O Feirante como performer
Lígia Rizzo
A palavra feira vem do latim féria que significa dia de festa. Na Europa, período
da Idade Média, mercadores de várias regiões reuniam-se para vender seus produtos em
meio a comemorações religiosas, tais situações favoreciam a compra de produtos de
necessidade básica a baixos custos à população, mas, sobretudo favorecia a
sociabilidade dos participantes. Hoje, as feiras livres na cidade de São Paulo acontecem
em vários bairros com características econômicas e sócio-culturais diferentes, porém,
mesmo em contextos diferentes, a sociabilidade é uma característica de suma
importância nesse tipo de comércio se comparado ao comércio de redes de
supermercados ou hipermercados onde a comunicação entre vendedores e clientes é
nula ou quase nula.
Partindo do princípio que a feira livre é um canal de sociabilidade e que “...
organiza-se em redes de relações sociais e suas principais feições são mesclar relações
de trabalho com as familiares de vizinhança e de amizade...” entende-se que a
comunicação seja ela verbal ou visual é parte intrínseca desse sistema, necessária para
que as relações se criem e que o objetivo maior da feira, a venda e a compra de
produtos, se faça (SATO, 2007).
As redes de relações sociais estabelecem-se desde o processo de montagem da
feira até seu término. A montagem das barracas causa uma diferença espacial e sonora
significativa no dia a dia da vizinhança que abriga o evento. Negociações entre os
feirantes e a vizinhança são necessárias para que se estabeleçam regras de convivência
que minimizem possíveis problemas causados pelas atividades da feira. Relações de
amizade entre feirantes, entre feirantes e vizinhança e entre feirantes e clientes se criam,
todas elas tendo como fio condutor a ação de vender e comprar alimentos em um evento
que apesar de parecer caótico possui regras e estruturas de funcionamento muito
específicas.
Os mecanismos de comparação e competição são indissociáveis à venda de
produtos nas feiras livres. Por meios estéticos, verbais e gestuais os feirantes mostram
aos clientes seus produtos, o modo de arrumação dos alimentos, por exemplo, difere de
barraca para barraca; dependendo do tipo de alimento, há a degustação; esses são
atrativos para os clientes, mas há principalmente a comunicação direta do feirante com o
cliente. A competição na venda faz com que os feirantes comuniquem-se de forma a
persuadir clientes que passam em frente suas barracas a comprar seus produtos e essa é
a ação que faz do feirante um interlocutor essencial, sem o qual a feira perde seu
colorido e uma de suas principais características: sociabilidade.
O feirante pode ser visto como a peça principal da feira, sem o desejo de realizar
seu trabalho esse evento não aconteceria. Em grupos os feirantes montam suas barracas
e configuram a feira estabelecendo um tipo de comunicação e uma ambientação que
garantirá o retorno de sua clientela. O que então há de tão especial nessa comunicação e
ambientação?
A montagem da feira cria um isolamento, um ambiente onde modos de agir são
permitidos e entendidos como linguagem especifica daquele sítio. Podemos comparar a
montagem da feira com a montagem de um circo e seus performers aos feirantes, cada
qual com habilidades diferenciadas, mas que juntos formam um único espetáculo ou
evento. Vejo dessa forma que o feirante é um performer, com: senso estético,
gestualidade e linguagens especificas.
Para tal comparação é necessário entender o que é performance.
Roselee Goldberg, pioneira no estudo da arte da performance, em
entrevista concedida a Regina Hackett, revela que prefere o termo live
art no lugar de performance ou body art, uma vez que os artistas
utilizam diferentes linguagens artísticas como: as artes visuais, o
teatro, a música, a dança, o cinema, para a produção de um
“experimento radical”. Além disso, ela afirma que o conceito de live
art expressa uma maior aproximação entre arte e vida nas produções
desses artistas (PEIXOTO, 2008).
Acredito que o feirante pode ser comparado a um performer porque possui, cria
e utiliza suas diferentes habilidades para atingir sua clientela. Essa ação é tão intensa
que faz com que personagens aparecem. Sendo assim, seria possível associar a feira
livre a um evento performático?
“Richard Schechner (2003), um dos pesquisadores e professores do
departamento de Performance Studies da New York University, associação filiada aos
estudos da arte da performance, apresenta oito tipos de situações em que essa linguagem
artística ocorre:
1.
na vida diária, cozinhando, socializando-se, apenas vivendo;
2.
nas artes;
3.
nos esportes e outros entretenimentos populares;
4.
nos negócios;
5.
na tecnologia;
6.
no sexo;
7.
nos rituais – sagrados e seculares;
8.
na brincadeira.
Schechner (2003) também atribui sete funções para a performance: “entreter;
fazer alguma coisa que é bela; marcar ou mudar a identidade; fazer ou estimular uma
comunidade; curar; ensinar, persuadir ou convencer; lidar com o sagrado e com o
demoníaco”. Por fim, afirma que “qualquer comportamento, evento, ação ou coisa pode
ser estudado como se fosse performance e analisado em termos de ação,
comportamento, exibição.”
Já que os gestos dos feirantes e suas habilidades corporais denotam um
comportamento e exibição tão específicos e diferenciados, podemos sim vê-los como
performers.
Através de pesquisas de observação, fotos e vídeos, buscquei elencar quais
seriam as habilidades dos Feirantes performers e como as junções dessas habilidades
contribuem para a formação desse corpo performático que espetacularisa esse momento
tão efêmero e intenso que é a feira livre.
Observando o feirante
Para que fosse possível identificar ações corporais e as especificidades do corpo
do Feirante performer, propus ao trio de pesquisadoras um exercício de observação que
tinha como foco principal elencar:

