UM TEXTO INÉDITO DE PIERRE BOURDIEU1
Publicado no Jornal Le Monde Diplomatique,, edição Portuguesa, n. 35 Ano 3 – Fevereiro 2002 –
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Um saber comprometido
Pierre Bourdieu fez a sua última
intervenção política em Atenas,
por ocasião de um encontro com
os sindicatos e os investigadores
gregos, realizado na Grécia entre
3 e 6 de Maio de 2001 sob a égide
da associação de Raisons d’Agir.
Se
é atualmente importante, se não necessário, que um certo número de
investigadores independentes se associem ao movimento social, é porque estamos
confrontados com uma política de globalização. (Digo propositadamente uma “política de
globalização”, não falo de “globalização” como se de um processo natural se tratasse!).
Esta política é, em grande medida, mantida em segredo no que se refere à sua produção e à
sua difusão. Só para conseguir descobri-la antes que seja posta em prática, é já necessário
fazer um verdadeiro trabalho de investigação. Mais ainda, esta política tem conseqüências
que podem ser previstas utilizando os recursos da ciência social, mas que, a curto prazo, são
ainda invisíveis para a maioria das pessoas. Outra característica desta política é ser em certa
medida produzida por investigadores. A questão que se coloca é saber se aqueles que, por
via do seu conhecimento científico, podem antecipar as conseqüências desastrosas desta
política podem e devem permanecer silenciosos. Ou se esse silêncio não equivale a uma
espécie de “não-assistência a pessoas em perigo”. Se é verdade que o planeta está sob a
ameaça de graves calamidades, então aqueles que crêem conhecer essas calamidades
1
A responsabilidade pela transcrição desse texto do Jornal Lê Monde Diplomatique, edição portuguesa, é de
inteira responsabilidade de Aristides Moysés, coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas Urbanas e
Regionais do Centro-Oeste – GEPUR-CO e pesquisador do Observatório das Metrópoles.
antecipadamente não terão o dever de abandonar o tradicional recato que os cientistas
impõem a si próprios?
Na cabeça da maioria das pessoas instruídas, e sobretudo na área das ciências
sociais, existe uma dicotomia que me parece completamente desastrosa: a dicotomia entre
scholarship e commitment – entre aqueles que se dedicam ao trabalho científico, que é feito
segundo métodos eruditos para agradar a outros eruditos, e aqueles que assumem uma
atitude de empenhamento e comunicam o seu saber ao exterior. Esta oposição é artificial e,
de facto, só um cientista que trabalha com autonomia e segundo as regras do scholarship
poderá produzir um conhecimento empenhado, isto é, um scholarship with commitment.
Para se ser verdadeiramente um cientista empenhado, justamente empenhado, é necessário
empenhar-se num saber. E esse saber apenas pode ser adquirido no trabalho científico,
submetido às regras da comunidade científica.
Dito de outro modo, é necessário rebentar com um certo número de contradições
que só existem nas nossas cabeças e que servem para autorizar várias formas de demissão, a
começar pela demissão do sábio que se encerra na sua torre de marfim. A dicotomia entre
scholarship e commitment tranquiliza a boca consciência do investigador porque ele recebe
a aprovação da comunidade científica. É como se os cientistas se considerassem
duplamente sapientes pelo facto de não usarem a sua ciência para nada. No caso dos
biólogos, isto pode ser criminoso. Mas é igualmente grave quando se trata de criminólogos.
Este recato, este refúgio na pureza, tem consequências sociais muito graves. Pessoas como
eu, pagas pelo Estado para fazer investigação, deveriam guardar cuidadosamente entre si e
os seus colegas os resultados de suas investigações? É absolutamente necessário submeter
em primeiro lugar à crítica dos colegas aquilo que acreditamos ser uma descoberta; mas por
que razão haveríamos de reservar só para esses colegas um conhecimento colectivamente
adquirido e avaliado?
