Superior Tribunal de Justiça
RECURSO ESPECIAL Nº 1.135.807 - RS (2009/0071647-2)
RELATOR
RECORRENTE
RECORRIDO
ADVOGADO
: MINISTRO HERMAN BENJAMIN
: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO
SUL
: MUNICÍPIO DE ESTEIO
: LUIZ BERNARDO DE SOUZA FRONER E OUTRO(S)
EMENTA
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
PRAÇAS, JARDINS E PARQUES PÚBLICOS. DIREITO À CIDADE
SUSTENTÁVEL. ART. 2º, INCISOS I E IV, DA LEI 10.257/01 (ESTATUTO
DA CIDADE). DOAÇÃO DE BEM IMÓVEL MUNICIPAL DE USO
COMUM À UNIÃO PARA CONSTRUÇÃO DE AGÊNCIA DO INSS.
DESAFETAÇÃO. COMPETÊNCIA. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA
150/STJ. EXEGESE DE NORMAS LOCAIS (LEI ORGÂNICA DO
MUNICÍPIO DE ESTEIO/RS).
1. O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul ajuizou Ação Civil
Pública contra o Município de Esteio, em vista da desafetação de área de uso
comum do povo (praça) para a categoria de bem dominical , nos termos da Lei
municipal 4.222/2006. Esta alteração de status jurídico viabilizou a doação do
imóvel ao Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, com o propósito de
instalação de nova agência do órgão federal na cidade.
2. Praças, jardins, parques e bulevares públicos urbanos constituem uma das
mais expressivas manifestações do processo civilizatório, porquanto encarnam
o ideal de qualidade de vida da cidade , realidade físico-cultural refinada no
decorrer de longo processo histórico em que a urbe se viu transformada, de
amontoado caótico de pessoas e construções toscas adensadas, em ambiente de
convivência que se pretende banhado pelo saudável, belo e aprazível.
3. Tais espaços públicos são, modernamente, objeto de disciplina pelo
planejamento urbano, nos termos do art. 2º, IV, da Lei 10.257/01 (Estatuto da
Cidade), e concorrem, entre seus vários benefícios supraindividuais e
intangíveis, para dissolver ou amenizar diferenças que separam os seres
humanos, na esteira da generosa acessibilidade que lhes é própria. Por isso
mesmo, fortalecem o sentimento de comunidade, mitigam o egoísmo e o
exclusivismo do domínio privado e viabilizam nobres aspirações
democráticas, de paridade e igualdade, já que neles convivem os
multifacetários matizes da população: abertos a todos e compartilhados por
todos, mesmo os “indesejáveis”, sem discriminação de classe, raça, gênero,
credo ou moda.
4. Em vez de resíduo, mancha ou zona morta – bolsões vazios e inúteis,
verdadeiras pedras no caminho da plena e absoluta explorabilidade
imobiliária, a estorvarem aquilo que seria o destino inevitável do adensamento
–, os espaços públicos urbanos cumprem, muito ao contrário, relevantes
funções de caráter social (recreação cultural e esportiva), político (palco de
manifestações e protestos populares), estético (embelezamento da paisagem
artificial e natural), sanitário (ilhas de tranquilidade, de simples contemplação
ou de escape da algazarra de multidões de gente e veículos) e ecológico
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(refúgio para a biodiversidade local). Daí o dever não discricionário do
administrador de instituí-los e conservá-los adequadamente, como elementos
indispensáveis ao direito à cidade sustentável , que envolve, simultaneamente,
os interesses das gerações presentes e futuras, consoante o art. 2º, I, da Lei
10.257/01 (Estatuto da Cidade).
5. Na hipótese dos autos, entretanto, o Recurso Especial esbarra em óbice
instransponível: a Súmula 280/STF impede, in casu, a análise da questão
relativa à possibilidade de desafetação de bem público de uso comum por
meio de lei ordinária, e não de emenda à lei orgânica municipal, visto que urge
exegese de Direito local. Precedentes do STJ.
