analisar mudanças em nosso
modo de morar, além de construir nossa identidade como indivíduos que pertencem a uma
mesma nação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BANDEIRA, Manoel. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p 123.
BENÉVOLO, Leonardo. História da Cidade. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 259.
CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade, UNESP,
2006, p 140.
FERRAZ DE SOUZA, Célia e MÜLLER, Dóris Maria. Porto Alegre e sua Evolução Urbana.
UFRGS, 2007.
5
Choay, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade, UNESP, 2006, p 140.
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KLICZKOWSKI, Hugo. Más Pequeños Espacios Urbanos. Barcelona: Loft, 2007. p 7
OSTERGOSA, Sandra Mara. Cidade e Memória: do urbanismo “arrasa-quarteirão”à
questão do lugar.
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.112/30 visualizado em 29/07/2014
RYBCZYNSKI, Witold. Casa: pequena história de uma ideia. Rio de Janeiro: Record,
1996, p 8.
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