Terror Pânico:
aspectos góticos do romance-folhetim em O Recreador Mineiro
Luciano de Oliveira Fernandes
Publicados quinzenalmente entre 1º de janeiro de 1845 e 15 de junho de 1848 pela
“Tipographia Imparcial de Bernardo Xavier Pinto de Souza”, os 84 números de O
Recreador Mineiro foram divididos em sete tomos por Bernardo Xavier, responsável pela
fundação, direção e edição desse periódico. Em consonância com a vastidão de campos
intelectuais abarcados pela proposta romântica, cada tomo do Recreador foi dividido em
três seções. Na primeira delas, intitulada “Memória”, é abordada a “História”. Na segunda
seção, intitulada “Razão”, é abordada a “Philosophia”. Por sua vez, a terceira seção,
dedicada à “Imaginação”, contém cantigas e poesia nos gêneros épico e lírico. Na seção
‘História’ foram publicados diversos romances-folhetins, entre eles, Terror Pânico; um
folhetim que apresenta aspectos românticos góticos.
Segundo
Arnold
Hauser1,
“a
predileção
dos
românticos
por
efeitos
melodramáticos”, presente no pré-romantismo e no Sturm und Drang, contribui para a
absorção das histórias de horror inglesas. “Elementos comuns entre o teatro romântico e o
melodrama são, sobretudo, os conflitos tensos e os choques violentos, a trama sinuosa,
ousada, sanguinolenta e brutal; (...) os ardis violentos e irresistivelmente brutais, os assaltos
ao público pelo horrível, o fantasmagórico e o demoníaco(...)”. Assim, observemos em
1
HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. Trad. de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p.705.
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Terror Pânico a caracterização do espaço em que ocorre a ação dessa narrativa
folhetinesca:
“Era em Allemanha: n’uma noite fria e enregelada do frio janeiro
(...) Não ha leitor de folhetins que ignore que é a Allemanha a patria
do mysticismo, do sentimento depurado, da melancolica meditação:
essas prendas allemãas achavão-se no mais subido gráo reunidas
nas duas angelicas filhas do nosso rustico.”2
Segundo Vítor Manuel de Aguiar e Silva, “tal como “gótico”, romântico designa, na
época do iluminismo, tudo o que é produzido pela imaginação desordenada, aquilo que é
inacreditável”3. Desse modo, em Terror Pânico4 pode ser observado o aspecto gótico do
romance pré-romântico, considerado por Carpeaux como a “mística” estranha, terrificante e
sobrenatural aceita pelo público burguês consumidor de literatura5:
“Eis que de repente, Idda, a mais moça das donzellas, estremece e
semi-convulsa: - E’ meia noite, disse, ouvistes? (...) a mais ve-lha
das irmãas, toda tremula no gesto e na voz, como esforçando-se
para dominar os seus terrores: - Ah! meus bons senhores,
respondeo-lhes, foi tão horrisono o toque da meia noite! e nosso
Mog latiu de modo tão doloroso!... Moramos perto do templo da
aldêa. Hoje foi nella depositado, para a manhãa ser levado ao
2
Terror Pânico. In: O Recreador Mineiro. 01/09/1846. nº 41. TomoIV. p.649-650
SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. 3ª ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1973. p.468.
4
Terror Pânico. In: O Recreador Mineiro. 01/09/1846. nº 41. TomoIV. p.649-650
5
CARPEAUX, Otto Maria. Prosa e Ficção do Romantismo. In: O Romantismo. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1978. GUINSBURG, J.(Org) p. 161.
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cemiterio, o cadaver de hum dos entes mais per versos que
habitavão nesta aldêa. Sem temor de Deos nem dos homens foi sua
vida, sem temor de Deos foi sua morte: desde que amanheceo
presentimentos occultos nos annuncião que não descançarà seu
corpo na paz da sepultura, como não descançarà sua alma nos
braços do Creador: esses presentimentos vão-se realisando; o som
lugubre da meia noite, o latido insolito do nosso cão nos assegura
que não pode o cadaver permanecer no templo, que se ergueo do
feretro, para vir pertubar a paz dos vivos. Ah! senhores, não nos
abandoneis; talvez que vossas orações, unidas á nossas, consigão
arredar daqui semelhante apparição.”6
E verificando em Terror Pânico a predileção dos românticos por efeitos
melodramáticos apontada por Hauser7 no pré-romantismo e no Sturm und Drang,
observaremos que a tensão dos conflitos apresentados ao longo da trama se manifesta em
diferentes aspectos. O primeiro diz respeito à tensão existente, com relação ao sobrenatural,
entre o ponto de vista dos estudantes, “acostumados a lidar com bellezas classicas e
românticas”, e o das duas filhas do camponês:
“Os mancebos desatarão a rir, ou porque de facto, fortificados seus
espiritos pela reflexão, não davão credito às historias de almas do
outro mundo, (...) então procurarão tranquillisa-las, uns mostrando
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Terror Pânico. In: O Recreador Mineiro. 01/09/1846. nº 41. TomoIV. p.649.
HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. Trad. de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p.705.
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com todo o rigor logico e subtilezas escholasticas, que tomavão por
profunda argumentação, quanto tinhão de absurdos e de infundados
semelhantes receios (...)”8
O segundo conflito se exprime através da tensão que se estabelece entre Frantz e o
resto do grupo:
“(...) estavão sentados os
mancebos, e no meio delles as duas
moças que os encantavão por seu doce fallar, por suas rusticas
narrações. só de todos o mais velho, Frantz, que suppunha que sua
longa idade, 25 annos, e sua experiencia do mundo lhe impunhão
por dever de bom tom, desprezar o sentimentalismo e o sexo
feminino e proclama-lo todo corrupto e corruptor, não tomava parte
na conversação de seus amigos, e comsigo mesmo condemnava a
parvoice de que davão prova. Inclinada a cabeça entre as mãos,
dormitava aborrecido.
(...)Frantz era o unico que não fazia coro com seus amigos,
persuadia-se que devia zombar com os pavores da credulidade, só
elle se achou com alma para perseguir com insolente sarcasmo a
singela confiança das duas meninas, que os receios fazião ainda
mais bellas e mais feiticeiras.”9
8
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Terror Pânico. In: O Recreador Mineiro. 01/09/1846. nº 41. TomoIV. p.649-650.
Terror Pânico. In: O Recreador Mineiro. 01/09/1846. nº 41. TomoIV. p.649-650
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Outro conflito é seguido de choque entre Wilhelm e Frantz, bem como da proposta
de um ardil violento e brutal para a resolução da tensão estabelecida nos momentos que
antecedem ao clímax:
“Indignado por semelhante proceder, Wilhelm, o mais sensivel de
todos, o que mais desvelado se mostrava em tranquillisar a formosa
Idda, Wilhelm para o fazer callar o interrompe: - (...) achas crassa
estupidez em senhoras assustarem-se por almas do outro mundo:
pois bem; aposto eu que não terás animo de ir ao templo, só, á esta
hora, e ás escuras, tú, valentão que és, e de fincar no caixão esta
faca que aqui tens. - Estás-me insultando; Wilhelm, suppões-me
algum fedelho que ainda a pouco largou os coeiros?”10
Após a resolução dos conflitos anteriores, estabelece-se o conflito entre Frantz e seu
próprio horror: “elles o virão que andava resoluto e apressado a principio, ia, quanto mais
se approximava, mais e mais demorando seus passos, e por fim como que recuava, que não
podia mover os pés, que receiava(...)”11 E, em seguida, novamente o conflito entre Frantz e
o grupo:
“- Frantz, Frantz, clamão os companheiros com grandes risadas,
estàs com medo; não te aventures; confessa-te vencido e volta:
perdeste os 20 florins. - Ao ouvir as mofas dos companheiros,
Frantz recobra alento, dà-lhe forças o desejo de evitar o oppobrio,
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Terror Pânico. In: O Recreador Mineiro. 01/09/1846. nº 41. TomoIV. p.649-650
Terror Pânico. In: O Recreador Mineiro. 01/09/1846. nº 41. TomoIV. p.649-650
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elle dobra o passo, chega á porta do templo, empurra-a sem hesitar
e entra.”12
Como o templo é o espaço do qual provem as sensações de horror em Terror
Pânico, notemos que Vítor Manuel de Aguiar e Silva se refere à mística estranha,
terrificante e sobrenatural associando-a a um locus horrendus13, uma sensibilidade ao
desespero e à angústia, à agitação sombria das visões lúgubres e noturnas. Assim, no
momento seguinte, o clímax, à entrada de Frantz no templo ocorre o assalto ao público pelo
horrível, o fantasmagórico e o demoníaco:
“Dahi a alguns minutos um ai horrisono retumbou na opacas,
silenciosas trevas da noite. Os mancebos espavoridos prestão de
novo attenção, para ver si se repete o gemido; não, o silencio da
noite continuou medonho, e esse silencio e a demora do amigo
ainda mais os espantão: - Volta, Frantz, exclamão angustiados,
volta: - e ninguem responde a seus clamores: - Volta, dizem, e só os
echos repetem -volta -volta. Emfim, não sabendo o que pensem,
nem o que resolvão, não podendo fluctuar nesse pelago de
incertezas: - Vamos ao templo, dizem, procuremos o nosso amigo. E accendem archotes, e cheios de santo horror, encaminhão-se para
o templo. Em meio delle avistão hum caixão, ao pé do caixão hum
cadaver: era Frantz.”14
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Terror Pânico. In: O Recreador Mineiro. 01/09/1846. nº 41. TomoIV. p.649-650
SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. 3ª ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1973. p.465.
