Claudio Eugenio Marco Waks
TOXICOMANIA E PSICANÁLISE
O fim da picada. A clínica psicanalítica da toxicomania.
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para a obtenção do título
de MESTRE em Psicologia Clínica, sob a orientação do Professor Doutor Manoel Tosta Berlinck.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
1998
BANCA EXAMINADORA
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AGRADECIMENTOS
Ao CNPq que, através de uma bolsa de estudos, possibilitou a realização
deste trabalho.
Ao meu amigo e orientador Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck, que
considero como um pai que apostou no filho.
Ao meu pai José Waks, que legou-me o senso de responsabilidade e
perseverança.
À minha mãe Sara Silberleib, que transmitiu-me a alegria de viver.
Ao meu irmão Mário Daniel Waks, que considero meu primeiro mentor
intelectual.
À minha irmã Viviana Patrícia Waks, cujo amor incondicional sempre foi
uma fonte essencial de apoio.
A todos meus colegas do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da
PUC-SP, e particularmente a Ana Cecília Magtaz Scafuzca, Ana Cleide Guedes
Moreira, Maurício Garrote, Marta Conte, Rubens Marcelo Volich e Antônio
Ricardo Rodrigues da Silva.
Aos meus filhos Daniel e Jonas com quem aprendi muito sobre mim
mesmo.
Aos meus sogros Sulamita e Boris que me acolheram generosamente.
À minha ex-mulher Heidi Tabacof, que me proporcionou a estrutura
afetiva necessária para meu desenvolvimento.
À minha companheira atual, Angela Rangel cuja companhia me é
essencial.
Ao Dr. Luiz Mário Frenkiel que, além de outorgar-me sua prezada
amizade, fez também importantes contribuições para este trabalho.
Ao meu eterno amigo Ernesto que magnanimamente apresentou-me a
terra brasileira.
À Maria Carolina de Medina que sempre se mostrou disposta a ajudar-me
resolver problemas de toda ordem.
A todos os meus pacientes com os quais aprendi muito e que sem os
mesmos esta dissertação não teria sido possível.
3
ÍNDICE
Resumo ........................................................................................................... 005
Introdução ....................................................................................................... 006
Da cocaína ao sonho ...................................................................................... 028
Às vezes um charuto não é meramente um charuto ....................................... 043
Supostos saberes nosográficos ...................................................................... 056
O lixo clínico .................................................................................................... 100
Um ponto além da favela ................................................................................ 114
Conclusão ....................................................................................................... 126
Bibliografia .................................................................................................... 128
4
RESUMO
Na introdução desta dissertação faço um relato autobiográfico do meu
percurso em relação a toxicomania e psicanálise. Questiono a eficácia do ponto
de vista da psicopatologia psicanalítica clássica no tratamento desta
manifestação psicopatológica, propondo o ponto de vista da psicopatologia
fundamental como alternativa.
Os dois primeiros capítulos tentam elucidar os motivos que
poderiam
esclarecer
a
enigmática
ausência
de
um
estudo
dedicado
especificamente à toxicomania na obra freudiana. Avento a hipótese desta
ausência ser produto, por um lado, de situações traumáticas vividas por Freud
durante seu envolvimento com a cocaína, e por outro, da possibilidade que ele
tenha considerado a toxicomania como um fenômeno psicopatológico além da
eficácia terapêutica da psicanálise.
O terceiro capítulo traz uma revisão crítica da literatura
psicanalítica pondo em foco questões etiológicas e nosográficas relacionadas à
toxicomania, a partir de artigos de autores contemporâneos de Freud e outros
mais recentes. O quarto capítulo descreve as particularidades de meu trabalho
clínico com esta patologia, para logo apresentar, no capítulo seguinte, um caso
clínico como ilustração.
Conclui-se
que o corpo teórico da clínica psicanalítica da
toxicomania é ainda bastante incipiente, visto que o número de toxicômanos que
procura tratamento de orientação psicanalítica é reduzido, assim como o número
de psicanalistas que se dispõem a trabalhar com este tipo de patologia.
5
INTRODUÇÃO
Esta dissertação resulta de um longo percurso de investigação e
contato com as drogas, seus efeitos e o tratamento clínico das manifestações
psicopatológicas associadas à dependência. Nesta introdução apresentamos o
desenvolvimento de nossas indagações através de um relato autobiográfico dos
momentos mais relevantes para, a partir destes, apresentar os temas abordados
nos capítulos seguintes.
Consumir drogas corresponde a uma prática humana milenar e
universal. Não existe sociedade sem drogas sendo o padrão, espécie e
freqüência de consumo um importante revelador da sua organização, crenças e
mitos. Embora o uso de drogas seja pautado desde os primórdios da história por
objetivos comunitários, há períodos onde, em conseqüência de crises sociais,
grupos podem recorrer às drogas como manifestação ideológica de revolta e
contestação da ordem estabelecida.
No final dos anos sessenta e começo dos anos setenta tivemos a
oportunidade de participar do movimento Hippie no local considerado como seu
berço, a cidade de Berkeley na Califórnia, EUA, onde estudamos Psicologia.
Durante aquele momento da história o consumo de drogas irrompeu como uma
síndrome mundial associada a uma ideologia — a esperança de operar
transformações nos valores reinantes de consumismo e individualismo
representados pelo chamado american way of life.
6
A proposta era drop out and tune in, cair fora do modelo
competitivo proposto pelo sistema vigente para sintonizar-se nos novos valores
que surgiam da Era de Aquário: irmandade, harmonia e compreensão. Era a
camiseta psicodélica contra o terno cinza.
Drogar-se significava ser contra, ser anticapitalista, antiimperialista,
antiautoritário, antiracista, "antitudo" que a sociedade de massa representasse.
O Leitmotiv deste movimento social da contracultura era a resistência à Guerra
do Vietnã, seu estandarte, a droga, e seu slogan "paz e amor".
Surgiram apóstolos do psicodelismo (Timothy Leary, Abbie
Hoffman, Aldous Huxley e outros) que preconizavam a desconstrução da
realidade para atingir níveis mais elevados de consciência, de percepção do
universo, da vida, da interioridade humana.
É importante ressaltar que esta proposta de mudança não trazia
em seu bojo a destruição tanática dos valores vigentes, mas sua desconstrução
erótica. O consumo de drogas não era um elemento desintegrador e destrutivo,
não se tratava de um consumo tanático. As drogas, especialmente a maconha e
o LSD, eram o sacramento de um rito de passagem erótico para transcendência
social.
O fim da Guerra do Vietnã, conjuntamente com a capacidade do
capitalismo neoliberal de conviver com a contracultura transformando-a num
negócio lucrativo, aliadas ainda à evolução negativa da conjuntura econômica
das sociedades ocidentais trouxe mudanças profundas neste quadro.
7
O consumo de drogas usado ideologicamente pelo flower power
como meio de transcendência social perde sua qualidade teleológica,
convertendo-se em um fim em si mesmo; uma atividade tanaticamente autoerótica. A dinâmica efervescência contestatória cede a um desencanto cada vez
mais radical, chegando a suscitar, ao invés de prazer e transcendência, violência
e auto-destruição.
Desiludido com o retorno do modelo consumista e a falta de ideais,
o movimento Hippie desarticula-se, mas seu legado de sex, drugs and rock'n' roll
permanece. Como expressão da falta de ideologia, do sentimento de vazio,
sofrimento e depressão surgem novos movimentos (Punks, Skin heads, dentre
outros) que herdam aquele mesmo legado Hippie, mas suplantam as drogas
suaves de amor e beleza pelas "drogas duras" (heroína, cocaína e mais
recentemente, crack) trazendo em sua bagagem a decadência física e moral, a
violência e a marginalização, a solidão e o suicídio.
As "drogas ideológicas" são suplantadas pelas "drogas duras",
duras como a realidade concreta que tentam evitar, e não transformar. Nossa
experiência clínica tem demonstrado que após a "lua de mel" das primeiras
descobertas, dependendo do contexto e da pessoa, estas drogas e este tipo de
consumo aumentam o vazio e o desespero.
O consumo então requer um ritmo mais acelerado entrando em
múltiplas misturas com álcool, medicamentos e outras drogas podendo tornarse uma atividade praticamente exclusiva na vida do indivíduo. A tentativa de
evitar a realidade e seu esquecimento acaba inexoravelmente falhando dando
lugar a uma intolerável consciência de decrepitude moral e física.
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É este o quadro clássico do toxicômano grave que constitui-se em
refugo social, entulho da sociedade e "lixo clínico" para a psicanálise, como
descrevemos no capítulo dedicado à clínica psicanalítica da toxicomania nesta
dissertação.
Continuando com o percurso de nossa pesquisa, dez anos mais
tarde, tivemos o primeiro contato com o abuso de drogas no Brasil.
Este deu-se através do trabalho social de cunho psicanalítico
(Associação para o Desenvolvimento do Cidadão) com "meninos de rua",
menores abandonados que viviam em condições infra humanas tentando
sobreviver graças à mendicância, biscates ou delinqüência.
Entre seus hábitos, destacava-se o de "cheirar cola de sapateiro",
ato este que despertou nossa curiosidade e levou-nos a considerar a
possibilidade desta prática ter alguma significação psíquica.
Estes
precoces usuários de drogas revelaram-nos a extrema
versatilidade dos lugares que a droga pode ocupar; além de um relativo prazer
naquele contexto de miséria física e psíquica, a droga cumpria a função de
satisfazer, mesmo que imaginariamente, as necessidades básicas de um
cidadão: casa, comida, família ...
A "cola" era necessária, um meio de subsistência vital. Desta
maneira, começamos a perceber que no terreno da toxicomania o elemento
volitivo é secundário à peremptoriedade da necessidade.
9
Os próximos anos foram dedicados à nossa formação em
psicanálise durante a qual o tema da clínica psicanalítica da toxicomania esteve
sempre presente.
Decidimos aprofundar a pesquisa sobre o tema e foi assim que um
anúncio no jornal chamou nossa atenção para um curso breve promovido pelo
IMESC (Instituto de Medicina Social e Criminologia) sob o título "Curso de
capacitação para prevenção do uso indevido de drogas".
Seguindo a concepção de Olievenstein (1986) - que considera três
determinantes articulados no estabelecimento de toxicomania - o curso era
divido em três módulos: droga, indivíduo e contexto sócio-cultural.
No intuito de compreender melhor o percurso de nossa pesquisa,
consideramos relevante apresentar algumas questões que surgiram naquela
época.
Um profissional especializado no tratamento de adolescentes
toxicômanos apresentou considerações muito instigantes a respeito da sua
prática clínica. Ouvi-lo declarar que fazia uso da sedução como tática
terapêutica para atrair e manter seus pacientes no tratamento foi surpreendente;
para nossa incipiente prática psicanalítica isto era sinônimo de heresia.
Embora neste momento o tratamento clínico da toxicomania
parecesse dificilmente abordável do ponto de vista psicanalítico, começamos a
vislumbrar a necessidade de uma prática psicanalítica sem que a "ortodoxia
fundamentalista" limitasse a versatilidade que a clínica deste fenômeno
10
psicopatológico parecia demandar. O manejo destes pacientes parecia também
apontar para a necessidade de uma modificação na técnica psicanalítica que
veio confirmar-se posteriormente, como é descrito no capítulo dedicado a clínica
neste livro.
Avançando
no
curso
e
no
nosso
percurso,
indagações
apresentadas numa palestra sobre a personalidade do toxicômano tiveram um
forte impacto sobre nós, não tanto pelo seu conteúdo, mas pela atitude do
apresentador.
Sua postura levou-nos a considerar ser necessário assumir uma
boa dose de humildade e ignorância teórica ao lidar com a toxicomania,
tentando abordar a clínica de um ângulo mais fenomenológico do que pelo
prisma de rígidas fórmulas pré-estabelecidas.
A classificação nosográfica estrutural proposta pela psicopatologia
psicanalítica clássica parecia estar aquém do fenômeno levando-nos a
considerar a hipótese que a toxicomania fosse um sintoma que poderia
manifestar-se nas neuroses, nas psicoses ou nas perversões.
Entrar em contato com os escritos de Kalina (1985) sobre o
1
consumo de drogas na adolescência levou-nos, em contraposição a ele, a
diferenciar o uso recreativo, exploratório ou abusivo de entorpecentes.
Para este autor, todo e qualquer jovem usuário de drogas é um
desajustado que em seu desespero apela às drogas para aliviar tensões
1Kalina D., Os jovens tomam drogas - Por que? (1985). In: Aos pais de adolescentes; São Paulo, Francisco
Alves, 1985, p. 60 - 61.
11
oriundas de conflitos familiares e do processo de crescimento. A droga é uma
espécie de anestésico criado pela sociedade para apaziguar aqueles que mais a
contestam.
Para tentar justificar sua posição,
Kalina lança mão de um
exemplo que consideramos infeliz: o Festival de Rock Woodstock de 1972 nos
EUA. A única maneira que, segundo Kalina, milhares de jovens poderiam passar
três dias juntos sem violência seria estando totalmente anestesiados pela droga.
Ora, a proposta do encontro era justamente a vivência do "paz e
amor"; teria sido só por causa das drogas que estes jovens teriam convivido
pacificamente durante o evento ? Não estaria Kalina escamoteando a questão
da diversidade de usos de droga ?
Apesar de considerarmos as afirmações de Kalina bombásticas e
categóricas, concordamos com ele quando no mesmo texto afirma que a
"toxicomania não é uma rebeldia mas uma submissão; não é um projeto de vida
mas sim de morte" . Esta declaração pode considerar-se como sendo válida para
2
o consumo abusivo de drogas, mas não necessariamente para seu uso
recreativo ou exploratório.
Esta distinção fez-se necessária e essencial para nosso trabalho
clínico posterior quando procurado por pais de adolescentes extremamente
aflitos por terem descoberto que o filho experimentara ou consumia drogas
esporadicamente.
Consideramos
que
uso
de
drogas
não
representa,
necessariamente, uma manifestação psicopatológica. Este ponto é abordado em
outros capítulos deste livro.
2
Idem. P. 62
12
Desta maneira, o curso do IMESC representou o começo do
percurso da nossa pesquisa teórica, aumentando o interesse pela sua
continuidade. Inconformados com o fim do curso e ávidos por mais
conhecimento em relação à toxicomania, propusemos aos participantes
continuar o estudo por nossa própria conta.
Foi assim que fundamos e coordenamos o NEST (Núcleo de
Estudos Sobre Toxicomania), espécie de foro onde podia-se pensar e discutir
abertamente temas relacionados à toxicomania.
O núcleo veio preencher uma lacuna na cidade de São Paulo como
espaço de reflexão e ponto de referência para o qual convergia informação e do
qual emanavam questionamentos relacionados ao tratamento, prevenção e
elaboração teórico-clínica sobre o fenômeno toxicomaníaco.
Foram três anos e meio durante os quais, todo segundo sábado do
mês, uma população itinerante reunia-se para uma variada série de atividades.
Assistimos vídeos, lemos e discutimos textos, fizemos algumas
visitas técnicas a clínicas de desintoxicação e ouvimos o relato do
funcionamento de outras no Brasil e no exterior, convidamos palestrantes,
comentamos congressos e conferências, discutindo também casos clínicos.
Se por um lado estas atividades suscitaram ainda mais indagações
em relação a qual seria o papel da psicanálise na clínica da toxicomania, por
13
outro aumentaram nossa suspeita que a toxicomania não se manifesta
exclusivamente em uma das estruturas psicopatológicas propostas pela
psicanálise.
Muito pelo contrário, a medida que nosso conhecimento ampliavase o toxicômano parecia ser, cada vez mais, um pouco de tudo: um pouco
psicótico, um pouco perverso, um pouco neurótico, um pouco maníacodepressivo, um pouco homossexual...
O perigo, segundo Olievenstein (1985), reside justamente em
tratarmos somente daquele "pouco" que nos é familiar, o pouco que se enquadra
em alguma das três grandes estruturas de base negligenciando o singular
enigmático. Isto implicava numa revisão da nosografia psicanalítica clássica.
Considerando que o percurso da nossa pesquisa não tinha nos
propiciado, até esse momento, a possibilidade da escuta clínica deste fenômeno
psicopatológico, decidimos treiná-la em espaços onde pudéssemos entrar em
contato com o discurso da toxicomania.
Com este propósito, passemos a freqüentar um grupo de
Toxicômanos Anônimos e oferecemos nossos serviços como voluntários em um
ambulatório público especializado no tratamento de farmacodependências,
ambos na cidade de São Paulo.
A experiência no grupo de Toxicômanos Anônimos estendeu-se
por oito meses, sendo extremamente profícua e reveladora. Apesar de não ser
14
em um setting clínico, estávamos, finalmente, em contato com o discurso
toxicomaníaco.
Os depoimentos apresentavam uma certa uniformidade, mas
dentre todos, um chamou nossa atenção marcando-nos profundamente e sendo
inclusive, a fonte de inspiração para o subtítulo deste livro: "O fim da picada".
Após apresentar-se como é de praxe, como "um toxicômano em
vias de recuperação que reconhece sua impotência perante as drogas", o
depoente anônimo passou a relatar o horror em que sua vida tinha se
transformado enquanto fazia uso endovenoso de cocaína.
Concluiu seu escatológico depoimento comentando que só agora
percebia que o abuso de drogas não era seu problema, era a "solução" que
tinha achado para não entrar em contato com a "enfermidade que sou eu
mesmo."
Picar-se — injetar cocaína na veia — não era o problema, era a
solução! Parar de picar-se, o fim da picada, era o território do desconhecido e
assustador; quem sabe até pior! O relato da fragilidade e extremo desamparo
vividos no processo de interrupção do uso endovenoso de cocaína levou-nos a
tentar compreender este fenômeno.
Recorremos ao dicionário em busca da definição da palavra picada
achando as seguintes definições: 1. ato ou efeito de picar(se). 2. Trilha ou atalho
estreito, aberto no mato a golpes de facão . Associei com pica-pau e imaginei a
3
3 Buarque de Holanda, A., Novo Dicionário da Língua Portuguesa Aurélio, 2º Edição. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1986, p. 1324.
15
seringa/agulha-penis
irrompendo
inefavelmente,
gozo
um
no
orgástico
eu-pele
para
incomparável;
propiciar,
a
infalível
concretização
e
da
humanamente impossível cópula hermafrodítica.
Se nada podia ser tão avassalador, intenso e genuinamente
indubitável, porque desejar o fim desta picada? Para desviar-se rumo a trilhas
mais incertas?
Entendemos que embora estreita, a picada é uma trilha clara,
certa, evidente... No emaranhado mato psíquico a picada serve como eficaz
atalho para o retorno ao gratificante auto-erotismo.
O paraíso perdido é recuperado, só que neste retorno o tabu do
fruto proibido é negado. Vive-se trepado na macieira saboreando gulosamente
aquilo que elimina a diferença entre desejo e gozo. Sem limites nem interditos, o
gozo reina despoticamente. Desejar é sinônimo de gozar.
Constatamos mais tarde, que seres que trilham esta picada portam
marcas indeléveis que não se limitam aos traços deixados nos seus sulcos
sangüíneos, carregam também marcas mnêmicas de onipotência e gozo pleno
que norteiam seus percursos. O fim da picada representa uma impotente
desorientação em um mato fechado, sem facão nem bússola e sem diploma de
sobrevivência na selva. Um verdadeiro estado de choque.
Nossa experiência posterior demostrou-me que o tratamento de
seres em condições de subsistência tão precárias requer um savoir-faire muito
16
particular. Primeiramente, deve-se entender que indivíduos em estado de
choque precisam de pronto socorro. Isto implica que para estes indivíduos —
que se encontram "em um mato sem cachorro" — um dos papéis que cabe ao
psicanalista é o do "mais fiel amigo" do frágil desorientado.
Existe um investimento e apoio incondicional, mesmo quando este
"fiel amigo" é sadicamente atacado pelo seu "amo". As freqüentes recaídas,
actings-out e faltas devem ser compreendidas como tentativas de defender-se
do vínculo transferencial. O lugar que consideramos necessário que o analista
ocupe no tratamento psicanalítico da toxicomania é abordado no capítulo
dedicado à clínica nesta dissertação..
Voltemos aos depoimentos nas reuniões dos Toxicômanos
Anônimos. Seus discursos pareciam convergir para um consenso geral no qual
drogar-se seria um mecanismo de autodefesa contra a angústia criada pelo
amplo hiato entre aquilo que se é e aquilo que se gostaria ou deveria ser.
O caminho da recuperação dependia, segundo eles, de poder verse mais humildemente, de ter a coragem de enfrentar-se sem pretensões
mirabolantes; poder enfrentar a voz crítica de um superego sádico e
persecutório.
A importância de abordar a problemática da toxicomania do ponto
de vista dos conflitos superegóicos ficou desta maneira, evidente e levou-nos a
considerar transformar as sessões de análise em palco de uma ruidosa
confrontação verbal entre as instâncias psíquicas. Para poder lidar com o
inimigo nada melhor do que conhecê-lo, dando-lhe voz !
17
O trabalho voluntário no ambulatório público do Instituto de
Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo teve grande relevância no percurso da nossa pesquisa sobre a
toxicomania. Nos dois anos que fizemos parte do GREA (Grupo Interdisciplinar
de Estudos do Alcoolismo e Farmacodependências) cumprimos várias funções
no setor de Psicodinâmica cujo referencial teórico era a psicanálise e tinha
objetivos de pesquisa, ensino e tratamento.
Como responsáveis pela área de ensino organizamos um grupo de
estudos sobre psicanálise e toxicomania tendo assim a oportunidade de
investigar a literatura existente relacionada ao tema e de comprovar sua
escassez.
Ao mesmo tempo esta pesquisa revelou-nos que não existe nos
escritos freudianos um trabalho dedicado especificamente à toxicomania.
Consideramos enigmático o fato de Freud não ter refletido psicanaliticamente
sobre o tema - pelo menos nas obras publicadas - uma vez que ele teve
experiências com o uso de drogas.
Tento decifrar este enigma em dois capítulos desta dissertação em
que avento a hipótese desta ausência ser produto, por um lado, de situações
traumáticas vividas por Freud em relação à cocaína e por outro, a possibilidade
dele considerar o fenômeno da toxicomania como sendo inanalisável.
Dedicamos outro capítulo aos escritos teóricos de diversos autores
contemporâneos e posteriores a Freud, onde discutimos questões etiológicas e
18
nosográficas que surgem da tentativa de enquadrar a toxicomania como
fenômeno psicopatológico característico de uma estrutura psíquica em
particular.
Através da experiência na função de supervisor médico-paciente,
tornou-se cada vez mais evidente a importância do vínculo transferencial no
tratamento da toxicomania. O material clínico era apresentado por estudantes de
medicina que se associavam voluntariamente ao GREA para um estágio
extracurricular no tratamento desta manifestação psicopatológica.
A ênfase do nosso trabalho recaía na tentativa evitar a assepsia
médica que ignora os mecanismos psíquicos no surgimento das patologias,
acentuando a dimensão subjetiva implicada no adoecer e no tratamento.