6. Ademais, inaplicável na espécie o disposto na Súmula 150/STJ, pois todos
os precedentes que serviram de inspiração ao verbete tratam de questão
diversa, não sendo caso em que o suposto interesse federal surge após a
decisão de primeira instância e não é resolvido sem o pertinente incidente de
Conflito de Competência ou o ingresso da União no feito. Insustentável o
entendimento de que a competência por matéria, quando alterada por lei, deve
determinar a remessa imediata dos processos sem sentença de mérito ao novo
órgão destinatário da demanda. A regra do art. 87 do CPC consagra o princípio
da perpetuatio jurisdictionis , ou seja, delimita a competência no momento da
propositura da ação, sendo irrelevante ulterior modificação no estado de fato
ou de direito.
7. De toda sorte, registre-se, em obiter dictum , que, embora seja de inequívoco
interesse coletivo viabilizar a prestação de serviços a pessoas de baixa renda,
não se justifica, nos dias atuais, que praças, jardins, parques e bulevares
públicos, ou qualquer área verde municipal de uso comum do povo, sofram
desafetação para a edificação de prédios e construções, governamentais ou
não, tanto mais ao se considerar, nas cidades brasileiras, a insuficiência ou
absoluta carência desses lugares de convivência social. Quando realizada sem
critérios objetivos e tecnicamente sólidos, maldotada na consideração de
possíveis alternativas, ou à míngua de respeito pelos valores e funções nele
condensados, a desafetação de bem público transforma-se em vandalismo
estatal , mais repreensível que a profanação privada, pois a dominialidade
pública encontra, ou deveria encontrar, no Estado, o seu primeiro, maior e
mais combativo protetor. Por outro lado, é ilegítimo, para não dizer imoral ou
ímprobo, à Administração, sob o argumento do “estado de abandono” das
áreas públicas, pretender motivar o seu aniquilamento absoluto, por meio de
desafetação. Entender de maneira diversa corresponderia a atribuir à
recriminável omissão estatal a prerrogativa de inspirar e apressar a
privatização ou a transformação do bem de uso comum do povo em categoria
distinta. Finalmente, tampouco há de servir de justificativa a simples alegação
de não uso ou pouco uso do espaço pela população, pois a finalidade desses
locais públicos não se resume, nem se esgota, na imediata e efetiva utilização,
bastando a simples disponibilização, hoje e sobretudo para o futuro – um
investimento ou poupança na espera de tempos de melhor compreensão da
centralidade e de estima pela utilidade do patrimônio coletivo. Assim, em tese,
poderá o Ministério Público, se entender conveniente, ingressar com Ação
Civil Pública contra o Município recorrido, visando obter compensação pelo
espaço verde urbano suprimido, de igual ou maior área, no mesmo bairro em
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que se localizava a praça desafetada.
8. Recurso Especial não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima
indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça:
"A Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso, nos termos do voto do(a)
Sr(a). Ministro(a)-Relator(a)." Os Srs. Ministros Mauro Campbell Marques, Castro
Meira e Humberto Martins (Presidente) votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, a Sra. Ministra Eliana Calmon.
Brasília, 15 de abril de 2010(data do julgamento).
MINISTRO HERMAN BENJAMIN
Relator
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RECORRENTE
RECORRIDO
ADVOGADO
: MINISTRO HERMAN BENJAMIN
: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO
SUL
: MUNICÍPIO DE ESTEIO
: LUIZ BERNARDO DE SOUZA FRONER E OUTRO(S)
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO HERMAN BENJAMIN (Relator):
Trata-se de Recurso Especial interposto, com fundamento no art. 105, III, "a", da
Constituição da República, contra acórdão assim ementado:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEI nº
4.222/2006 do município de esteio. bem de uso comum do povo. desafetação.
doação ao instituto nacional de seguridade social. competência da justiça
estadual. legalidade.
1. É da competência da justiça estadual o julgamento de ação
civil pública cujo objeto é anular lei municipal que desafeta bem público de
uso comum do povo para bem de uso dominical e autoriza sua posterior
doação ao Instituto Nacional de Seguridade Social.
