IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” PROVAS DE CONCURSO PÚBLICO PARA PROFESSORES DE LÍNGUA PORTUGUESA DA REDE ESTADUAL DE ENSINO DO ESTADO DE PERNAMBUCO-PE – AUSÊNCIA DE INTERAÇÃO CURRICULAR COM O CURSO DE LETRAS? Betânia Maria Lidington Lins JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 Provas de Concurso Público para Professores de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco-PE – ausência de interação curricular com os cursos de letras? PROVAS DE CONCURSO PÚBLICO PARA PROFESSOR DE LÍNGUA PORTUGUESA DA REDE ESTADUAL DE ENSINO DO ESTADO DE PERNAMBUCO – AUSÊNCIA DE INTERAÇÃO CURRICULAR COM OS CURSOS DE LETRAS? Betânia Maria Lidington Lins¹ RESUMO: O tema deste trabalho refletirá sobre as provas de concurso público para professor de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino do Estado de Pernambuco nos dois últimos certames realizados em abril e novembro de 2008, considerando os baixos índices de aprovação dos candidatos (e egressos do curso de Letras, portanto), resultado este amplamente publicado nas mídias escrita e falada do Estado à época de sua divulgação. Nosso objeto de estudo coloca para a pesquisa acadêmica a inquietação de analisar e discutir essas provas e buscar caminhos para entender o baixo rendimento dos candidatos a professor de Língua Portuguesa. As provas foram analisadas em seus conteúdos pedagógicos e específicos, levanodo-se em consideração as demandas exigidas para o profissional da área e à luz da pedagogia histórico-crítica de Dermeval Saviani e os conceitos de habitus e campo de Bourdieu. Ao final, teremos conclusões que nos apontam um caminho a percorrer em relação à formação inicial do professor de Língua Portuguesa e o seu melhor desempenho em provas de concursos públicos para a área. PALAVRAS-CHAVE: concurso público – professor de Língua Portuguesa – formação de professor – currículo. INTRODUÇÃO Lançando um rápido olhar sobre o resultado dos dois últimos concursos públicos1 para a Rede Estadual de Ensino do Estado de Pernambuco realizados em abril e novembro de 2008, para a disciplina de Língua Portuguesa, constatamos que houve um pequeno número de candidatos aprovados. Na área de maior concorrência da Região Metropolitana do Recife, na Gerência Regional de Ensino – GRE/Recife-Norte –, no concurso de abril/2008, de 106,5 candidatos que concorreram a uma vaga, sendo duas 2 Fonte: www.upenet.com.br [Acesso em 10.10.2008]. Betânia Maria Lidington Lins 1345 Provas de Concurso Público para Professores de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco-PE – ausência de interação curricular com os cursos de letras? vagas no total, apenas 23 foram aprovados. Nessa mesma GRE, no concurso de novembro/2008, de 167 candidatos que concorreram à única vaga disponibilizada para essa área, apenas 45 foram aprovados. Nas cidades do interior, o resultado foi ainda mais preocupante: em várias cidades houve apenas um candidato aprovado ou então não houve candidato aprovado, deixando, portanto, várias vagas por preencher. Sobre o concurso de abril/2008, em virtude do grande número de professores reprovados, os jornais locais da época destacaram diversas notícias, conforme trechos de reportagens do Jornal do Commercio2, que lançam um olhar de preocupação sobre o nosso tema (BASTOS, 2009). O resultado da primeira etapa do concurso para professor da rede estadual de ensino, divulgado ontem, revelou uma realidade preocupante: a precária qualidade da formação dos docentes (AZEVEDO, 2008). Decidimos, neste concurso, aumentar o ponto de corte, porque queríamos qualificar melhor a seleção. Em vez de a nota ser 3,5, como foi em 2006, neste concurso passou para 6. Esperávamos suprir a necessidade da rede, mas não conseguimos. Infelizmente, o resultado foi este, observou o Secretário Estadual de Educação. (AZEVEDO, 2008). Ainda sobre o resultado desse concurso de abril/2008, em relação ao desempenho dos professores em todas as áreas do concurso, a Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco divulgou que o governo pretendia preencher as 1.702 vagas disponibilizadas no Edital, além de criar um cadastro de reserva de 1.452 professores, com a expectativa de nomear ao todo 3.154 docentes. Infelizmente, essa meta não foi alcançada, já que 25.832 professores não obtiveram a pontuação mínima, ou seja, 60% das questões das provas, levando ponto de corte na prova objetiva (BASTOS, 2009). As afirmações acima levantam questões referentes à formação do egresso do curso de Letras, sobre o currículo do curso, o programa das disciplinas, mas também sobre as regras do concurso, o tipo de prova e das questões exigidas. Lança-nos, porém, algo mais preocupante, que é o questionamento sobre a conquista da realização de concurso público como única forma de ingresso no serviço público e que, quando são 2 Reportagem exibida em AZEVEDO, Margarida. Concurso reprova professores. Jornal do Commercio. Cidades. Educação. Recife, 06/05/08. Betânia Maria Lidington Lins 1346 Provas de Concurso Público para Professores de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco-PE – ausência de interação curricular com os cursos de letras? realizados, no caso específico para professores, estes não conseguem ser aprovados para a carreira, em sua grande maioria, deixando espaço aberto para outros tipos de contratação, como estágios e minicontratos. Por que tal desempenho se deu? Por falta de estudos para as provas do concurso? Por incompetência pessoal dos muitos professores reprovados? Seria mais uma vez a distância entre a teoria e a prática se desnudando de forma escancarada, num concurso público, cujo resultado é divulgado nas mídias escrita e falada e coloca os professores de Língua Portuguesa diante da população desinformada sobre as questões da língua, considerando-os incapazes mesmo de exerceram o magistério? Ou seria, na realidade, uma falha, não do professor, mas da formação que ele recebeu na faculdade de Letras? Formação inicial frágil e desconectada da realidade que o mercado de trabalho exige e impõe aos candidatos a concursos públicos de professor? Atualmente, professores da rede pública de ensino só ingressam no serviço público via concurso, o que mostra a importância de analisarmos a questão aqui colocada, uma vez que, se os professores não estão preenchendo as vagas disponibilizadas, quem as preencherá? Quem tomará o lugar desses professores? Estagiários, ou seja, estudantes da graduação? Ou os chamados “minicontratados” (professores formados que ingressam na rede pública de ensino, sem concurso público, para cumprir contrato de trabalho temporário de 24 meses, geralmente), muitas vezes despreparados para a docência? Essas são indagações que devem inquietar profissionais da área de língua portuguesa, pesquisadores e autoridades governamentais, além de demandarem estudos de ordem sócio-histórico-cultural da formação do professor. CURRÍCULO E FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE LÍNGUA PORTUGUESA NA VISÃO DA TEORIA HISTÓRICO-CRÍTICA Segundo Pacheco (2005), “enquanto expressão de um projeto de escolarização, o conceito de currículo tem sofrido, ao longo dos tempos, uma erosão natural que o tem transportado desde uma concepção restrita de plano de instrução até uma concepção aberta de projeto de formação, no contexto de uma dada organização.” Diante do exposto, surge-nos o questionamento em relação à capacidade de ler, interpretar e produzir um texto que o egresso do curso de Letras desenvolve ao longo de Betânia Maria Lidington Lins 1347 Provas de Concurso Público para Professores de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco-PE – ausência de interação curricular com os cursos de letras? sua formação, bem como sobre questões ligadas ao currículo da instituição onde ele se formou. Verificamos que, num passado não muito distante, na formação que era dada nos cursos de Letras ao futuro professor de Língua Portuguesa, este recebia ensinamentos centrados na gramática normativa, através do esquema certo/errado, já que o currículo desses cursos priorizava o estudo da língua sob essa ótica. Porém, com o aparecimento da Linguística a partir do início do século XX e o pleno desenvolvimento de suas diversas áreas (Linguística de Texto, Sociolinguística, Análise do Discurso, Pragmática) na década de 80 do século passado, o ensino nos cursos de Letras passou por algumas mudanças, não se exigindo mais do graduando o conhecimento de regras gramaticais na ponta da língua e sim uma reflexão sobre o funcionamento e os fenômenos da língua e o papel que ela exerce em nossa sociedade. A língua deixou de ser