Tentamos também transmitir a noção do relacional no processo
terapêutico, a idéia que a doença circula na relação terapêutica e não se reduz
às manifestações sintomatológicas. Procuramos ressaltar a necessidade de uma
postura clínica mais aberta, um deixar-se afetar pelo fenômeno psicopatológico
ao invés de defensivamente enclausura-lo nosograficamente.
No setor de tratamento, o "Projeto Enfermaria" possibilitou-nos
acompanhar, como parte de uma equipe interdisciplinar, vários pacientes
internados na instituição. Esta oportunidade revelou que certos casos
manifestam necessidades terapêuticas que o tratamento psicanalítico em
consultório não pode conter, sendo imprescindível trabalhar sinergicamente com
outros profissionais.
19
Esta experiência ajudou-nos posteriormente a conduzir casos desta
índole na minha clínica particular. O caso clínico que apresentamos neste livro
levanta, entre outras, questões relacionadas ao trabalho multidisciplinar com um
paciente toxicômano internado numa clínica de desintoxicação.
As indagações que surgiram do percurso de todas estas atividades
conjuntamente com aquelas oriundas da nossa experiência clínica, aumentaram,
consideravelmente nossos questionamentos em relação à clínica psicanalítica
da toxicomania. Considerações de ordem etiológica, nosográfica e metodológica.
Afinal, a toxicomania seria característica da estrutura inerente às
neuroses de transferência, neuroses atuais ou neuroses narcísicas, psicoses ou
perversões, psicopatias ou ainda, às estruturas border-line ?
Constituiria a toxicomania uma entidade nosográfica autônoma ?
Poderia se falar de um caráter toxicomaníaco ou de um modo específico de
funcionamento mental ? Haveria então necessidade de cunhar uma nova
nosografia ?
A possibilidade da toxicomania ser um fenômeno psicopatológico
autônomo, ou seja, que não se enquadra nos quadros clínicos clássicos da
psicanálise, impediria que fosse abordada do ponto de vista da teoria
psicanalítica ?
20
Tratar-se-ia de um sintoma que poderia manifestar-se em qualquer
estrutura psíquica, ou seria um problema econômico, um problema de
intensidades, que perpassaria a noção de estrutura ?
O mero uso de certos produtos de forma sintomática seria
suficiente para constituir uma organização psicopatológica específica ? Haveria
necessidade de modificar a técnica psicanalítica no manejo destes pacientes ?
Quais seriam as considerações metapsicológicas necessárias para
fundar um discurso psicanalítico a respeito da toxicomania ? Seria necessário
rever o próprio ponto de vista da psicopatologia psicanalítica ?
Na tentativa de abordar clinicamente este fenômeno do ponto de
vista da psicanálise, observamos que a toxicomania não se reduz a uma
classificação ou estrutura psicopatológica unívoca. As categorias nosográficas e
estruturas psíquicas propostas pela psicanálise me parecem reducionistas e
insuficientes perante o polimorfismo inerente ao fenômeno.
Notei que enquanto problemática clínica, a toxicomania remete a
psicanálise à questão de seus limites, pondo em xeque tanto a teoria como a
técnica analítica.
Por outro lado, esta manifestação psicopatológica leva a pensar no
possível desenvolvimento da psicanálise, uma vez que a atividade de teorização
só tem sentido enquanto acompanha os movimentos que a clínica lhe impõe.
21
Com o propósito de acompanhar os desafios apresentados pela
prática clínica no tratamento da toxicomania, ingressamos no Programa de
Mestrado da PUC e passamos a fazer parte do Laboratório de Psicopatologia
Fundamental, coordenado pelo Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck.
A partir dos estudos lá realizados compreendemos que as
considerações acima colocadas surgem como conseqüência do ponto de vista
ou posição da psicopatologia psicanalítica clássica. Segundo esta, toda
manifestação psicopatológica do psiquismo deve, necessariamente, encaixar-se
em uma das estruturas nosográficas específicas por ela proposta e abordadas
conforme técnicas e regras fundamentais.
A psicopatologia da clínica cotidiana, não obstante, demonstra que
a concepção estrutural da psicopatologia psicanalítica é uma classificação
psicopatologicamente perversa, visto que limita a multiplicidade da riqueza
psicopatológica subjetiva à uma interpretação unívoca deixando de fora o inédito
e singular.
Abordar clinicamente o fenômeno psicopatológico da toxicomania
do ponto de vista da psicopatologia psicanalítica clássica promove no analista
sensações de fracasso, marginalidade e perplexidade.
A primeira deve-se as dificuldades intransponíveis na tentativa de
reduzir e classificar o fenômeno dentro dos quadros clínicos clássicos; a
sensação de marginalidade surge da prática clínica onde as regras técnicas
tradicionais precisam ser freqüentemente transgredidas e a terceira sensação,
22
resulta das outras duas, pois sem estruturas ou leis rígidas surge o enigmático
singular que produz perplexidade.
Um ponto de vista diferente da psicopatologia psicanalítica clássica
que inclua este enigmático singular inerente a todo caso clínico e que,
possivelmente, permita uma prática clínica menos persecutória para o analista,
requer um posicionamento mais flexível com relação ao método ortodoxo da
psicanálise; um compromisso essencial com a prática clínica.
A respeito, diz Olievenstein (1989): "Não existe legitimidade senão
na referência clínica, não há referência clínica senão a constatada na prática e
constantemente corrigida pela experiência."
4
Trata-se de considerar uma posição mais flexível cujo objetivo não
é aprender psicopatologia, mas "observar, questionar, analisar e pensar
psicopatologicamente."
5
Para compreender melhor a diferença implicada nestas duas
posições é importante que abramos um parêntese explicativo, que rompe um
pouco com o curso desta introdução. Detenhamo-nos, brevemente no conceito
de posição e seu desenvolvimento através da história.
Na civilização grega, especialmente na Atenas de Péricles,
existiam várias posições que implicavam modos diferentes de relação com a
polis.
4Olievenstein
C., A clínica do toxicômano, Porto Alegre, Artes Médicas, 1989, p. 116.
K., Psicopatologia Geral (1913) In: Drogas e drogadição no Brasil. Bucher R., Porto Alegre,
Artes Médicas, 1992, p. 207.
5Jaspers
23
A primeira posição, orthos, — em grego, "irrepreensível", e fonte
etimológica da palavra "ortodoxo" — implicava uma forma de fidelidade total no
cumprimento de uma doutrina, na intransigência em relação ao inédito e na
rejeição de novas idéias ou princípios.
Esta posição era transmitida nos meios acadêmicos atenienses
como meta a ser atingida pelos cidadãos na busca da retidão, da postura
impecável perante toda e qualquer circunstância.
Além desta posição, existiam pelo menos duas outras manifestas
na polis: a do historiador e a do teatro-medicina. A posição do historiador não
era "irrepreensível"; era a posição da testemunha que olha, escuta, anota e
relata o ocorrido para estabelecer, principalmente, a memória e as diferenças
entre os gregos e os estrangeiros.
A terceira posição, encontra suas origens no teatro e na medicina
durante o chamado "século de Péricles".
Esta posição se opõe à orthos pois não pretende convencer o
interlocutor da "irrepreensibilidade" da sua posição e sim apresentar um discurso
mito-poiético-epopéico que produza experiência mental.
O teólogo Burkett (1997) resume o contraste entre estas duas
posições da seguinte maneira:
"Mythos, como oposto de logos, que deriva de leigen, quer dizer
"reunir", ou associar fragmentos de indícios, de fatos verificáveis;
logon didonai, significa prestar contas diante de uma audiência
crítica e desconfiada; mythos é contar uma história sobre a qual
24
não se tem responsabilidade: ouk emos ho mythos, não inventei
isso, apenas ouvi falar por aí."
6
A medicina no século de Péricles — segundo Platão no diálogo
sobre As leis — era praticada por dois tipos diferentes de médicos, dependendo
de quem fosse o paciente.
Por não saberem falar, os escravos e estrangeiros eram medicados
em silêncio após minuciosa observação; os cidadãos, sabendo falar, eram
medicados após narrarem numa linguagem mito-poiética-epopéica os percursos
daquilo que os fazia sofrer no corpo, seu pathos.
Como relato subjetivo sem responsabilidade de acurado, pathos
opõe-se a orthos.
Assim, deste ponto de vista, da posição do teatro e da medicina na
época de Péricles,
o conceito "psicopatologia" — psyché, pathos, logos
(discurso associativo relacionado ao sofrimento da alma) — não faz parte do
logon didonai baseado no discurso racional ortodoxo e irrepreensível, mas do
pathos na sua dupla dimensão de paixão e sofrimento passivamente
experimentado que pode levar ao conhecimento.
Esta formulação é claramente proposta por Fédida (1988)
referindo-se a um dos grandes poetas e tragediógrafos do século de Péricles:
"Na tradição do poeta Ésquilo emprega-se a
expressão pathei matos para designar o que é
pático, o que é paixão, o que é vivido. Aquilo que
pode se tornar experiência ... 'Psicopatologia'
6Berlinck M. T. O que é psicopatologia fundamental ? In: Revista Latinoamericana de Psicopatologia
Fundamental, vol. 1, n° 1, março de 1998, São Paulo: Escuta, pg. 52
25
literalmente quer dizer: um sofrimento que porta em
si mesmo a possibilidade de um ensinamento
interno. Como paixão, torna-se uma prova, e como
tal, sob a condição que seja ouvida por alguém, traz
em si mesma o poder de cura. Isso coloca
imediatamente a posição do terapeuta. Uma paixão
não pode ensinar nada, pelo contrário, conduz à
morte se não for ouvida por aquele que está fora,
por aquele que é estrangeiro, por aquele que pode
cuidar dela."
7
A leitura esquiliana da psicopatologia inaugura a concepção de
uma Psicopatologia Fundamental que se constitui como uma posição clínica
específica interessada em suscitar uma experiência que seja compartilhada pelo
sujeito.
A posição clínica da Psicopatologia Fundamental é o cuidado das
paixões, do pathos, colocando ênfase na relação transferencial. Berlinck (1998)
define esta posição com as seguintes palavras:
"Desde que a posição da Psicopatologia Fundamental
é tal que se dispõe sempre a escutar um sujeito que
porta uma única voz que fale do pathos que é somático
e que vem de longe e de fora, ela é sempre objeto da
transferência, ou seja, de um discurso que narra o
sofrimento, as paixões, a passividade que vem de
longe e de fora e que possui um corpo onde brota, para
um interlocutor que, por suposição, seja capaz de
transformar com o sujeito, essa narrativa numa
experiência. Esta palavra, aqui, adquire o sentido
preciso de enriquecimento, ou seja, a experiência é a
possibilidade de se pensar aquilo que ainda não foi
pensado."
8
7Fédida
P., Amor e morte na transferência. In: Clínica psicanalítica: estudos. São Paulo, Escuta, 1988), p.
38
8Berlinck M. T., op. cit. p. 57.
26
`
A compreensão ortodoxamente rígida das estruturas clínicas
propostas pela psicopatologia psicanalítica clássica torna-se um empecilho na
escuta do discurso mito-poiético-epopéico que narra o sofrimento.
Com isto, não estamos querendo sugerir que as entidades clínicas
típicas devam ser postas de lado; não se trata de abandonar ou ignorar a
tradição mas de enriquecê-la pela pluralidade de pontos de vista.
A partir da posição da Psicopatologia Fundamental a classificação
nosográfica e o diagnóstico são indeterminados, abertos a mudanças. A
nosografia trabalha a favor do tratamento do singular em vez de aprisioná-lo e
domesticá-lo.
O fiel da balança nesta posição não é um diagnóstico estrutural,
mas a escuta da fala do sujeito na relação transferencial. A Psicopatologia
Fundamental propõe um retorno às origens da investigação psicanalítica tal
como foi conduzida por Freud nos seu primórdios: o teórico-genérico é
secundário ao prático-singular.
Assim, embora a teoria freudiana aponte para a natureza estrutural
dos fenômenos psicopatológicos — neuroses, perversões e psicoses — aponta
também para uma abertura na compreensão diagnóstica fundamentada num
ponto de vista estritamente clínico.
Esta abertura é manifesta na análise do "Caso Dora" e em
"Dostoievsky e o parricídio" onde existe uma simultaneidade de diagnósticos de
neurose e perversão.
27
A posição proposta pela Psicopatologia Fundamental implica, como
qualquer outra posição, uma dis-posição — um prévio estar implicado com algo,
e consigo mesmo.
A disposição qualifica a posição abrindo a possibilidade de que,
através da disposição de escutar a voz que fala do seu pathos, se dê
experiência.
A esta qualificação da posição Freud deu o nome de Übertragung,
e nós de transferência. É esta a posição a partir da qual consideramos que toda
e qualquer manifestação psicopatológica deveria ser abordada, inclusive a
toxicomania.
Fechando esta digressão, concluímos a introdução para passar
para uma breve pesquisa na obra freudiana a respeito da toxicomania.
Da cocaína ao sonho
Quando começamos a interessar-nos pelo tema da toxicomania
volteimo-nos novamente para a obra freudiana na esperança de achar respostas
28
às nossas indagações. Achavamos que o aforismo lúdico "Freud explica" se
aplicaria também a esta questão. Ficamos muito surpresos ao ver frustrado
nosso desejo de achar na sua obra um estudo dedicado especificamente à
toxicomania.
A surpresa gerou uma pergunta: por que Freud teria se abstido de
desenvolver um corpo teórico sobre este tema, assim como o fez sobre tantos
outros fenômenos psicopatológicos na clínica e na vida cotidiana ? Aventas a
hipótese que a problemática da toxicomania seria quase inexistente na sua
época ou, possivelmente, que o fenômeno não o interessaria.
Pesquisamos diferentes biografias de Freud e constatamos que
esta ausência não é mera coincidência, mas um fato verdadeiramente
paradoxal, dada a importância que a droga e a toxicomania tiveram na sua vida
pessoal e no desenvolvimento da psicanálise.
Consideramos esta lacuna na obra freudiana um sintoma — um
dos não-ditos — na história da psicanálise e, seguindo as recomendações da
técnica psicanalítica que aconselha prestar atenção as omissões, propusemonos investigar os antecedentes que poderiam desvendar a origem desta
ausência.
Hoje,
pouco mais de 100 anos após Freud ter interpretado
psicanaliticamente o primeiro sonho, esta ainda é uma questão obscura.
A
seguir,
tentaremos elucidar
os
conflitos
e
experiências
traumáticas que poderiam ter instituído esta sintomática ausência na obra
29
freudiana.
Estas originam-se no que poderia chamar-se de período "pré-
histórico" da psicanálise, relacionadas especificamente ao encontro de Freud
9
com a cocaína, a nicotina e a toxicomania.
A primeira fonte de antecedentes que poderia elucidar esta
ausência remonta a 1882 quando Freud desenvolve sua vocação de
pesquisador no Instituto de Fisiologia de Viena sob a direção do professor
Brücke. Após vários anos de trabalho neste instituto, Freud é levado a perceber
pelo seu professor que continuar a carreira de pesquisador é inviável dada sua
precária situação econômica. Surge assim a conflitiva, mas financeiramente
necessária, decisão de trocar as pesquisas científicas pela incerta prática
médica. Seu próprio relato:
"O momento decisivo ocorreu em 1882, quando
meu professor, por quem eu nutria a mais
elevada estima possível, corrigiu a generosa
improvidência do meu pai, aconselhando-me
enfaticamente, em vista de minha má situação
financeira, a abandonar minha carreira teórica.
Segui seu conselho, deixei o laboratório de
fisiologia e ingressei no Hospital Geral."
10
Estava abandonando sua vocação, à qual tinha se dedicado
durante os seis anos anteriores, para ocupar-se com uma nova atividade para
qual estava despreparado e que, em princípio, não lhe atraia. No posfácio da
Questão da análise leiga, Freud (1927) declara:
9
Consideramos o período analítico começa partir do sonho da "injeção feita em Irma" (24 de julho de
1895).
10 Freud S. Autobiografia (1923) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: Edição Standard
Brasileira. 2ª ed., Rio de Janeiro: Imago, 1969, vol 20, p. 20-21 (doravante abreviada SB)
30
"Depois de quarenta e um anos de atividade
médica, meu auto conhecimento me diz que eu
nunca fui um verdadeiro médico. Ingressei
na profissão porque fui obrigado a desviar-me
do meu propósito original, e o triunfo da minha
vida reside precisamente em que, depois de
um largo rodeio, voltei a encontrar minha
primitiva orientação. Desde minha infância não
tenho nenhuma lembrança de haver sentido a
necessidade de socorrer a humanidade no seu
sofrimento. Minha disposição sádica inata não
era muito grande; de modo que nunca tive
necessidade de desenvolver este seu derivado.
Também não me dediquei a brincar ‘de
médico’; minha curiosidade infantil enveredouse por outros caminhos.
Na juventude apoderou-se de mim a onipotente
necessidade de compreender alguma coisa
acerca dos enigmas do mundo em que vivemos
e de contribuir, talvez, para sua solução.
O ingresso na faculdade de medicina parecia
ser o caminho mais promissor para conseguílo." (Grifo meu)
11
Em 1882, Freud desliga-se de sua função no Instituto de Brücke e
ingressa, a contragosto, como residente no Hospital Geral de Viena,
permanecendo até 1885. É durante estes três anos, nos quais Freud tenta
desenvolver sua incipiente prática médica, que acontece o encontro com a
cocaína; assunto que era, nas suas próprias palavras, "Um interesse secundário,
embora profundo ..."
12
Um artigo publicado em 12 de dezembro de 1883 na revista
Deutsche Medizinische Wochenschrift pelo médico militar Theodor Aschenbrandt
sobre os efeitos fisiológicos provocados pela cocaína, chama a atenção de
Freud e o estimula a estudar seus efeitos em si mesmo assim como em outras
pessoas.
11Freud
12Freud
S., Questão da análise leiga. (1927), SB, Rio de Janeiro: Imago, 1976 vol 20, p. 287
S., Autobigrafia (1923), SB, Rio de janeiro: Imago, 1976 vol 20, p. 25
31
Obtendo amostras da substância da mesma fonte empregada por
Aschenbrandt - o laboratório Merck - Freud experimenta cocaína pela primeira
vez no dia 30 de abril de 1884 e descreve seus efeitos:
"Durante uma ligeira depressão produzida pela
fadiga, ingeri pela primeira vez 0.05 gramas de
cloruro de cocaína em uma solução com água
à 1% ... Após alguns minutos, senti de repente
sensações de alegria e tranqüilidade."
13
Durante os próximos meses Freud experimenta a cocaína dezenas
de vezes ficando, progressivamente, mais entusiasmado com seus efeitos.
Nesse mesmo texto, declara que após cada uso sente-se:
"(...) a mesma alegria e euforia duradouras que
não se diferenciam em absoluto da alegria e
euforia normais... Se percebe um aumento do
autocontrole e adquire-se maior vitalidade e
capacidade de trabalho... Em outras palavras: a
pessoa sente-se simplesmente como quando
está em seu estado normal; fica difícil acreditar
que se está sob os efeitos da droga... É
possível realizar qualquer tipo de trabalho
mental ou físico, por mais intenso ou
prolongado que seja, sem sentir fadiga... Os
efeitos da droga não produzem nenhuma
ressaca
desagradável
como
as
que
acompanham a alegria obtida por meio de
bebidas alcoólicas... E esta assombrosa
droga não cria hábito.
Depois da primeira vez que é usada — assim
como depois do seu uso reiterado — não
sente-se nenhum desejo de continuar a usá-la;
na verdade sente-se uma inexplicável aversão
a ingeri-la." (Grifo meu)
14
13
Freud S., Über coca (1884), In: Escritos sobre la cocaína. Robert Byck Editor (1974), Bernfeld S., Los
estudios de Freud sobre la cocaína (1953), Barcelona: Anagrama, 1980, p.312.
14 Freud S., Über coca (1884), In: Escritos sobre la cocaína. Robert Byck Editor (1974), Bernfeld S., Los
estudios de Freud sobre la cocaína (1953), Barcelona: Anagrama, 1980, p. 312.
32
Nos meses seguintes, Freud passa a usá-la regularmente,
recomendando seu uso a colegas, amigos, noiva e familiares. Comentando
tamanha indiscriminação e exaltação Jones (1953), biógrafo oficial de Freud,
considera que, desde o ponto de vista atual em relação à droga:
" ... Freud estava se tornando rapidamente uma
ameaça pública."
15
Entusiasmado com a regularidade dos resultados positivos e
convicto de que a substância não criava dependência, Freud mergulha na
literatura existente na época a respeito da cocaína.
As
investigações
sobre
a
cocaína
despertaram
grandes
esperanças em Freud. Ele esperava que seu uso clínico propiciasse o
estabelecimento de sua incipiente e conflitiva prática médica, que sua precária
condição financeira conseqüentemente melhorasse e o ajudasse a angariar sua
tão desejada fama além de prestígio no meio médico vienense.
Isto fica evidente num trecho da carta escrita por Freud para sua
noiva Martha Bernays, no dia 25 de maio de 1884 — menos de um mês após ter
experimentado a cocaína pela primeira vez !
"Se tudo correr bem, espero escrever um ensaio
sobre a cocaína e espero que venha obter seu
lugar na terapêutica, ao lado da morfina e
superior a esta. A cocaína faz nascer em mim
outras esperanças e outros projetos. Tomei com
regularmente, doses muitas pequenas dela
contra a depressão e ingestão, com o mais
brilhante sucesso. Espero que ela possa acabar
com o vômitos mais intratável, mesmo quando
se deve a uma dor intensa; em suma, apenas
agora sinto que sou médico, já que ajudei um
15
Jones E., A vida e a obra de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, 1989, vol. 1, p. 92)
33
paciente e espero ajudar outros mais. Se as
coisas prosseguirem desse modo, não
precisamos ter preocupações quanto a
podermos nos unir e ficar em Viena." (Grifo
meu)
16
No seu trabalho sobre a cocaína Freud foi, pela primeira vez em
sua vida, alguém que traçava um caminho independente. As pesquisas que
tinha realizado no Instituto de Fisiologia e seus trabalhos relacionados à
neurologia clínica foram, essencialmente, conservadores enquadrando-se dentro
dos ensinamentos de seus mestres.
Os estudos que realizou sobre a cocaína foram feitos sem a
orientação nem o apoio de ninguém,
podendo ser considerados como "seu
primeiro intento para abrir caminho para sua independência intelectual."
17
Durante as leituras preliminares para o artigo, Freud entra em
contato com informes em uma publicação médica, Detroit Medical Gazette, à
respeito do uso da cocaína no tratamento da desintoxicação de morfinômanos.
Esta informação aumenta seu entusiasmo tornando a cocaína
ainda mais interessante, visto que abria a possibilidade de ajuda para um dos
seus colegas e amigo cuja dependência à morfina era uma fonte de
preocupação para Freud.