2. A proclamação na Lei Orgânica do Município da
inalienabilidade dos bens públicos destinados a áreas verdes e praças não
cristaliza a natureza de tais bens, estando tal matéria submetida à autonomia do
legislador municipal. Não é ilegal, portanto, a lei que revoga, em parte, a lei
anterior e desafeta imóvel destinado à praça para doá-lo à autarquia federal.
Decisão que se insere na autonomia do ente político sobre o destino dos bens
públicos. Aplicação do princípio lex posterior derogat priori .
Recurso desprovido. Agravo retido prejudicado. (fl. 224)
O recorrente alega violação do art. 87 do CPC, por haver competência
superveniente da Justiça Federal, e do art. 99, I, do CC, pois não se pode desafetar
bem público inalienável, nos termos da lei orgânica municipal. Sustenta ser necessária
a modificação prévia da lei orgânica do ente recorrido para que se possibilite a referida
desafetação, não bastando mera edição de lei ordinária municipal. Requer a reforma do
julgado para que se declare a nulidade: a) do processo por incompetência da Justiça
estadual ou, sucessivamente, b) da Lei municipal 4222/2006, restabelecendo-se a
destinação do imóvel (fls. 206-218).
Contraminuta apresentada às fls. 235-239.
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O Ministério Público Federal opinou pelo provimento do recurso (fls.
416-421).
É o relatório.
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VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO HERMAN BENJAMIN (Relator): O
Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul ajuizou Ação Civil Pública contra
o Município de Esteio/RS, em vista da desafetação de área (praça) de uso comum do
povo para a categoria de bem dominical, nos termos da Lei municipal 4222/06,
permitindo-se a doação do bem ao Instituto Nacional do Seguro Social – INSS,
autarquia federal, para a instalação de nova agência.
A distinção entre bens de uso comum do povo, bens de uso especial e
bens dominicais, tradicional no nosso sistema jurídico e agasalhada no Código Civil e
na legislação de Direito Público, é velha conhecida do Superior Tribunal de Justiça.
Cito um dos precedentes mais recentes:
(...) Os bens de uso comum e os de uso especial estão destinados
a fins públicos; acham-se afetados a uma finalidade pública; enquanto que os
dominicais não ostentam destinação pública definitiva (REsp 799765, rel.
Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, DJ de
27/08/2009).
1. Importância de praças, jardins, parques e bulevares públicos
urbanos
Praças, jardins, parques e bulevares públicos urbanos constituem uma
das mais expressivas manifestações do processo civilizatório, porquanto encarnam o
ideal de qualidade de vida da cidade, realidade físico-cultural refinada no decorrer de
longo processo histórico em que a urbe se viu transformada, de amontoado caótico de
pessoas e construções toscas adensadas, em ambiente de convivência que se pretende
banhado pelo saudável, belo e aprazível.
Tais espaços públicos são, modernamente, objeto de disciplina pelo
planejamento urbano, nos termos do art. 2º, IV, da Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade),
e concorrem, entre seus vários benefícios supraindividuais e intangíveis, para dissolver
ou amenizar diferenças que separam os seres humanos, na esteira da generosa
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acessibilidade que lhes é própria. Por isso mesmo, fortalecem o sentimento de
comunidade, mitigam o egoísmo e o exclusivismo do domínio privado e viabilizam
nobres aspirações democráticas, de paridade e igualdade, já que neles convivem os
multifacetários matizes da população: abertos a todos e compartilhados por todos,
mesmo os “indesejáveis”, sem discriminação de classe, raça, gênero, credo ou moda.
Em vez de resíduo, mancha ou zona morta – bolsões vazios e inúteis,
verdadeiras pedras no caminho da plena e absoluta explorabilidade imobiliária, a
estorvarem aquilo que seria o destino inevitável do adensamento –, os espaços
públicos urbanos cumprem, muito ao contrário, relevantes funções de caráter social
(recreação cultural e esportiva), político (palco de manifestações e protestos
populares), estético (embelezamento da paisagem artificial e natural), sanitário (ilhas
de tranquilidade, de simples contemplação ou de escape da algazarra para os que
pretendem fugir de multidões de gente e veículos) e ecológico (refúgio para a
biodiversidade local). Daí o dever não discricionário do administrador de instituí-los e
conservá-los adequadamente, como elementos indispensáveis ao direito à cidade
sustentável , que envolve, simultaneamente, os interesses das gerações presentes e
futuras, consoante o art. 2º, I, da Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade).
