CRIANÇAS E ADOLESCENTES: DIREITOS E POLÍTICA SOCIAL
Darlene de Moraes Silveira1
Resumo
Os Direitos prescritos no Estatuto da Criança e do Adolescente apontam para a formulação,
a gestão e o controle de políticas sociais de forma democrática. A cultura política com
características marcadamente autoritárias e o atual quadro de transformações sócioeconômicas – frutos do processo de globalização, que colocam os Direitos à prova, no que
tange as demandas sociais da população infanto-juvenil. Assim, a conquista no campo legal,
impõe exigências práticas para a consecução de políticas sociais.
Palavras-chave - Direitos, crianças e adolescentes e Política Social
1
Assistente Social, Doutora em Serviço Social – PUC/SP Mestre em Educação e Cultura - UDESC//SC, Mestre
em Serviço Social – PUC/SP, Professora do Curso de Serviço Social da UNISUL – Florianópolis. Professora do
Curso de Serviço Social da UFSC. Florianópolis; 2009. [email protected]
INTRODUÇÃO
O presente tema aborda os Direitos da infância e da juventude presentes no Estatuto
da Criança e do Adolescente, e a relação destes com as políticas sociais diante do quadro
de transformações pelo qual passa a sociedade brasileira (imersa no panorama de
‘globalização’).
São determinações macroeconômicas e sóciopolíticas que colocam os Direitos à
prova, no que tange as demandas sociais e perspectivas políticas, visto que as políticas
sociais representam o espaço de concretização dos mesmos.
Para tanto, desenvolve-se a abordagem do movimento que originou o Estatuto da
Criança e do Adolescente – ECA, assim como suas bases doutrinárias, com destaque
para o avanço na conquista jurídica.
Diante das conquistas no campo legal, emergem indagações quanto às exigências
práticas para a consecução de políticas sociais, coerentemente com o esperado processo
de democratização das políticas para a infância e a adolescência.
1 – CRIANÇAS E ADOLESCENTES E A CONSTITUIÇÃO DE DIREITOS
Ao estudar a história das políticas de atenção à população infanto-juvenil constatamse significativas alterações no plano das práticas e do aparato legal. Porém, estas
alterações são conquistas recentes, coexistindo no campo social e das políticas sociais com
as diferentes formas de hierarquia (gênero, econômica, raça...) e com a ineficácia das
políticas, ainda gerenciadas de forma autoritária e clientelista.
Refletindo sobre esta ambigüidade, Silveira coloca que “Trata-se de uma história
orquestrada pelas elites dominantes do país, prevalecendo seus interesses e projetos de
organização social”, porém, em meio a dinamicidade do contexto social e “na contramão da
história, também protagonizando-a inscrevem-se os movimentos sociais, que se constituem
`novos personagens´ com expectativas políticas e práticas sociais que promovem novos
referenciais” (1999;p.149).
Trata-se da ruptura com representações estigmatizantes e práticas repressoras
submetendo crianças e adolescentes em condição de pobreza a rótulos de ‘ameaça social’
ou como alvo de comiseração.
A recente história da conquista de Direitos da criança e do adolescente é marcada
pela participação dos ‘novos personagens’, que a protagoniza num movimento que envolve
a contraposição e a contestação das representações e práticas vigentes, assim como
passam a produzir e divulgar novas práticas sociais e educativas e posições políticas.
Sader ao analisar os movimentos sociais aponta-lhes um alargamento no expectro
político assimilando “...valores da justiça contra as desigualdades imperantes na
sociedade...”, colocando “... a reivindicação da democracia referida às esferas da vida
social” como parte de um projeto de transformação societária que exige “...uma radical
renovação da vida política”. (1988; p.312/313).
Essas percepções são também atribuídas aos 'personagens' que formam o
movimento de defesa dos direitos da criança e do adolescente, que ganhou força no cenário
nacional nos anos oitenta, acumulando ganhos dentre os quais a inclusão da condição da
criança e do adolescente como "prioridade absoluta" e como “sujeito de direitos” na
Constituição Federal de 1988.
Regulamentando os Artigos 227 e 204 da Constituição Federal, em 1990, cria-se
uma legislação de defesa e de proteção integral para a criança e o adolescente, Lei Federal
8069/90, O Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA. O conteúdo do artigo 227, cujo
caput enuncia
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao
adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda
a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão”. (BRASIL, Constituição Art 227)
O ECA preconiza a revisão de prioridade políticas e de investimento, assegurando o
gerenciamento das políticas de forma democrática, alinhadas as necessidades sociais
pertinentes à população infanto-juvenil, prevendo a criação dos mecanismos para viabilizálos. Estes mecanismos são: Conselhos de Direitos – de constituição paritária; Conselhos
Tutelares – encarregados de ‘zelar’ pelos direitos de crianças e de adolescentes e os
Fundos – de caráter especial, pois, vinculados às políticas de atendimento à população
infanto-juvenil.