Este amigo,
Ernst Von Fleischl (1846-1891), seu colega no
Laboratório de Fisiologia em Viena, contraiu uma infecção aos vinte cinco anos
no decorrer de uma pesquisa de anatomia patológica.
16 Trecho de carta de Freud a Martha Bernays, In: Avida e a obra de Sigmund Freud. Jones E., (1942):
Imago: Rio de Janeiro, 1989, vol. I, p. 91 - 92.
17 Freud, S., Über coca (1884), In: Escritos sobre la cocaína, Robert Byck Editor (1974). Bernfeld S., Los
estudios de Freud sobre la cocaína (1953), Barcelona: Anagrama, 1980, p. 310.
34
Foi salvo da morte pela amputação do polegar da mão direita, mas
o tumor que tinha se produzido no nervo continuava crescendo e reiteradas
intervenções cirúrgicas não aliviaram sua dor insuportável.
Fleischl se viu obrigado a recorrer à morfina como medida extrema
para aliviar a dor mas, ao mesmo tempo, colocou em marcha a implacável
engrenagem da dependência; tornou-se morfinômano.
Em junho do mesmo ano, Fleischl precisa submeter-se à primeira
de uma longa série de desintoxicações que se estenderão pelo resto da sua
curta vida. Com o consentimento do Dr. Breuer — médico da família Fleischl —
Freud recomenda experimentar a desintoxicação da morfina à base de cocaína.
É assim como Fleischl converte-se no "primeiro dependente da
morfina no continente europeu a ser desintoxicado utilizando cocaína", e por
recomendação de Freud. Estimulado pelo sucesso inicial deste tratamento,
18
Freud publica no número de julho de 1884 da revista Centralblatt, o artigo sobre
a cocaína sob o título Über Coca.
É interessante notar que, enigmaticamente, este trabalho junto com
outros quatro relacionados ao tema, nunca foram incluídos em suas obras
completas, seja em alemão (Gesammelte Werke), em inglês (Standard Edition),
em espanhol (Biblioteca Nueva) e (Amorrortu Editores), ou em português
(Imago).
18
Freud, S., Über coca (1884), In: Escritos sobre la cocaína, Robert Byck Editor (1974). Bernfeld S., Los
estudios de Freud sobre la cocaína (1953), Barcelona: Anagrama, 1980, p. 339.
35
Byck (1974), editor do livro Escritos sobre a cocaína, comenta na
introdução que, exceto uma tradução abreviada de Über Coca publicada em
dezembro de 1884 no The Saint Louis Medical and Surgical Journal, "os artigos
sobre a cocaína não podiam ser encontrados nem em inglês, nem em nenhuma
outra língua que não fosse o alemão, sendo mesmo nesta língua difícil de achalos".
19
É só no ano de 1963 que Strachey traduz ao inglês os textos em
sua íntegra, sendo publicados pela Dunquin Press de Viena na forma de um livro
com o título: The cocaine papers. A falta de difusão desta edição condenou os
escritos novamente ao desaparecimento, passando a ser de verdadeiro domínio
público, somente, a partir da edição compilada por Byck em 1974.
Os escritos sobre a cocaína provocaram reações extremas na
época da sua publicação, sua ausência sistemática é o saldo desses eventos
conflitivos.
Tal exclusão, que obedece tanto razões de pudor quanto de
censura, deve ser apontada como um dos sintomas da pré-história do
movimento psicanalítico.
20
Escrita no melhor estilo freudiano — um verdadeiro panegírico
quase poético muito diferente da aridez dos seus escritos científicos sobre
fisiologia e anatomia — a monografia Über Coca faz um relato histórico da
planta da coca e a descoberta da cocaína, apresenta os resultados de suas
pesquisas e recomenda seu uso clínico:
19
20
Idem p. 13-14.
Cesarotto O., Um affair freudiano. Iluminuras, São Paulo, 1989, p.18.
36
a) como estimulante nos estados neurastênicos;
b) para tratamento da indigestão;
c) para desintoxicar morfinômanos e alcoólatras;
d) para tratar doenças como: renite, asma e sífilis;
e) como afrodisíaco;
f) como anestésico local.
Pode considerar-se que o encontro de Freud com a cocaína tenha
promovido sua incipiente prática médica, seu desejo de curar a si mesmo da
depressão e problemas psicossomáticos e à curar outros das mais variadas
21
manifestações psicopatológicas.
Freud começa, então, a receitar a cocaína amplamente na sua
prática médica acreditando que, equipado com esta "panacéia", estará menos
desamparado clinicamente perante a demanda de seus pacientes.
Em uma apresentação no dia 5 de março de 1885 para Associação
Psiquiátrica de Viena, Freud recomenda o uso da cocaína para o tratamento das
doenças consideradas como "fraquezas e depressões do sistema nervoso
central sem lesões orgânicas" ; referindo-se a casos de histeria, hipocondria e
22
depressão.
Em relação ao tratamento dos dependentes da morfina Freud
pronunciou as seguintes palavras:
"Sem dúvida alguma aconselharia ministrar a
cocaína em injeções subcutâneas de 0.03 a
21
Anzieu D., A auto-análise de Freud e a descoberta do inconsciente. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989,
p. 75.
22 Bernfeld S., Los estudios de Freud sobre a cocaina. In: Escritos sobre la cocaína. Robert Byck, Editor
(1974), Barcelona: Anagrama, 1980. p. 335.
37
0.05 gramas sem temer a acumulação das
doses".
23
Suas
investigações
sobre
o
uso
clínico
da
cocaína
são
interrompidas em 1885 com sua saída do Hospital Geral e viagem a Paris, onde
estuda o fenômeno da histeria com Charcot.
Ao retornar da França, seis meses depois, Freud depara-se com
um elemento completamente imprevisto na psicopatologia; a dependência de
cocaína. Fleischl, primeiro morfinômano no continente europeu a ser "curado"
pela cocaína, tinha se tornado cocainômano.
Embora Freud tivesse recomendado apenas a administração oral
da cocaína, Fleischl passou imediatamente a administrá-la a si mesmo sob a
forma de injeções subcutâneas criando tolerância à droga, chegando a precisar
um grama por dia. Veio a falecer na mais abjeta das condições psíquicas sete
anos após Freud ter recomendado o tratamento de "desintoxicação".
Em sua biografia Freud, Gay (1988) declara que este sabia do uso
que Fleischl fazia das injeções subcutâneas e "na época, não levantou objeções
a tal procedimento." Na mesma nota de rodapé, ao referir-se a este método de
24
administração da cocaína, Gay conclui: "Mais tarde Freud recuou e negou que
algum dia o tivesse defendido."
25
Não demorou muito para que na literatura médica mundial
surgissem informes sobre psicoses tóxicas provocadas pelo abuso da cocaína.
23 Bernfeld S., (1953), In: Escritos sobre la cocaína. Robert Byck Editor (1974). Los estudios de Freud
sobre la cocaína, p. 346.
24 Gay P., Freud. Uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das letras, 1989, p. 57.
25 Idem.
38
O mais critico e severo destes surgiu em maio de 1886, quando o renomado
psiquiatra alemão Erlemeyer publica um trabalho sobre a dependência de
cocaína: Üeber Cocainsucht, onde a considera perigosamente venenosa, dado
seu inquestionável potencial de criar dependência.
Erlemeyer alertava que a cocaína deveria ser considerada o
"terceiro flagelo da humanidade", depois dos dois anteriores: o álcool e a
morfina.
Dois anos após ter experimentado a cocaína pela primeira vez,
Freud — quem tinha "redescoberto" a cocaína — foi o alvo de duras críticas.
Nas palavras de Jones (1953) no capítulo "O episódio da cocaína" em sua
biografia sobre Freud:
"O homem que tentara beneficiar a humanidade,
ou em todo caso, criar reputação através da cura
da "neurastenia" era agora acusado de
desencadear o mal pelo mundo. Muitos devem
tê-lo olhado pelo menos como um homem
imprudente em seus critérios. E se sua sensível
consciência formulou a mesma sentença, ela
seria confirmada por uma triste experiência um
pouco posterior, quando, supondo que se tratava
de uma droga inócua, recomendou uma grande
dose dela a um paciente que em conseqüência
veio a sucumbir. É difícil dizer até que ponto todo
o episódio afetou a reputação de Freud em
Viena: tudo que ele próprio posteriormente disse
a respeito foi que o episódio acarretou "graves
censuras."
26
Em 9 de julho de 1887, Freud publica na Weiner Medizinische
Wochenschrift seu último artigo relacionado à cocaína: Observações sobre o
26Jones
E., A vida e a obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989, vol. 1, p.104
39
Cocainísmo e a Cocainofobia, onde tenta defender-se das duras críticas
apresentando duas linhas de defesa.
A primeira destas, inovadora para a época, argumenta que nem a
cocaína nem nenhum outro produto químico poderia, por si mesmo, produzir
dependência, aventando, implicitamente, a hipótese da existência de fatores
psíquicos envolvidos no processo.
Esta linha de defesa - baseada na idéia que a instauração da
dependência não é efeito direto do veneno mas, que deve-se alguma
peculiaridade do indivíduo - não foi desenvolvida mais extensamente, nem neste
texto, nem em nenhum outro na totalidade da obra freudiana. Na época, esta
linha de raciocínio foi acolhida pelos críticos como mera racionalização.
27
A segunda linha de autodefesa baseava-se na via de administração
da substância. Apelando para o preconceito geral da época, Freud tenta eximirse de qualquer responsabilidade em relação aos efeitos nocivos da cocaína,
argumentando nunca ter recomendado a aplicação de injeções subcutâneas que
seriam, estas sim, a verdadeira fonte de dependência e intoxicação.
Este argumento contradiz as palavras proferidas pelo próprio Freud
durante a conferência acima mencionada, ministrada para a Associação
Psiquiátrica de Viena dois anos antes de publicar sua autodefesa.
27
Bernfeld S., op. cit. p. 344.
40
Além da contradição, é importante notar que, neste artigo, Freud
omitiu qualquer referência à conferência embora tenha se referido a todos seus
trabalhos anteriores sobre a cocaína.
O
texto
da
conferência
de
1885
onde
Freud
"advogara
vigorosamente as injeções perniciosas" teve um destino desconhecido. Não foi
28
incluído por ele na lista de textos que teve que compilar dez anos mais tarde, em
1897, quando requereu o título de professor, e não aparece em nenhum outro
lugar das suas obras, não existindo, sequer, no seu fichário pessoal.
“Parece ter sido completamente suprimido.”
29
Esta omissão poderia considerar-se como uma questão sem
importância, um mero esquecimento sem relevância, ou ainda, como uma
manifestação de desonestidade científica.
Mas, considerando a integridade ética de Freud e aplicando à sua
obra as recomendações da técnica psicanalítica propostas por ele mesmo, esta
"supressão" configura-se como um ato psíquico, onde a tentativa inconsciente
de desalojamento (Verdrängung) expressa-se através de um lapso.
Este lapso reflete um conflito inconsciente que manifesta-se nos
sonhos de Freud onde o tema das injeções ocorre, mais de uma vez, ligado ao
da culpa.
28
Idem. p. 106
29
Bernfeld S., op. cit. p. 346.
41
Cabe ressaltar que o sonho inaugural da psicanálise - na
madrugada de 24 de julho de 1895 — o "sonho da injeção feita em Irma",
contém elementos que condensam justamente as dificuldades vividas por Freud
com a cocaína. Estas encontram-se resumidas num tom de admoestação na
penúltima frase deste sonho: "Não se fazem tais injeções descuidadamente!"
30
Freud abandona totalmente o uso pessoal ou terapêutico da
cocaína onze anos após tê-la experimentado pela primeira vez. Esta data, 1895,
coincide com a primeira interpretação psicanalítica de um sonho, com o começo
da sua auto-análise e o alvorecer da história propriamente dita da psicanálise.
Através desta breve incursão nos primórdios da psicanálise
tentamos evidenciar que tanto a droga quanto a toxicomania tiveram grande
relevância na vida de Freud e no desenvolvimento da psicanálise. O encontro de
Freud com a cocaína promoveu o desejo de ser médico, de curar a si mesmo e
aos outros.
O primeiro "outro" deste desejo é um toxicômano (Fleischl)
constituindo-se também como seu traumático primeiro fracasso terapêutico. Sem
embargo, para a futura elaboração da psicanálise, este foi o mais fértil dos
fracassos. A respeito, diz Anzieu (1959):
"É o símbolo antecipador do fracasso de todas
as drogas e um sinal do longo, difícil e
inevitável desvio que Freud deverá fazer para
ele mesmo e para seus doentes, através da
decifração dos encadeamentos psíquicos
inconscientes.
A hipnose e a sugestão que são, como
sabemos, as soluções as quais Freud recorre
30
Idem. p. 55.
42
em 1885, são uma etapa intermediária: modos
de ação estritamente psicológicos que se
limitam a suprimir os sintomas.
Estes meios participam também deste mesmo
fantasma de onipotência terapêutica que
conduz à utopia quimioterapêutica...
Este
fantasma
nunca
abandonará
completamente Freud; do que subsiste nele,
estaremos tentados a ver algo irredutível para
todo aquele que se dedique ao exercício da
psicanálise.
Embora denegado por alguns, o desejo de
curar... "
31
O fracasso de Freud com a cocaína marca uma ruptura: o
abandono de toda substância como suporte da tentativa de cura. Sua
inicialmente conflitiva prática médica passou a ser uma prática de curar sem
medicamentos, que deu lugar a uma solução criativa. Tratar as manifestações
psicopatológicas através de uma prática inédita: a psicanálise.
No começo deste capítulo nos propusemos tentar elucidar os
antecedentes que poderiam desvendar a origem da sintomática ausência de um
estudo profundo sobre a toxicomania na obra freudiana.
O trauma associado ao fracasso de Freud com o uso da cocaína
como elemento terapêutico pode ser uma das possíveis fontes desta
surpreendente ausência.
Passemos agora para uma outra fonte de antecedentes que possa
elucidar esta ausência.
31
Anzieu D., A autoanálise de Freud e a descoberta da psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas. 1989.
43
Às vezes um charuto não é meramente um charuto
12 de fevereiro, 1929
Comecei fumar com idade de 24 anos,
primeiramente
cigarros
mas
logo
exclusivamente charutos; continuo ainda
fumando (com idade de 72 anos e meio), e sou
bastante relutante em restringir-me a este
prazer. Entre as idades de 30 e 40 anos tive
que deixar de fumar, durante um ano e meio,
por causa de um ataque do coração que pode
ter sido (devido ao) efeito da nicotina, mas que
provavelmente era uma seqüela de influenza.
Desde então, tenho sido fiel ao meu hábito ou
vício, e acredito que devo ao charuto uma
grande intensificação da minha capacidade
para o trabalho e uma facilidade para meu
autocontrole. Meu modelo nisto foi meu pai,
que era um fumante dos mais inveterados e
que assim permaneceu até o seu 81° ano.
32
32
Carta escrita em resposta a um questionário dirigido a várias figuras contemporâneas proeminentes em
relação aos seus hábitos de fumar. Arents Collection, New York Public Library. In: Schur M., Freud: vida
e agonia, Rio de Janeiro: Imago, 1981, p. 76.
44
Sigmund Freud
A segunda fonte de antecedentes que poderia ser o determinante
da ausência na obra freudiana de um estudo dedicado especificamente à
toxicomania é a dependência de Freud da nicotina. Embora esta dependência o
tenha acompanhado por praticamente toda sua vida, hei de concentrar-me em
ainda um outro "episódio" do antes chamado período "pré-histórico" da
psicanálise que praticamente coincide com o momento do fim do uso da
cocaína. Trata-se do que o biógrafo Schur (1973) chamou de "Episódio cardíaco
de Freud."
33
O vínculo de Freud com Wilhem Fliess e a sua extensa
correspondência são uma rica fonte de informação deste momento que estendese de 1893 até 1895 - período durante o qual Freud sofre uma perturbação da
função cardíaca. Nessa época,
Fliess torna-se seu médico de confiança e
atribui os sintomas cardíacos a seu hábito de fumador inveterado insistindo
firmemente que deixe de fumar por acreditar que a nicotina exacerba seus
sintomas.
Esta recomendação desencadeia uma infindável série de tentativas
malsucedidas para abster-se da nicotina que demostra a grande intimidade
pessoal de Freud com a problemática da toxicomania.
Numa carta a Fliess de 18 de outubro de 1893, Freud escreve:
" (...) Não tenciono em absoluto ignorar meus
problemas cardíacos.
No momento eles vão bem melhor — não por
qualquer mérito meu, pois tenho fumado muito,
devido a todas as dificuldades, que tem sido
33
Idem, p. 49.
45
muito numerosas ultimamente. Creio que logo
tornarão a dar sinal de vida, e dolorosamente.
No que concerne ao fumo, seguirei
escrupulosamente uma receita sua; já fiz isso
antes numa ocasião em que você me deu sua
opinião a respeito (estação ferroviária durante
período de espera). Mas, realmente, senti
muita falta dele. ..."
34
Na próxima carta datada de 27 de novembro de 1893 o tema do
fumo reaparece novamente expressando o penoso conflito suscitado pela
necessidade de deixar de fumar.
"Não tenho obedecido a sua ordem de não
fumar; você realmente considera um privilégio
notável viver muitos anos num tormento?"
"Não estou obedecendo às suas proibições
quanto ao fumo; será que você considera como
grande dádiva viver a gente muitos e muitos
anos num estado miserável ?"
35
Sem nicotina, sem sua droga, Freud vislumbra uma longa vida
desnecessariamente atormentada e miserável. Não seria melhor viver menos,
mas bem, do que mais e mal ? Se estivesse mesmo sofrendo de uma doença
cardíaca incurável, não seria melhor "aproveitar" a vida enquanto esta durasse?
Em sua biografia sobre Freud, Rodrigué (1995) chama atenção
para o raciocínio implícito nesta carta como sendo "uma variante clássica do
discurso dos toxicômanos" caracterizado por racionalizações de toda índole que
36
justifiquem as dificuldades inerentes aos esforços de abstinência.
34
Masson J., A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhem Fliess. Rio de janeiro: Imago,
1986, p. 59.
35 Incluo duas traduções da mesma carta para ressaltar a dramaticidade do momento vivido por Freud.
Estas são: Masson J., op. cit. p. 60 - 61 e Schur M., op. cit. p.52
36 Rodrigué E., Sigmund Freud. O século da psicanálise. São Paulo: Escuta, 1995, vol. 1. p. 325.
46
A previsão de Freud que os sintomas cardíacos tornariam a "dar
sinal de vida, e dolorosamente" confirma-se exigindo dele uma tentativa de
abstinência mais eficaz. Trechos de uma longa carta a Fliess de 19 de abril de
1894 descrevem este momento:
"Já que todos precisam da influência sugestiva
de alguma outra pessoa para conseguir uma
suspensão temporária das próprias críticas, de
fato não coloquei nada aceso entre os lábios
desde então (faz hoje três semanas).
Hoje, já consigo observar os outros fumando
sem invejá-los, e até voltar a imaginar a vida e
o trabalho sem esse esteio.
Não faz muito tempo que atingi esse ponto
além disso, o sofrimento da abstinência tem
sido muito maior do que eu imaginava — mais
isso, naturalmente, é obvio."
37
O trecho da carta acima citado revela a surpresa experimentada
por Freud em relação ao grau de sua dependência nicotínica, assim como uma
crescente familiaridade com os processos mentais inerentes à abstinência.
Existiam duas hipóteses diagnosticas divergentes sobre a condição
cardíaca de Freud. Cada uma delas era representada por figuras extremamente
importantes na sua vida e obra. As questões em torno dos diagnósticos
divergentes entre Breuer e Fliess mostram que Freud estava disposto a lutar
pela sua necessidade de fumar.
Queria saber se estava sofrendo de uma intoxicação nicotínica,
diagnosticada por Fliess ou de uma miocardite crônica que não poderia suportar
a nicotina, diagnosticada pelo seu antigo médico Breuer.
37
Masson J., op. cit. p. 67.
.
47
Embora diferentes, ambos diagnósticos apontavam para o doloroso
reconhecimento que o ato de fumar era extremamente nocivo para sua saúde.
Se o diagnóstico da miocardite crônica proposta por Breuer
estivesse certo, Freud poderia ter uma boa racionalização para alimentar sua
dependência. Na mesma carta acima mencionada Freud diz que suportará com
dignidade uma vida curta mas plenamente "desfrutada":
"(...) suportarei com dignidade a incerteza e a
expectativa de vida abreviada, ligadas ao
diagnóstico de miocardite; ao contrário, poderia
até tirar proveito disso, organizando o restante
de minha vida e desfrutando integralmente do
que me resta."
38
Por outro lado, o diagnóstico da intoxicação nicotínica proposto por
Fliess significaria mais abstinência e o estado "miserável" que isto iria acarretar.
Fliess era, nas palavras de Freud, "peremptório e rigoroso em sua proibição do
fumo" , implacável na sua recomendação de abstinência.
39
Isto era particularmente difícil para Freud dada a importância que
este tinha na sua vida e a dificuldade do momento pelo qual estava passando.
Freud sentia necessidade de um "esteio", como ele mesmo o
denominou, para enfrentar a luta contra sua doença, contra seu isolamento
profissional e a solidão nas suas pesquisas acerca das neuroses.
Nas palavras de Schur (1973), seu médico pessoal e biógrafo:
38
39
Masson J., op. cit. p. 68
Idem. p. 85
48
"A luta pedia, pelo menos, um mínimo de bem
estar físico, e, afora os seus sintomas
cardíacos, a abstinência da nicotina estava
privando-o do estimulante externo que
permaneceu essencial a ele durante toda sua
vida."
40
Em 22 de junho de 1894 Freud escreve uma carta a Fliess "desde a
profundidade do túnel da privação nicotínica"
incapacidade
de
manter
a
abstinência
41
na qual tenta justificar sua
através
de
racionalizações
fundamentadas, supostamente, em suas observações clínicas:
"Não tenho fumado há sete semanas, desde o
dia da sua proibição. A princípio, como era
esperável,
senti-me
abusivamente
mal.
Sintomas
cardíacos acompanhados de
depressão branda, além do terrível sofrimento
da abstinência. Este último se dissipou depois
de aproximadamente três semanas, enquanto a
primeira cedeu após de cerca de cinco
semanas, porém deixando-me completamente
incapaz de trabalhar, derrotado. Decorridas
sete semanas, apesar de minha promessa a
você, recomecei fumar, influenciado por dois
fatores:
(1) Durante esse período examinei pacientes
da mesma idade em estado praticamente
idêntico, que nunca haviam fumado (duas
mulheres) ou que haviam parado de fumar.
Breuer, a quem afirmei repetidamente não
considerar
a
indisposição
como
envenenamento por nicotina, finalmente
concordou e apontou as mulheres. Assim,
fiquei privado da motivação que você
caracterizou tão habilmente numa de suas
cartas anteriores: uma pessoa só consegue
desistir de algo quando está firmemente
convencida de que aquilo é a causa da sua
doença.
40
41
Schur M., op. cit. p. 61.