Realço aqui o pensamento de José Afonso da Silva, ao definir e delimitar
o papel dessas áreas nas cidades modernas:
(...) A cidade industrial moderna com seu cortejo de
problemas colocou a exigência de áreas verdes, parques e jardins, como
elemento urbanístico, não mais destinados apenas à ornamentação urbana, mas
como uma necessidade higiênica, de recreação e até de defesa e recuperação do
meio ambiente em face da degradação de agentes poluidores (...).
Daí a grande preocupação do Direito Urbanístico com a criação
e preservação das áreas verdes urbanas, que se tornaram elementos
urbanísticos vitais. Assim, elas vão adquirindo regime jurídico especial, que as
distinguem dos demais espaços livres e de outras áreas 'non aedificandi', até
porque admitem certos tipos de construção nelas, em proporção reduzidíssima,
porquanto o que caracteriza as áreas verdes é a existência de vegetação
contínua, amplamente livre de edificações, ainda que recortada de caminhos,
vielas, brinquedos infantis e outros meios de passeios e divertimentos leves,
quando tais áreas se destinem ao uso público (Direito Urbanístico Brasileiro ,
2ª ed., São Paulo, Malheiros, 1995, pp. 244 e 246).
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Na mesma linha segue José Carlos de Freitas:
(...) As praças, jardins, parques e áreas verdes destinam-se à
ornamentação urbana (fim paisagístico e estético), têm função higiênica, de
defesa e recuperação do meio ambiente, atendem à circulação, à recreação e ao
lazer. (Bens Públicos de Loteamentos e sua Proteção Legal , in Revista de
Direito Imobiliário, v. 22, n. 46, jan./jun. 1999, p. 188).
2. Óbices processuais intransponíveis ao Recurso Especial
O primeiro ponto do Recurso Especial cinge-se à competência do juízo
para apreciar matéria que envolve suposto interesse superveniente da União.
Em regra, inegável que se deve provocar a Justiça Federal para que ela
decida sobre a existência do interesse da União nos feitos, positiva ou negativamente.
Esse é o teor da Súmula 150/STJ.
A ratio do mencionado Verbete, contudo, merece especial atenção.
Ocorre que todos os precedentes que serviram de inspiração da súmula cuidam de
hipótese em que a) a União ingressa no feito como assistente, pugnando pela remessa
(ou manutenção) dos autos à Justiça Federal (CC 7570, CC 2311, CC 2753, REsp
51822 e REsp 52726); b) o juízo estadual suscita de ofício o conflito (CC 11149, CC
6170 e CC 2157); c) a Justiça Federal levanta a questão ex officio , para fins de remessa
do processo ao juízo do Estado (CC 171).
Consequentemente, nenhum precedente trata da situação presente, na
qual o suposto interesse da União é alegado após a decisão de primeira instância, sem
a provocação de qualquer ente federal, nem a interposição do pertinente incidente de
Conflito de Competência , o que evidencia a inaplicabilidade do Enunciado 150/STJ à
espécie, diante das peculiaridades que apresenta.
Além disso, embora incontroverso que o bem passou a ser de domínio do
INSS por doação do Município recorrido, mister destacar que o objeto da Ação Civil
Pública era a anulação de lei municipal por violação a dispositivo da Lei Orgânica .
Assim, a doação em concreto apenas representou o efeito da desafetação
(modificação da categoria de bem imóvel da municipalidade), previsto na lei
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questionada.
Portanto, o recorrente deveria ab ovo ter ajuizado a Ação Civil Pública
diretamente na Justiça Federal, ou, pelo menos, suscitado a matéria antes da prolação
da decisão monocrática.
Como não o fez ao longo de toda a instrução, houve anuência tácita com
a competência da Justiça Estadual, o que não se pode elidir somente em razão da
improcedência da demanda.