Quais partes do corpo do feirante têm mais ação;

Qual o tipo de movimentação de suas mãos e braços;

Onde o feirante se coloca em relação à barraca e aos clientes;

Qual ou quais são as ações corporais mais executadas do feirante.
Outras regras para o exercício foram:

Percorrer a feira a procura do feirante que mais chamasse a atenção do
observador (tempo estipulado 15 minutos).

Retornar ao ponto em que estava o feirante a ser observado e observá-lo
(tempo estipulado 15 minutos).

Forma de registro: anotações.
É preciso considerar que a feira escolhida para este exercício foi a localizada na
Rua Maria José. Escolhi esta feira porque ali, até o momento deste exercício, éramos
ainda menos percebidas como pesquisadoras pelos feirantes. Era importante para esse
exercício que nossa presença não fosse tão evidente; que pudéssemos nos tornar
invisíveis aos feirantes e transeuntes. Caso fossemos notadas na condição de
observadoras, resultaria em uma possível mudança de padrões de comportamento doa
sujeitos observados na feira.
Após o exercício os pontos a serem observados se tornaram mais claros e
evidentes, mas tal procedimento ressaltou outros aspectos tão relevantes quanto, o que
nos ajudou a entender mais o corpo do feirante performer.
Da observação dos feirantes notamos que:
O tronco ora se inclina para frente, ora se mantém ereto ou então para frente com
pequenas torções laterais.
Os membros superiores (mãos e braços) estão sempre articulados para exercer
pequenos movimentos, sem muita expansão e que cumprem tarefas coerentes às funções
de quem vende alimentos: cortar, separar, limpar, agrupar, ensacar. Braços se estendem
e flexionam para diferentes direções com o intuito de oferecer, recolher, chamar,
apontar. Os dedos das mãos não se articulam muito. Suas mãos são grossas, e os gestos
pouco delicados.
O corpo caminha de ponta a ponta da barraca. Quando a barraca é muito extensa,
os feirantes caminham com maior velocidade e trabalham em duplas, um atrás dos
produtos e outro à frente da barraca em uma relação ainda mais direta com os clientes,
oferecendo alimentos para degustação e reorganizando os alimentos dentro de um
padrão estético visual pré-estabelecido.
A fala sempre fica em primeiro plano como forma direta de comunicação com os
clientes. Interjeições, jargões, brincadeiras irrompem a todo instante.
O contato também se estabelece pelo olhar. Os olhos dos feirantes procuram os
dos clientes para que a comunicação que antes era verbal se estabeleça.
Os movimentos são repetitivos e também, depois de algum tempo de escuta de
toda a sonoridade do ambiente, percebemos que algumas falas também são repetidas,
como notas musicais dentro de uma partitura muito complexa e de grande volume.
Porém, dentre todas essas habilidades, o aspecto mais importante (e talvez
menos evidente para o público em geral) é o fato de eles estarem sempre alertas ao que
acontece a seu redor. Todo esse estado de alerta cria um corpo específico, por exemplo,
se comparado ao do cliente, que compartilha o mesmo ambiente, por um período menor
de tempo e com um objetivo muito diferente do objetivo dos feirantes.
Há uma urgência na ação do corpo de quem depende da venda de algum produto
para viver. A visão e a audição tornam-se radares. Eles selecionam aquilo que vêem e
