Por Richard Zenith (Prémio pessoa 2012)
WORDSONG
...por isso chega-nos como uma lufada de ar fresco o aproveitamento de Pessoa feito pelos Wordsong. Em
primeiro lugar porque não é um aproveitamento da imagem ou da sua biografia, mas sim da sua poesia. Em
segundo lugar porque não é um aproveitamento no sentido menos lisonjeiro do termo. Não se trata aqui
de poemas musicados, de um simples revestimento ou «embelezamento» da obra pessoana. Deste tipo de
operação (seja ele na música, na literatura, no teatro) também começamos a ficar fartos. Os Wordsong,
evitando o meramente decorativo ou ilustrativo, criaram um universo musical – e também visual, com os
vídeos originalíssimos de Rita Sá – a partir do universo escrito de Pessoa. Já nos tinham feito um favor
parecido com a poesia de Al Berto, mas no caso de Pessoa foram bem mais longe. Estamos perante um
desdobramento musical e visual da poesia e da poética, da estética e da ética, do grande desdobrador que
era Fernando Pessoa. Mergulharam nas profundezas da sua obra e emergiram com estas «variantes», estas
músicas cheias de ânsia, dor, humor, desilusão, iluminação. Um Fernando Pessoa a modo deles, com
certeza, mas sempre e extremamente Pessoa.
O maior escritor português desde Camões deixou-nos algumas grandes obras acabadas e muitas outras,
igualmente grandes, em estado fragmentário (Fausto, o Livro do Desassossego, «Saudação a Walt
Whitman», «Passagem das Horas»). Também deixou fragmentos, por vezes geniais, sem que vislumbremos
um claro destino a dar-lhes. A fragmentação da obra pessoana – que é o reflexo da fragmentação do seu
ser em heterónimos, a negação radical de um eu uno e coeso – tem tudo a ver com a sua espantosa
actualidade, pois sistemas, visões e ideais totalizadores deixaram de nos convencer. E a literatura redonda
e acabadinha, circunscrita e perfeita, sabe-nos a pouco, ou a falsidade. Apetece-nos outra coisa, e Fernando
Pessoa, sem querer e sem dar por isso, deu-nos outra coisa – uma «literatura-outra», no sentido aclarado
por Eduardo Lourenço, mas também num outro sentido, que talvez seja o corolário do primeiro. Deu-nos,
pois, uma obra que não se fecha, que se vai abrindo a cada passo, uma obra que é um vasto campo de
peças «inconjuntas» pedindo a nossa intervenção e participação. Os Wordsong, com a ousadia e empenho
que o trabalho artístico requer, responderam ao desafio, com resultados admiráveis. Pessoa ganhou uma
nova voz.
Richard Zenith
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