O art. 87 do CPC, tido por violado, em verdade endossa exatamente
outro entendimento, que é consagrar a regra da perpetuatio jurisdictionis , ou seja,
determinar que a competência seja delimitada no momento da propositura da ação.
Nesse sentido, não importa que o estado de fato ou o de direito sejam
modificados após o ajuizamento, excetuando-se as situações em que órgão judiciário
seja suprimido ou ocorra modificação de competência ratione materiae , ou ainda em
razão da hierarquia.
Desse modo, não se verifica ofensa ao art. 87 do Código de Processo
Civil.
Relativamente à alegada violação do art. 99, I, do Código Civil, ao
argumento de que não se pode desafetar bem público inalienável por meio de lei
ordinária sem haver ofensa à lei orgânica municipal, o Recurso Especial vai além da
competência do STJ, por incursionar pelo terreno da legislação local.
A presente demanda, no entanto, em vez de ser decidida pela aplicação
isolada ou preponderante do art. 99, I, do Código Civil, assenta-se claramente em
exegese normativa municipal , o que, no âmbito do STJ, esbarra no óbice da aplicação,
por analogia, da Súmula 280/STF: "Por ofensa a direito local não cabe Recurso
Extraordinário".
Nesse sentido:
PROCESSUAL
CIVIL.
PREQUESTIONAMENTO.
AUSÊNCIA. APLICAÇÃO DAS SÚMULAS 282 E 356/STF. OFENSA AO
ARTIGO 535 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. OMISSÃO
MANIFESTA. AUSÊNCIA. CONCLUSÃO LÓGICO-SISTEMÁTICA DO
DECISUM. PRECEDENTES. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. LEI
LOCAL. SÚMULA 280/STF. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.
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(...) IV - O manejo do recurso especial reclama violação ao texto
infraconstitucional federal, sendo defeso ao Superior Tribunal de Justiça
reexaminar a aplicação de legislação local, a teor do verbete Sumular 280/STF.
V- Agravo interno desprovido.
(AgRg no Ag 715.367/SP, Rel. Ministro GILSON DIPP,
QUINTA TURMA, DJ 13/03/2006 p. 361).
Igualmente concluiu o STJ em situação análoga:
(...) Por oportuno, no que tange aos arts. 66, I e 67 do Código
Civil e 17 da Lei nº 6.766/76, o acórdão recorrido manifestou-se com base na
interpretação de leis locais, no sentido de que a desafetação de bem público de
uso comum é permitida de acordo com legislação estadual.
No ponto, vejamos fragmentos do julgado objurgado, os quais
reforçam este entendimento, verbis :
"A questão nodal do litígio está em saber da
possibilidade da alteração da destinação do bem público de uso
comum do povo por via de desafetação e, em conseqüência, sua
cessão em comodato.
Induvidosamente afirmativa é a resposta,
sobretudo quando ambas as medidas, desafetação tanto quanto o
comodato, obtiveram autorização da lei.
Inicialmente, a vedação que se levanta, com
aceno ao disposto no art. 180, VII, da Constituição do Estado,
com a devida vênia, não é de chegar ao ponto onde se a levou.
Com toda a certeza, o que a disposição
constitucional assegurou foi a inalterabilidade da destinação
original das áreas institucionais, enquanto perdurasse essa
condição jurídica.
Não por outro motivo é que o art. 67, do Código
Civil, condiciona a perda da inalienabilidade dos bens públicos
aos casos e forma que a lei prescrever.
Na hipótese em exame, o imóvel dado em
comodato, por lei local, foi antes desafetado, perdendo sua
natureza de bem público de uso comum do povo para coisa
patrimonial, e assim autorizada sua cessão gratuita.
Escorreita, portanto, a alteração da destinação,
assim a cessão à entidade privada, para uso determinado, tudo
por meio de legítima medida representativa da autonomia
municipal, traduzida em lei" (fls. 616/617).
Com efeito, consoante entendimento sedimentado nesta Corte,
em sede de recurso especial revela-se inadmissível discutir matéria de direito
local (Súmula n.º 280/STF). (...) (RESP 436908, Ministro FRANCISCO
FALCÃO, DJ de 17/06/2004, decisão monocrática).