concebida como representação do pensamento, vista na perspectiva da gramática tradicional, e passou a ser vista como interação entre interlocutores, materializada através de gêneros textuais em circulação na sociedade. Ocorre que, à margem da mudança ocorrida nos currículos dos cursos de Letras, e do que passou a ser exigido para um graduando desse curso, o já graduado em Letras e agora professor de Língua Portuguesa se deparava com livros didáticos à moda antiga, com grande quantidade de exercícios estruturadores baseados na norma padrão da gramática tradicional, ao mesmo tempo em que também encontrava uma cultura escolar que legitimava a norma de prestígio e requeria essa proposta de ensino nas salas de aula de Língua Portuguesa, desconsiderando as variedades linguísticas, ou seja, a diversidade linguística, resultado da chamada democratização do ensino (SOARES, 1989). Nesse contexto, cabia ao professor traçar o caminho da reprodução desses conhecimentos, em oposição ao que recebeu na graduação, considerando, especialmente, o espaço institucional em que se deu sua formação e a ausência de uma política de formação continuada que garantisse a reflexão sobre o seu fazer docente. A partir da publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) em 1997, foi proposto um referencial de ensino de Língua Portuguesa pautado numa concepção de língua como interação, cuja abordagem procurava contribuir para a formação de sujeitos capazes de se relacionarem com as mais diversas situações de uso e de reflexão sobre a leitura e a escrita. Betânia Maria Lidington Lins 1348 Provas de Concurso Público para Professores de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco-PE – ausência de interação curricular com os cursos de letras? Esses pressupostos teórico-didáticos passaram a nortear as propostas oficiais de ensino de língua, incluindo o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que passou a avaliar e a estabelecer critérios de análise dos novos livros didáticos de Língua Portuguesa a serem selecionados pelos professores, distribuídos nas escolas públicas pelo governo e também para divulgação pelas editoras junto às escolas privadas, pautando-se na reflexão sobre a língua e sua adequação aos diversos contextos em que o ato comunicativo se dá. Essas novas propostas teóricas, transformadas em saberes a serem ensinados, parecem configurar-se em mais um desafio para o professor de Língua Portuguesa, tendo que lidar com o antigo e o novo no ensino de língua. Assim, diante de concursos públicos para selecionar professores de Língua Portuguesa para atuarem em escolas públicas, verificou-se que o desempenho dos já professores de Língua Portuguesa e dos recém-formados em Letras - considerando que candidatos experientes e inexperientes podem concorrer a vagas de concurso público - , não correspondeu às expectativas de um aporte teórico assumido pela instituição responsável pela elaboração do concurso, que deve ter primado, supomos, por uma abordagem de reflexão da língua em que se exige do professor/candidato um maior comprometimento com a criticidade que os aspectos linguísticos apontam, destoando de uma abordagem mais tradicional da língua, com a qual o já professor ou candidato está acostumado a lidar. Lançando um rápido olhar sobre a formação do professor de Língua Portuguesa, podemos aprofundar as discussões de como esse professor entende as concepções de língua e linguagem no momento atual; de como ele compreende a leitura e a produção de um texto; quais as estratégias das quais ele se utiliza para compreender e produzir um texto. Podemos discutir também se a formação que ele recebe na faculdade, no curso de Letras, prepara-o para o mercado de trabalho sob o domínio dos novos paradigmas de ensino da Língua Portuguesa que surgiram nas últimas décadas do século passado. Kramer (2001), analisando a história de vida de professores com idades e experiências diversas, conclui que se deve dar ao professor a oportunidade dele se tornar leitor “afetivo e efetivo”, oferecendo-lhe nas formações continuadas o contato com a literatura de prazer, de fruição. Assim, acredita a autora, os professores poderão resgatar ou construir o gosto pela leitura. Betânia Maria Lidington Lins 1349 Provas de Concurso Público para Professores de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco-PE – ausência de interação curricular com os cursos de letras? Segundo a pedagogia histórico-crítica, aqui no Brasil tendo como um de seus principais representantes Dermeval Saviani, cujas obras (2003, 1996, 1995) nos apontam conceitos básicos para entendê-la, a formação docente deve se fundamentar em bases teóricas sólidas apoiadas na reflexão filosófica e no conhecimento científico (Saviani, 1995), conforme Marx preconizava, base teórica esta essencial para a compreensão do homem como um conjunto de várias determinações (subjetivas, sociais, econômicas), bem como das vinculações do trabalho educativo no contexto da prática social. De acordo com Saviani (2003, p. 13), a essência do trabalho educativo consiste no “ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens.” Nesse sentido, o trabalho educativo é uma atividade mediadora entre o indivíduo e a atividade humana e deve ser realizado de forma intencional, regido pela finalidade de garantir a universalização das muitas possibilidades geradas pelo processo histórico de desenvolvimento do gênero humano a todos os indivíduos, de modo a contribuir de forma afirmativa para a prática social dos educandos. Saviani (1996) diz que a reflexão filosófica possibilita ao educador a superação de uma compreensão sobre a prática pedagógica concebida de forma fragmentária, incoerente, desarticulada e simplista, porque guiada pelo senso comum, por uma compreensão unitária, coerente, articulada, intencional e cultivada, porque guiada pela consciência filosófica. É a reflexão crítica sobre os problemas que se apresentam na realidade educacional, fundamentada em um método de análise que atenda às exigências, segundo o próprio Saviani, das categorias da radicalidade, do rigor e da globalidade. Marx diz que “ser radical é agarrar as coisas pela raiz” (MARX, 2005, p. 151), ou seja, na categoria da radicalidade, é necessário um aprofundamento para se chegar à raiz das coisas, aos fundamentos do problema que se apresenta ao educador, não cabendo discussões superficiais ou fragmentárias para se chegar à base que lhe dá sustentação e que determina sua manifestação como fenômeno da realidade. Segundo Silva (2008), a categoria do rigor corresponde à exigência de procedimentos sistemáticos e metódicos para o desenvolvimento da análise do Betânia Maria Lidington Lins 1350 Provas de Concurso Público para Professores de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco-PE – ausência de interação curricular com os cursos de letras? problema, com a finalidade de questionar conclusões do senso comum e generalizações indevidas. A categoria da globalidadade refere-se à necessidade de um exame do problema em seus vários aspectos e determinações, ou seja, é necessário termos uma visão geral do problema, analisando-o em ralação aos demais aspectos do contexto no qual está inserido. Porém, conforme afirma Saviani (1996), essas categorias não são autossuficientes nem devem ser compreendidas como justapostas umas às outras, permitindo o surgimento da reflexão filosófica: “A profundidade [radicalidade] é essencial à atitude filosófica do mesmo modo que a visão de conjunto [globalidade]. Ambas se relacionam dialeticamente por virtude da íntima conexão que mantêm com o mesmo movimento metodológico, cujo maior rigor [criticidade] garante ao mesmo tempo a radicalidade, a universalidade e a unidade da reflexão filosófica.” (SAVIANI, 1996, p. 17-18). A reflexão acima está pautada no método dialético que possibilita ao educador o desenvolvimento da capacidade de refletir com profundidade e rigorosidade sobre os problemas educacionais. Essa capacidade de reflexão tem por finalidade favorecer a compreensão desses problemas em sua totalidade, bem como analisar os condicionantes do trabalho educativo para o encaminhamento de possibilidades efetivas para a formação do educando, considerando a concepção histórico-social de formação humana (Saviani, 1996). Assim, o conhecimento científico e, com ele, o método dialético, se apresenta como instrumento indispensável para o desenvolvimento do trabalho educativo, tanto para a compreensão da realidade na qual se efetiva a prática pedagógica, considerandose as finalidades e os objetivos da educação escolar, quanto para o conteúdo do conhecimento