A aprovação do ECA aponta novas concepções e conteúdos a serem adotados
frente à população infanto-juvenil. Concebe crianças e adolescentes como ”sujeitos de
direitos”, respeitando sua “condição peculiar de desenvolvimento” e garantindo-lhes
“absoluta prioridade’. O ECA resulta do movimento que se fundamenta na Doutrina de
Proteção Integral, já presente nas normativas internacionais dos direitos da criança2.
O ECA incorpora expectativas no âmbito dos direitos e de políticas sociais, assim
como inaugura novas relações e níveis de participação social, sendo que “o processo de
democratização possui um importante componente, que é o controle social da administração
pública. Isto significa dar grande interesse ao que vem da sociedade, sobretudo da maioria
dela.” (VIEIRA, 1998; 17).
O ECA traz indicações ao conjunto da política, da economia e da organização social
a operar um reordenamento, a revisar prioridades políticas e de investimentos, colocando
em questão o modelo de desenvolvimento e respectivo projeto de sociedade, que
historicamente, reproduz a cultura da exclusão social, desconhecendo, na prática, crianças
e adolescentes como sujeitos de direitos.
Como os demais direitos, está fixado em princípios, normas e regras da ciência
jurídica. Para AMARAL "o avanço foi ater-se aos princípios gerais, às regras preconizadas
pelo Direito [...] sujeito à epistemologia jurídica, preso aos princípios, aos fundamentos da
ciência do direito".(1996; p. 50).
O direito, aqui, visto para além da norma jurídica, como a concretização de valores
democráticos através da criação dos novos instrumentos de participação, gera, uma nova
cultura política no tratamento às políticas sociais voltadas à infância e à juventude.
2 - A QUESTÃO DEMOCRÁTICA
Numa sociedade que está construindo relações sócio-políticas democráticas, a
existência de direitos e a democracia se constituem em recíproca dialética, cujo primado
corresponde à garantia da dignidade humana.
O ECA; aponta às normativas internacionais, destacando-se a Declaração de Genebra de 1924, que determinava “a
necessidade de proporcionar à criança uma proteção especial”; a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações
Unidas - 1948 ; as Regras Mínimas da Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude - Regras
de Beijing - 1985; Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas em 1989.
Diante dessa perspectiva, um outro elemento teórico torna-se importante: a
concepção de democracia, percebendo-a para além de um regime de governo. Para Bobbio
(1987), significa a ”passagem da democracia na esfera política, isto é, na esfera em que o
indivíduo é considerado como cidadão, para a democracia na esfera social, onde o indivíduo
é considerado na multiplicidade de seus status.”. Dessa forma, há uma extensão nas formas
de poder até então alocadas somente no campo da sociedade política.
O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA emerge como uma legislação que
aponta ruptura com os estigmas e as diferenciações dominantes no trato da população
infanto-juvenil, ao tempo em que acompanha as projeções para uma nova organização
sócio-política, incorporando demandas e expectativas políticas de caráter democrático.
A democracia corresponde ao rompimento com determinados valores e práticas que
reduzem o homem ao individualismo egoísta, abrindo-se para a articulação com os demais
indivíduos em busca de direitos.
Isso significa ir além do respeito à vontade da maioria, institui a condição própria do
regime político, que ocorre quando se institui direitos. Direitos compreendidos sob o ponto
de vista universal, isto é, válidos para todos.
Assim, democracia aproxima-se inevitavelmente do entendimento de justiça social,
permitindo a eqüidade de acesso, participação, usufruto e produção dos bens e serviços
gerados na sociedade. Nesse sentido, CHAUÍ considera que "a questão democrática
implica, pois, criar condições para que o cidadão seja soberano e interfira realmente nas
decisões sociais e econômicas através dos órgãos de decisão política" (1993; p.194)
Assim, a democracia é vista na perspectiva de sociedade que se consolida
democrática, pois está sedimentada em relações sociais que assim se colocam.
3 - DIREITOS EPOLÍTICA
Com a Constituição Federal de 1988, ampliam-se os direitos sociais, prescrevem-se
a descentralização político-administrativa e a municipalização das políticas sociais
representando o alargamento dos espaços de participação de democratização das relações
sociais no que se refere à formulação, gestão e avaliação de políticas sociais.
Porém, sobre as políticas sociais, que vem se tornando uma fértil e conturbada
temática na arena política, VIEIRA chama nossa atenção apontando que:
o que na atualidade tem sido chamado de políticas sociais (e comumente de
políticas públicas) resume-se quase sempre em programas tópicos, dirigidos a
determinados focos, descontínuos, fragmentados, incompletos e seletivos, com
atuação dispersa, sem planejamento, esbanjando esforços e recursos oferecidos
pelo Estado, sem controle da sociedade. (2004; p.113).