Ressalto, por fim, que a nova agência do INSS já foi inaugurada no
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local, conforme se pode verificar na seguinte notícia da Câmara de Vereadores:
Ministro da Previdência inaugura nova agência do INSS em
Esteio
A nova agência do INSS de Esteio, localizada na rua Machado
Lopes, 256, foi inaugurada na manhã de hoje, 5 pelo ministro da Previdência
Social, José Barroso Pimentel. A agência, que também atende Sapucaia do Sul,
vai oferecer atendimento com 17 guichês, para atender a demanda diária de
cerca de 300 usuários das duas cidades, além de seis salas de perícia e uma de
assistência social. O prédio ganhou mobiliário novo, equipamentos de
informática, dispositivos de segurança, acessibilidade para pessoas portadoras
de deficiência e sinalização interna.
Até o dia 8 de dezembro, a agência estava funcionando no
prédio da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL). A placa de inauguração foi
descerrada pelo ministro, além do presidente da entidade, Valdir Moisés
Simão, do presidente da Câmara, Sirlon Ribeiro (PMDB), e a superintendente
regional do INSS, Eliane Luzia Schmidt, além de outras autoridades. Na
ocasião, o presidente da Câmara de Vereadores lembrou o movimento do
Legislativo e Executivo de Esteio e Sapucaia do Sul pela permanência da
agência do INSS em Esteio. A atividade também contou com a presença dos
vereadores Felipe Costella (PMDB), Ari da Center (PSB), Jane Battistello
(PDT), Therezinha Heller (PPS) e Tânia Marli Rodrigues (PTB).
A obra está avaliada em R$ 1,4 milhão, com recursos do
Ministério de Estado em terreno doado pela prefeitura – antiga Praça da
Legalidade –, através de aprovação da Câmara de Vereadores.
Conforme informações do ministro, no Rio Grande do Sul serão
construídas 24 novas agências pelo Plano de Expansão da Rede de
Atendimento (PEX). Com a expansão, a rede fixa de atendimento da
Previdência Social no estado será composta por 117 unidades. Além disso, das
novas agências, estão sendo executadas 30 obras de recuperação da rede de
atendimento já existente. O total de investimento no estado soma R$ 29
milhões.
A previdência social é responsável pela manutenção de 31.577
benefícios, sendo 14.824 de beneficiários esteienses, com o pagamento mensal
total de R$ 24 milhões. A agência inaugurada tem capacidade para atender
320 pessoas por dia e realizar 2.070 perícias por mês. O horário de
atendimento é de 8h às 18h, de segunda a sexta-feira.
(Disponível em: www.camaraesteio.rs.gov.br . Acesso em
10.2.2010. Data da notícia: 05/1/2010, grifei).
3. Desafetação de praças, jardins, parques e bulevares públicos
urbanos
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De toda sorte, registre-se, em obiter dictum , que, embora seja de
inequívoco interesse coletivo viabilizar a prestação de serviços a pessoas de baixa
renda, não se justifica, nos dias atuais, que praças, jardins, parques e bulevares
públicos, ou qualquer área verde municipal de uso comum do povo, sofram
desafetação para a edificação de prédios e construções, governamentais ou não, tanto
mais ao se considerar, nas cidades brasileiras, a insuficiência ou absoluta carência
desses lugares de convivência social.
Ontem, na cidade medieval e até na antiga, como hoje, a praça (do
mercado ou não), o poço e as fontes de abastecimento de água destinavam-se ao “uso
comum, publicamente acessíveis, loci communes , loci publici ” (Jürgen Habermas,
Mudança Estrutural da Esfera Pública: Investigações quanto a uma Categoria da
Sociedade Burguesa , trad. de Flávio R. Kothe, 2ª ed., Rio de Janeiro, Tempo
Brasileiro, 2003, p. 18). Retirar da praça a natureza de loci communes , loci publici não
é um banal ato de governo municipal. Significa grave opção administrativa
reducionista do componente público, de repercussões imediatas, mas também com
impactos, normalmente irreversíveis, no futuro próximo e remoto da evolução da
cidade.