científico, como instrumento direto da formação humana, conforme encontramos em Silva (2008). BOURDIEU E A FORMAÇÃO DOCENTE – Os conceitos de habitus e campo Podemos discutir as contribuições do sociólogo francês Pierre Bourdieu para a formação docente através dos conceitos de habitus e campo, refletindo sobre a natureza Betânia Maria Lidington Lins 1351 Provas de Concurso Público para Professores de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco-PE – ausência de interação curricular com os cursos de letras? dos saberes acionados pelo professor na sua prática cotidiana, considerando a experiência cotidiana como um lugar de construção de saberes e estes saberes como construções práticas organizadas e incorporadas como habitus ao longo da trajetória pessoal e profissional do professor. Desde o início de sua carreira e ao longo dela, Bourdieu tentou compreender a ordem social distante do subjetivismo, ou seja, a ordem social vista como um produto consciente e intencional do indivíduo, e do objetivismo, que considerava a ordem social como exterior ao indivíduo, determinando de maneira inflexível as suas ações individuais (Nogueira e Nogueira, 2004). Para superar essa dicotomia, Bourdieu propõe uma teoria da prática, tendo como suporte o conhecimento por ele chamado de praxiológico, centrado no conceito de habitus. Bourdieu dizia que era possível conhecermos o mundo social através de três formas: a fenomenológica, a objetivista e a praxiológica. O conhecimento fenomenológico servia para captar a experiência primeira do mundo social, tal como os membros de uma sociedade o viviam no cotidiano; o conhecimento objetivo promoveria a ruptura sobre a experiência subjetiva imediata; e o conhecimento praxiológico, nas palavras do próprio autor, “tem como objeto não somente o sistema das relações objetivas que o modo de conhecimento objetivista constrói, mas também as relações dialéticas entre essas estruturas e as disposições estruturadas, nas quais elas se atualizam e que tendem a reproduzi-las.” (BOURDIEU, 1983, p. 47). Ou seja, segundo Nogueira e Nogueira (2004), o conhecimento praxiológico não se restringiria a identificar estruturas objetivas externas aos indivíduos, tal como o faz o objetivismo, mas buscaria investigar como essas estruturas encontram-se interiorizadas nos sujeitos, constituindo um conjunto estável de disposições estruturadas que, por sua vez, estruturam as práticas e as representações das práticas. “Essa forma de conhecimento buscaria apreender, então, a própria articulação entre o plano da ação ou das práticas subjetivas e o plano das estruturas, ou, como repetidamente refere-se Bourdieu, o processo de ‘interiorização da exterioridade e de exterioridade da interioridade’”. (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004, p. 26). Habitus seria, então, a mediação entre a estrutura (objetivismo) e a prática (subjetivismo). “Cada sujeito vivenciaria uma série de experiências, em função de sua posição nas estruturas sociais, que efetivariam sua subjetividade, constituindo uma Betânia Maria Lidington Lins 1352 Provas de Concurso Público para Professores de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco-PE – ausência de interação curricular com os cursos de letras? espécie de “matriz de percepções e apreciações”, que orientaria suas ações nas situações posteriores. O habitus seria, então, produto da incorporação das estruturas sociais e da posição de origem pelo sujeito, que passaria a “estruturar as ações e representações dos sujeitos” (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004, p. 28). As marcas da posição social que o indivíduo ocupa na sociedade e os símbolos, as crenças, os gostos e as preferências que caracterizam essa posição social são incorporadas pelos sujeitos, nem sempre de forma consciente, tornando-se parte da natureza do próprio indivíduo, constituindo-se num habitus. Nogueira e Nogueira (2004, p. 30) ressaltam a incorporação do habitus quando dizem que “os sujeitos agiriam de acordo com o que aprenderam ao longo de sua socialização no interior de uma posição social específica e, dessa forma, confeririam às suas ações um sentido objetivo que ultrapassa o sentido subjetivo diretamente percebido e intencionado.” O conceito de habitus, então, superaria a dicotomia entre a subjetividade e a objetividade. A subjetividade seria superada pela noção de que as práticas, atitudes e comportamentos dos sujeitos não são definidos por eles próprios, mas são produzidos socialmente, considerando que esses aspectos da subjetividade dos sujeitos estão configurados de acordo com a posição social específica ocupada originalmente pelos sujeitos na estrutura social. A objetividade, por outro lado, seria superada considerando que as estruturas sociais deixariam de ser vistas como produtoras de comportamento de forma mecânica, determinista, de fora da estrutura para dentro do sujeito. Como afirmam Nogueira e Nogueira (2004, p. 31) “A posição que o sujeito ocupa na estrutura social não o conduziria, diretamente, a agir em determinada direção, mas faria com que ele incorporasse um conjunto específico de disposições para a ação que o orientariam, ao longo do tempo, nas mais diversas situações sociais.” Bourdieu classifica o habitus de duas maneiras: o primário, que é transmitido de maneira implícita e inconsciente pela educação recebida na família e pela regras de classe; e o secundário, que é explícito e metodicamente organizado, proveniente da educação escolar, da indústria cultural e dos meios de comunicação de massa. O habitus também se modifica e incorpora outros esquemas de percepção e ação, à medida que as condições sociais e históricas são alteradas. Ou seja, habitus tem aspecto transitório, já que é uma construção sócio-histórica. Betânia Maria Lidington Lins 1353 Provas de Concurso Público para Professores de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco-PE – ausência de interação curricular com os cursos de letras? Sobre o conceito de campo, ele é o local de mediação entre o sujeito e a estrutura. Os sujeitos estão localizados num determinado campo e procuram se ajustar à sua lógica específica, que é o conhecimento prático herdado da socialização familiar do sujeito, para lidar com as situações de sua posição social. As ações dos sujeitos são, portanto, produtos da interiorização das estruturas desse campo e de outros que venham a participar. Nogueira e Nogueira (2004) dizem que Bourdieu considera que cada campo possui hierarquias e disputas, entre dominantes e dominados, por determinados bens simbólicos e consequentemente por posições sociais. No interior de cada campo, os indivíduos passariam a lutar pelo controle da produção e legitimação dos bens produzidos. Nesse sentido, Bourdieu amplia o conceito de bem para capital cultural, econômico e social, que teria graus de importância diferenciados dentro de cada campo. O campo literário é analisado por Nogueira e Nogueira (2004) para verificar como a disputa se dá em um determinado campo, considerando que editores, escritores, críticos e pesquisadores das áreas de língua e literatura disputam espaço e reconhecimento para si mesmos e suas produções. Eles afirmam que as definições do que seja a boa ou a má literatura é que estão em jogo nesse campo, além de quererem saber quais são as produções artísticas, as de vanguarda, as comerciais; quais são os escritores maiores ou menores. Assim como há a disputa no campo de produção simbólica, a exemplo do campo literário visto acima, também existe no conjunto da sociedade uma luta travada entre os agentes para legitimar certos padrões culturais como sendo superiores ou inferiores. Fazemos distinções entre a alta e a baixa cultura, entre o clássico e o popular, entre a religiosidade e a superstição, entre a ciência e senso comum, entre o falar culto e o popular, só para citar alguns aspectos dessa classificação, e o que se dá, enfim, é que os grupos dominantes da cultura mantêm-se na posição privilegiada e impõem seus bens culturais como os mais valorizados, legitimando-os como superiores. Porém, por parte dos dominados, há estratégias de que eles se utilizam para superar essa posição de inferioridade. Eles adotariam a estratégia de ou se reconhecerem como inferiores, aceitando essa condição, ou contestariam essa posição e partiriam para o combate à desigualdade, conforme eles tenham ou não condições de Betânia Maria Lidington Lins 1354 Provas de Concurso Público para Professores de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco-PE – ausência de interação curricular com os cursos de letras? enfrentar os grupos