As transformações que vem sendo operadas no "mundo do trabalho" em
decorrência das inovações tecnológicas, comerciais e organizacionais, nos marcos da
globalização da produção e dos mercados, alteram as formas de produção e as formas de
gestão da força de trabalho. Quanto aos desdobramentos da globalização, nas palavras de
VIEIRA
uma das faces mais ocultas da dita ‘globalização’ localiza-se no aumento da
distância entre ricos e pobres. [...] O ‘mundo globalizado’ resume-se na
metamorfose do mundo em mercado interno, controlado pelas empresas
transnacionais. Faz-se do mundo mero exportador de bens e capitais, sob o signo
da suposta procura de ‘qualidade total’. (2004; p.21/108/109).
Tais transformações afetam transversalmente as políticas sociais, no que tange a
interlocução destas com a economia, conforme nos aponta VIEIRA:
são sociedades que passam por sérias transformações econômicas, que as
levaram, nos últimos dez ou quinze anos, a uma política econômica com política
social direcionada a cuidar momentaneamente de indigentes, de maneira
focalizada, dispersa e seletiva. Aparecem programas e diretrizes, relacionados com
a política social; tais programas e diretrizes entre si revelam somente pretensões
de uma política social. (2004; p.104).
Se considerarmos os direitos de crianças e de adolescentes já conquistados, e a
implantação de novas estruturas para a efetivação destes direitos, é possível identificar a
organização de relações societárias que implicam a compreensão da dinamicidade dialética
entre a cultura política e as práticas sociais. As relações entre estado e sociedade passam a
ser dinamizada pela criação e expansão de novas expressões e pela participação nos
espaços públicos, assimilando uma ‘linguagem’ de direitos.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Ao apontar o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, como uma conquista
jurídico-formal, retoma-se o movimento propulsor dessa conquista, protagonizado por
'sujeitos coletivos' que, segundo SADER, se manifestam através da "presença no campo
social e político, de interesses e vontades, de direitos e práticas que vão formando uma
história, pois seu conjunto lhes dá a dignidade de um acontecimento histórico" (1995; P.
12).
O ECA é a primeira legislação (voltada à população infanto-juvenil), cujas
concepções partem de rupturas com práticas e componentes culturais depreciativos ao
desenvolvimento infanto-juvenil, apresentando concepções e métodos condizentes com o
desenvolvimento integral de crianças e adolescentes, em consonância com as ações
normativas internacionais, com a Doutrina de Proteção Integral e com pretensões
democráticas. Para VIEIRA,
é preciso que nos lembremos sempre de um fato: a democracia não é um estado,
é um processo; não constitui um estágio, mas um processo. O processo pelo qual
a soberania popular vai controlando e aumentando os direitos e os deveres é
prolongado, implicando avanço muito grande dentro da sociedade. (1998; P.12).
A convergência de um esforço conjunto entre Estado e sociedade deve servir de
parâmetro para a construção de direitos para a infância e para a juventude, envolvendo
mudanças na cultura política e as políticas sociais, propiciando, o necessário alargamento
dos espaços de ação política.
Tarefa de difícil execução considerando que a articulação existente entre economia e
política social e, ratificando esta vinculação a expansão da acumulação capitalista, que em
seu contexto, nega os direitos e a eqüidade social.
As questões que se referem aos Direitos da população infanto-juvenil e às relações
sociais democráticas vão além de sua regulamentação jurídica formal, pois navegam
também no campo ideológico e cultural de construção de novos referenciais e novas
práticas relacionadas às políticas sociais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 9.ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
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Paz e Terra, 1992.
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CHAUI, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 2.ed. São
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RIZZINI, Irene. (Org.) A criança no Brasil hoje – desafio para o terceiro milênio. Rio de
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SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena – experiências e lutas dos
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SILVEIRA, Darlene de Moraes. O Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente de
Florianópolis: os (des)caminhos entre as expectativas políticas e as práticas vigentes.
Dissertação de Mestrado – UDESC – SC, 1999, Florianópolis.
_______O Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente de Florianópolis: Cultura
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_______. TELLES, Vera. Pobreza, movimentos sociais e cultura política: notas sobre as
(difíceis) relações entre pobreza, direitos e democracia, São Paulo, 1994. (digit).
VIEIRA, Evaldo Amaro. O Estado e a sociedade civil perante o ECA e a LOAS. Revista
Serviço Social de Sociedade Nº 56; Cortez, São Paulo, 1998.
_______ Os direitos e a política social. São Paulo, Cortez, 2004.
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