Daí que, quando efetivada sem critérios objetivos e tecnicamente sólidos,
adequada consideração de possíveis alternativas, ou à míngua de respeito pelos valores
e funções nele condensados, a desafetação de bem público transforma-se em
vandalismo estatal , comportamento mais repreensível que a profanação privada, pois a
dominialidade pública encontra, ou deveria encontrar, no Estado, o seu primeiro,
maior e mais combativo protetor. Como precisamente indica Victor Carvalho Pinto, “o
desafio do Direito Urbanístico é reduzir as falhas de mercado sem ampliar as falhas de
governo” (Direito Urbanístico: Plano Diretor e Direito de Propriedade , 2ª ed., São
Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, p. 71). Sem dúvida, a cidade sustentável acha-se
permanentemente sitiada pela especulação imobiliária, de um lado, e, de outro, pela
incompetência ou apatia, quando não por pura e criminosa má-fé do administrador
municipal perante o destino da urbe no médio e longo prazo. Dupla ameaça essa que
se torna irresistível, como sucede com infeliz frequência quando os interesses privados
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e os governantes de momento decidem coordenar esforços, amiúde propagando,
paradoxal e enganosamente, a destruição da qualidade de vida na cidade como se fosse
sua salvação ou cura milagrosa de seus males.
Por outro lado, é ilegítimo, para não dizer imoral ou ímprobo, à
Administração, sob o argumento do “estado de abandono” das áreas públicas,
pretender motivar o seu aniquilamento absoluto, por meio de desafetação. Entender de
maneira diversa corresponderia a atribuir à recriminável omissão estatal a prerrogativa
de inspirar e apressar a privatização ou a transformação do bem de uso comum do
povo em categoria distinta.
Finalmente, tampouco há de servir de justificativa a simples alegação de
não uso ou pouco uso do espaço pela população, pois a finalidade desses locais
públicos não se resume, nem se esgota, na imediata e efetiva utilização, bastando a
simples disponibilização, hoje e sobretudo para o futuro – um investimento ou
poupança na espera de tempos de melhor compreensão da centralidade e de estima
pela utilidade do patrimônio coletivo.
Assim, em tese, poderá o Ministério Público, se entender conveniente,
ingressar com Ação Civil Pública contra o Município recorrido, visando obter
compensação pelo espaço verde urbano suprimido, de igual ou maior área, no mesmo
bairro em que se localizava a praça desafetada. No entanto, não custa enfatizar, essa
questão não diz respeito ao objeto do presente Recurso Especial, razão por que a
referência é feita a latere .
Diante do exposto, nego provimento ao Recurso Especial.
É como voto.
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Superior Tribunal de Justiça
CERTIDÃO DE JULGAMENTO
SEGUNDA TURMA
Número Registro: 2009/0071647-2
REsp 1135807 / RS
Números Origem: 10700002551 200801175939 70021748264 70023095474
PAUTA: 13/04/2010
JULGADO: 15/04/2010
Relator
Exmo. Sr. Ministro HERMAN BENJAMIN
Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro HUMBERTO MARTINS
Subprocuradora-Geral da República
Exma. Sra. Dra. MARIA CAETANA CINTRA SANTOS
Secretária
Bela. VALÉRIA ALVIM DUSI
AUTUAÇÃO
RECORRENTE
RECORRIDO
ADVOGADO
: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
: MUNICÍPIO DE ESTEIO
: LUIZ BERNARDO DE SOUZA FRONER E OUTRO(S)
ASSUNTO: DIREITO ADMINISTRATIVO E OUTRAS MATÉRIAS DE DIREITO PÚBLICO - Atos
Administrativos
CERTIDÃO
Certifico que a egrégia SEGUNDA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão
realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
"A Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso, nos termos do voto do(a)
Sr(a). Ministro(a)-Relator(a)."
Os Srs. Ministros Mauro Campbell Marques, Castro Meira e Humberto Martins
(Presidente) votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, a Sra. Ministra Eliana Calmon.
Brasília, 15 de abril de 2010
VALÉRIA ALVIM DUSI
Secretária
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