Parece-me que hoje em dia o investigador não tem grande escolha: se tem a
convicção de que existe uma correlação entre as políticas neoliberais e as taxas de
delinquência, uma correlação entre as políticas neoliberais e as taxas de criminalidade, uma
correlação entre políticas neoliberais e todos os sinais daquilo que Durkheim teria
designado como anomia, então como poderia não o afirmar? Não deveríamos limitar-nos a
não o censurar, deveríamos felicitá-lo por o fazer. (Talvez esteja a fazer uma apologia da
minha própria posição...).
O que vai o investigador fazer
Agora, o que vai este investigador fazer no movimento social? Em primeiro lugar,
não vai dar lições – como faziam certos intelectuais orgânicos que, não sendo capazes de
colocar as suas mercadorias no mercado científico, onde a competição é difícil, iam fazer
de intelectuais junto dos não-intelectuais, mesmo afirmando a inexistência do intelectual. A
função de um investigador não é fazer profecias nem ensinar os outros a pensar. Deve
inventar um novo e difícil papel: deve escutar, deve investigar e inventar; deve procurar
ajudar as organizações que afirmam ter como missão resistir contra a política neoliberal –
infelizmente estas organizações, incluindo os sindicatos, fazem-no cada vez com menor
vigor. O investigador deve atribuir a si próprio a tarefa de as auxiliar fornecendo
instrumentos, especialmente instrumentos contra o efeito simbólico que é exercido pelos
“especialistas” comprometidos com as grandes empresas multinacionais. É preciso chamar
as coisas pelos nomes. Por exemplo, a actual política de educação é decidida pela UNICE,
pelo Transatlantic Institute, etc.1. É suficiente ler o relatório da Organização Mundial do
Comércio (OMC) sobre os serviços para ficarmos a conhecer a política de educação que
teremos daqui a cinco anos. O Ministério da Educação Nacional não faz mais do que
repercutir os mandamentos elaborados por juristas, sociólogos e economistas e que são
postos em circulação assim que tomam a forma de procedimentos jurídicos.
Os investigadores podem ainda fazer algo mais original, mas difícil: favorecer o
aparecimento das condições organizacionais para a produção colectiva da intenção de
inventar um projecto político e, em segundo lugar, favorecer o aparecimento das condições
organizacionais para o sucesso da invenção de um dado projecto político; este será
evidentemente um projecto colectivo. Afinal de contas, a Assembléia Constituinte de 1789
e a Assembléia de Filadélfia eram compostas por gente como vocês e eu, que tinham
conhecimentos jurídicos, que tinham lido Montesquieu e que inventaram estruturas
democráticas. Do mesmo modo, hoje é necessário inventar coisas novas... Pode,
evidentemente, dizer-se: “Existem parlamentos, uma confederação européia de sindicatos e
todo o tipo de instituições de quem se espera que cumpram esse papel razoavelmente”. Não
apresentarei aqui a demonstração do que digo, mas é forçoso constatar que esse papel não é
cumprido. Portanto, é necessário criar as condições favoráveis a esta invenção. É preciso
ajudar a remover os obstáculos a esta invenção, obstáculos que em certa medida residem no
próprio movimento social que está encarregue de os remover – designadamente nos
sindicatos...
Que razões há para podermos estar optimistas? Penso que podemos falar em termos
de hipóteses razoáveis de sucesso, pois este é o momento do Kairos, o momento oportuno.
Quando tínhamos este discurso por volta de 1995, o que havia em comum entre nós era o
facto de não sermos compreendidos e de passarmos por loucos. Todos aqueles que, como
Cassandra, anunciavam catástrofes eram motivo de riso, objecto de ataques (por parte dos
jornalistas) e de insultos. Agora isso acontece um pouco menos. Porquê? Porque foi sendo
feito trabalho. Aconteceu Seattle e todo um conjunto de manifestações. Além disso,
começam a ser visíveis as consequências da política neoliberal, as quais tínhamos previsto,
mas de um modo abstracto. E agora as pessoas compreendem... Mesmo os jornalistas mais
limitados e mais teimosos sabem que quando uma empresa não realiza 15 por cento de
lucros faz despedimentos. Começam a concretizar-se as mais catastróficas profecias dos
profetas da desgraça (que apenas estavam mais bem informados que os outros). Não é
demasiado cedo. Mas também não é demasiado tarde. Por que isto é apenas um princípio,
porque as catástrofes ainda estão a começar. Ainda é tempo de sacudir os governos sociaisdemocratas, perante os quais os intelectuais são cegos, sobretudo quando essa cegueira lhes
permite ter acesso a todo o tipo de benefícios sociais.