Rodrigué E., op. cit. p. 326.
49
(2) A partir dos primeiros charutos, consegui
trabalhar e me assenhorei de meu estado de
ânimo; antes disso a vida estava insuportável.
Também não observei nenhum agravamento
dos sintomas depois de um charuto.
Tenho agora fumado com moderação e elevei
lentamente o número para três por dia. ..."
42
No capítulo "Coração Partido", Rodrigué (1995) considera esta
carta "um paradigma de conversa fiada" duvidando até, que Freud tenha
achado, de fato, as duas pacientes "em estado praticamente idêntico"
mencionadas na carta a Fliess, como justificativa para o fato de ter voltado a
fumar. Rodrigué considera que a carta revela o discurso desesperado de um
homem dependente "roendo-se nas trevas da abstinência".
43
Como réplica às novas racionalizações contidas na carta de Freud
para justificar sua incapacidade de observar as recomendações do seu médico,
Fliess mostra-se categórico e faz uma exigência ainda mais rigorosa quanto à
necessidade de abstinência total do fumo.
Manifestando humildade e obediência perante os severos ditames
proibitivos do seu médico, Freud responde em uma carta que, estranhamente,
não foi datada:
"Caro Wilhem:
Minha compreensão a respeito é pequena
demais para que eu possa avaliar uma réplica
tão segura, mas meu juízo me diz que tenho
razões psicológicas suficientes para cumprir
suas ordens, de modo que estou hoje iniciando
um segundo período de abstinência — que,
42
43
Masson J., op. cit. p. 84.
Rodrigué E., op. cit. p. 326.
50
segundo espero, durará até que nos venhamos
a rever em agosto."
44
Em 14 de julho de 1894, Freud tenta justificar sua nova
incapacidade de obedecer as ordens de Fliess em relação a abstinência total
através da carta do "néctar":
"Prezadíssimo amigo:
Seus elogios são néctar e ambrosia para mim, pois
sei perfeitamente como lhe é difícil tecê-los — não,
para ser mais correto, como você fala a sério
quando os tece. Desde então, tenho produzido
pouco, preocupado que estou com a abstinência.
A minha condição de saúde — sinto-me obrigado
agora a não despertar a suspeita de que talvez
queira esconder algo — é a seguinte: desde sua
carta, há duas semanas, abstinência, que durou por
8 dias; na quinta feira seguinte, num momento
indescritivelmente desolado, um charuto; depois
novamente, 8 dias de abstinência; na quinta feira
seguinte, mais um; desde então, paz. Em suma,
estabeleceu-se um padrão: um charuto por semana
para comemorar sua carta, que mais uma vez
roubou-me o prazer do tabaco. Na prática, isso
talvez não difira tanto da abstinência."
45
Comentando o conteúdo destas cartas, Rodrigué (1995) refere-se a elas
como o produto de um paciente dependente que manifesta o típico "discurso do
viciado" caracterizado pela tentativa de sedução através da "fala vã de amor."
46
Freud precisava de pelo menos um charuto semanal e parecia disposto a
conceder qualquer "ambrosia" para obter a permissão para consegui-lo.
Considerando a intensidade do sofrimento e as tremendas
dificuldades vividas por Freud durante suas reiteradas tentativas infrutíferas para
abster-se do fumo, torna-se então paradoxal que Jones (1953) possa ter
44
Masson J., op. cit. p. 86 - 87.
Idem.
46 Rodrigué E., op. cit. p. 327.
45
51
declarado, referindo-se ao vínculo de Freud com as drogas: "é preciso uma
predisposição especial para que se desenvolva um vício em drogas, e felizmente
Freud não tinha esta predisposição."
47
Com seu estilo contundente e mordaz, Rodrigué (1995) comenta a
declaração de Jones manifestando perplexidade: "não dá para acreditar, parece
uma piada."
48
Esta afirmação é possivelmente verdadeira no que concerne o
vínculo de Freud com a cocaína, mas em relação à seu tabagismo existem
evidências inquestionáveis que apontam para a dependência de Freud da
nicotina.
Além da correspondência com Fliess aqui abordada, existe
também uma outra evidência que se manifesta como uma contradição na
biografia de Jones quando este refere-se ao hábito de fumar de Freud:
"Que se tratava mais de um vício do que um
hábito, podia-se ver pela extensão de seu
sofrimento quando esteve
privado
da
possibilidade de fumar."
49
Freud consegue manter-se quase totalmente abstinente por
quatorze meses — fumava 1 charuto por semana, o "charuto das quintas feiras",
dia em que Fliess teria feito o último interdito.
Volta a fumar alegando ser isto uma necessidade essencial, de
ordem "psíquica", dadas sua intensa angústia e melancolia.
47Jones
E., A vida e a obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989, vol. 1, p. 92.
E., op cit. p. 326.
49Jones E., op. cit. vol. 2, p.382.
48Rodrigué
52
Em 12 de junho de 1895 escreve à Fliess:
"Tenho-me sentido I a IIa. Preciso de muita
cocaína. Além disso, recomecei fumar
moderadamente nessas últimas duas ou três
semanas, desde que a convicção nasal se
tornou óbvia para mim.
Não observei nenhum prejuízo subseqüente.
Se você voltar a proibir o fumo, terei de
abandoná-lo outra vez. Mas pense bem se
deve fazê-lo, caso se trate apenas de uma
intolerância, e não da etiologia.
Recomecei com isso porque me fazia falta
constantemente (após 14 meses de tratar bem
deste sujeito psíquico, ou então ele não
trabalhará para mim. Exijo muito dele. A tortura,
na maior parte do tempo, é sobre-humana."
50
51
Incontinente e indiferente perante esta elaborada argumentação
onde Freud associa a dinâmica da abstinência à angústia e a melancolia, Fliess
responde exigindo que continue totalmente abstinente.
Desconsolado, Freud acata a exigência respondendo alguns dias
depois; "Resmungo e volto a ficar dolorosamente privado, mas nada me resta
senão obedecer-lhe."
52
para um mês mais tarde admite: "Estou tendo
demasiados problemas com o vício de fumar."
53
50
I e IIa referem-se a subdivisões no Rascunho G sobre a melancolia que Freud teria enviado a Fliess no
ano anterior numa carta datada 13 de setembro de 1894. O item 'I' refere-se ao estado geral da melancolia
que segundo Freud, ocorreria "tipicamente, em combinação com intensa angústia". O item 'IIa' é mais
específico: "O afeto correspondente à melancolia é o do luto — em outras palavras, o anseio por alguma
coisa perdida. Portanto, na melancolia, deve tratar-se de uma perda, ou seja, uma perda na vida pulsional."
In: Masson J., op. cit. p. 98 - 99.
51 Idem. p.133.
52 Masson J., op. cit. p. 133.
53 Schur M., op. cit. p. 107.
53
Duas cartas mais encerram o período do "episódio cardíaco" de
Freud sem por isto implicar que tenham acabado suas agruras em relação à
dependência nicotínica. Estas cartas ilustram as dificuldades que Freud
continuará sofrendo até os últimos dias de sua vida.
Em 16 de outubro de 1895 escreve a Fliess tentando aplacá-lo:
"Mais uma vez, abandonei completamente o
fumo, para não ter que me recriminar por meu
pulso irregular e para me livrar dessa batalha
deplorável contra o anseio pelo quarto e o
quinto (charutos); prefiro lutar de vez contra o
primeiro. Provavelmente a abstinência não é lá
conducente à satisfação psíquica. ..."
54
Menos de um mês depois Freud declara-se novamente impotente
perante seus desígnios em relação à abstinência total da nicotina; em 8 de
novembro de 1895 escreve a Fliess:
"Não pude manter a abstinência completa; sob
o fardo de minhas preocupações teóricas e
práticas, o aumento da hiperestesia psíquica
tornou-se insuportável."
55
Os
sintomas
cardíacos
de
Freud
foram
atenuando-se
gradativamente até desaparecerem por completo no fim do período aqui
estudado,
abrindo
a
possibilidade
para
que
ele
passasse
a
fumar
inveteradamente. "Seu consumo diário era de vinte charutos."
56
54
Masson J., op. cit. p. 146.
Idem. p. 151.
56 Jones E., op. cit. vol. 2. p. 382.
55
54
Era tese do próprio Freud, como vimos ele relatar na primeira carta
apresentada neste capítulo, que a nicotina lhe propiciava uma grande
intensificação da sua capacidade para o trabalho.
Segundo Schur (1973), a utilização da nicotina por Freud denota
uma inquestionável dependência, ou como tanto ele como o próprio Freud
preferiam denominar: um "vicio."
57
Para justificar tamanha afirmação, Schur remete o leitor ao autoexame "infalivelmente honesto" de Freud sobre o assunto numa carta enviada a
Fliess em 22 de dezembro de 1897:
"Despontou em mim a descoberta intuitiva de
que a masturbação é o grande hábito, o 'vício
primário', e de que é apenas como substitutos
sucedâneos dela que os outros vícios — o
álcool, a morfina, o fumo e coisas parecidas —
passam a existir. O papel desempenhado por
esse vício na histeria é imenso, e talvez seja aí
que se encontra, no todo ou em parte, meu
grande obstáculo ainda por superar. E nesse
ponto, é claro, surge a dúvida entre saber se
um vício dessa espécie é curável, ou se a
análise e a terapia devem deter-se nesse ponto
e contentar-se em transformar a histeria em
neurastenia."
58
O grande obstáculo ainda por superar mencionado por Freud pode
ser interpretado como tendo duas vertentes, intrinsecamente relacionadas entre
si: uma de ordem pessoal e outra de ordem teórica.
57
58
Schur M., op. cit. vol. 1, p. 75 - 76 - 77. (“Laster” em alemão).
Masson J., op. cit. p. 288.
55
Como sabemos, muito da obra freudiana encontra-se permeada
por este tipo de complementaridade, particularmente, aquilo que foi teorizado
durante o período da sua auto-análise que coincide com o momento em que
esta última carta foi redigida.
Em termos pessoais, da sua auto-análise, Freud reconhece que
seu "vício" possa representar um obstáculo permanentemente insuperável, uma
espécie de limite — umbigo — do analisável em si, por si mesmo.
Este limite pode ter, conseqüentemente, coibido Freud a penetrar
nos meandros inconscientes inerentes a toxicomania, refletindo-se na ausência
de uma obra teórica dedicada especificamente à este fenômeno psicopatológico.
Trata-se de uma área do seu psiquismo onde Freud parece não ter
conseguido obter o que ele denominou "a supremacia do ego"; área esta onde
sua fórmula do objetivo terapêutico da psicanálise "Wo es war, soll ich werden"
59
não foi alcançada.
Estes dois episódios - “episódio da cocaína” e “episódio cardíaco” podem ser, na nossa opinião, os antecedentes determinantes da enigmática
ausência de um estudo dedicado especificamente à toxicomania na obra
freudiana.
Nossa hipótese em relação a esta sintomática ausência, é que
deva-se, por um lado, às situações traumáticas vividas por Freud durante seu
envolvimento com a cocaína, e por outro, à possibilidade que Freud tenha
59
Freud S., Obras Completas de Sigmund Freud, Nuevas lecciones introductorias al psicoanalisis (1932),
Madri; Biblioteca Nueva, 1996. Lição XXXI, vol 3, p. 3146. "Onde era isso, o ego há de advir.”
56
considerado a toxicomania como um fenômeno psicopatológico inanalisável,
além da eficácia terapêutica da psicanálise.
A hipótese da inanalisabilidade pode indicar ainda, que Freud
tenha percebido a toxicomania como estando à margem da dimensão da
linguagem e o sentido, obedecendo a outros dispositivos diferentes dos que
operam no recalque. É como se o toxicômano dispensasse a dialética entre
necessidade, desejo, demanda e falta, constituindo outro tipo de subjetividade.
Supostos saberes nosográficos
Enfoquemos agora as questões etiológicas e nosográficas. Embora
não exista na obra freudiana um trabalho dedicado especificamente à
toxicomania, reflexões ocasionais formuladas no decurso de seus múltiplos
estudos são de indiscutível valor para tentar compreendê-la sob o ponto de vista
psicanalítico e, possivelmente, responder a nossas indagações de ordem
etiológica e nosográfica em relação a este fenômeno psicopatológico.
A primeira destas data, novamente, do período que nós
denominamos "pré-histórico" da psicanálise surgindo em um artigo dedicado às
psiconeuroses de defesa: Novos comentários sobre as neuropsicoses de
defesa, onde Freud (1896) descreve os mecanismos psíquicos atuantes na
neurose obsessiva e histérica.
Na descrição teórica da neurose obsessiva, enumera uma série de
sintomas secundários de defesa que se originam da luta entre o ego e o
sentimento de culpa.
57
Dentre estes, inclui a dipsomania que através do entorpecimento
60
da mente livra o ego do desprazer da autocensura, mas torna-se uma
necessidade compulsiva ou mania (toxicomania).
"A defesa secundária contra os afetos
obsessivos leva a um conjunto ainda mais
vasto de medidas protetoras capazes de serem
transformadas em atos obsessivos.
Estes podem ser agrupados de acordo com
seu objetivo: medidas penitenciais (cerimoniais
opressivos, observação de números); medidas
relacionadas ao medo de delatar-se (colecionar
aparas de papel, misantropia); ou para
assegurar o entorpecimento da mente
(dipsomania)."
61
Comentando um caso clínico em uma carta a Fliess — 11 janeiro
de 1897 — Freud retoma o fenômeno toxicomaníaco como um sintoma,
relacionando sua gênese à repressão de uma pulsão sexual que é substituída
por outra a esta associada criando uma "compulsão substitutiva".
Nesta mesma carta propõe que esta dinâmica de substituição
pulsional está também presente no sintoma da mania pelo jogo, sugerindo que
qualquer objeto ou ato pode ocupar o lugar do tóxico, existindo manifestações
toxicomaníacas sem tóxicos.
"Ora, até adoecer, esse homem fora pervertido
e, por conseguinte, sadio. Sua dipsomania
surgiu pela intensificação, ou melhor, pela
60 Impulso mórbido periódico e irresistível que leva a ingerir grande porção de bebidas alcoólicas. In:
Buarque de Holanda, A. Novo dicionário da língua portuguesa Aurélio. 2º Edição. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986, p. 593.
61 Freud S., op. cit., 1976, vol. 3, p. 199.
58
substituição do impulso sexual associado por
esse impulso.
(Provavelmente, o mesmo se aplica à mania de
jogar do velho F.)."
62
É interessante ressaltar que Freud considera patológica a
substituição do objeto de gratificação original da pulsão e não a escolha de
objeto em si; que seria contingencial. Enquanto o paciente gratificava-se
"perversamente", não surgiram sintomas substitutivos.
Em trecho de outra carta Freud mantém a relação entre desvios
substitutivos da pulsão sexual e o surgimento do sintoma da toxicomania.
Nela, refere-se a dependência de morfina, álcool ou tabaco como
substitutos da masturbação infantil — considerada por ele como 'vício primário'
ou 'protomania' .
63
Considerar, conjuntamente com Freud, que toda dependência é um
sintoma deslocado substitutivo da masturbação infantil, remete-nos à ligação
entre toxicomania e auto-erotismo e as dúvidas por ele apresentadas, nesta
mesma carta, em relação à possível "inanalisabilidade" deste fenômeno
psicopatológico.
Neste período de elaboração teórica, Freud consideraria a
toxicomania como manifestação sintomática da neurose atual. A partir de 1914,
com a introdução do conceito de "narcisismo", Freud passa a considera-la como
62
Masson J., op. cit. p. 223.
63
22 de dezembro de 1897, carta já mencionada no capítulo anterior, p. 54.
59
sintoma de uma neurose narcísica, aquém da possibilidade de transferência e
conseqüentemente além da eficácia terapêutica da Psicanálise.
Em A sexualidade na etiologia das neuroses, Freud (1898) propõe
uma terapêutica para neurastenia (neurose atual) baseada na desintoxicação
forçada — "através do controle de hábitos masturbatórios em instituições sob
supervisão médica" — que poderia estender-se a qualquer outra forma de
dependência.
A masturbação e o abuso de drogas são considerados como
deslocamentos sintomáticos resultantes da insatisfação sexual.
Portanto,
nem
todo
usuário
de
drogas
tornar-se-á,
necessariamente, toxicômano; o lugar que o tóxico passa a ocupar na economia
sexual do indivíduo é o fator determinante no desenvolvimento do processo de
dependência.
"Abandonado a si mesmo, o masturbador se
acostuma, sempre que acontece alguma coisa
que o deprime, a retornar à sua cômoda forma
de satisfação. O tratamento médico, nesse
caso, não pode ter nenhum outro objetivo que o
de levar o neurastênico, que agora recobrou
sua força, de volta ao intercurso sexual normal.
Pois a necessidade sexual, uma vez que tenha
sido despertada e satisfeita por um longo
período, não pode mais ser silenciada; pode
apenas ser deslocada por outro caminho. Aliás,
o mesmo se aplica a todos os tratamentos para
quebrar um vício. Seu sucesso será apenas
aparente, na medida em que o médico se
contentar em privar seus pacientes da
substância narcótica, sem se importar com a
fonte da qual brotava sua necessidade
imperativa. O ‘hábito’ é um mero arranjo de
60
palavras sem nenhum valor explicativo. Nem
todos aqueles que têm oportunidade de tomar
por um lapso de tempo morfina, cocaína,
hidrato de cloral, e assim por diante, por algum
tempo, adquirem dessa forma um 'vício'. Uma
pesquisa mais minuciosa mostra usualmente
que esses narcóticos pretendem servir, direta
ou indiretamente, como substituto para uma
falta de satisfação sexual; e quando a vida
sexual não pode ser restabelecida, podemos
prever, com certeza, uma recaída."
64
Vale lembrar as torturantes experiências descritas no capítulo
anterior, vividas por Freud nas suas tentativas de abandonar seu 'hábito' de
fumante. Suas recorrentes recaídas apontam para a possível incapacidade de
restabelecer satisfatoriamente sua vida sexual.
Na nossa prática clínica temos comprovado que, de fato, as
recaídas dos pacientes toxicômanos estão intrinsecamente ligadas à sua
insatisfação sexual.
Não obstante, é importante notar que o restabelecimento da vida
sexual é muito mais abrangente do que uma atividade erótica satisfatória. A
noção 'vida sexual' abarca um leque mais amplo de fatores onde um projeto de
vida significativo e a afetividade desempenham papéis de extrema importância.
No Chiste e sua relação com o inconsciente, Freud (1904) escreve
sobre a relação entre intoxicações e inibições, antecipando as futuras
elaborações da relação entre toxicomania e conflitos superegóicos:
"O bom humor que surge endogenamente ou é
provocado pelos tóxicos debilita as forças
64Freud
S., op. cit. 1976, vol 3, p. 302 -303.
61
inibidoras, entre elas a crítica, fazendo assim
acessíveis fontes de prazer sobre as quais
atuava a repressão. Sob o efeito dos tóxicos o
adulto se converte novamente em criança."
65
Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud (1905)
propõe que a intensidade constitucional da oralidade tem um papel fundamental
na instauração dos 'vícios'. Esta hipótese será desenvolvida amplamente por
outros autores contemporâneos e posteriores a Freud.
Isto sugere que a predisposição congênita - uma erogeneidade
excessiva da zona labial, associada à fixação na fase oral do desenvolvimento
libidinal, pode ser um fator etiológico no desenvolvimento da toxicomania.
A partir de observações de crianças que chupam o polegar e da
sua própria experiência com o tabagismo, Freud sugere que nestes indivíduos:
"(...) a importância erógena da zona labial se
encontra constitucionalmente reforçada. Se
esta importância é conservada, tais crianças
chegam a ser, quando adultos, ávidos
apreciadores do beijo, tenderão a beijos
perversos ou, se forem homens, estarão
poderosamente inclinados a beber e fumar
excessivamente."
66
Em Contribuição a psicologia da vida amorosa, Freud (1912)
retoma o questionamento proposto em A sexualidade na etiologia das neuroses,
de por que nem todo indivíduo que tenha experimentado e sentido prazer com
tóxicos desenvolve, peremptoriamente, sintomas toxicomaníacos.
Para ampliar a noção do lugar ocupado pelo tóxico na economia
libidinal e responder à indagação, Freud descreve o vínculo objetal peculiar ao
65Freud
66
S., op. cit. 1976, vol 7, p. 202.
Freud S., op. cit. 1989, vol. 7, p. 170.
62
toxicômano (ao alcoólatra, no caso). Este é caracterizado por uma falha na
capacidade de elaboração psíquica que inibe o acesso à "série infinita de
objetos substitutivos" e interrompe o luto necessário para elaborar perdas
objetais, posteriormente, mantendo fixações em objetos infantis idealizados. A
viscosidade libidinal constitucional torna-se um obstáculo para a diversidade nas
escolhas objetais e o objeto da pulsão deixa de ser contingencial, mas
especificamente fixado.
A fixação como padrão de vinculação objetal é, na nossa opinião, o
maior obstáculo para o 'restabelecimento da vida sexual' do toxicômano.
Podemos considerar que aquilo que caracteriza o "patológico" na toxicomania
seja justamente, esta fixação da pulsão em um objeto unívoco; fixação tão
excludente que poderia ser caracterizada como uma "perversão da pulsão"
67
A pulsão é "pervertida" na sua essência fundamental: a
contingência do objeto. O objeto não é mais subordinado na sua contingência à
pulsão; na drogadição parece ser a pulsão que submete-se a primazia do
"objeto-droga."
68
Introduzindo o termo "drogadicção" como sinônimo de toxicomania,
é interessante lembrar aqui o significado da palavra adicto. A origem etimológica
provém do latim (addictum) e remonta-se aos tempos da República romana
onde o termo designava o homem que, para pagar uma dívida, se convertia em
escravo por não dispor de outros recursos para cumprir o compromisso
contraído.
67
68
69
69
Ocampo E., Droga, psicoanálisis y toxicomania, !988, Buenos Aires: Paidós, p. 23.
Gurfinkel D., A pulsão e seu objeto-droga, 1995, Rio de Janeiro: Vozes, p. 101 - 106.
Kalina E., Drogadição, Indivíduo e Sociedade, 1983, Rio de Janeiro: Francisco Alves, p. 23.
63
A ausência de recursos e o tornar-se escravo descrevem bem,
como na toxicomania, o destino da pulsão é o de ser escravizada a um único
objeto.
Retomando a indagação freudiana em relação aos traços
distintivos na vida sexual do usuário de drogas e do futuro toxicômano, vemos
que a fixação exclusiva ao objeto é determinante. Aulagnier (1979) descreve
sucintamente esta diferença:
"(...) quando falo da relação passional entre o
sujeito e o objeto droga não me refiro ao fato
de que, para certos sujeitos a droga esteja
entre os objetos ou atividades fontes de um
prazer, que não se torna por isso um prazer
exclusivo. O sujeito, neste caso, continua
desejando outras formas de prazer e investindo
outros objetos e outras finalidades."