dominantes. Bourdieu deu o nome de “movimentos heréticos” a essas estratégias de permanência ou mudança na posição social. Enfim, a posse de capitais culturais, econômicos e sociais, em graus diferenciados e em campos específicos, determina as posições sociais dos indivíduos, e estes ganham maior prestígio e poder na sociedade à medida que forem capazes de produzir, identificar, apreciar e usufruir das produções consideradas superiores. INGRESSO NA PROFISSÃO DOCENTE – O CONCURSO PÚBLICO O ingresso do professor nas redes públicas de ensino é assegurado por concurso público, conforme a Constituição Federal de 1988, exigência esta já prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº 5.672/71. Segundo a Constituição Federal de 1988, no Capítulo VII – Da Administração Pública - Seção I – Disposições Gerais, Art. 37, temos: II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; Embora os concursos públicos sejam previstos em lei, o que temos observado é um grande número de contratos temporários espalhados por todo o Brasil, como podemos observar através da matéria da Revista Nova Escola “Uma profissão, várias realidades”, de Arthur Guimarães e Fabiana Faria, publicada em abril de 2007, mostrando que em alguns estados brasileiros, mais da metade da categoria não é concursada, a exemplo do Piauí, com 75% e o Ceará com 68% (BASTOS, 2009). Nesse sentido, ao buscarmos o entendimento sobre o desempenho do candidato egresso do curso de Letras em concurso público para professor de Língua Portuguesa, pressupomos uma abordagem sobre sua formação e quais as condições que o levam a ser aprovado num concurso público. Betânia Maria Lidington Lins 1355 Provas de Concurso Público para Professores de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco-PE – ausência de interação curricular com os cursos de letras? AS PROVAS DOS CONCURSOS PÚBLICOS PARA PROFESSOR DE LÍNGUA PORTUGUESA DA REDE ESTADUAL DE ENSINO DE PERNAMBUCO Ambos os concursos, o de abril/2008 e o de novembro/2008, foram realizados em duas etapas cada um: a primeira, constituída pela prova objetiva e a dissertação; a segunda, pela prova de títulos. Nosso objeto de estudo são as provas objetivas, nos aspectos de conteúdo que consideramos importante analisar. A prova do concurso de abril/2008 conteve 60 questões objetivas de múltipla escolha com cinco alternativas cada, sendo 30 questões destinadas aos Conhecimentos Pedagógicos e 30 referentes aos Conhecimentos Específicos da área de Língua Portuguesa, conforme previa o Edital (que regeu o referido concurso, e que transcrevemos abaixo: “CONHECIMENTOS PEDAGÓGICOS : 1. Fundamentos da Educação; 2. Concepções e tendências pedagógicas contemporâneas; 3. Relações sócio-econômicas e político-culturais da educação; 4. Educação e Direitos Humanos, Democracia e Cidadania; 5. A função social da escola; Inclusão educacional e respeito à diversidade; 6. Diretrizes Curriculares Nacional para a Educação Básica; 7. Didática e organização do ensino; 8. Saberes Escolares, processos metodológicos e avaliação da aprendizagem; 9. Novas tecnologias da informação e comunicação e sua contribuição com a prática pedagógica; 10. Projeto Político Pedagógico da escola e o compromisso com a qualidade social do ensino; 11. Lei no 9394-1996 Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional; Lei no 8069-1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente; 12. Lei nº 10.6392003 Historia e Cultura Afro- Brasileira e Africana; 13. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos/2007. CONHECIMENTOS ESPECÍFICOS: Concepções de língua-linguagem como discurso e processo de interação: conceitos básicos de dialogismo, polifonia, discurso, enunciado, enunciação, texto, gêneros discursivos; 2. Oralidade: concepção, gêneros orais, oralidade e ensino de língua, particularidades do texto oral; 3. Leitura: concepção, gêneros, papel do leitor, diferentes objetivos da leitura, formação do leitor crítico, intertextualidade, inferências, literatura e ensino, análise da natureza estética do texto literário; 4. Escrita: produção de texto na escola, papel do interlocutor, contexto de produção, gêneros da escrita, fatores lingüísticos e Betânia Maria Lidington Lins 1356 Provas de Concurso Público para Professores de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco-PE – ausência de interação curricular com os cursos de letras? discursivos da escrita, o trabalho da análise e revisão de reescrita de textos; 5. Análise Lingüística: o texto (oral e escrito) como unidade privilegiada na análise-reflexão da língua(gem), os efeitos do sentido provocados pelos elementos lingüísticos, a norma padrão e as outras variedades lingüísticas.” Além das questões objetivas, também foi exigida uma Questão Dissertativa, em que o candidato deveria escrever um texto dissertativo versando sobre algum tema de educação proposto, com no mínimo 25 e no máximo 30 linhas. Sobre a prova de Conhecimentos Pedagógicos e tomando por base o conteúdo programático do Edital do concurso, verificamos que foram apresentadas ao candidato três questões ligadas às concepções e tendências pedagógicas contemporâneas; três sobre a função social da escola; uma sobre educação inclusiva; três sobre saberes escolares; três sobre didática e organização do ensino; quatro sobre avaliação da aprendizagem; duas sobre as novas tecnologias da informação e comunicação; quatro sobre projeto político-pedagógico da escola; uma sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional; três sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente; uma sobre a Lei 10.639/03; e duas sobre o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos/2007, totalizando 30 questões. Consideramos que foram apresentados no conteúdo programático do concurso 18 temas ou subtemas e que na prova objetiva 12 deles foram abordados, havendo, portanto, um certo equilíbrio entre a quantidade proposta e o que foi exigido ao candidato, mesmo que alguns temas tenham ficado de fora. Na prova de Conhecimentos Específicos, verificamos que foram colocadas seis questões relacionadas à interpretação do único texto apresentado para análise; duas sobre gêneros textuais; duas sobre a norma padrão da língua (pontuação); seis sobre concepções de língua-linguagem como discurso e processo de interação, com os conceitos básicos de dialogismo, polifonia, discurso, enunciado, enunciação, texto, gêneros discursivos; quatro sobre aspectos relacionados à literatura; quatro sobre o texto (oral e escrito) como unidade privilegiada na análise-reflexão da língua(gem); uma sobre leitura/escrita; uma sobre fala/escrita; e quatro sobre análise lingüística, totalizando 30 questões. Betânia Maria Lidington Lins 1357 Provas de Concurso Público para Professores de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco-PE – ausência de interação curricular com os cursos de letras? Nesta prova, verificamos que praticamente todos os temas apresentados no conteúdo programático foram abordados na prova. No concurso que se realizou em novembro/2008, a prova constou de 40 questões também de múltipla escolha com cinco alternativas cada, sendo 10 questões de Conhecimentos Pedagógicos e 30 referentes aos Conhecimentos Específicos da área de Língua Portuguesa, além da Prova Dissertativa sobre um tema relacionado à educação, com no mínimo 25 e no máximo 30 linhas. Transcrevemos abaixo os conteúdos programáticos das provas de Conhecimentos Pedagógicos e Conhecimentos Específicos, conforme apresentados no Edital do concurso. “CONHECIMENTOS PEDAGÓGICOS: 1. Fundamentos da Educação; Concepções e tendências pedagógicas contemporâneas; 3. Relações socioeconômicas e políticoculturais da educação; 4. Educação e Direitos Humanos, Democracia e Cidadania; 5. A função social da escola; Inclusão educacional e respeito à diversidade; 6. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica; 7. Didática e organização do ensino; 8. Saberes Escolares, processos metodológicos e avaliação da aprendizagem; 9. Novas tecnologias da informação e comunicação e sua contribuição com a prática pedagógica; 10. Projeto Político Pedagógico da escola e o compromisso com a qualidade social do ensino; 11. Lei no 9394-1996 Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional; Lei no 8069-1990- Estatuto da Criança e do Adolescente; 12. lei nº 10.639-2003 História e Cultura Afro Brasileira e Africana; 13. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos/2007. CONHECIMENTOS ESPECÍFICOS: 1. Concepções de língualinguagem como discurso e processo de interação: conceitos básicos de dialogismo,polifonia, discurso, enunciado, enunciação, texto, gêneros discursivos; 2. Oralidade: concepção, gêneros orais, oralidade e ensino de língua, particularidades do texto oral; 3. Leitura: concepção, gêneros, papel do leitor, diferentes objetivos da leitura, formação do leitor crítico, intertextualidade, inferências, literatura e ensino, análise da natureza estética do texto literário; 4. Escrita: produção de texto na escola, papel do interlocutor, contexto de produção, gêneros da escrita, fatores lingüísticos e discursivos da escrita, o trabalho da análise e revisão de reescrita de textos; 5. Análise Lingüística: o texto (oral e escrito) como unidade privilegiada na análise-reflexão da Betânia Maria Lidington Lins 1358 Provas de Concurso Público para Professores de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco-PE – ausência de interação curricular com os cursos de letras? língua(gem), os efeitos do sentido provocados pelos elementos lingüísticos, a norma padrão e as outras variedades lingüísticas; 6. Linguagem oral e linguagem escrita: Relações entre fala e escrita: perspectiva não dicotômica; – Relações de independência, de dependência e de interdependência; 7. O ensino de leitura e compreensão de textos: Estratégias de leitura.” Na prova de Conhecimentos Pedagógicos deste concurso, verificamos que as questões se referiam aos seguintes conteúdos: uma sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional; uma sobre Projeto Político-Pedagógico; uma sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente; duas sobre as tecnologias da informação e comunicação; uma sobre a Lei 10.639/03; uma sobre a função social da escola; uma sobre tendências pedagógicas; uma sobre avaliação e uma sobre didática; perfazendo dez questões. Comparando o conteúdo programático das provas de Conhecimentos Pedagógicos nos dois concursos realizados, verificamos que eles se repetem. Considerando que na prova de abril/2008 houve 30 questões e que na deste último, em novembro/2008, houve apenas 10, concluímos que a primeira prova abarcou uma maior abrangência de temas. Na prova de Conhecimentos Específicos, houve sete questões de interpretação de texto; duas sobre gêneros textuais; uma sobre oralidade; uma sobre escrita; uma sobre gêneros discursivos; cinco sobre o ensino da língua portuguesa; uma sobre coesão textual, uma sobre coerência textual; uma sobre variação lingüística; duas sobre o texto; duas sobre leitura; uma sobre enunciação/enunciado; duas sobre movimentos literários (pré- modernismo e modernismo); uma sobre o ensino de literatura; uma sobre a norma padrão da língua (oração subordinada adverbial condicional); e uma sobre produção de texto, num total de 30 questões. Observamos que, diferentemente da prova de abril/2008, nesta de novembro foram colocados três textos para análise e não apenas um, justificando a quantidade de sete questões de interpretação de texto colocadas nesta última prova. De um modo geral, as provas dos concursos realizados apresentaram um equilíbrio entre o conteúdo programático disponibilizado para conhecimento do candidato e os temas abordados em cada uma das questões das provas. Betânia Maria Lidington Lins 1359 Provas de Concurso Público para Professores de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco-PE – ausência de interação curricular com os cursos de letras? Observamos que os assuntos exigidos para os concursos são atuais e devem ser motivo de estudo, presumimos, na maioria dos cursos de Letras do país. O que nos causa surpresa, porém, é que apenas cinco questões de conhecimentos específicos sobre literatura ou norma padrão da língua foram exigidas dos candidatos (duas de pontuação, duas sobre movimentos literários e uma sobre sintaxe), num universo de 100 questões. Isso, talvez, aponte um possível caminho para entendermos o baixo desempenho desses candidatos a professor de Língua Portuguesa nos concursos analisados. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir das contribuições da teoria histórico-crítica, através das ideias de Marx e Saviani, e dos conceitos de habitus e campo de Bourdieu para o campo educacional, concluímos que a atividade educativa comprometida com uma educação de qualidade, que forme cidadãos conscientes de seus direitos e deveres, baseia-se na formação do educador em bases sólidas, fundadas na reflexão filosófica e no conhecimento científico. A formação do docente assim estruturada leva-o a refletir sobre sua identidade enquanto ser sócio-historicamente construído, seu habitus, e sobre a realidade que o cerca e determina sua posição na sociedade de classes, dividida entre dominantes e dominados, e marcada pelas desigualdades sociais, enxergando também a possibilidade de transformar essa sociedade nos diversos campos específicos que a compõem. Sobre a formação do candidato-professor colocado neste artigo, cabe-lhe tomar consciência de sua identidade, enquanto ser que constrói e incorpora saberes ao longo de sua trajetória pessoal e profissional, apre(e)ndidos na família, na escola e na sociedade, ou seja, antes mesmo de sua entrada no ensino superior. Considerando a atualidade e pertinência dos conteúdos das provas e do possível aparecimento desses conteúdos nos currículos dos cursos de Letras, alguns questionamentos ainda nos inquietam: por que então o baixo desempenho dos candidatos? Será que os egressos dos cursos de Letras e pretendentes a professores de Português via concurso público ainda estão presos ao antigo ensino da língua e dominam mais os conhecimentos relacionados à literatura e à gramática normativa em detrimento dos conhecimentos mais recentes sobre as novas abordagens linguísticas e Betânia Maria Lidington Lins 1360 Provas de Concurso Público para Professores de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco-PE – ausência de interação curricular com os cursos de letras? literárias e as tendências pedagógicas, que veem a língua como interação social e espaço de discussão da realidade e tomada de consciência? Ou será que está havendo uma falha na sua formação inicial, com o distanciamento entre os conteúdos exigidos nas provas dos concursos e os conteúdos dos currículos dos cursos de Letras? Para chegarmos a uma conclusão desse aspecto do desempenho dos egressos de cursos de Letras em concursos públicos, será preciso empreendermos novo trabalho de pesquisa, sob a ótica dessa problemática. Consideramos que há muitas variantes no desempenho de candidatos a concursos públicos, com sucesso ou fracasso, e que comparar os conteúdos programáticos com os conteúdos das provas é apenas uma delas, impedindo-nos, portanto, de tecermos generalizações mais elaboradas. Fizemos apenas um recorte da realidade e, por ora, fica-nos a impressão de que há algo de desconexo entre a realidade da formação dos professores e as exigências de um concurso público, considerando esses dois certames que analisamos. Enquanto pesquisadores sociais, cabe-nos a preocupação de lançarmos um olhar científico sobre as problemáticas aqui levantadas, bem como termos a inquietação própria dos que buscam ir ao encontro das respostas que procuram. REFERÊNCIAS BASTOS, Elisângela. Profissão – professor de matemática. Dissertação (Mestrado em Educação) – UFPE, Recife, 2009. BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: ORTIZ, R. (org.) Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo: ática, 1983. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa. Brasília: Secretaria de Ensino Fundamental, 1997. KRAMER, Sonia. Alfabetização, leitura e escrita: formação de professores em curso. São Paul: Ática: 2001. MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005. Betânia Maria Lidington Lins 1361 Provas de Concurso Público para Professores de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco-PE – ausência de interação curricular com os cursos de letras? NOGUEIRA, Maria Alice; NOGUEIRA, Cláudio M. Martins. Bourdieu & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. PACHECO, José Augusto. Escritos curriculares. São Paulo: Cortez, 2005. SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 12. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2003. _________________. Escola e democracia. 30. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 1995. _________________. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 8. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2003. SILVA, Maria Aparecida de Sousa. A utilização do conceito de habitus em Pierre Bourdieu para a compreensão da formação docente. Revista Extra-Classe, n. 1, v. 2, agosto, 2008. Disponível em: www.sinprominas.org.br/imagensDin/arquivos/483.pdf. Acesso em: 30. ago. 2009. SOARES, Magda. Linguagem e escola: uma perspectiva social. 