Prédica: Josué 5.9-12 (São Leopoldo, 13 de março de
2013)
Estimada comunidade da Faculdades EST
É tempo de travessia. É tempo de peregrinação.
Tempo de preparação. É quaresma! Quaresma é o período
de 40 dias, descontados os domingos, que inicia na QuartaFeira de Cinzas e termina com o Domingo de Páscoa. É
tempo de preparação, jejum, moderação, autonegação.
O texto para a pregação de hoje tem seu lugar no
período que antecedeu a celebração da Páscoa do povo de
Israel. Até este ponto do Antigo Testamento, temos o
relato de três celebrações da Páscoa pelos israelistas: 1)
Logo depois da libertação do Egito (Ex. 12.1-28); 2) A
celebração no monte Sinai, antes da marcha na direção da
terra de Canaã (Nm 9.1-5) e, 3) Esta celebração relatada
em nosso texto, prelúdio da invasão da parte ocidental da
Terra Prometida.
Segundo o relato bíblico, durante 40 anos, o povo de
Israel caminhou no deserto. Era o tempo de preparação
para, então, começar de modo definitivo, na nova Terra, na
Terra Prometida. Todos aqueles anos de escravidão no
Egito, além dos anos no deserto serviram de preparação
para este momento. Havia chegado a hora. É o momento
de “Deus remover o opróbio”, ou seja, a humilhação, a
vergonha do povo. É hora de devolver a autoestima, a
identidade, a liberdade. É momento de passagem da
escravidão para a liberdade. E exatamente isso é Páscoa:
passagem. Passagem de uma situação, de um lugar para
outro. Por isso, este momento em Gilgal pode ser
considerado, arrisco-me a dizer, o mais importante para o
povo de Israel.
O substantivo Gilgal pode significar “círculo” (de
pedras), ou “rolante”. Dele deriva o termo “rolar”, “rolar
para longe”. Assim, Gilgal está estreitamente relacionado
ao ato de Deus que rolou, revolveu a vergonha e
humilhação do povo para longe. É recomeço, é novo
começo! Por isso, Gilgal deve servir de lembrete a Israel
de que não se esqueça de sua libertação da escravidão no
Egito.
Mas por que não esquecer? Simplesmente para que o
povo, agora liberto dos egípcios, não se escravize
mutuamente. Gilgal é lembrete para que o povo viva a
liberdade plenamente.
Fiquei refletindo sobre o que poderia servir de Gilgal
para nosso país e mundo no século XXI. Que marcas de
escravidão carrega a humanidade? De que tudo precisamos
ser libertos em Gilgal? A título de exemplos, cito somente
alguns: 1,5 bilhão de pessoas ainda vive na miséria e fome
absoluta; durante cerca de 2 mil anos de cristianismo,
nações ditas cristãs não estiveram envolvidas em guerras
somente cerca de 280 anos; o Brasil lidera o ranking de
mortes por armas de fogo (em 2010, 36.792 pessoas foram
assassinadas por armas de fogo; o “violento” México
aparece em segundo com 17.561!); o Brasil está somente
no lugar 73 entre os países menos corrupção; o nosso país
é o maior consumidor de crack e o segundo maior de
cocaína. Enfim, estes são somente alguns exemplos.
Violências, corrupções, fomes, discriminação, exclusões
certamente são alertas. Mas alertas estão exatamente aí
para produzirem transformações.
Segundo nosso relato, a Páscoa, a passagem da
escravidão para a liberdade é celebrada pelos israelitas
com os frutos da nova terra, da terra da liberdade. Até
então, Deus havia cuidado de seu povo, enviando maná do
céu. Agora, o alimento vem da própria terra, fruto da
dádiva e graça de Deus e do trabalho do povo.