70
Em Luto e melancolia, Freud (1917) postula que, por causarem
elação e euforia, as intoxicações pertencem ao grupo dos estados mentais
maníacos.
No
caso
da
toxicomania,
estes
estados
seriam
atingidos
"toxicamente" propiciando um rebaixamento no gasto energético requerido para
a manutenção do recalque. Níveis maiores de energia antes empregados no
esforço de "desalojamento", tornam-se agora acessíveis ao ego.
No artigo O humor, Freud (1927) refere-se novamente à
intoxicação associando-a a uma série de métodos que a vida psíquica lança
mão na tentativa de evitar a dor resultante das dificuldades apresentadas pela
70
Aulagnier P., Os destinos do prazer, !985, Rio de Janeiro: Imago, p. 150-151.
64
realidade externa e a compulsão ao sofrimento. Além do humor, esta série inclui
a neurose e o delírio, o uso de tóxicos, o ensimesmamento e o êxtase.
Em um texto publicado no ano seguinte, Dostoievsky e o parricídio,
Freud (1928) retoma as idéias expressas trinta anos antes na sua
correspondência com Fliess: a mania pelo jogo como substituição da compulsão
a masturbação.
A paixão desenfreada pelo jogo é considerada como uma forma de
adição sem tóxicos que serve como método de autopunição em resposta aos
sentimentos inconscientes de culpa.
"O 'vicio' da masturbação é substituído pela
inclinação ao jogo... A natureza irresistível da
tentação, as resoluções solenes, que, não
obstante, são invariavelmente rompidas, de
nunca fazê-lo de novo, o prazer entorpecedor e
a consciência má que diz ao indivíduo que ele
está se arruinando (cometendo suicídio) —
todos
esses
elementos
permanecem
inalterados no processo de substituição."
71
Os sentimentos inconscientes de culpa ocupam um lugar de
destaque na etiologia da toxicomania, merecendo atenção especial.
Geralmente,
pacientes
que
manifestam
este
fenômeno
psicopatológico chegam às consultas com níveis exacerbados de culpa em
relação a seu consumo abusivo de drogas. Parecem identificar-se com o
discurso moralista associado a isto: “Eu não presto”, “Sou um bosta”, “Não sirvo
71Freud
S., op. cit. 1974, vol. 21, p. 222.
65
para nada”... como se suas dificuldades mentais fossem um problemas de cunho
delinqüencial, um crime que só a repressão poderia sanar.
Este ponto de vista é conveniente tanto para as famílias que
escolhem estes indivíduos como bodes expiatórios para a problemática familiar,
como também, paradoxalmente, para os próprios “escolhidos”. Colocar uma
tangível, de conteúdos moralistas, no lugar do sentimento inconsciente de culpa,
proporciona alívio mental.
Em Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico,
Freud (1916) introduz a relação entre criminalidade e sentimento inconsciente de
culpa:
“O trabalho analítico trouxe então a
surpreendente descoberta de que tais ações
eram praticadas principalmente por serem
proibidas e por sua execução acarretar, para
seu autor, um alívio mental. Este sofria de um
opressivo sentimento de culpa, cuja origem não
conhecia, e, após praticar uma ação má, essa
opressão se atenuava. Seu sentimento de
culpa estava pelo menos ligado a algo.”
72
Em o Ego e o id, Freud (1923) retoma esta relação entre
criminalidade e sentimento inconsciente de culpa:
“Constitui uma surpresa descobrir que o
aumento nesse sentimento de culpa ics. pode
transformar pessoas em criminosos. Mas isso
indubitavelmente é um fato. Em muitos
criminosos, especialmente nos principiantes, é
possível detectar um sentimento de culpa muito
poderoso que existia antes do crime, e,
portanto, não é o seu resultado, mas sim o seu
72
Freud S., op. cit. 1974, vol. 14, p. 375. Parte III.
Criminosos em conseqüência de um sentimento de culpa.
66
motivo. É como se fosse um alívio poder ligar
esse sentimento de culpa a algo real e
imediato”
73
O “crime” da toxicomania encobre “crimes” piores para a
consciência. Se por um lado, retirar os conteúdos moralistas em relação ao
consumo abusivo de drogas pode desencadear uma exacerbação no abuso podendo tornar-se um festival orgástico - por outro, abre a possibilidade de lidar
com os conteúdos originalmente recalcados. Trata-se de um risco calculado que
o analista e seu paciente precisam correr para aumentar a possibilidade de
elaboração dos conflitos mentais.
Em Mal-estar na cultura, Freud (1930) associa a toxicomania à
mania e faz uma longa discussão sobre aquilo que chamou "O programa do
princípio do prazer". Ampliando a relação dos diferentes métodos empregados
na tentativa de evitar o desprazer mencionados no artigo O humor, Freud referese aos narcóticos como "amortecedores" que tornam-nos insensíveis aos
sofrimentos da vida.
Ao comparar o consumo de drogas com outros métodos de
influenciar o psiquismo para evitar o desprazer, Freud considera o primeiro:
"O mais brutal, porém mais eficaz desses
métodos de influência é o químico: a
intoxicação. Eu acredito que nada penetra o
organismo, mas é um fato que, por sua
presença no sangue e nos tecidos, certas
substâncias
estranhas
ao
corpo
nos
proporcionam sensações agradáveis, imediatas
que modificam as condições de nossa
sensibilidade a ponto de tornar-nos inaptos a
73
Freud S., op. cit. 1974, vol. 21, p. 68 - 69.
67
toda sensação desagradável. No entanto, é
possível que haja substâncias na química de
nossos próprios corpos que apresentem efeitos
semelhantes, pois conhecemos pelo menos um
estado patológico, a mania, no qual uma
condição semelhante à intoxicação surge sem
a administração de qualquer droga intoxicante.
É extremamente lamentável que até agora
esse lado tóxico dos processos mentais tenha
escapado ao exame científico. O serviço
prestado por veículos intoxicantes na luta pela
felicidade e no afastamento da desgraça é tão
altamente apreciado como um benefício, que
tanto indivíduos quanto povos lhes concederam
um lugar permanente na economia de sua
libido. Devemos a tais veículos não só a
produção imediata de prazer, mas também um
grau altamente desejado de independência do
mundo externo, pois sabe-se que, com o
auxílio desse 'amortecedor de preocupações', é
possível, em qualquer ocasião, afastar-se da
pressão da realidade e encontrar refúgio num
mundo próprio, com melhores condições de
sensibilidade.
Sabe-se igualmente que é exatamente essa
propriedade dos
intoxicantes que determina
seu perigo e sua capacidade de causar danos.
São responsáveis, em certas circunstâncias,
pelo desperdício de uma grande quota de
energia que poderia ser empregada para o
aperfeiçoamento do destino humano."
74
São estas as referências e observações na obra freudiana que
poderiam contribuir para uma compreensão psicanalítica do fenômeno
toxicomaníaco.
São estas as referências e observações na obra freudiana que
poderiam contribuir para uma compreensão psicanalítica do fenômeno
toxicomaníaco.
74
Freud S., op. cit., 1974, vol. 21, p. 96 - 97.
68
Resumindo poderíamos dizer que em termos freudianos:
— a toxicomania é um sintoma secundário de
defesa que torna-se uma mania compulsiva;
— a adição é um sintoma, uma compulsão
substitutiva do ato sexual, existindo ligação
com a masturbação, a mais antiga forma de
dependência;
— em certos casos, a viscosidade libidinal
manifesta na oralidade constitucionalmente
intensa pode explicar a ligação entre adições e
fixação;
— os tóxicos podem ocupar o lugar do objeto
primordial promovendo pobreza nas escolhas
objetais;
— existem adições sem drogas como o jogo,
onde atua a auto-punição;
— existem semelhanças entre os estados
de intoxicação e a mania.
A verdadeira contribuição de Freud para esta pesquisa não é
através de elucidações ou referências específicas em relação a toxicomania
propriamente dita, mas seus aportes sobre a dinâmica da oralidade: a
intolerância à frustração, necessidade de gratificação imediata, fixação e
regressão.
As resistências atuantes na obra freudiana para elaborar um
trabalho especificamente dedicado à toxicomania mencionadas nos dois
capítulos anteriores não se aplicam a outros psicanalistas contemporâneos e
posteriores a Freud.
69
Existem
cinco
grandes
revisões
bibliográficas
da
literatura
psicanalítica relacionadas às questões etiológicas e nosográficas presentes na
toxicomania: Crowley (1939), Rosenfeld (1961), Yorke (1970), Mijolla &
Shentoub (1973) e Ferbos e Magoudi (1986). Baseado nestas, a seguir, faremos
um resumo sintético das contribuições e opiniões de alguns destes autores
incluindo, também, outros que consideramos relevantes.
As primeiras publicações psicanalíticas a abordar diretamente o
tema da toxicomania referem-se à dependência de uma droga específica — na
maioria dos casos, do álcool. Com As relações psicológicas entre a sexualidade
e o alcoolismo, Abraham (1908) inaugura a investigação psicanalítica do
alcoolismo sugerindo que, ao suprimir as inibições e sublimações, a intoxicação
alcoólica incrementa tanto a sexualidade genital como a perversa polimorfa
infantil, libertando inclinações antes reprimidas como o exibicionismo e a
homossexualidade.
Em um artigo posterior A primeira fase pré-genital da libido,
Abraham (1916) procura no desenvolvimento libidinal uma fundamentação
etiológica para o papel desempenhado pela oralidade constitucionalmente
intensa no processo da instauração do alcoolismo, ressaltando sua avidez oral
insaciável.
Ferenczi (1911), contribui para o estudo da psicopatologia do
alcoolismo com dois textos publicados no mesmo ano: O álcool e as neuroses e
O papel da homossexualidade na psico-gênese da paranóia nos quais sugere
que o alcoolismo é um sintoma — uma tentativa de auto-cura — e não a causa
do conflito psíquico.
70
Concordamos plenamente com esta posição visto que nossas
observações clínicas têm nos demonstrado que o abuso de substâncias tóxicas
não é a fonte da patologia, mas sua conseqüência; a droga não faz o
toxicômano, é o toxicômano que faz a droga.
Este autor propõe o tratamento psicanalítico do alcoolismo como o
único recurso terapêutico verdadeiramente eficaz, uma vez que é só através
deste que pode revelar-se as motivações inconscientes que levaram a
instauração da manifestação psicopatológica.
A homossexualidade inconsciente é considerada por Abraham e
Ferenczi como um dos fatores etiológicos fundamentais que permeia a
problemática do alcoolismo.
Baseado nas pesquisas destes dois autores, Juliusberger (1912)
realizou várias contribuições para a compreensão da dinâmica do alcoolismo,
particularmente da dipsomania, destacando, novamente, os mecanismos
homossexuais inconscientes combinados com uma tendência ao auto-erotismo
e auto-destruição.
Retomando a relação estabelecida originalmente por Freud entre
os estados mentais maníacos e as intoxicações, os psicanalistas Clark (1919) e
Kielholz (1924) pesquisaram a relação entre alcoolismo, narcisismo e
depressão.
71
Este último propõe a primeira classificação nosográfica do
fenômeno psicopatológico, considerando o alcoolismo uma neurose narcísica
relacionada com a psicose maníaco-depressiva.
Segundo Kielholz, nesta patologia a dissociação entre o ideal do
ego e o ego é tão vasta e intolerável que o indivíduo precisa manter-se
constantemente intoxicado para não vivenciar uma profunda melancolia. O
aspecto persecutório do ideal do ego é silenciado ao ser diluído em álcool.
Até os meados da década de 20, a única publicação na literatura
psicanalítica a abordar o alcoolismo conjuntamente com o abuso de outras
drogas é um trabalho de Sachs (1923) a respeito da gênese da perversão.
Na sua pioneira pesquisa na busca da etiologia comum a ambas
manifestações,
este
autor
propõe
uma
classificação
psicopatológica
intermediária entre as neuroses compulsivas e as perversões, introduzindo o
conceito "neurose-perversão" como referência nosográfica.
Esta flexibilidade classificatória ilustra a posição da Psicopatologia
Fundamental mencionada na introdução. Uma década mais tarde, como
veremos mais adiante, Glover avançara neste sentido propondo ampliar as
categorias do diagnóstico estrutural introduzindo os "estados transicionais."
Uma das maiores contribuições para o esclarecimento da etiologia
do fenômeno toxicomaníaco surge a partir dos extensos escritos de Rado (1926,
1933, 1953). Este autor é o primeiro psicanalista a interessar-se global e
especificamente pelo problema da toxicomania separado do alcoolismo.
75
75 A partir deste momento ao referir-nos a "toxicomania" estaremos incluindo o alcoolismo e outras formas
de dependência que serão mencionadas explicitamente, se for necessário.
72
Rado considera que na base de todo tipo de toxicomania existe
uma "depressão tensa" caracterizada por uma "grande ansiedade dolorosa"
associada a um grau elevado de intolerância ao sofrimento.
O conceito de "orgasmo alimentar" é introduzido por este autor
para descrever a sensação de elação experimentada primeiramente pelo
lactante em relação ao seio e revivida, posteriormente, pelo toxicômano com a
droga através do chamado "orgasmo farmacogênico". A busca desenfreada da
repetição desta experiência resulta na "farmacotimia" — base de toda
manifestação toxicomaníaca.
Rado considera que por gerarem satisfação e euforia, as drogas
inicialmente neutralizam o sofrimento, restabelecendo a satisfação narcísica.
Não obstante, este alto nível de auto-estima produzido quimicamente se
desvanece com o passar do efeito tóxico e dá lugar a depressões cada vez mais
profundas e devastadoras para o ego.
Nossas observações clínicas confirmam estas afirmações, visto
que no começo do tratamento, pacientes com este tipo de patologia encontramse sujeitos a uma verdadeira "gangorra psíquica" caracterizada pelos altos
mágicos e os baixos trágicos nos seus estados anímicos.
Rado concorda com Kielholz, Juliusberger e Clark em relação à
importância do narcisismo e a depressão na etiologia da toxicomania e com as
idéias de Freud e Kielholtz ao destacar seus aspectos maníacos.
73
Em termos nosográficos, Rado divide as toxicomanias em três
grupos: o grupo psico-neurótico (de tipo maníaco-depressivo), o esquizofrênico e
o psicopático.
Simmel (1929, 1930), quem teve uma larga experiência com
pacientes internados em uma clínica especializada em desintoxicação —
Schloss Tegel, em Berlim — é conhecido por uma célebre frase repetida
freqüentemente por autores posteriores:
"O superego do alcoolista é solúvel em álcool."
Neutralizando o superego, o ego reencontra a auto-estima perdida
e seu funcionamento mental passa a ser regido, quase que exclusivamente, pelo
princípio do prazer, tornando o paciente uma criança cada vez mais narcísica.
Em termos nosográficos, Simmel considera que a
toxicomania
pode começar sob o domínio dos mecanismos obsessivos mas com a
experiência reiterada da intoxicação transforma-se numa neurose narcísica do
tipo
maníaco-depressivo. Considera também que a toxicomania pode surgir
como defesa contra a melancolia, podendo considerar-se uma "mania artificial".
Simmel concorda com Kielholtz, Juliusberger, Clark e Rado na
importância dada à relação entre toxicomania e depressão, ressaltando seu
caráter maníaco, perspectiva que comparte com Freud, Kielholtz e Rado.
74
Este autor tenta elucidar a relação entre a dissolução do superego
pelo efeito das drogas e a conseqüente progressiva manifestação de pulsões
destrutivas, acreditando que o efeito da droga age e concentra-se no superego.
A investigação psicanalítica da etiologia e nosografia dos
fenômenos toxicomaníacos ganha novo impulso com os trabalhos de Glover
(1926, 1932) quem concentrou seus estudos na fase e o caráter oral na tentativa
de elaborar uma teoria abrangente da toxicomania. Suas observações clínicas
demonstraram que o sistema classificatório proposto pela psicopatologia
psicanalítica clássica é ineficiente para compreender a dinâmica desta patologia.
Desenvolvendo as idéias de Sachs (1923), este autor propõe que a
toxicomania não é característica de uma estrutura psicopatológica específica,
situando-a na fronteira dos territórios da neurose e a psicose, constituindo um
"estado transicional".
Glover (1926) refere-se ao fenômeno com uma "neurose narcísica
circunscrita" e introduz a noção de "reação específica", mecanismo inerente a
toxicomania caracterizado por tipos de reações que beiram a psicose; nas suas
palavras: "... whose reactions border closely on psychotic mechanisms."
76
Em um artigo onde apresenta um esquema classificatório dos
distúrbios mentais, Glover (1932) coloca a toxicomania num lugar especialmente
diferenciado — no limite entre a psicose e a neurose. Refere-se à toxicomania
76Blanc J., Caractére et limite: evolution de termes. In: Narcissisme et état-limites. 1986. Paris: Presses de
L'Universite de Montreal, p. 74.
75
como um estado "borderline" onde o indivíduo tem um "pé nas psicoses e o
outro nas neuroses."
Este quadro psicopatológico origina-se nos estados paranóides
mas, ocasionalmente, um elemento melancólico pode passar a dominá-lo.
Contudo, estes estados encontram-se suficientemente do lado neurótico do
desenvolvimento como para poder preservar uma relação relativamente
adequada com a realidade, exceto na relação com as drogas que está sujeita
aos mecanismos paranóides.
Em seu livro Análise do caráter, Reich (1933) declara que a
toxicomania é freqüentemente uma manifestação psicopatológica inerente ao
caráter "fálico-narcisista sádico". Esta categoria nosográfica é autônoma e
independente situando-se intermediariamente entre as neuroses compulsiva e
histérica.
Na sua descrição deste caráter, Reich propõe que trata-se de
indivíduos totalmente identificados com o falo e incapazes de regredir a estágios
mais primitivos do desenvolvimento psico-sexual, permanecendo firmemente
fixados na fase fálica para proteger-se da regressão à passividade e analidade.
Estes indivíduos evitam seus impulsos anais e homossexuais passivos com
ajuda dos tóxicos e da agressão fálica.
Os escritos de Knight (1937, 1946) a respeito da dinâmica do
tratamento de alcoólatras e suas considerações etiológicas em relação a
patologia revelam concordância com as idéias de Glover.
76
O alcoolismo é considerado mais como um sintoma do que uma
instância mórbida, não sendo característico de uma estrutura psíquica
específica. Nosograficamente, este autor também situa o alcoolismo a meio
caminho entre as neuroses e psicoses, considerando-o uma tentativa de autocura para o conflito psíquico.
Knight considera imprescindíveis certas modificações técnicas no
manejo clínico destes pacientes, sugerindo que o analista deve ser muito mais
ativo, evitando adotar uma atitude crítica ou condenatória em relação ao álcool
ou qualquer outro objeto de dependência. Sugere conjuntamente uma série de
sessões com o paciente sentado para tentar estabelecer um bom vínculo inicial.
A primeira revisão da literatura psicanalítica a respeito do
alcoolismo e toxicomania foi redigida por Crowley (1939) na qual critica Rado e
Simmel por darem tanta importância ao "orgasmo alimentar" e por situá-lo numa
fase do desenvolvimento anterior à formação do aparelho psíquico. Por achar
que não existe uma etiologia específica na toxicomania, este autor critica a
"reação específica" proposta por Glover e sustenta que este fenômeno
psicopatológico pode manifestar-se nas neuroses, psicoses ou perversões.
Em seu livro A neurose de base, Bergler (1949) destaca a
importância dos fatores orais precoces e a inclinação à auto-punição masoquista
presentes no alcoolismo. Em termos nosográficos considera o alcoolismo como
uma neurose classificada por ele na categoria das "neuroses orais" para as
quais uma estratégia terapêutica alternativa torna-se necessária.
77
Assim como Knight, este autor também indica a necessidade de
uma mudança na técnica psicanalítica clássica onde o analista precisa "dar, dar,
e dar palavras" para o vazio associativo do paciente. Bergler comenta que esta
mudança na postura do psicanalista torna o trabalho muito mais cansativo do
que com as outras neuroses empregando a técnica clássica.
Em seu clássico tratado A teoria psicanalítica das neuroses,
Fenichel (1945) introduz uma visão da toxicomania que constitui uma espécie de
síntese das opiniões nos meios psicanalíticos até aquele momento. Não se trata
de uma teoria original, mas de um inventário organizado das idéias dos
psicanalistas que trataram do tema até então.
No capítulo Toxicomanias, Fenichel faz uma distinção entre as
toxicomanias propriamente ditas, as toxicomanias sem drogas e, entre estas
duas, o abuso do álcool, que pode ser considerado como um simples euforizante
sem ser obrigatoriamente tóxico, e o alcoolismo crônico que constitui uma
doença.
O toxicômano é definido por este autor como aquele indivíduo que
tem disposição a reagir aos tóxicos de maneira tal que tenta aproveitar seus
efeitos para simultaneamente satisfazer um desejo sexual infantil, um desejo de
segurança e um desejo de manter a auto-estima.
Estes indivíduos encontram-se fixados a um objetivo narcisista
passivo estando sempre interessados em obter satisfação em detrimento dos
outros.
78
Sob a influência dos tóxicos, as satisfações eróticas e narcisistas
incrementam a auto-estima de forma extraordinária. Em determinadas adições,
particularmente ao álcool, Fenichel também destaca o desaparecimento do
superego.
Fenichel acredita que em toda toxicomania estão presentes
comportamentos próprios do caráter patologicamente impulsivo que tenta
através do acting out aliviar a culpabilidade, a depressão e a angústia.
Este autor diferencia o que ele chama de "neuroses impulsivas"
das neuroses compulsivas por serem as primeiras ego-sintônicas. A compulsão
a repetição nas neuroses impulsivas é, pelo menos inicialmente, uma fonte de
prazer e não um fastidioso ritual defensivo que tenta compulsivamente evitar o
desprazer.
O melhor momento para começar uma análise é, segundo
Fenichel,
durante ou imediatamente depois do processo de desintoxicação,
alertando que não se pode pretender que o paciente se mantenha abstinente
durante o tratamento. Considera as recaídas como formas de resistência à
análise e recomenda conduzir o tratamento inicial, preferencialmente, em uma
instituição fechada.
77
Fenichel concorda com Rado, Simmel e Glover ao destacar a
relação existente entre a toxicomania e os estados maníaco-depressivos. Está
de acordo também com Simmel em relação à importância dada ao
desaparecimento do superego, lembrando-nos que é a parte da mundo mental
77 Nossa posição em relação à abstinência, recaídas e início do tratamento aproxima-se à deste autor e será
abordada mais amplamente no capítulo dedicado à clínica.
79
solúvel em álcool, e com Juliusberger, Clark, Kiehlholtz, Simmel e Bergler em
relação aos distúrbios narcísicos operantes no psiquismo do toxicômano.
Weijl (1945) faz várias contribuições para o tratamento psicanalítico
do alcoolismo ressaltando a importância do princípio do prazer na dinâmica
desta patologia. O álcool é empregado acima de tudo para diminuir a tensão e
dor geradas pela influência de um superego arcaico, sádico e persecutório.
