Os corpos flutuantes
(Expresso: 29-04-2006)
A peça Galileu, de Bertolt Brecht, em estreia no
Teatro Aberto, em Lisboa, inclui muitas referências a
episódios marcantes da história da ciência. Centra-se na
condenação de Galileu pela Inquisição, mas alude a
outras polémicas em que o físico italiano se envolveu ao
longo da vida.
Um dos episódios menos conhecidos, mas nem
por isso menos importante, foi um debate a propósito
dos corpos flutuantes. Na altura já se conhecia o
essencial, explicado há muito por Arquimedes (287-212 a.C.) e expresso no princípio
que se aprende ainda hoje na escola: qualquer corpo mergulhado num líquido recebe da
parte deste um impulso de baixo para cima igual ao peso do volume de líquido
deslocado. A flutuação é, pois, decidida pelo equilíbrio entre o peso do líquido
deslocado e o peso do objecto.
Arquimedes tinha, assim, resolvido um problema que Aristóteles (384-322 a.C.),
que vivera um século antes, não tinha conseguido solucionar. Dizia este último que os
corpos colocados sobre água conseguem ou não penetrá-la conforme consigam ou não
«cindir a continuidade do líquido».
A autoridade de Aristóteles era tanta que os seus escritos continuavam a ser
esgrimidos em discussões científicas. Um desses debates surgiu a propósito do carácter
do gelo. Dissera Vincenzio Di Grazia, professor na Universidade de Pisa, que o gelo era
«água condensada», ao que Galileu respondera que tal não podia ser verdade, pois o
gelo flutuava na água, pelo que teria de ser «água rarefeita».
Di Grazia socorreu-se de Aristóteles e retorquiu que o gelo flutuava porque era
largo e não conseguia cindir a água. Galileu retorquiu com um argumento que poderia
ter sido esgrimido no tempo de Aristóteles. Explicou que a resistência à cisão da água
não explicava nada: colocando um pedaço largo de gelo no fundo de uma tina e
largando-o, ele vem ao de cima, o que quer dizer que é capaz de cindir a água. A
explicação não poderia, pois, estar na resistência da água à cisão. É um argumento
notável, e é curioso que resulta de uma observação comum, sendo muito conceptual e
retórico.
Brecht coloca Galileu a fazer a experiência. Na encenação moderna do Teatro
Aberto, uma projecção de vídeo torna visível aos espectadores uma imagem da tina que
está no palco.
Para reforçar que não é a forma dos objectos que causa o seu afundamento,
coloca depois uma agulha metálica a flutuar, o que se consegue fazer desde que ela
esteja seca e seja colocada cuidadosamente sobre a água. Mostra essa experiência que
objectos pontiagudos, portanto propensos a «cindir a água», podem flutuar.
O dramaturgo força aqui um pouco a verdade histórica, pois esse argumento
pretendia pôr em causa Arquimedes e foi arremessado por um adversário de Galileu, o
académico florentino Ludovico Delle Colombe. O enigma apenas pode ser resolvido
conhecendo uma propriedade dos líquidos chamada «tensão superficial», que consiste
na sua tendência a encontrar uma superfície mínima, esticando-a como se esta fosse
uma membrana elástica. A resposta de Galileu, que não conhecia esta propriedade, foi
magistral: relembrou que a agulha deformava a superfície e deslocava portanto um
volume de líquido superior ao dela própria. Como resultado, o princípio de Arquimedes
continuava em acção: o maior volume deslocado era suficiente para fazer flutuar esse
corpo metálico. Tratava-se de uma especulação que viria a ser ultrapassada, mas que
tinha mais fundamento do que os argumentos dos seus opositores. É bom ver Galileu a
pensar.
uno Crato
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20060429 Os corpos flutuantes