escutam para criar frases que estão diretamente ligadas aos clientes e seu cotidiano e
assim chamar a atenção da clientela para eles mesmos, suas barracas e seus produtos.
Outras proposições foram praticadas entre nós pesquisadoras: o “Viajante cego”,
“Corpo estático”, “Empilhamento” - todas com o intuito de entender quais são os
elementos que compõem esse sítio e evento, qual a nossa visão artística desse sítio e
também buscar soluções do que seria interessante apresentar como uma ação
performática na feira, para os feirantes e clientes.
O surpreendente foi que, nossas ações (mesmo que para nós pesquisadoras e
performers tivesse naquele momento um caráter de experimentação, sem o intuito direto
de perceber o corpo do Feirante performer), fizeram com que os feirantes reagissem de
forma mais ativa, expressando contentamento ou desaprovando o que viam e
principalmente compondo, tentando criar um jogo de interação com ações reais e
performáticas. Nossas ações foram um estopim, agentes provocadores que aguçaram a
interação do feirante com o meio, quase como se tivéssemos aberto uma porta para que
eles pudessem expressar ainda mais o potencial criativo e de composição com o sítio.
Como em uma Jam de improvisação, alguns feirantes se sentiram livres para compor a
cena.
Temos ainda que levar em conta o fato que: muitas vezes um feirante circula por
feiras espalhadas por zonas diversas da cidade, com níveis sócio-econômicos diferentes,
o que os faz ter que adaptar constantemente o modo de agir com as diferentes contextos
e suas clientelas.
Como dançarina e performer, consigo facilmente fazer analogias do meu corpo
em uma ação performática ao corpo do feirante. Identifico claramente no corpo de um
feirante agindo em seu sítio – feira, técnicas usadas para persuadir ou chamar a atenção
do público, nesse caso clientela, assim como identifico no corpo de um performer as
técnicas e linguagens corporais usadas para comunicar uma ideia à um público.
Analisar o corpo em uma situação que pareça ser cotidiana, e nesse caso, apenas
porque foge de um sítio comum à dança, nos faz refletir (refiro-me a nós dançarinaspesquisadoras) sobre nosso corpo em ações performáticas. Tal pesquisa me ajudou a
ressaltar aquilo que é essencial na preparação corporal de um performer que age in-situ,
respondendo a possíveis intervenções durante uma ação performática e também
possibilitou pensar em outras ações e situações cotidianas sendo utilizadas como
propulsoras para novas performances. Sabendo que em cada sítio os indivíduos que os
ocupam se utilizam talvez de outras técnicas e ações cotidianas para lidar com
intervenções que fogem a regra comum daquele sítio.
Referências Bibliográficas:
GOLDBERG, RoseLee. Performance Art: from futurism to the present. London:
Thames & Hudson, 2001.
PEIXOTO, Santos J. M. (2008). Breve histórico da Performance Art no Brasil e no
mundo, Revista Ohun, ano 4, n.4, p. 1-32, dez. 2008.
SATO, L. (2007) Processos cotidianos de organização do trabalho na feira livre,
Psicologia & Sociedade; 19, Edição Especial 1, p. 95-102.
SCHECHNER, Richard. O que é performance? Revista O Percevejo, tradução de
Dandara, Rio de Janeiro: UNI-RIO, ano 11, 2003, p.25-50.
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O Feirante como performer. Por: Ligia Rizzo