Através da ingestão de álcool, o superego perde sua influência
sobre o ego que então pode ser ilimitadamente magnificado, podendo assim,
intoxicar-se com sua própria perfeição e auto-suficiência, até o surgimento da
cíclica fase depressiva. O estado de intoxicação é considerado por este autor
como um estado maníaco seguido pela depressão do coma alcoólico, sugerindo
uma imitação da morte como castigo pelo pecado original.
Weijl aponta para a importância do álcool em certos costumes e
rituais e sugere que este tem um duplo significado simbólico, representando
tanto a mãe quanto o pai; é o símbolo do leite desejado que converte-se no
substituto da mãe e da comida totêmica, do pai da horda primitiva assassinado.
O alcoolismo representa assim, uma tentativa de concretização do complexo de
Édipo (assassinato do pai e união com a mãe).
Em termos nosográficos, este autor considera a dependência do
álcool como manifestação de uma psicose maníaco-depressiva "artificial", em
escala reduzida. Como modificação técnica no tratamento psicanalítico, Weijl
considera importante neutralizar os sentimentos de inferioridade do alcoólatra
reconstituindo seu ego. Concordando com a maioria dos autores, relaciona o
80
alcoolismo com os estados maníaco-depressivos, concordando também com
Simmel, Fenichel e outros ao destacar o ataque do álcool ao superego.
Em Êxtase artificial, Merloo (1952) diferencia a psicodinâmica do
alcoólatra daquela do toxicômano. Enquanto a maioria dos alcoólatras é
maníaco-depressivo de tipo oral, a maioria dos toxicômanos é do tipo
esquizóide, habitando um mundo mágico e infantil.
Nossa participação nos grupos de auto-ajuda Alcoólicos Anônimos
e Toxicômanos Anônimos comentada na introdução deste livro, confirma esta
diferenciação. Enquanto os depoimentos dos alcoólicos versam sobre dor,
miséria psíquica e impotência, aqueles dos toxicômanos relatam, inicialmente,
façanhas onipotentes com as drogas beirando delírios de grandeza.
Merloo propõe três mecanismos mentais fundamentais presentes
em qualquer tipo de dependência: um veemente desejo de experimentar o
êxtase, uma intensa manifestação da pulsão de morte e uma forte dependência
oral.
Este autor acredita que, através do torpor narcótico, o toxicômano
vivência a união com o seio, podendo assim comparar-se com o paciente
maníaco, embora se diferencie deste por necessitar dos tóxicos para por em
marcha seus mecanismos de defesa.
O
êxtase experimentado pelo toxicômano é considerado uma
"pseudo-elação" que silencia a voz hostil e severa do superego e induz a
sensações oceânicas de fusão com o universo.
81
Sawitt (1954, 1963) explicita claramente que a toxicomania não
corresponde a uma estrutura psicopatológica específica, tratando-se de um
complexo sintomatológico em oposição a uma entidade psíquica em particular.
Esta pode manifestar-se numa ampla gama de distúrbios mentais como a
esquizofrenia, os estados depressivos, as psiconeuroses, as perversões, os
estados borderline ou os distúrbios de caráter.
Segundo este autor, independentemente da estrutura na qual a
toxicomania se manifesta, o denominador comum a todas as manifestações é a
impulsividade. Este ponto de vista concorda com Fenichel em relação as
"neuroses impulsivas" e discorda da especificidade apresentada por Glover no
conceito de "estados transicionais".
Em um trabalho apresentado como requisito para admissão na
Société Psychanalytique de Paris, Favreu (1952) discute o tratamento
psicanalítico da toxicomania num ambiente hospitalar. Para este autor a
toxicomania é "um sintoma" dentre outros e deve ser tratado como tal pelo
psicanalista.
Este sintoma adquire valores muito diversos dependendo da
estrutura psíquica na qual se manifesta. Diferentemente da maioria dos sintomas
clássicos tratados pela psicanálise, a toxicomania é considerada em si mesma
como uma passagem ao ato, uma reação de tipo perversa que leva a considerar
um ego frágil, mais psicótico do que neurótico.
Uma das contribuições mais esclarecedoras neste campo de
pesquisa psicopatológica é a que está resumida nos artigos escritos pelo
82
psicanalista kleiniano Rosenfeld (1960,1964) Sobre la adicción a las drogas e
Psicopatologia de la drogadicción y el alcoolismo no livro Estados psicóticos.
Como a maioria dos autores mencionados até aqui, este também
vincula
à
toxicomania
distúrbios
relacionados
às
questões
edípicas,
homossexuais e maníaco-depressivas. Rosenfeld não acha, porém, que este
fenômeno psicopatológico seja idêntico aos distúrbios maníaco-depressivos; a
diferença reside numa fraqueza egóica muito maior no caso do toxicômano.
Concordando com Merloo (1952), este autor declara que enquanto
o maníaco-depressivo tem recursos egóicos para acionar os mecanismos de
defesa maníacos, o toxicômano precisa do combustível propiciado pela droga
para pô-los em marcha. Desta maneira, a droga representa um objeto ideal que
pode ser incorporado concretamente para reforçar a onipotência dos
mecanismos maníacos de negação e splitting.
Para Rosenfeld, este fenômeno psicopatológico não se deve
apenas à regressão e fixação oral, mas também a uma excessiva divisão do ego
e objetos internos, constituindo uma extrema fragilidade egóica.
Fixados na posição esquizo-paranóide, estes indivíduos tentam, a
qualquer custo — através do uso da droga — evitar a posição depressiva já que
esta representa a incorporação de seus temidos aspectos dissociados.
Para
o
imaginário
do
toxicômano,
a
possibilidade
desta
incorporação representa a desintegração total do seu ego. O toxicômano
83
procura nos tóxicos um recurso quimicamente efetivo que, ilusoriamente, ajudao a superar sua fragilidade egóica e evitar a desintegração psicótica.
É o que nos chamamos ficar mutcho louco para não enlouquecer.
Em um trabalho intitulado Psychopathologie des toxicomanies,
Frécourt (1972) destaca a busca de tóxicos como uma necessidade na
toxicomania. Não se trata de uma mera busca de prazer como gostariam de
acreditar os não-toxicômanos, usuários de drogas lícitas que podem procurá-las
com esse fim.
Para este autor, a problemática inerente a toxicomania gira em
torno da distância entre aquilo que o toxicômano sente que é, e aquilo que
gostaria de ser; entre aquilo que ele acha que não tem e deveria ter: um ideal do
ego inatingível. O tóxico é uma "prótese evanescente" que promete tudo e dá
nada, constituindo-se como um grande engodo.
Apoiado numa vasta experiência clínica, Wurmser (1982) declara
no seu artigo The question of specific psychopathology in compulsive drug
abuse que jamais encontrou um único usuário compulsivo de drogas que não
fosse profundamente perturbado emocionalmente e que não tivesse passado
pelas agruras dos conflitos e dificuldades inerentes aos estados borderline ou
psicótico.
Este autor propõe que a toxicomania freqüentemente manifesta
uma equação causal subdividida em várias condições determinantes: précondições, causas específicas, causas contribuintes e causas precipitantes.
84
Wurmser faz uma síntese de traços característicos e sempre presentes nos
toxicômanos que tratou:
- defeito na defesa contra os afetos aliado a uma
tentativa de auto-medicação (conjuntamente, um
estado depressivo, uma raiva assassina,
vergonha, solidão, sensação de vazio, ausência
de pensamentos e falta de interesse);
- superego e ideal do ego patológicos. O ideal
do ego é arcaico e os aspectos mais maduros
surgem na adolescência para não aparecer
jamais;
- capacidade reduzida de simbolização e
dependência de um objeto arcaico;
- auto-destrutividade;
- gratificação regressiva;
- crise narcísica.
Um dos autores que mais se dedicou à pesquisa da personalidade
do toxicômano é Bergeret (1970,1981, 1983, 1986, 1988). Em vários escritos ele
afirma que não existe nenhuma estrutura específica da adição, demonstrando a
impossibilidade de se falar dos toxicômanos de maneira global.
Segundo o autor, a cada categoria estrutural clássica definida pela
psicopatologia corresponde uma possibilidade de funcionamento toxicomaníaco.
Baseado neste princípio, Bergeret distingue três tipos de personalidade
toxicômana: os de estrutura neurótica, psicótica e depressiva.
Embora esta última seja estatisticamente a mais freqüente, não
corresponde realmente a uma estrutura, em oposição as duas primeiras que são
estabelecidas graças às integrações identificatórias durante a adolescência. A
85
forma depressiva resulta de uma dificuldade em estruturar-se pela falta da
interiorização de imagens estáveis e confiáveis, produzindo assim pessoas
imaturas com um permanente fundo depressivo.
Sem entrar na discussão destas três formas, vejamos as
constatações que este autor apresenta "numa síntese sobre a reflexão
estruturológica" no seu livro sobre toxicomania e personalidade:
1. Não existe uma estrutura psíquica profunda,
estável e específica dos comportamentos de
dependência. Isto significa que qualquer
estrutura mental pode dar origem a
comportamentos de dependência (sejam estes
manifestos ou latentes).
2. O comportamento de dependência jamais
altera a natureza específica da estrutura
psíquica profunda, mas somente seu
funcionamento secundário.
3. A dependência de um produto tóxico é
buscada pelo sujeito, enquanto tentativa de
defesa e de organização contra as
deficiências ou as falhas ocasionais que a
estrutura profunda possa apresentar.
78
A partir das propostas e considerações deste autor cabe perguntar:
se é impossível evidenciar uma estrutura toxicômana "típica", por que então
referir-se a três grupos nosográficos clássicos falando deles de estruturas — ou
de "estrutura desestruturada", no caso da forma depressiva ?
Não significa este procedimento forçar o raciocínio para encontrar,
não uma única, mas três estruturas "típicas", ali onde talvez não existe estrutura
nenhuma ?
78
Bergeret, J. Toxicomania e personalidade. 1983, Rio de Janeiro: Zahar Editores.
86
Embora não seja considerada como uma estrutura específica, o
conceito de toxicomania é mantido por Bergeret para denominar certas
particularidades: organizações econômicas parciais; resposta direta da cólera
original, ausência de secundarização mental e libidinal da violência natural,
dificuldades identificatórias, pobreza no imaginário e predileção dos atos em
detrimento das elaborações mentais.
Em Addiction and ego function, Zinberg (1975) privilegia os fatores
externos como fonte etiológica para a toxicomania e critica veementemente a
noção de estruturas pré-estabelecidas. Para este autor, considerar a
toxicomania como resultado de conflitos precoces mal resolvidos é sinônimo de
falsificação retrospectiva. A base da sua argumentação é a evolução clínica de
soldados que usaram e ficaram dependentes da heroína durante a Guerra do
Vietnã.
Zinberg acredita que o fator determinante desta dependência foi a
situação intolerável daquela guerra pois após seu retorno, 90% destes soldados
não apresentou manifestações toxicomaníacas.
Em Drogue et langage, Oury (1977) diferencia a psicose da
toxicomania mas não propõe uma classificação psicopatológica específica. Na
toxicomania existe um evitamento da linguagem, da comunicação, como se a
droga substituísse artificialmente o "Outro". A regressão estrutural imposta pela
intoxicação provoca a falha de uma categoria essencial para a autoconstituição
do sujeito: a categoria "do ter".
87
Segundo este autor, a presença desta categoria é imprescindível
para possibilitar a introjeção; característica que estaria ausente no toxicômano.
Oury descreve o mundo do toxicômano como um mundo fechado e auto-erótico
que possibilita o gozo sem ter que dar conta da palavra.
Em um trabalho dedicado ao tema do prazer, Aulagnier (1979)
refere-se à toxicomania como uma modalidade de relação — a relação de
assimetria — cujo protótipo é a paixão.
"O investimento do objeto passional é
caracterizado como assimétrico, porque o
sujeito é inexistente para o objeto investido
passionalmente. A droga não é dotada de
nenhum desejo, de nenhuma intencionalidade
para e por aquele que a absorve."
79
A relação do toxicômano com o objeto de sua dependência é uma
relação passional na qual o objeto droga torna-se fonte exclusiva de todo e
qualquer prazer; prazer este que adquire a qualidade de necessidade.
A transformação do objeto de prazer em objeto de necessidade —
de necessidade vital — libera o ego de toda responsabilidade no registro da
escolha. Surge assim, o questionamento se o toxicômano tem necessidade de
prazer ou, prazer na necessidade unívoca que é infalível e momentaneamente
satisfeita.
Em
relação
ao
funcionamento
mental
característico
deste
fenômeno psicopatológico, Aulagnier (1979) descreve as dificuldades da ordem
do pensamento:
79
Aulagnier P., Os destinos do prazer. 1985, Rio de Janeiro: Imago, p. 151.
88
"Se continuarmos no registro do pensamento,
diria que a toxicomania é um compromisso
entre: o desejo de não mais pensar a realidade
e a recusa ou impossibilidade de recorrer à
reconstrução delirante desta realidade, ou
ainda, a toxicomania é um compromisso entre
o desejo de preservar e o desejo de reduzir ao
silêncio a atividade de pensamento do Eu."
80
Em relação ao enquadramento da toxicomania em alguma
estrutura nosográfica específica, Aulagnier propõe que dada a forma e qualidade
do vínculo que o sujeito instaura com o objeto, não é possível situá-la nem no
campo das neuroses, nem no campo das psicoses, nem no campo das
perversões — embora comparta certos pontos em comum com esta última.
No livro Le psychanalyste à l'écoute du toxicomane Fain (1981),
apresenta um texto no qual articula sua argumentação a partir do conceito de
‘neonecessidades’.
"Eu vejo em inúmeros casos de toxicomania
uma doença da civilização... A civilização atual
transformou a auto-estima na materialidade, a
sociedade de consumo sustenta o indivíduo
diretamente de modo a produzir um narcisismo
primitivamente secundário."
81
Como ilustração das ‘neonecessidades’, este autor se vale do
exemplo de um bebê a quem é dado uma chupeta para acalmá-lo, em vez de
permitir que se acalme usando seus próprios recursos, chupando seu polegar.
As “neonecessidades” contém a ilusão da ausência total de conflito constituindo
uma forte recusa da castração.
Idem. p. 152.
Fain M., Approche métapsychologique du toxicomane. In Le psychanalyste à l'écoute du toxicomane.
1981, Paris: Dunod, p. 33.
80
81
89
Nessa mesma coletânea de artigos, Gammil (1981) apresenta
Narcissisme, tout puissance, dépendance no qual considera a toxicomania como
uma patologia do objeto transicional, onde o objeto droga possibilita a negação
da importância do objeto humano evitando, assim, o contato com a
ambivalência.
O toxicômano tem dificuldades para elaborar a posição depressiva
— inicialmente em relação ao seio materno e tudo que este representa — o que
produz, como formação reativa, um sentimento de onipotência.
Seu ideal do ego apresenta uma falha fundamental e o aspecto
persecutório do superego é primitivo, cruel e sádico precisando ser apaziguado
à qualquer preço: as drogas são o meio de operar este apaziguamento.
A droga é um "objeto parcial e patológico que confere ao drogado
uma ilusória sensação de onipotência." Segundo este autor, a toxicomania
deveria ser considerada "uma defesa massiva contra todo e qualquer sentimento
de culpa."
82
Estas considerações psicopatológicas propostas por Gammil
aproximam-se daquelas de Rosenfeld em relação à importância dada aos
conflitos superegóicos.
Embora não se considere psicanalista, Olievenstein (1983) lança
mão
de
alguns
conceitos
psicanalíticos
para
investigar
o
fenômeno
psicopatológico da toxicomania. Segundo este autor, a complexidade da
82 Gammil, J. Narcissisme, toute puissance e dépendance. In: Le psychanalyst à l’écoute du toxicomanee.
Paris: Dunod, 1981.
90
toxicomania não é redutível nem à neurose obsessiva, nem à psicose maníacodepressiva, nem à perversão; não existe o toxicômano "típico":
"O toxicômano sempre se assemelha um pouco
a alguma coisa que ele (o terapeuta) já
conheceu: um pouco do psicótico, um pouco do
maníaco depressivo, um pouco do perverso,
um pouco
do homossexual, etc."
83
Em termos etiológicos, Olievenstein considera que a toxicomania
surge da confluência de um conjunto dinâmico de três fatores: o produto, a
personalidade do usuário e o momento sociocultural.
Quando os três fatores estão presentes de maneira particularmente
desfavorável, seu encontro leva a instalação da dependência. A fragilidade
egóica joga um papel fundamental na personalidade do toxicômano. Para
descrevê-la, Olievenstein empresta a metáfora lacaniana do "Estádio do espelho
como formador da função do eu, tal como nos é revelado na experiência
psicanalítica” e a modifica para o "Estádio do espelho partido".
Segundo esta versão modificada da metáfora, no futuro toxicômano
ocorrerá algo intermediário entre uma formação egóica bem sucedida e outra
estilhaçada; quase impossível. Este momento é descrito com as seguintes
palavras :
"Nesta passagem em que se deve constituir um
ego
diferente do ego em fusão com a mãe,
tudo
se
passa
como
se
existisse
simultaneamente esse cara a cara com o
espelho, essa descoberta de si e da imagem de
si. Só que nesse preciso instante o espelho se
parte, refletindo, ao mesmo tempo uma
83
Olievenstein C., A vida do toxicômano. 1983, Rio de Janeiro, Zahar, p. 12.
91
imagem, porém uma imagem fragmentada e
uma incompletude representada pelas fendas
deixadas pela ausência do espelho ..."
84
Para Olievenstein, a droga constitui uma espécie de cimento que
completa as fendas e refaz essa efêmera imagem de um ego não fragmentado.
A dependência é para o sujeito uma “maneira de ser no mundo” que o protege
de sua angústia fundamental: angústia mortífera de desintegração.
Diante do duo toxicômano - droga, este autor propõe uma
estratégia
terapêutica
especial;
trata-se
de
dispositivos
terapêuticos
"transicionais" divididos em três fases sucessivas.
Inicialmente, há o "desmame" físico, após o qual entra a fase de
isolamento do meio onde predomina a cultura toxicomaníaca e o terceiro passo,
a psicoterapia específica.
A proposta desta terapia específica, a "psicoterapia perversa", não
é absolutamente a mesma de um tratamento psicanalítico tradicional, tendo
características próprias. Trata-se de uma espécie de sedução onde a escuta —
ao contrário da analítica — não pode ser silenciosa, já que não há ainda
possibilidade de espera.
Embora o analista manipule estrategicamente a transferência para,
gradualmente, ocupar o lugar da droga, não se trata de trocar uma dependência
por outra, pois o objetivo final desta técnica terapêutica é a independência
psíquica do sujeito.
84
Olievenstein C., A vida do toxicômano. 1983, Rio de Janeiro, Zahar, p. 16.
92
Kalina (1980) é um dos raros autores que tem se dedicado ao
estudo da toxicomania que a considera como manifestação psicopatológica de
uma estrutura unívoca. Para este autor, a toxicomania "é sempre uma conduta
psicótica e tem a estrutura de um estado delirante."
85
McDougall (1984, 1987) propõe a existência de uma "estrutura
adictiva" onde a atuação (no sentido psicanalítico) representa uma maneira
compulsiva de evitar um transbordamento afetivo. Os toxicômanos são
considerados como "des-afetizados;" pessoas para quem qualquer emergência
86
de emoção é imediatamente dispersa pela ação.
O que caracteriza a "personalidade adictiva" é a constante procura,
fora de si mesmo, de soluções para problemas que são internos. O objeto
(veículo da solução) pode ser o mais variado, já que o importante é o modo de
se relacionar com ele:
"A 'solução' encontrada pode ser uma
substância: álcool, comida, droga... ou então a
utilização ativa de outros (o que faz parte dos
problemas ditos narcísicos da personalidade),
ou ainda uma utilização adictiva da
sexualidade; isto é, numa relação sexual em
que o objeto tem pouca importância ou deve
mudar constantemente."
87
85
Kalina E.,Drogadição, família e sociedade, 1983, Rio de Janeiro: F. Alves, p. 36.
McDougall J., The 'dis-affected' patient: reflections on affect pathology. 1984, Psychoanal. Q., LIII: 386
- 409.
87 Idem. Conferências Brasileiras, 1987, Rio de Janeiro: Xenon, p. 136.
86
93
Como o objeto da dependência é uma tentativa de resolução dos
conflitos internos, seu efeito é sempre transitório, e a atividade toxicômana tem
de ser renovada constantemente. McDougall denominou este objeto de "objeto
transicional patológico" (utilizando o pensamento de Winnicot), já que se trata de
um objeto que nunca completa a transição para o registro da linguagem ou do
pensamento.
Em
termos
nosográficos,
McDougall
utiliza
o
modelo
da
toxicomania para compreender a perversão, propondo para esta última a
expressão "sexualidade adictiva". Na concepção desta autora, o funcionamento
mental do toxicômano apresenta um déficit de simbolização assemelhando-se
ao funcionamento mental das personalidades psicossomáticas: o "pensamento
operatório" e a "alixitimia". McDougall levanta a hipótese de que as defesas
narcísicas e a toxicomania serviriam como proteção contra regressões
psicossomáticas.
No seu livro Toxicomania y psicoanálisis: las narcosis del deseo,
Le Poulichet (1987) define dois eixos da "montagem toxicômana" como
tentativas de fuga do "sofrimento insuportável" presente na toxicomania: as
dimensões de substituição e suplemento.
A primeira destas, segundo a argumentação da autora, visa
substituir —ou, ao menos escorar— a deficiência da instância simbólica diante
dos assaltos sofridos ao nível do real. Pelo recurso à droga, tenta-se organizar
um circuito pseudopulsional fechado, com o intuito de
proteger-se contra
invasão por um Outro vivido como absoluto, isto é, não castrado mas impondo
uma castração real.
94
Enquanto "formação narcísica" a toxicomania opõe-se, portanto, ao
suposto gozo do Outro e ao horror intolerável que inspira, pelo fato de implicar
em castração. Para evitar esta última recorre-se à "operação do farmakon" que
anestesia ou narcotiza o desejo; o sujeito fica exilado do seu desejo e passa a
funcionar na ordem da necessidade.
No caso da dimensão de suplemento, o sujeito engaja-se numa
competição fálica, lançando mão de dispositivos perversos para assegurar-se de
um saber (e não um ser) que possa permitir-lhe uma autosustentação. Pela
suspensão do desejo próprio, o sujeito oferece-se como instrumento do gozo do
Outro
apoiando-se
na
recusa
da
castração
—mas
abrindo
mão,
simultaneamente, de sua condição de sujeito pela dependência castradora do
corpo.
Melman (1992), em Alcoolismo, delinqüência e toxicomania: Uma
outra forma de gozar sustenta que a etiologia da toxicomania tem duas
vertentes: a primeira, sugere que qualquer um pode tornar-se toxicômano, até
mesmo acidentalmente e a segunda propõe que é uma causa social que facilita
seu surgimento.