7. ed. São Paulo: Ática, 1989. TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002. Betânia Maria Lidington Lins 1362 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” ABORDAGEM DA CARTA ARGUMENTATIVA NO LIVRO DIDÁTICO: O ENSINO DO GÊNERO DISCURSIVO Danielle Bezerra de Paula Maria da Penha Casado Alves JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 Abordagem da Carta Argumentativa no Livro Didático: o Ensino do Gênero Discursivo ABORDAGEM DA CARTA ARGUMENTATIVA NO LIVRO DIDÁTICO: O ENSINO DO GÊNERO DISCURSIVO Danielle Bezerra de Paula Maria da Penha Casado Alves Universidade Federal do Rio Grande do Norte RESUMO: Documentos oficiais sobre organização curricular referentes ao ensino de língua materna, como os PCN, versam sobre gêneros discursivos, apontando a imprescindibilidade de sua abordagem na/pela escola. Diante disso, nossa proposta consiste em: a) discutir a perspectiva bakhtiniana de gêneros do discurso; e b) analisar a abordagem de um gênero discursivo em um livro didático de Língua Portuguesa. Na sequência, teceremos algumas considerações, com base, principalmente, nas leituras de Bakhtin e seu Círculo (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2006; BAKHTIN, 1990, 2003, s/d) a respeito das formas típicas de enunciados e escrita dialógica; e nas reflexões teóricas de Schneuwly e Dolz (2004), bem como nas contribuições de Geraldi (1997; 2006) acerca do desenvolvimento da escrita no espaço escolar. PALAVRAS-CHAVE: Gêneros do discurso. Livro didático. Acabamento estético. Carta argumentativa. O enunciado é representado por ecos como que distantes e mal percebidos das alternâncias dos sujeitos do discurso e pelas tonalidades dialógicas, enfraquecidas ao extremo pelos limites dos enunciados, totalmente permeáveis à expressão do autor. (BAKHTIN) 1 Situando a problemática Desde a publicação e distribuição dos Parâmetros Curriculares de Língua Portuguesa realizada pelo MEC, no final da década de 90, os gêneros discursivos passaram a integrar o discurso pedagógico e, a partir disso, ocuparam centralidade nas discussões sobre políticas curriculares de língua materna. Presenciamos, em Danielle Bezerra de Paula & Maria da Penha Casado Alves 1366 Abordagem da Carta Argumentativa no Livro Didático: o Ensino do Gênero Discursivo decorrência, uma diversidade teórica que se desdobra em uma pluralidade metodológica orientadora do ensino dos gêneros do discurso. Observamos que, dentre essa multiplicidade teórico-metodológica, a perspectiva bakhtiniana permeia tal documento através das noções basilares de interação verbal, dialogismo e gênero discursivo, mesmo que implicitamente e combinada a outras teorias, como evidenciamos em uma nota de rodapé – a única referência explícita: “O termo ‘gênero’ é utilizado aqui como proposto por Bakhtin e desenvolvido por Bronkart e Schneuwly” (BRASIL, 1998, p. 26). Pela ampla divulgação dessas diretrizes, os gêneros do discurso, em especial, tiveram entrada nas salas de aula e nos livros didáticos. A problemática fundamental dessa constatação é, entretanto, o dissenso existente entre a abordagem realizada nos livros e as propostas apresentadas no manual do professor. Diante disso, objetivamos: a) discutir as considerações bakhtinianas a respeito de gêneros discursivos; e b) analisar a abordagem de um gênero discursivo em um livro didático (doravante LD) de Língua Portuguesa, a partir de uma concepção dialógica e sociológica da linguagem (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2006; BAKHTIN, 1990, 2003, s/d). 2 Gêneros discursivos na perspectiva bakhtiniana: formas de enunciados Em Os gêneros do discurso, Bakhtin (2003) explica que a heterogeneidade dos diferentes modos de enunciados (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2006) deve-se à multiplicidade de atividades humanas, em razão de ser a linguagem mediadora das práticas sociais. Nessa formulação inicial, o teórico esboça uma “definição” para os gêneros discursivos: estas formas de enunciar atendem a objetivos específicos da interação verbo-social e variam conforme os lugares e as épocas em que ocorrem. Os gêneros, desse modo, refletem as condições de produção de um determinado campo discursivo. Ou seja, essas asserções apontam mais para uma infinidade e uma plasticidade dos gêneros – por sua natureza viva, dinâmica, e social – que, propriamente, para uma limitação e uma imobilidade. Segundo Machado (2005, p. 133), o gênero não pode ser concebido senão como um conceito plural: reporta-se às formações combinatórias da linguagem em suas dimensões verbal e extraverbal. Além disso, articula formas Danielle Bezerra de Paula & Maria da Penha Casado Alves 1367 Abordagem da Carta Argumentativa no Livro Didático: o Ensino do Gênero Discursivo discursivas criadoras da linguagem, de visões de mundo e de sistema de valores configurados por pontos de vista determinados. E, mesmo sendo multiformes as atividades humanas, o filósofo da linguagem defende a necessidade de se estudar os gêneros discursivos, pois se estes não existissem, a comunicação seria quase impossível. Para Bakhtin (2003), é pela experiência que abstraímos tipos relativamente estáveis os quais se configuram por um estilo, ou pela seleção e combinação de recursos expressivos da língua, um conteúdo – um determinado assunto – e uma estrutura composicional, que, em outros termos, pode ser a configuração espácio-textual, o acabamento discursivo. Isso nos conduz a uma pressuposição básica de que simplesmente conhecer as estruturas gramaticais não é garantia de conseguir se expressar adequadamente. Ademais, se é pela experiência que organizamos formas típicas de enunciados, significa dizer que nosso conhecimento dos/sobre os gêneros do discurso amplia e se complexifica quanto mais nos engajamos nas práticas discursivas. Em outras palavras, a verdadeira substância da língua é a interação verbal (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2006). Bakhtin (2003) ainda distingue os gêneros primários dos secundários, de acordo com o nível de elaboração e com as esferas discursivas nas quais circulam, apesar de apresentarem-se sob extrema heterogeneidade. Aqueles são os mais simples e fazem parte da esfera de comunicação cotidiana, como o diálogo corriqueiro. E estes, os de maior complexidade e constituem as esferas de comunicação de códigos culturais mais elaborados, como o romance. Entretanto, como o aspecto fronteiriço compõe os estudos desse teórico, nem sempre a distinção é consensual, tendo em vista que os gêneros secundários (pelo menos a maior parte) absorvem e assimilam os primários. Com base nisso, podemos afirmar que os gêneros se definem contrastivamente porque vivem nas correlações de fronteiras (FARACO, 2009). Ademais, essa heterogeneidade é reflexo das práticas interacionais, pois “a língua passa a integrar a vida através de enunciados concretos (que a realizam); [e] é igualmente através de enunciados que a vida entra na língua” (BAKHTIN, 2003, p. 265). 3 Abordagem de um gênero do discursivo em um livro didático – objeto esteticamente acabado Danielle Bezerra de Paula & Maria da Penha Casado Alves 1368 Abordagem da Carta Argumentativa no Livro Didático: o Ensino do Gênero Discursivo Os gêneros, de acordo com a concepção que adotamos, organizam e materializam as práticas discursivas ao mesmo tempo em que são por estas constituídos. Nesse sentido, as formas típicas de enunciados apresentam uma certa tipicidade1 em decorrência de sua constituição histórica (por esse motivo, percebemos ressonâncias, ecos de seu processo de criação), embora sejam flexíveis às diferentes interações sociais. Isso porque, por serem resultado de uma atividade intersubjetiva – que é sempre contextualizada e se realiza em um tempo e um espaço determinados –, os gêneros do discurso são dotados de valor, de acentuação. Mais uma vez ressaltamos que os gêneros têm funções sociodiscursivas e, por tal peculiaridade, podemos afirmar que não devem ser compreendidos apenas como produtos totalmente acabados, estáveis e impassíveis às mudanças, por vezes necessárias. Uma leitura precipitada e fragmentada dos escritos de 1952-1953, Os gêneros do discurso, além do desconhecimento das especificidades do enunciado podem ser as razões centrais para uma possível fossilização, como o próprio Bakhtin (2003, p. 265) antecipa: O desconhecimento da natureza do enunciado e a relação diferente com as peculiaridades das diversidades de gênero do discurso em qualquer campo da investigação lingüística redundam em formalismo e em uma