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Terror Pânico. In: O Recreador Mineiro. 01/09/1846. nº 41. TomoIV. p.649-650
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Assim, observemos que as situações de conflito impulsionam a sinuosa trama de
Terror Pânico em direção a um ousado e inesperado desfecho que evidencia o último
conflito presente na narrativa – o desesperador e angustiante conflito entre o temor de
Frantz e o locus horrendus:
“Com a precipitação com que se havia decidido a commetter o seu
sacrilegio, para tirar-se quanto antes de tão ardua empreza, Frantz
ao dar a facada, irreflectidamente prendera seu capote ao caixão, e
depois, querendo retirar-se apressado, e achando-se prezo suppoz,
que potencia sobre-natural o segurava, soltou hum ai e caiu morto,
triste victima de sua temeridade.”15
Percebemos então a crítica ao pensamento desordenado e desprovido de razão que
envolve a crença no sobrenatural, como se tal pensamento, como que suprimindo a razão,
pudesse destituir o pensamento científico e levar à morte. Notemos ainda que a predileção
do público leitor de periódicos no século XIX por temáticas que tangenciem o gótico pode
ter balizado a escolha de folhetins como Terror Pânico e outros como Lúcifer16, Huma
alma do outro mundo17, O noivo defuncto18, O Palácio do Diabo19 e O Padre Laurencio20
– nos quais é possível verificar aspectos góticos da narrativa romanesca; como os assaltos
ao público pelo horrível, o fantasmagórico e o demoníaco.
15
Terror Pânico. In: O Recreador Mineiro. 01/09/1846. nº 41. TomoIV. p.649-650
Lúcifer. In: O Recreador Mineiro. TomoII. p.308
17
Huma alma do outro mundo. In: O Recreador Mineiro. TomoIII. p.424
18
O noivo defuncto. In: O Recreador Mineiro. TomoV. p.789 e 809
19
O palácio do diabo. In: O Recreador Mineiro. TomoV. p.833 e 849
20
O Padre Laurêncio. In: O Recreador Mineiro. TomoI, p.179-185; e Tomo II, p. 202-208
16
7
BIBLIOGRAFIA
O RECREADOR MINEIRO. Ouro Preto: Typographia Imparcial de Bernardo Xavier Pinto
de Souza: 1845 – 1848. Tomos I a VII (Biblioteca Nacional)
Terror Pânico. In: O Recreador Mineiro. 01/09/1846. nº 41. TomoIV. p.649-650
Lúcifer. In: O Recreador Mineiro. TomoII. p.308
Huma alma do outro mundo. In: O Recreador Mineiro. TomoIII. p.424
O noivo defuncto. In: O Recreador Mineiro. TomoV. p.789 e 809
O palácio do diabo. In: O Recreador Mineiro. TomoV. p.833 e 849
O Padre Laurêncio. In: O Recreador Mineiro. TomoI, p.179-185; e Tomo II, p. 202-208
CARPEAUX, Otto Maria. Prosa e Ficção do Romantismo. In: GUINSBURG, J.(Org). O
Romantismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.
GUINSBURG, J.(Org). O Romantismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.
HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. Trad. de Álvaro Cabral. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.
SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. 3ª ed. Coimbra: Livraria
Almedina, 1973.
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