Fiquei refletindo sobre o maná e os frutos da terra. O
maná era a provisão de Deus ao povo peregrino. Caia do
céu diz a Bíblia. Talvez nãohavia nem terra nem tempo
para plantar e colher durante os anos de caminhada entre o
Egito e a Terra Prometida. Agora, na Terra Prometida, o
povo se fixa. Agora tem tempo e terra. Pode plantar e
colher. É uma nova dinâmica. Mas continua o mesmo
desafio. Assim como o maná poderia ser perigosamente
apropriado por uns, deixando os outros na fome, também
agora poderia ocorrer o mesmo: a concentração das terras e
alimentos por alguns. Aí, o perigo da escravidão estaria de
volta. Por isso, o povo não poderia se esquecer de Gilgal,
da Páscoa, da passagem da escravidão para a liberdade. O
perigo, portanto, era o da passagem da liberdade para a
escravidão novamente.
O texto evoca muitos temas a respeito da passagem.
Permito-me apontar dois temas:
1) Durante sua peregrinação no deserto Deus cuidou
do povo concedendo maná. Agora, ocorre uma
passagem do maná para o fruto da terra. Nisso se
estabelece uma tensão entre alimento como fruto
do trabalho e dádiva de Deus. Maná poderia levar
a comodismo, paternalismo, assistencialismo.
Fruto da terra, por outro lado, poderia levar a
concentração e à ideia de mérito (só come quem
trabalha). O fruto da terra, contudo, não é só
mérito do trabalho, mas também dádiva. Aliás, a
evocação ao mérito próprio provoca o
individualismo e a indiferença para com o outro. O
mérito cuida de si mesmo, e descuida do outro, do
próximo. O maná, por outro lado, poderia levar à
letargia, conformismo, comodismo. Deus quer
colaboradores para cuidar da humanidade e de sua
criação. Parece-me que esta tensão deve estar
presente no nosso dia a dia. Há situações, quando
convém, em que acabamos nos refugiando
rapidamente no mérito próprio para justificar-nos.
Outras situações, demonstramos passividade, a
ponto, por vezes, nos apresentarmos como
coitados e vítimas. Que Deus nos ajude a não cair
nem para um nem para outro extremo.
2)
O segundo tema que o texto me evocou
é o do alimento, da fome. De um lado, assistimos
constantemente reportagens sobre desperdício de
alimentos e, de outro, populações inteiras na fome
e pobreza extrema. Mais do que isso, o desafio de
alimentar a humanidade – ouvi a alguns dias que o
mundo precisará produzir 60% a mais de alimentos
nos próximos 30 anos –, somado ao desperdício e
consumismo, leva a humanidade a novos desertos,
talvez “desertos verdes”. Alimentos artificializados
e intoxicados talvez possam quase não mais
poderiam ser considerados “frutos da terra”. A má
gestão de alimentos e água cria desertos
excludentes em nossos dias. Só para ficar num
exemplo: pouco acima de nós, são tiradas águas do
Rio dos Sinos para irrigar arrozeiras. Estas águas,
intoxicadas, são devolvidas ao Rio dos Sinos e
captadas pelas bombas (quando também aí não
ocorrem problemas!) e enviadas para nossas casas.
Assim, estas águas encontram o arroz duas vezes:
nas arrozeiras e, depois, nas panelas de nossas
cozinhas. Alimentos, que deveriam significar vida,
são, não raramente, sinônimos de morte. Assim,
fome e, paradoxalmente, alimentos, podem ser
sinônimos.
Roguemos a Deus por sabedoria a nós, aos governantes
deste mundo, para que a Páscoa possa significar passagem
das realidades de escravidão e deserto para liberdade e
vida plena. Que políticas possam estar voltadas para
erradicar a fome e também a produção de alimentos que
adoecem e matam, por pura ganância de empresários.
A cruz de Cristo é paradoxalmente morte e vida. Venham,
Deus nos convida a celebrar a Páscoa, comendo do pão da
vida e bebendo do cálice da comunhão. Que Deus nos
revele sua Verdade, dia a dia, pois ela nos libertará dos
desertos.
E a paz de Deus, que supera todo o nosso
entendimento, guarde seus corações e mentes em Cristo
Jesus. Amém.
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