UM HOMEM BOM
Um homem chora. Não escondo as lágrimas, frente a mim
olho um amigo que partiu. Salta o desgosto do meu requiem,
abalam-se os alicerces, e as lágrimas deixam transparecer a
imagem de quem foi um Homem. Ser Homem é ser bom,
depois... deixar que a inteligência e a cultura tomem posse
dos dias crescidos. O Mário Chicó comunicava o simples, na
clareza de quem ao falar quer dizer aos outros o que lhes falta.
Ensinava a falar, ensinava a ver, ensinava a amar a vida, e
ensinava a desculpar. Companheiro de hora a hora, meu tributo é parco de análises, rico de saudades. Ele ensinava uma
nova abertura, indicava na seta que havia também outra direcção. A vida? Ah! Isso resolve-se. Ele nunca desafiara a vida—
era um homem corajoso. Compreendia a vida, essa a sua valentia, como a de poucos. Compreendia sem atropelar, sem o rude
de quem deixa passar o que de imbecil acontece. Traquinava
na controvérsia, branco-preto, preto-branco, claro-escuro, escuro-claro, era a forma de mostrar aos outros que, nos contrários da vida, duas coisas vivem sempre no alerta, dois eus.
No pedestal era amigo, na vida comum Mestre e Director do
Museu de Évora. E que Museu? «Ó Mário, daqui a quanto
tempo fica pronto?» — «Ah, daqui a 400 contos». Era assim a
resposta, cheia de tudo que aprendia a absorver num rápido
penetrante, na luta de contrários que ele desinquietava. Vivia
a enriquecer os outros, sábio na humildade—a forma mais
difícil de conviver, e no bom gosto, na arte da sua vida o
diálogo surgia claro, caudaloso, e aqui aproximo as lágrimas
que correm no drama íntimo que travo comigo mesmo. Sabia
de aviões, interessava-se nos pormenores, tanto de um quadro,
de uma capela, como de um bom vinho branco, de umas lulas
grelhadas, comia pouco, como os pássaros, mas alimentava o
niquento da existência, a iguaria era, por exemplo, a conversa
esclarecedora da visita de há pouco a Ouro Preto. Sabia por
intuição, lia numa análise de quem acerta no alvo cada vez
que transporta a alça em direcção ao que quer exprimir ou
explicar. A lição não se aprende só nos livros, sim, no momento a momento desde manhã cedo, lição viva que compreende o que está a nosso lado e é o ser vivo. O Mário
relacionava, na lógica de quem encontra um raciocínio mais
perfeito para a sua qualidade de Homem. Deixava para trás o
acontecido de entendedor, de mestre, a riqueza de quem lia,
lia e parecia que nunca mostrava os carregamentos bibliográficos que aprendera na véspera. Ensinou-me coisas fabulosas
— a mais extraordinária de todas—não ter pressa. O Mário
nunca tinha pressa, o tempo chegava-lhe sempre, tanto para
ir ao Rio de Janeiro — e houve nos últimos vinte anos quem
compreendesse melhor o que o Brasil representava para nós?—
como para ir dar uma volta e beber a conversa, suco de que
ficávamos a pensar. Penetrante, metódico, arrumava as ideias
como as peças do Museu de Évora, tudo tinha uma lógica,
mesmo que a lógica não tivesse lógica, fosse motivo de ver o
que um dos nós pensava. Esta a sua nobre missão, sabia aprender com os outros—era Homem. Deus poupara-lhe a maldade,
ignorava o que isso era, mudava de conversa, falava de aviões,
do serviço, dos livros, do museu permanente que trazia no
seu frágil corpo. Abria-se, destituído de mistérios, nas coisas
simples ele era óbvio, descascava, esclarecia, e no remexer eu
ficava tonto de ver um edifício de pernas para o ar. É assim
que se ensina, é assim que se aprende.
Querido Mário: espero aos poucos ir aprendendo a lição da
vida que V. tão generosamente distribuiu por todos, todos
seus amigos. Bastava penetrar no seu âmbito e a Amizade
batia fundo no coração, um coração sempre novo, amigo,
assim iniciava a compreensão da vida — que para si foi sempre
o sentido de dar aos outros aquilo de que mais necessitam — a
compreensão humana de ser Bom. Um homem chora.
RUBEN ANDRESEN LEITÃO
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UM HOMEM BOM - Fundação Mário Soares