Estas duas vertentes estão entrelaçadas pois a "sociedade de
consumo" repousa sobre um ideal de consumo encarnado pelo toxicômano. O
sonho de todo fabricante é produzir um objeto sem o qual ninguém poderia
passar, objeto que dentre suas qualidades, seria capaz de apaziguar todas as
necessidades e desejos, constituindo assim, uma perfeita dependência.
95
Em relação aos determinantes, o autor considera que a maioria das
pessoas se torna toxicômana porque a droga circula no seu meio e porque esta
tem uma inscrição na cultura de seu tempo.
Melman considera que o desejo do toxicômano desaparece para
transformar-se em necessidade, necessidade de um produto idealizado e
incorporável.
Embora esta descrição leve a associações com o falo e com a
estrutura perversa, Melman não situa a toxicomania em nenhuma estrutura
psíquica em particular. No seu lugar, ele propõe uma modalidade de gozo
específica e particular à nossos tempos, o gozo ilimitado. Este gozo não se
realiza no momento da satisfação, mas, paradoxalmente, no momento da
privação, no estado de tensão desejante.
Este paradoxo surge no toxicômano como resultado da ausência
do registro simbólico da falta. Esta falha, por sua vez, conduz a tentativa de
compensação através da inscrição de uma falta real no próprio corpo. Melman
alerta que este processo seria diferente no caso do alcoólatra por este sofrer ao
acreditar que estão privando-o de um gozo.
O alcoólatra tenta fazer uma compensação através da ingestão
continua do líquido. Seu gozo, portanto, não acontece durante a privação, mas
no momento da incorporação.
Para Melman, o toxicômano sofre de uma capacidade de
simbolizar a falta. Fugindo da angústia de castração, o toxicômano coloca no
96
lugar da falta insustentável, um objeto que venha apazigua-la; um objeto real: a
droga.
Em termos de modificações recomendáveis na técnica psicanalítica
clássica para lidar com este tipo de paciente, Melman (1981) propõe o reforço
narcísico do paciente para estimular o desenvolvimento da transferência.
O artigo de Petit (1990), Função paterna e toxicomania no livro A
clínica do toxicômano se propõe pesquisar a função da "necessidade" da droga.
No processo de abstinência, quando é a droga que falta, surge a dor, e é
somente quando esta dor desaparece que surge a angústia. Portanto, a angústia
sobrevem quando a "necessidade" começa a faltar ... a "necessidade" e não a
droga. Segundo este autor, a angústia surge porque uma vez abstinente falta-lhe
a "necessidade" que servia de ancora identificatória. É da falta de dependência
que sofre o sujeito desintoxicado.
Este autor descreve o momento que consideramos ser o mais difícil
e crucial no tratamento do toxicômano. É o momento em que sua "necessidade"
lhe causa horror pois percebe que é possível passar sem a droga, mas o fato é
que ele ainda não sabe verdadeiramente deixar de ter "necessidade" dela. Está
ainda acostumado a que a "necessidade" obture o lugar do desejo.
A este paradoxal momento no tratamento de toxicômanos onde um
sujeito desejante pode surgir, Olievenstein (1989) denominou a "falta da falta" e
nos "o fim da picada". Trata-se de um momento perigoso de penosa e gradual
metamorfose rumo a experiência da não-dependência. É o momento de maior
sofrimento para o sujeito desintoxicado que ainda não tem experiência nos
assuntos da subjetividade.
97
Olievenstein considera este momento do tratamento o mais
perigoso existindo risco de suicídio, uma vez que o sujeito passa por um período
de falta de amor por si mesmo e perde a ilusão de uma "solução". Chegar ao
"fim da picada", ou seja, sentir falta da falta da droga, implica o enfrentamento
com a falta fundamental inerente à condição humana.
Neste momento o futuro do toxicômano se torna instável, não se
espera grande coisa dele, exceto o não retorno a um limiar insuportável de
sofrimento. Parece uma "pobre vida" limitada e retraída, mas o significado desta
insignificância é uma vitória sobre a morte e a loucura.
É verdadeiramente surpreendente acompanhar este processo e
perceber que, as vezes, alguns pacientes conseguem abandonar a certeza da
repetição e a fantasia do desejo, para tornar-se sujeitos desejantes.
Calligaris (1991) apresentou durante um seminário sobre a neurose
obsessiva, importantes contribuições para elucidar a toxicomania. Para situar
este fenômeno na modernidade, o autor retoma o conceito hegeliano do desejo:
"Para Hegel, o próprio do desejo humano é que ele
é desejo de desejo; desejo no outro seu desejo.
O desejo humano não teria como desejar um objeto
externo, sem a mediação do desejo do outro."
88
88Calligaris
C., Seminário sobre neuroses obsessiva, manuscrito não publicado.
98
É interessante notar que esta colocação é rigorosamente freudiana,
uma vez que em 1915, no artigo Pulsões e destinos de pulsões, Freud já falava
à respeito da contingência do objeto que satisfaz a pulsão. Quando acreditamos
ter conquistado o objeto do nosso desejo, este já encontra-se em algum outro
lugar. Continuando com Calligaris à respeito de Hegel:
"O que se encontra na origem deste desejo humano é a
animalidade da qual saímos, que se caracteriza em ter
desejo do objeto que se satisfaz no consumo, na anulação
do objeto, no gozo. Há uma oposição entre desejo e gozo.
O gozo é próprio do animal. O acento dado na contemporaneidade é do lado do gozo, do consumo imediato de um
produto qualquer, portanto, não é do lado do desejo. Neste
sentido, a toxicomania não é patológica. A toxicomania é
uma espécie de figura do espírito da contemporaneidade,
figura exemplar da escolha pelo gozo."
Calligaris não considera a toxicomania como fuga individual mas,
como sintoma social. Neste sentido, é surpreendente que a sociedade ofereça
aos toxicômanos centros de recuperação para que possam sair da dependência
promovida pela própria sociedade.
Por outro lado, este autor aventa a hipótese da toxicomania ser
uma tentativa de resolver o sofrimento neurótico. Nas suas palavras:
"A toxicomania é uma tentativa de sair da neurose pela
fascinação do objeto. Deste ponto de vista, o laço social
de um grupo de toxicômanos não é diferente de um grupo
de consórcio de carros, já que o objetivo destes grupos é
celebrar o objeto na civilização. Não se trata de reparar a
castração, graças a um sacrifício, se trata que os objetos
são representantes do Outro e é pelo acesso aos objetos
que se alcança significação. Neste quadro, não há
reconhecimento da castração; portanto, apoderar-se do
objeto tem como objetivo não se submeter aos deveres
fálicos. A saída toxicomaníaca é uma invenção deste século."
99
Bucher (1992) Drogas e drogadição no Brasil, considera a
toxicomania como resposta à falhas identificatórias que repercutem na vivência
corporal e na economia narcísica do toxicômano. Estas falhas acarretam
deficiências na função simbólica. A pobreza simbólica alimenta a procura de um
acesso direto ao corpo, acesso este não contaminado pelo desejo do Outro e,
portanto, fora da linguagem. O drogado outorga-se o objeto droga para provar
sua auto-suficiência, para comprovar a ideia que não lhe falta nada e não
depende de ninguém. Isto é, não há limites nem castração.
Este resumo bibliográfico permite notar formulações divergentes,
por vezes contraditórias, ou pelo menos heterogéneas em relação às
considerações etiológicas e nosográficas do fenômeno psicopatológico da
toxicomania.
Os autores podem ser divididos essencialmente em dois grupos no
que concerne a classificação nosográfica: enquanto o primeiro grupo formula a
idéia que a toxicomania é uma manifestação psicopatológica característica de
uma estrutura psíquica específica, o segundo propõe que a toxicomania é um
comportamento ou conjunto sintomatológico que pode manifestar-se nas
neuroses, nas perversões, nas psicoses ou nos estados borderline.
No que concerne as considerações etiológicas, parece haver um
relativo consenso entre os autores visto que a maioria deles refere-se à
importância dos fatores orais, homossexualidade latente, auto-erotismo,
sadismo, impulsividade e fragilidade egóica. Não obstante, alguns dos autores
10
aqui apresentados consideram que a fonte etiológica da toxicomania encontrase nas estruturas sociais, sendo estas reflexo da contemporaneidade.
O elemento que mais chama nossa atenção neste resumo
bibliográfico é a profusão de neologismos nosográficos apresentados pelos
diversos autores como tentativa de descrever o fenômeno psicopatológico da
toxicomania; entre outros: "borderline", "neurose oral", "neurose-perversão",
"mania artificial", "pseudo perversão", "neurose impulsiva", "estrutura adictiva",
"montagem toxicomaníaca" e "formação narcísica."
Este tipo de elasticidade diagnostica e nosográfica permite que as
patologias estejam em criativa busca de nomenclaturas — uma descrição — em
oposição aos nomes ou categorias rígidas em busca de patologias específicas.
Um grande número de autores considera a toxicomania como um
mecanismo de defesa que permite silenciar um superego particularmente
sádico. Nossa experiência clínica tem demonstrado que, de fato, o consumo
abusivo de drogas é uma tentativa de "cura" de um superego excessivamente
severo, que esmaga o ego com as exigências de um ideal inatingível.
Como foi colocado anteriormente, a toxicomania é uma "solução",
uma saída criativa para um ego totalmente esmagado. Pode-se discutir a
eficácia desta "cura", mas não deve negar-se a função estruturante e o elemento
de criatividade presente durante, pelo menos, os primeiros estágios da
instauração desta patologia.
10
Por outro lado, não deve subestimar-se a precariedade de tal
"cura", caindo em um "elogio" a droga, pois trata-se de uma repetição
compulsiva destinada, quase que exclusivamente, a libertar o ego da tirania
opressora do superego; impossibilitando qualquer tipo de desenvolvimento.
Passemos, então às particularidades da clínica psicanalítica da
toxicomania.
O lixo clínico
Como fenômeno que resiste à classificação nosográfica
clássica, a toxicomania pareceria pertencer ao território da ignorância, ao lugar
do excluído e marginalizado; uma espécie de lixo clínico. Isto não se aplica
exclusivamente às psicologias em geral, mas particularmente à psicanálise, visto
que são raros os psicanalistas que aceitam em análise o que chamamos de
pacientes (não política) mas "psicanalíticamente incorretos."
Acreditamos que esta resistência seja alimentada — não só pela já
mencionada sintomática ausência na obra de Freud de um texto específico
sobre a toxicomania, mas também pelas características do funcionamento
mental da maioria destes pacientes.
Seu mundo mental esta geralmente dominado por um tipo de
pensamento para o qual coisas e comportamentos tem muito mais relevância do
que conceitos. Sua falta de imaginação e incapacidade de associar denotam um
mundo mental empobrecido e precário, limitado ao fatual e atual; assemelha-se
ao pensamento operatório descrito por Pierre Marty (1990) nas suas pesquisas
sobre o mundo mental* de pacientes com desordens psicossomáticas.
10
A imagem que gostamos de evocar para ilustrar este tipo de
funcionamento mental é a de um caminhão "Concremix". São
aquelas
betoneiras que estão sempre misturando os mesmos quatro elementos básicos
— areia, pedra, água e cimento — para formar o concreto que despejam onde
forem requisitadas.
São pacientes que apresentam uma espécie de falha na
capacidade de simbolização que revela-se na sua dificuldade de produzir
associações e no fato que o mundo das representações lhes é totalmente
estranho. São pacientes que faltam constantemente, se afastam da análise por
longos períodos, procuram o analista fora dos seus horários de sessão, atrasam
o pagamento, enfim; são pacientes que se expressam através de uma constante
atuação, criando certa instabilidade na clínica.
Mas, afinal, a clínica psicanalítica da toxicomania difere da clínica
de outras psicopatologias? O que teria de particular? Para responder estas
indagações lançamos mão da nossa prática clínica.
Uma das particularidades da clinica psicanalítica da toxicomania é
que, diferentemente de outras psicopatologias, o sintoma serve como substrato
de identidade e é geralmente prazeroso, evocando uma certa semelhança com a
clínica das perversões. No entanto, difere desta última, visto que na toxicomania
o fetiche não é da ordem do simbólico ou do imaginário, mas da ordem do real.
Na toxicomania, a droga é um significante sem significância.
10
O tratamento ameaça não só escancarar os conflitos que o
paciente tenta evitar através do abuso dos tóxicos, mas também destruir a sua
quase exclusiva fonte de alívio, prazer e suporte narcísico. Os únicos grupos
sociais que sentem orgulho em relação à seu sintoma são os fanáticos religiosos
e os toxicômanos. Não é raro que estes pacientes — em vez de manifestarem
uma genuína demanda de análise — procurem tratar-se sob pressão de
familiares, de instâncias sociais ou jurídicas, o que dificulta ainda mais um
pedido pessoal assumido.
Não é muito comum que tal demanda se expresse uma vez que o
uso que o toxicômano faz do seu objeto corresponde a uma tentativa de
dispensar o circuito da demanda e da comunicação. É o que eu chamo de
"demanda de análise (não para inglês, mas) para familia ver". A tarefa principal
de uma série de entrevistas preliminares é tentar detectar ou, se for preciso — e
geralmente o é — despertar uma demanda pessoal de análise.
Durante estas entrevistas preliminares costumo aventar a hipótese
que as drogas não constituam o problema do paciente, mas a "solução" possível
para problemas dos quais o paciente parece não ter a mínima noção — e eu
menos ainda — e que o irresistível impulso à drogar-se seja necessário para
encobrir as verdadeiras razões do seu sofrimento.
Tenho achado, quase sempre, muito útil praticar neste momento
do tratamento, uma espécie de psicopedagogia psíquica para introduzir o
paciente às noções elementares do mundo mental: mundo interno / mundo
externo, conflito, representações, pensamentos, ...
10
No caso destes pacientes, uma genuína demanda de análise
depende do nível de angústia e conflito nos seus vínculos com a droga no
momento das entrevistas. Depende de terem atingido uma fase na qual o abuso
de drogas passa a ser ego-distônico por criar-lhes sérios problemas afetivos,
profissionais, legais, familiares ou por colocar em risco a própria vida.
Este é o momento — chamado pelos Alcoólatras e Toxicômanos
Anônimos de fundo do poço — no qual a lua de mel está acabada já faz algum
tempo e o casamento com o tóxico resume-se a uma repetição compulsiva cujo
objetivo já não é mais a obtenção de prazer, mas a necessidade de evitar o
desprazer físico e mental que a falta da droga produz.
Esta necessidade resulta na narcose do desejo (Poulichet, 1987)
ou melhor, na necrose do desejo, e conjuntamente, na erradicação de qualquer
traço de subjetividade. É o momento em que a prótese narcísica constituída
pela droga não tem mais eficácia como maneira de ser no mundo que protege o
toxicômano das suas angústias fundamentais.
Não deve escamotear-se o elemento estruturante e voluntarista
presente na dependência; o sujeito procura na sujeição um modo de
subjetivação, porém o uso compulsivo daquele objeto real — inebriante e/ou
anestesiante — é dessubjetivante, desencadeando a evacuação de todo vestígio
subjetivo.
A extrema fragilidade e fragmentação egoica destes pacientes
produz um fenômeno transferencial muito particular. No começo do tratamento
10
estes pacientes manifestam um verdadeiro pavor do divã; precisam me ver, me
sentir, me mastigar, me incorporar, me aplicar na veia ...
É o que eu chamo de transferência canibal; oralmente ávida, voraz,
indiscriminada e excessiva. Passo a ocupar o lugar de alter-ego, gurú; o ideal
de seus egos, e assim me vejo, freqüentemente, sendo imitado nos meus
hábitos, trejeitos e discurso. Trata-se de um lugar onde o analista entrega-se de
corpo e alma para servir de continente ao vazio simbólico no paciente.
A regra fundamental da associação livre é presa à incontáveis
relatos repetitivos de façanhas com as drogas, denotando uma severa pobreza
de discurso. É paradoxal que uma atividade supostamente libertária (o ato de
drogar-se) esteja sujeita a uma repetitiva mesmice compulsiva.
Atender vários pacientes toxicômanos em começo de análise, no
mesmo dia, pode ser bastante perturbador para o analista. São sessões
extremamente tóxicas onde a minúcia do relato de sensações e baratos pode
atingir o analista. (grinfas, baque, overdose, sangue).
No início do tratamento psicanalítico de toxicômanos sempre surge
um elemento de importância crucial: a abstinência. É evidente que o trabalho do
psicanalista torna-se mais difícil na medida em que não só trabalha com
psiquismos rudimentarmente estruturados, mas tem que também lidar com
estados confusionais provocados pela intoxicação.
Que o paciente compreenda e aceite a importância de evitar estes
estados mentais para que a análise possa se desenrolar, é inegável. Mas
10
caberia ao psicanalista exigir isto como condição sine qua non para que a
análise possa acontecer?
Para elaborar esta questão devemos remeter-nos à diferença entre
a abordagem médica e a abordagem psicanalítica. A partir da minha
experiência,
posso
afirmar
que
pacientes
toxicômanos
freqüentemente
despertam no psicanalista a tentação de ordem médica de salvá-los ou curá-los.
É como se a figura da droga representasse, imaginariamente, o
mal a ser extirpado; uma espécie de tumor maligno. Sob o ponto de vista da
medicina, abstinência e cura são sinônimos, refletindo os ideais de saúde dos
médicos.
Na abordagem psicanalítica, este impulso cirúrgico é substituído
por uma tentativa de lentamente criar "um espaço que seja tempo de palavra"
(Poulichet, 1987) através do qual o paciente possa progressivamente deixar de
ficar a mercê do real, do não simbolizável, do inominável e arcaico.
Tanto a abstinência quanto o consumo ou abuso de drogas
deveriam ser, a meu ver, abordadas sob um ponto de vista dinâmico na relação
transferencial. As propostas de abstinência, consumo moderado ou qualquer
outra alternativa devem partir do paciente e não ser uma recomendação ou,
menos ainda, exigência do psicanalista. Freud (1913) já nos alertou em Totem e
tabu, que o interdito cria o desejo.
Se aceitarmos a hipótese que a toxicomania é uma manifestação
sintomática, podemos analogamente considerar o caso de uma histérica que é
advertida pelo psicanalista que a condição para o tratamento é abster-se de toda
10
tentativa de seduzi-lo; ou um obsessivo a quem se recomenda abster-se do
ritual de lavar as mãos antes e depois de cada sessão como condição para o
bom andamento do tratamento.
A abstinência na clínica psicanalítica da toxicomania não atinge
exclusivamente o paciente; o psicanalista deve também abster-se para não
ceder a uma série de tentações perturbadoras.
Além da já mencionada tentação de salvar o paciente extirpandolhe o "tumor-droga", o psicanalista também sofre a tentação de
tornar-se
avalista das propostas de abstinência do paciente.
Isto pode criar situações nas quais de avalista, o analista passa a
ser uma espécie de fiscal superegóico cuja maior preocupação é a manutenção
do contrato de abstinência com o paciente.
Esta troca de funções — de analista para avalista-fiscal — promove
a rescisão do contrato psicanalítico, transformando-se em um contrato sadomasoquista que conduz o tratamento para um inevitável impasse. Ou seja, se o
analista ceder a esta tentação, estará aumentando, consideravelmente, a
probabilidade que o paciente minta omitindo recaídas e outros acontecimentos
que possam decepcionar ou trair seu avalista. Que na verdade é seu analista.
Não cedendo a esta tentação, o analista abre a possibilidade de
considerar as recaídas como material de análise passível de interpretação como
resistências ao vínculo transferencial. O analista verdadeiramente abstinente,
aquele que não visa nem a abstinência nem qualquer outro objetivo normativo
em relação ao paciente, pode constituir-se como observador neutro. Sem este
10
espaço de sincera observação neutra, além do bem e do mal, é praticamente
impossível que o ato psicanalítico possa acontecer.
Outra tentação que surge freqüentemente no psicanalista é a de
ocupar, peremptoriamente, o lugar da droga. Esta tentação tem sua origem na
onipotência do analista e na necessidade do paciente de achar um objeto de
dependência substitutivo que lhe propicie o mesmo alívio para seu sofrimento.
Ceder a esta tentação pode ser muito pernicioso já que ter que ocupar o lugar
da droga é, na nossa opinião, meramente um estágio do tratamento e não um
fim em si mesmo.
No começo do vínculo transferencial surge, no paciente, uma
espécie de rivalidade interna entre a droga-em-si, a droga-do-analista e o
analista-droga.
analista
À medida que a transferência ganha potência, a droga-do-
constitui-se, progressivamente, em analista-droga, gradualmente
ocupando o lugar da droga-em-si.
Um paciente deixou bem claro esta substituição dizendo que
estava trocando a cocaína injetável pela "Waksina" — corruptela com meu
sobrenome que sugere uma vacina. O vínculo com o produto perde sua
intensidade libidinal abrindo caminho para o investimento erógeno no vínculo
transferencial.
Deste lugar privilegiado, o analista pode inocular o paciente com o
vírus que promova seu acesso ao simbólico, tornando assim sua queixa
enigmática em vez de concreta. A vantagem do analista-droga sobre a drogaem-si é que enquanto o primeiro fala, representa e significa através da
10
linguagem, a segunda é silenciosa como a pulsão de morte e não representa
nada além de si mesma.
Esta configuração transferencial - contratransferencial, onde o
analista se coloca no lugar da droga, é denominada por Olievenstein (1989)
Psicoterapia Perversa, dada a qualidade fetichista do lugar ocupado pelo
analista.
Trata-se de aceitar funcionar por um certo tempo em duo com o
toxicômano, como este funcionava com seu produto, estabelecendo um vínculo
quase fusional.
Para
tanto,
ele propõe
que
a
intervenção
do
terapeuta,
"toxicoterapeuta," seja de início constante; ele deve "contornar a resistência,
seduzir, confortar, matraquear, fazer mal, partilhar, rejeitar, zombar. Em suma,
deixar pouco lugar para angústia."
89
Com o avanço do tratamento, Olievenstein considera que deve
estabelecer-se a evolução para a ortodoxia terapêutica o que implica que o
paciente não poderá terminar seu percurso com o mesmo "terapeuta
transicional."
Quando a consolidação do "ego ortopédico" é suficientemente
forte, o toxicômano se contenta com esta cicatrização ou vá adiante, fazendo a
escolha de uma análise ortodoxa. A "glória e honra" do terapeuta transicional é,
segundo este autor, parar aí, permitindo a partida do seu paciente.
89Olievenstein C., O cuidado com os toxicômanos: uma ética para uma psicoterapia perversa. In: A clínica
do toxicômano. 1989. Porto Alegre: Artes Médicas, p. 121.
11
Embora concorde com a proposta terapêutica no que tange o lugar
ocupado pelo analista, minha experiência clínica leva-me a discordar deste autor
em relação ao destino do terapeuta que seria, para ele, o mesmo que "a
seringas de plástico que se usa uma vez e se joga fora."
90
A honra e glória do terapeuta, na minha opinião, é continuar o
tratamento que pode até tornar-se mais "ortodoxo." Tenho acompanhado em
análise, por um tempo bastante prolongado, vários pacientes toxicômanos
graves junto aos quais observei a possibilidade da passagem da terapia
transicional proposta por Olievenstein para uma atuação psicanalíticamente
mais ortodoxa.