abstração exagerada, deformam a historicidade da investigação, debilitam as relações da língua com a vida. Soma-se a isso o destaque feito por Faraco (2009a) em relação aos atos singulares, observando precisamente aquilo que, muitas vezes, é secundarizado: “Ao dizer que os tipos são relativamente estáveis, Bakhtin está dando relevo, de um lado, à historicidade dos gêneros; e, de outro, à necessária imprecisão de suas características e fronteiras” (p. 127). As definições dos manuais didáticos e dos guias de redação, porém, seguem um “modelo” formalista – apagando a historicidade e a ligação com o mundo da vida – com a finalidade de sistematizar o conhecimento, mesmo sob o risco de serem reducionistas, limitadores. É o que acontece, por exemplo, com o nosso objeto de 1 Ou seja, na verdade, vislumbramos uma “tipificação social dos enunciados que apresentam certos traços (regularidades) comuns, que se constituíram historicamente nas atividades humanas, em uma situação de interação relativamente estável, e que é reconhecida pelos falantes” (RODRIGUES, 2005, p. 164). Danielle Bezerra de Paula & Maria da Penha Casado Alves 1369 Abordagem da Carta Argumentativa no Livro Didático: o Ensino do Gênero Discursivo análise, a carta argumentativa2, apesar de existirem poucos trabalhos a esse gênero relacionados. Encontramos em um livro didático algumas orientações de como fazê-la a partir do que Cochar e Magalhães (2003) têm chamado de características básicas, quais sejam: Constitui um texto de natureza argumentativa, que tem por finalidade defender o ponto de vista do locutor e persuadir o interlocutor; Apresenta formato constituído pelas seguintes partes: data, vocativo, corpo do texto (assunto), expressão cordial de despedida e assinatura; O corpo é constituído por três partes essenciais: exposição do ponto de vista do autor (ou idéia principal); desenvolvimento (com argumentos) desse ponto de vista; conclusão; Linguagem culta, formal, impessoal, clara e objetiva; Verbos geralmente no presente do indicativo; Predomínio da 1ª ou da 3ª pessoa; Formas verbais geralmente no presente do indicativo e às vezes no imperativo (p. 418). De imediato podemos fazer algumas observações. O primeiro ponto destacado é assaz abrangente, pois, mesmo fazendo parte da constituição da carta argumentativa, ele é também evidenciado no artigo de opinião, por exemplo. O segundo fica restrito aos aspectos formais, provavelmente, um dos motivos pelos quais os alunos, em sua maioria, acreditam que manter o processo de interlocução é totalmente dispensável; desenvolvem, assim, um conceito de gênero somente em seu aspecto estrutural, devendo este, dessa maneira, prevalecer sobre os recursos estilísticos e temáticos. As “partes essenciais” apontadas no terceiro tópico são recorrentes em outros gêneros, especialmente nos de seqüência argumentativa, o que não particulariza a carta. Em seguida, há a sugestão de que tipo de linguagem é mais apropriado a esse gênero, desconsiderando a situação comunicativa e os interlocutores reais, além de anular as variações de formalidade, quando acentua que a linguagem empregada seja a culta, e 2 Selecionamos este gênero por constituir-se nosso objeto de estudo. A pesquisa está sendo desenvolvida em nível de mestrado e está vinculada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da UFRN. O nosso foco é, principalmente, o processo interlocutivo nas cartas argumentativas (produzidas em situação de avaliação, especificamente no PSV) por entender que esse aspecto tem sido pouco investigado. Configura-se, ainda, como recorte de uma investigação maior desenvolvida, sob a coordenação da Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves, pela mesma universidade: “Gêneros discursivos: produção, circulação, leitura e análise em sala de aula”. Danielle Bezerra de Paula & Maria da Penha Casado Alves 1370 Abordagem da Carta Argumentativa no Livro Didático: o Ensino do Gênero Discursivo consolidar a idéia de que somente a impessoalidade garante o distanciamento crítico e confere credibilidade ao que se diz. E, nos três últimos tópicos, a ênfase incorre sobre a forma verbal e pessoa do discurso predominantes, engessando também o acontecimento interacional. Admitimos, contudo, que os gêneros enquanto objetos de ensino sofrem influência do contexto em que está inserido, como apontamos. Neste caso, os limites da escola integram essa prática específica da linguagem, isto é, o espaço-tempo é fator constitutivo e constituinte das práticas discursivas, simultaneamente. Reconhecemos, portanto, que, como a realização de qualquer acontecimento verbal é situada, a composição do gênero não acontece em um vácuo social, tampouco são destituídos de valores, porque os fios que o tecem estão entrelaçados ao mundo ético, ao mundo da ação, dos sujeitos. O conceito de cronotopo, discutido por Bakhtin (1990) em suas considerações sobre o romance, pode ser também aplicado às demais relações que envolvem linguagem nos variados campos de atividade humana. Fazendo uma transposição dessa categoria para os estudos na Linguística Aplicada, especificamente para a esfera escolar, Alves (2009) avalia a relevância de se compreender o cronotopo como elemento indissociável das interações verbo-sociais: o cronotopo não pode ser retirado das relações dialógicas e do axiológico sob o risco de se tornar apenas e tão-somente uma referência a um determinado espaço e a um tempo específico, concebido como exteriores ao indivíduo, não constituinte e constitutivo do sujeito histórico em sua eventicidade (p. 5). Essa explicação dialoga com uma perspectiva sociocultural ou sócio-histórica (FREITAS, 2002, 2007; ROJO, 2006) e discursiva da linguagem que é da ordem do acontecimento, do evento, do inacabamento, do irrepetível, dos sentidos, bem como da ordem da compreensão ativamente responsiva e do posicionamento axiológico. Todavia, e apesar de ser defendido pelo LD uma perspectiva bakhtiniana dos gêneros, as orientações estão limitadas a apenas uma possibilidade, como se houvesse um leitor pré-discursivo. De acordo com as características elencadas, o estudo da carta argumentativa está sendo fundada em sua composição, em sua estrutura. Ademais, está sendo ignorada a dimensão interlocutiva que define, fundamentalmente, os recursos estilísticos, visto que é para o outro que se orienta o discurso e esse outro se insere, Danielle Bezerra de Paula & Maria da Penha Casado Alves 1371 Abordagem da Carta Argumentativa no Livro Didático: o Ensino do Gênero Discursivo inevitavelmente, no momento de produção (GERALDI, 1997). As indicações das quais dispomos no referido LD rompem os vínculos com a situação concreta de comunicação e recusam a base sociológica da linguagem – o principal eixo de análise das discussões do Círculo de Bakhtin3. A causa disso pode ser explicada pelo fato de que o gênero funciona num outro lugar social, diferente daquele em que foi originado, ele sofre, forçosamente, uma transformação. Ele não tem mais o mesmo sentido; ele é, principalmente, sempre [...] gênero a aprender, embora permaneça gênero para comunicar. É o desdobramento [...] que constitui o fator de complexificação principal dos gêneros na escola e de sua relação particular com as práticas de linguagem. Trata-se de colocar os alunos em situações de comunicação que sejam o mais próximas possível de verdadeiras situações de comunicação, que tenham um sentido para eles, a fim de melhor dominá-las como realmente são, ao mesmo tempo sabendo, o tempo todo, que os objetivos visados são (também) outros (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 81). Como objeto ensinável, os gêneros são estáveis e esteticamente acabados, invariáveis aos contextos e aos sujeitos. A carta argumentativa, que poderia ter a intenção de reclamar, contra-argumentar a respeito de um determinado ponto de vista, exigir solução para um problema, etc., deixa de ter essas funções, porque o contexto imediato é outro, é uma prática social com objetivo diferente dos usuais na vida cotidiana – aprender a composição do gênero que passa de formas típicas de enunciados a objeto de ensino, porque o “que é visado é o domínio, o mais perfeito possível, do gênero correspondente à prática de linguagem para que, assim instrumentado, o aluno possa responder às exigências com as quais ele é confrontado” (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 79). Em decorrência dessa instrumentalização da língua, as formas típicas de enunciado perdem sua dinamicidade, sua concretude e sua historicidade. Com base, pois, nas idéias de Schneuwly e Dolz (2004), construímos o seguinte quadro