Tornar eficazes os movimentos sociais
A meu ver, o movimento social europeu só terá hipótese de ser eficaz se reunir três
componentes: sindicatos, movimento social e investigadores – na condição, evidentemente,
de os integrar, em vez de se limitar à sua justaposição. Ontem dizia aos sindicalistas que
existem divergências profundas quanto aos conteúdos e aos meios de actuação entre os
movimentos sociais e os sindicatos, em todos os países da Europa. Os movimentos sociais
deram corpo aos objectivos políticos que os sindicatos e os partidos tinham abandonado,
esquecido ou recusado. Por outro lado, os movimentos sociais trouxeram métodos de
actuação que os sindicatos, uma vez mais, foram, a pouco e pouco, abandonando,
esquecendo ou recusando. Contribuíram particularmente com métodos de ação pessoal: as
actividades dos movimentos sociais recorrem à eficácia simbólica, uma eficácia simbólica
que depende, em certa medida, do empenhamento pessoal daqueles que se manifestam; um
empenhamento pessoal que é também um empenhamento corporal. Torna-se necessário
correr riscos. Não se trata de desfilar de braço dado, como é tradicionalmente feito pelos
sindicalistas no 1º de Maio. É preciso desenvolver acções, ocupações de locais, etc. Isto
exige simultaneamente imaginação e coragem. Mas não quero deixar de dizer isto:
“Atenção, não entrem em ‘sindicalofobia’. Existe uma lógica própria dos aparelhos
sindicais e é preciso compreendê-la”. Por que razão digo eu aos sindicalistas coisas que se
aproximam dos pontos de vista que os movimentos sociais têm sobre eles e por que razão
vou depois dizer aos movimentos sociais coisas que estão próximas da visão que os
sindicalistas têm deles? Porque só mediante a condição de cada um dos grupos olhar para si
próprio como olha para os outros poderemos vir a ultrapassar as divisões que contribuem
para enfraquecer os dois grupos, que à partida são muito frágeis. O movimento de
resistência à política neoliberal é globalmente muito frágil e é enfraquecido pelas suas
divisões internas: funciona como um motor que gasta 80 por cento da sua energia em calor,
isto é, sob a forma de tensões, fricções, conflitos, etc. E que poderia caminhar muito mais
depressa e ir muito mais longe se...
Os obstáculos à criação de um movimento social europeu unificado são de vários
tipos. Existem os obstáculos linguísticos, que são muito importantes, por exemplo na
comunicação entre os sindicatos e os movimentos sociais – os patrões e os quadros falam
muito mais línguas estrangeiras do que os sindicalistas e os militantes. Por isso tem sido tão
difícil a internacionalização dos movimentos sociais ou dos sindicatos. Para além disso,
existem os obstáculos ligados aos hábitos, aos modos de pensar e à força que têm as
estruturas sociais e as estruturas sindicais. Qual pode ser o papel do investigador em tudo
isso? O de trabalhar para uma invenção colectiva das estruturas colectivas de invenção que
fará nascer um novo movimento social, ou seja, novos conteúdos, novos objectivos e novos
meios internacionais de acção.
1
Ler Europe Inc. Liaisons dangereuses
entre institutions et milieux des affaires
européens, CEO, Agone, Marselha, 2000.
* Pierre Bourdieu na edição portuguesa do Le Monde diplomatique:
“Por um movimento social europeu”, Junho de 1999.
“A nova vulgata planetária” (com Loïc Wacquant), Maio de 2000.
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