De qualquer maneira cabe perguntar qual seria a relevância para o
tratamento de um maior ou menor grau de ortodoxia?
Voltando as tentações, a quarta tentação que ameaça quem se
propõe trabalhar psicanalíticamente com este tipo de psicopatologia, é a de
sentir um efeito de fascinação em relação ao discurso do toxicômano. Isto é
muito perigoso pois pode levar à impotência terapêutica.
É como se, a partir de sua neurose trivial simples (nada garante
que seja tão simples nem trivial, mas ...) o analista secretamente invejasse e
admirasse a qualidade intensa e supostamente plena do gozo perverso de seu
paciente. Isto é uma idealização que não leva em conta nem a pobreza, nem o
sofrimento psíquico inerentes ao gozo tanático na toxicomania.
90Idem.
p. 123.
11
Estas
quatro
tentações:
salvar
cirúrgicamente,
constituir-se
avalista, ocupar o lugar da droga e fascinar-se pelo discurso devem remeter o
psicanalista à sua própria abstinência. Para poder pensar o duplo problema da
abstinência no contexto da clinica psicanalítica da toxicomania, deve considerarse uma dinâmica transferencial-contratransferencial na qual a abstinência do
analista desempenha um papel de suma importância.
Dada a complexidade destes casos, a capacidade de abstinência
do psicanalista depende, também, do seu grau de onipotência terapêutica. É
onipotente pensar que, via de regra, bastam três, quatro ou cinco sessões
semanais de psicanálise para conter todas as necessidades terapêuticas dos
pacientes.
O reconhecimento dos limites terapêuticos da psicanálise implica,
freqüentemente,
associar-se
à
outros
profissionais
para
um
trabalho
multidisciplinar.
Pacientes em abstinência ou muito perturbados podem manifestar
quadros clínicos que requerem cuidados psiquiátricos. A figura do psiquiatra
ajuda o paciente na sua relação médico-biológica com o tóxico e o psicanalista a
não cair na tentação de ordem cirúrgica na sua contra-transferência com o
paciente.
Sustentados pelo suposto saber médico, os psiquiatras e as
instituições especializadas em desintoxicação podem exigir a abstinência em
nome da salvação ou cura médica. São eles os verdadeiros avalistas do contrato
de abstinência e como representantes da lei e do limite promovem um tipo de
vínculo muito diferente daquele promovido pelo psicanalista
11
A inclusão da família no tratamento psicanalítico da toxicomania
através
da
terapia
familiar
é
de
crucial
importância.
As
famílias
persistentemente manifestam resistências a este recurso terapêutico, uma vez
que o sintoma é indispensável aos membros do grupo, propiciando vantagens
secundárias tanto à família quanto ao paciente.
Desvendar a cegueira familiar em relação aos lugares ocupados
por cada membro ameaça revelar a necessidade de uma reorganização que é
perigosa para
paciente
o tênue equilíbrio familiar. Mas sem esta reorganização, o
muito
provavelmente
voltará
a
manifestar
o
sintoma,
independentemente da eficácia do trabalho psicanalítico individual.
Vemos assim que, através do trabalho multidisciplinar, o setting
psicanalítico fica mais resguardado, aumentando a possibilidade que o
psicanalista exerça sua abstinência perante as quatro grandes tentações antes
mencionadas.
Passemos agora para a descrição de algumas vinhetas de um caso
clínico. Este caso foi escolhido para esta dissertação por reunir algumas das
considerações apresentadas até o momento.
11
Um ponto além da favela
“Desde que nasci, meus pais não sabem o que
fazer comigo, onde me deixar. Sempre fui um
‘pestinha’. Sou o pior filho que pais poderiam
ter, sempre aprontei.”
Paco é um rapaz de 19 anos, primeiro filho de dois irmãos. Tem o
mesmo nome do pai e do avô paterno. A mãe casa grávida aos 19 anos com o
pai 11 anos mais velho que ela. Quando Paco tem 3 anos e seu irmão acaba de
nascer, os pais separam-se mas permanecem amigos.
Relata ter começado a usar drogas aos 11 anos após a leitura do
livro Christiane F., com quem diz identificar-se. Entra na adolescência
experimentando todas as drogas, sempre na companhia de pessoas mais velhas
do que ele.
Drogar-se lhe confere, imaginariamente, status de adulto. Por volta
dos 15 anos, dois de seus melhores amigos e namorada morrem de overdose
de cocaína injetada.
“Sou o único que sobrou daquela turma. Eu
era o mais louco, o que usava mais. Mas era o
mais forte.”
11
Nas palavras de Paco, um relato sucinto sobre seus pais :
“Minha mãe não sabe nada de mim. Nunca
soube. Meu pai é um doidão que deu certo.”
O pai, muito ausente, mora longos períodos no exterior e a mãe,
jovem e ‘moderna’, não tem quase nenhum controle sobre Paco.
Alguns meses antes de procurar-nos, Paco submete-se a àquilo
que denominou ‘internação domiciliar voluntária’ durante três meses, na casa da
avó materna.
Esta medida visa interromper sua constante e compulsiva visita à
favela para onde leva objetos da casa da mãe, trocando-os por ‘farinha’
(cocaína) para ‘picar-se’ freneticamente. A namorada, que o visita diariamente e
fornece-lhe maconha, subitamente desiste do relacionamento, desencadeando
uma séria tentativa de suicídio por overdose.
Paco não suporta esta frustração, desiste da ‘internação’ e foge
para a favela onde troca algum objeto da casa da avó por trinta gramas de
cocaína. Ao voltar, senta no parapeito da janela do seu quarto no segundo andar
para aplicar-se o último ‘pico’, para “morrer de prazer”. Mas, ao sentir o impacto
de parte da dose da droga, cai de costas na vegetação do jardim e sobrevive.
Para a entrevista inicial comparecem a mãe, o pai e Paco. Os pais
se dizem desesperados; não sabem como conter suas incursões à favela. O pai
acaba de pagar uma elevada soma para que a polícia não indicie seu filho; ele
foi pego saindo da favela com maconha, cocaína, seringa e agulhas.
11
Paco comparece assiduamente às três sessões semanais durante
dois meses. Chama-nos a atenção seu mundo mental: nada representa nada,
não associa nada com nada; é a epítome da concretude. Seu discurso limita-se
às drogas: incontáveis relatos das idas e vindas à favela, narrações repetitivas
das ‘façanhas’ para fugir da polícia ou traficantes, minuciosas descrições
escatológicas dos rituais, parafernália e sensações obtidas com as drogas.
Durante o pouco tempo que não está drogado, Paco procura
aliviar-se batendo a cabeça contra portas ou paredes.
Preocupa-nos a displicência com a qual relata ter matado duas
pessoas, supostamente, em legítima defesa. Surge então a pergunta se
estaríamos diante de um psicopata. O primeiro sonho que Paco relata:
“Estava no ginásio de um clube ou escola.
Tinha mais gente. Estavam cheirando cocaína.
Vi pessoas voando (literalmente). Beijei um
cara e comecei a voar; adorei a sensação! Em
pleno vôo, entendi que estava voando por
causa do beijo e não por ter cheirado cocaína.
Caí imediatamente. Acordei muito assustado.”
Embora peça uma interpretação, Paco parece apreensivo. Ele que
é tão másculo, tão musculoso, tão ‘machão’, tão cheio das meninas... Como
poderia sonhar isso ? Não consegue fazer associações.
Transcorridos os dois primeiros meses começa a faltar, desmarcar
e confundir horários. Um mês mais tarde a família nos procura novamente;
querem interná-lo.
11
Paco não tem mais nenhum controle; está indo diariamente à
favela (até seis vezes num dia só) e aplicando-se altíssimas doses de cocaína
nas veias. Seu rosto esta machucado, diz que foi seqüestrado, maltratado e
drogado pelos traficantes da favela.
Na verdade, ele mesmo machucou-se batendo a cabeça contra
uma árvore para poder apresentar-se como vítima perante os pais. Soubemos a
verdade semanas depois, só quando ele conseguiu parar de mentir-nos.
Encaminhamos a família para uma equipe psiquiátrica e no dia
seguinte Paco é internado. A seu pedido, freqüentamos a clínica de internação
para atendê-lo três vezes por semana. Consideramos importante que o analista
espere a demanda do paciente surgir antes de passar a visitá-lo. A internação é
um recurso terapêutico cujo maior objetivo, na nossa opinião, deveria ser a
continuidade do tratamento psicanalítico.
No começo da internação Paco não consegue entender a diferença
entre nosso trabalho e aquele da equipe psiquiátrica. Nós não sabemos quando
terá saídas acompanhadas, se poderá receber visitas, o tempo da internação,
etc. Estamos aí com ele para juntos observarmos seu mundo mental, seus
conflitos; mas ele não tem a mais vaga noção do que isto possa ser.
Adaptando-se rapidamente ao novo ambiente, Paco encontra
novas fontes de prazer e fuga. Começam as atuações: cheira thinner, namora
várias pacientes, bebe durante as saídas acompanhadas... Cada vez que está
prestes a deprimir-se, aparece uma nova forma de defesa.
11
Embora raramente, alguns conteúdos depressivos surgem em seu
discurso:
“Me sinto um bosta, impotente, inferior.”
Na primeira saída com acompanhamento terapêutico faz uma nova
tatuagem no corpo (1000 agulhas furando sua pele). O motivo da tatuagem:
“Diabinho E.T. dentro de mim.”
Muito do que falamos aparece representado nos desenhos que
cola nas paredes de seu quarto. Através do desenho parece poder vislumbrar e
dar voz a seu mundo interno — um verdadeiro objeto transicional.
Nossa estratégia terapêutica consiste em tentar ampliar sua
percepção para incluir sua vida psíquica. ‘Martelamos’ noções de mundo interno/
externo, mundo mental, representações, conflitos, etc. Paco tenta ser bom
aluno; às vezes repete como papagaio:
“Meu mundo mental ..... ”
“Isto representa ............ ”
Quando isto acontece, desmascaro o conteúdo adaptativo /
manipulativo e acabamos rindo juntos. O humor é um elemento importante
durante nosso contato.
Existem fugazes momentos de insights: através das constantes
atuações consegue que seus pais o notem e voltem a estar juntos. De fato, o pai
11
aparece quase exclusivamente no momento das recaídas para colocar algum
limite, fazer ameaças e novamente desaparecer.
Durante a internação Paco começa a manifestar raiva e desprezo
em relação a equipe psiquiátrica:
“São uns mafiosos. Não entendem nada sobre
drogas e drogados. O único que lhes interessa
é a grana.”
Por outro lado, nós somos idealizados. É só a nós que ele pode
contar o que lhe acontece sem sofrer nenhum tipo de represália.
Quando é externado, 53 dias depois, a dissociação está fortemente
instaurada entre a equipe psiquiátrica (mafiosos / incompetentes) e nós (únicos
interlocutores possíveis/angelicais). Isto chama minha atenção e preocupa-me.
Externado,
Paco
volta
a
freqüentar
assiduamente
nosso
consultório. Ele está muito preocupado com a possibilidade de recair por estar
muito tempo longe da cocaína. Após meros três dias, recomeça tudo. A cada
nova recaída, a culpa e o remorso crescem; o ‘fundo do poço’ parece aliviá-lo. É
como se fosse um alívio poder substituir seu sentimento inconsciente de culpa
por algo real e imediato.
“Pronto, pior não poderia estar. Agora posso
estudar.”
11
Absorto no seu novo frenesi de picos, Paco só consegue falar em
centímetros cúbicos, prazer e overdoses. Tentamos indagar sobre algum sentido
para este festival de prazer tanático. O que é que a cocaína representa?
“Quando estou com ela não me falta nada.”
“Vou escrever minha biografia.
O título será: ‘Uma vida de prazeres’.”
Sua capacidade de pensar fica seriamente comprometida, seu
raciocínio vira tautológico:
“Sou um bosta porque me pico /
Me pico porque sou um bosta / ...”
Paco retoma seu velho esquema:
Favela / Farinha / Pico / Pica — Mulheres / Maconha / Manipula / Mente
Mas alguma coisa inédita aconteceu. Paco não nos esconde mais
o que vai lhe acontecendo:
“Só aqui posso tirar a camisa.”
Paco mostra-nos seus braços destroçados pelas agulhas e,
angustiado, insiste para que olhemos bem de perto. Durante 50 minutos, três
vezes por semana, parece conseguir descolar-se milimetricamente de suas
atuações. Pasmos, às vezes horrorizados, observamos juntos o que vai lhe
acontecendo.
“Acho que hoje não agüento.
‘Tou’ indo pra favela.”
12
Este ponto neutro de observação conjunta, este milímetro entre
impulso e ato parece propiciar um espaçamento cada vez maior no lapso de
tempo entre recaídas com cocaína injetada. Passa trinta e cinco dias sem picarse mas abusa de outras fontes de alívio/prazer como substitutos: ‘baseados’,
cervejas, whisky, ... Precisa ficar ‘mutcho loco’ para não enlouquecer!
No dia do aniversário do pai tem nova recaída com cocaína
injetada. São três overdoses não fatais em uma mesma noite; não morre porque
é socorrido por colegas. Relata-nos este episódio vestindo uma camiseta da
peça Les Misérables. É como se sente.
O quadro piora novamente. Paco sente que consegue ludibriar todo
mundo (pai/mãe/equipe psiquiátrica) e fica perplexo com a impunidade. Sente-se
poderoso na sua capacidade de enganar e manipular. Não tem mais limites
internos; os externos são ineficientes. Teme a overdose final.
Entrementes, a equipe psiquiátrica insiste em saber se Paco está
picando-se novamente.
Nosso contato com os integrantes desta equipe é bastante
freqüente pois trabalhamos no mesmo hospital da rede pública. Perante o
questionamento ficamos em conflito; por um lado, queríamos manter o sigilo —
resguardar a confiança que Paco tem depositada em nós — por outro, ele
estava correndo um sério risco de vida. A terapeuta familiar comunicou-nos que
a mãe está querendo saber se ele está se picando. Estabelece-se o seguinte
diálogo:
12
TF: “A mãe quer saber se Paco está injetando
cocaína na veia.”
Nós: “Se você fosse mãe de um rapaz assim,
o que você faria para saber se teu filho
está se picando ?”
TF: “Olharia os braços !”
Nós: “E o pescoço e as pernas ?”
A partir deste diálogo, a mãe e a equipe psiquiátrica percebem as
recaídas subseqüentes. Paco sente-se cuidado, contido por algum limite; a mãe
que olha o corpo do filho ...
O pai decide tomar as rédeas do tratamento levando o filho para
uma cidade onde uma vacina milagrosa, supostamente, impede o uso de
qualquer droga. Obviamente, isto não funciona, mas tem o efeito de afastar a
equipe psiquiátrica do tratamento. A família não está mais disposta a pagar
pelos serviços de profissionais dos quais Paco tenta sempre esconder o que lhe
acontece.
Paco sente-se aliviado por terem acabado os acompanhamentos
terapêuticos, consultas psiquiátricas, exames laboratoriais...
Desde o desligamento da equipe ele não tem mais recaídas com
cocaína injetável. Agora vigoram novas regras, desta vez vindas do pai, e muito
claras:
“Se tiver outra recaída, te interno em um
hospício barato e te deserdo.”
A relação de Paco com o tempo começa a
modificar-se. Seu
espaço mental amplia-se e seu futuro não é mais limitado às próximas três horas
12
e a alguma fonte de alivio/prazer. Começa a pensar no seu futuro profissional,
embora ainda ligado a satisfazer ‘papai’.
Paco falta pela primeira vez após a internação. Na sessão seguinte
chega dizendo:
“Não deu para vir porque estava na favela.”
Comentamos que chama-nos a atenção a freqüência com que vai
às favelas. Isto parece estar interferindo até com a possibilidade de chegar às
sessões. Paco explica que nas favelas as drogas são de melhor qualidade, mais
baratas e "melhor servidas". Respondemos que sabemos disto, mas achamos
paradoxal, mesmo assim.
Afinal de contas, o que tem a ver um ‘burguesinho’ com tanta
favela ? Indagamos como se sente quando está na favela:
“Perseguido e corajoso !”
Aventamos a hipótese que sua freqüente visita às favelas sirva
para confirmar que a perseguição que ele sente não é interna, mas externa.
Além do mais, lá a lei é severa, infalível, clara, difícil de ludibriar.
Não é como em casa com papai e mamãe, ou com a equipe
psiquiátrica. Estar na favela representa um perigo tangível, quase palpitável,
muito diferente daquilo que seu analista em apontar: o famigerado “mundo
mental”. E estar em contato com a miséria externa das favelas parece aliviá-lo
da sua própria miséria interna.
12
Paco não tem freqüentado mais as favelas onde era-lhe muito
difícil resistir ao impulso de comprar cocaína. Arranjou um novo ‘ponto’ onde só
vendem ‘fumo’ e compra quantidades que lhe duram mais tempo.
“A favela já não é mais necessária. Acho que
agora não terei mais recaídas com cocaína. ”
No momento que escrevemos este relato, faz quarenta dias que
Paco não injeta cocaína na veia. Isto lhe deixa muito satisfeito:
“Quero quebrar meu recorde até nunca mais
pensar nela.”
Apresentei alguns recortes do meu trabalho com um paciente
toxicômano para levantar algumas questões particulares a este tipo de trabalho:
1) O funcionamento mental do toxicômano está dominado por um
tipo de pensamento onde coisas concretas e comportamentos
têm muito mais relevância do que conceitos abstratos.
A falta de imaginação e a incapacidade de associar revelam um
mundo mental empobrecido e precário. Esta carência funcional requer uma
modificação na técnica psicanalítica durante o começo do vínculo transferencial.
Tenho achado, quase sempre, necessário praticar uma espécie de
‘psicopedagogia psíquica’ para introduzir o paciente às noções básicas do
mundo mental, tais como: mundo externo / interno, conflitos, representações,
pensamentos ...
12
2) Constituir um ‘ponto’ neutro de observação conjunta que não
vise nem a abstinência nem qualquer outro objetivo normativo, é essencial para
o desenvolvimento do vínculo transferencial com este tipo de paciente. Qualquer
proposta de abstinência ou controle da ingestão de tóxicos deve ser de inteira e
completa responsabilidade do paciente.
3) O trabalho multidisciplinar em equipe apresenta novos desafios
para o psicanalista. Como retratado no caso clínico apresentado, a questão do
sigilo adquire maior complexidade pois tem mais profissionais envolvidos no
tratamento.
O sigilo praticado pelo psicanalista em relação ao resto da equipe
promove no paciente uma inevitável dissociação maniqueísta entre analista
‘angelical’ e equipe ‘mafiosa’. Paradoxalmente, isto facilita a construção do ponto
neutro de observação conjunta.
Trata-se de uma forma espúria de transferência positiva na qual o
analista é visto como um salvador acima de qualquer suspeita, enquanto o resto
da equipe é considerada como desprezível. O analista ‘angelical’ pode - a partir
do ponto privilegiado em que se encontra - interpretar a transferência positiva
em relação a sua pessoa e a negativa em relação ao resto da equipe.
Passemos agora, então, para as conclusões.
12
Conclusão
Este trabalho teve por meta apresentar as indagações que
surgiram a partir dos desafios apresentados pela nossa prática clínica no
tratamento da toxicomania. Nosso ponto de partida foi um relato autobiográfico
do nosso percurso pessoal em relação a toxicomania e psicanálise.
Nesta introdução levantamos questionamentos em relação à clínica
psicanalítica da toxicomania, considerações de ordem etiológica, nosográfica e
metodológica.
Queríamos
saber
se
a
toxicomania
seria
um
fenômeno
psicopatológico que poderia manifestar-se em qualquer estrutura mental, ou se
seria inerentes a alguma estrutura unívoca.
A partir da nossa experiência clínica e da esmagadora maioria dos
autores citados no capítulo dedicado à revisão bibliográfica deste livro, podemos
sustentar que nossa hipótese nosográfica inicial é válida: parece não existir uma
estrutura psíquica profunda e estável específica da toxicomania. Trata-se de um
complexo sintomatológico que pode manifestar-se na estrutura inerente às
neuroses de transferência, neuroses atuais, neuroses narcísicas, perversões,
psicopatias, ou estruturas borderline.
12
Há um consenso entre os autores citados relacionando as
questões etiológicas com o qual concordamos. A toxicomania é um sintoma
secundário de defesa que torna-se uma mania compulsiva, substitutiva da
masturbação, a mais antiga forma de dependência. A viscosidade libidinal
manifesta na oralidade constitucionalmente intensa revela um elo entre
toxicomania e fixação.
Os tóxicos podem ocupar o lugar do objeto primordial promovendo
pobreza nas escolhas objetais. O superego e ideal do ego do toxicômano são
patológicos, manifestando exigências excessivas e severas.
Em termos metodológicos, nossa experiência clínica nos leva a
concordar com a maioria dos autores citados que considera necessárias certas
modificações na técnica psicanalítica clássica. Estas envolvem o reforço
narcísico para estimular a transferência e uma postura clínica, ao menos
inicialmente, mais próxima da psicoterapia do que a psicanálise clássica.
Terminamos o presente trabalho com um forte sentimento que
apenas tocamos de leve nesta problemática. Muitas questões pertencem para
serem examinadas em estudos futuros. A mais pungente destas, questiona-se o
esforço terapêutico com estes indivíduos deveria orientar-se no sentido de
neutralizar o conflito. Um toxicômano “curado é um ex-toxicômano neurótico ?
Após o “fim da picada” e seu legado de “terra arrasada” o que pode oferecer-se
a estes indivíduos a não ser “sangue, suor e lágrimas” ?
91
91 Expressão usada por WinstonChurchill em discurso ao povo inglês após a cidade de Londres ter sido
arrasada pelo bombardeio nazista.
12
Para concluir estas reflexões gostaria de apontar que o corpo
teórico a respeito da clínica psicanalítica da toxicomania é ainda bastante
incipiente. Isto deve-se a já mencionada ausência na obra freudiana de um texto
especificamente dedicado a esta manifestação psicopatológica. Também devese ao fato que o número de toxicômanos que procura tratamento de orientação
psicanalítica é bastante reduzido, assim como também é o número de
psicanalistas dispostos a trabalhar com o que eu denomino de “lixo clínico”.
Este “lixo clínico” representa um desafio para a psicanálise a priori,
comprometendo a possibilidade de desenvolver um trabalho clínico.
É assim que surge a idéia que, enquanto problemática psíquica, a
toxicomania se encontraria além da eficácia terapêutica da psicanálise,
conseqüentemente,
tratar-se-ia
de
uma
manifestação
psicopatológica
“inanalisável”.
Para expandir os limites da analisabilidade, mas também para
entender melhor certas formas emergente de organização psíquica, cabe
resgatar a dimensão originária da psicanálise, aquela de ser, antes de tudo,
pesquisa permanente.
12
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