comparativo a partir dos propósitos “comunicar” e “aprender”: 3 Grupo de intelectuais russos que se reuniam, conforme Brait e Campos (2009), do final do século XIX ao início do século XX, para discutir questões relacionadas à filosofia, lingüística, literatura e demais assuntos de interesse na época. Referimo-nos, neste artigo, aos nomes dos pensadores Mikhail Bakhtin e Valentin Voloshinov. Danielle Bezerra de Paula & Maria da Penha Casado Alves 1372 Abordagem da Carta Argumentativa no Livro Didático: o Ensino do Gênero Discursivo GÊNERO PARA COMUNICAR Instável Processa-se na interação verbal Inacabado Interlocutor definido Surge de uma necessidade comunicativa GÊNERO PARA APRENDER Estável Produto de uma interação Acabado Interlocutor indefinido Não surge de uma necessidade específica de comunicação Visualizamos dois pólos de compreensão dos gêneros. De um lado, situado no plano discursivo, compreendemos o gênero associado às suas raízes (SIGNORINI, 1998), em outras palavras, o percebemos como evento ou como forma de enunciado, que está necessariamente vinculado às circunstâncias de produção, circulação e recepção e, por isso mesmo, é instável – porque dependente da interação, o que exige interlocutores definidos –, inacabado, plástico, e, obviamente, decorrente de uma necessidade específica da interação. Do outro, com vistas à aprendizagem, consideramos apenas a estabilidade – o que é recorrente nos acontecimentos verbais –, somente o produto, o que já recebeu acabamento estético em dada situação, e, a partir disso, estendido a qualquer contexto como se os interlocutores fossem sempre idênticos, uma espécie de universalização do destinatário; e, assim concebido, o gênero não surge de uma necessidade comunicativa, isto é, apresenta-se como uma forma pré-discursiva, como objeto esteticamente acabado, anterior à interação, à ação dos sujeitos. Sob a segunda ótica, o gênero resume-se a uma configuração/formatação, motivo pelo qual, especialmente em contexto escolar, os enunciadores se esquecem de projetar seus possíveis interlocutores4 (GERALDI, 2006; BRITTO, 2006) para que, de tal forma, possam adequar – na medida do possível – a linguagem, o estilo. Por isso, as práticas de escrita com finalidade explícita, com clareza de quem seja o interlocutor do texto produzido e das condições de produção, têm tornado o trabalho em sala de aula muito mais significativo, porque propicia ao educando a construção do próprio conhecimento, ele reconhece a singularidade de um evento interacional, mas isso somente é viável quando os alunos são inseridos nas mais variadas práticas de letramento. Dizendo de outra forma, “Escrever bem é resultado de um percurso 4 Isso também se deve ao modo como a prática de produção textual é conduzida na escola. Muitas vezes, nesse contexto, o (único) interlocutor do texto do aluno é o professor que está, na verdade, assumindo uma posição de avaliador (BRITTO, 2006). Danielle Bezerra de Paula & Maria da Penha Casado Alves 1373 Abordagem da Carta Argumentativa no Livro Didático: o Ensino do Gênero Discursivo construído de muita prática, muita reflexão e muita leitura. É uma ação em que o sujeito se envolve de forma total com sua bagagem de conhecimentos e experiências sobre o mundo e sobre a linguagem” (GARCEZ, 2001, p. 6). Brait (2000) reconhece, contudo, a impossibilidade de se fazer uma transposição didática dos gêneros – seguindo a vertente bakhtiniana – de uma forma mecânica, uma vez que, no plano discursivo, pressupõe-se um movimento dialógico, o que implica, necessariamente, um retorno ao já-dito e uma antecipação do ainda não-dito. Isso porque os eventos são marcados pela interlocução, pela tensão de vozes sociais, e porque, entre os enunciados, existem relações dialógicas de graus vários (FREITAS, 2007). 4 Considerações finais A divulgação do conceito de gêneros do discurso tem sido, de fato, ampla e tem possibilitado sua entrada e sua abordagem nos livros didáticos. A problemática, ou a privação sofrida, no dizer de Rojo (2006), que envolve tal divulgação deve-se, como anunciamos, à coerência entre o que se propõe no manual do professor e o que se efetiva nos e por meio dos exercícios. Se a atenção é exclusivamente textual, os gêneros são concebidos como produto, e, por isso, inflexíveis aos objetivos e às contingências; configuram-se, pois, como objetos de ensino-aprendizagem que não têm vida e não implicam resposta, pertencem, assim, ao domínio do estético, mesmo entendendo, neste caso, que esses modos diferentes de discursos não são um simples artefato – cujos elementos, que seriam constitutivos, são externos a si, tais como a história e a cultura –, mas como resultado de uma atividade estética [que] isola (recorta) elementos da realidade, ou seja, do mundo da vida e da cognição, e os transpõe para um plano externo a esse mundo, dando a eles um acabamento (uma unidade intuitiva e concreta) que se corporifica numa forma composicional apoiada, no caso da arte literária, no material linguístico conquistado pelo autor-criador (FARACO, 2009b, p. 104 [grifo do autor]). Vale salientar que, apesar de ser conseqüência de uma atividade de, pelo menos, duas consciências, dois sujeitos situados na história, o gênero – da maneira descrita – é Danielle Bezerra de Paula & Maria da Penha Casado Alves 1374 Abordagem da Carta Argumentativa no Livro Didático: o Ensino do Gênero Discursivo levado a um outro plano e objetivado, apagando-se o devir. O reconhecimento dessa particularidade é essencial para uma proposta diferenciada na escola, aquela que devolva aos alunos o direito à voz. Diferentemente, quando adotado um viés discursivo, a preocupação se volta para o processo de criação dos gêneros, para os valores que atravessam a língua e, por conseguinte, para o mundo da vida – o da responsabilidade dos sujeitos que, por ocupar um lugar insubstituível no universo, devem por ele responder (BAKHTIN, s/d). Não desejamos, com isso, que os gêneros discursivos sejam vistos apenas sob o ângulo de um domínio da cultura humana, em uma condição alternativa – ou cognitivo, ou estético, ou ético. Pelo contrário, aderindo à tripla articulação de Bakhtin (2003) e na tentativa de promover uma leveza de pensamento (ROJO, 2006), somos convidados a pensar em uma integração necessária e responsiva entre ciência, arte e vida, por meio da qual o ser atinge sua unicidade. 5 Referências ALVES, M. P. C. Os gêneros discursivos e o cronotopo da sala de aula. In: VI Seminário Nacional Sobre Ensino de Língua Materna e Estrangeira e de Literatura, 6. (SELIMEL), 4-7 agosto. 2009, Campina Grande. Anais...Universidade Federal de Campina Grande: UFCG, 2009. CD-ROM. ISSN: 2175-6481. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Coleção biblioteca universal) _____. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec, 1990. _____. Para uma filosofia do ato. Trad. de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza, (s/d). BAKHTIN/VOLOCHINOV. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. 12 ed. São Paulo: Hucitec, 2006. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998. BRAIT, B. PCNs, gêneros e ensino de língua: faces discursivas da textualidade. In: ROJO, R. (Org.). A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCN’s. São Paulo: EDUC/Mercado das Letras, 2000. Danielle Bezerra de Paula & Maria da Penha Casado Alves 1375 Abordagem da Carta Argumentativa no Livro Didático: o Ensino do Gênero Discursivo BRAIT, B; CAMPOS, M. I. B. Da Rússia czarista à web. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin e o Círculo. São Paulo: Contexto, 2009. BRITTO, L. P. L. Em terras de surdos-mudos (um estudo sobre as condições de produção de textos escolares). In: GERALDI, J. W. (Org.). O texto na sala de aula. 4 ed. São Paulo: Ática, 2006. CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português: linguagens (volume único). São Paulo: Atual, 2003. FARACO, C. A. Linguagem e diálogo: as idéias lingüísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009a. _____. O problema do conteúdo, do material e da forma na arte verbal. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009b. FREITAS, M. T. A abordagem sócio-histórica como orientadora da pesquisa qualitativa. In: Cadernos de Pesquisa. n. 116, p. 21-39, julho/2002. _____. A perspectiva sócio-histórica: uma visão humana da construção do conhecimento. In: FREITAS, M. T.; JOBIM E SOUZA, S.; KRAMER, S. (Orgs.). Ciências humanas e pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2007. GARCEZ, L. H. do C. Técnica de redação: o que é preciso saber para escrever bem. São Paulo: Martins Fontes, 2001. GERALDI, J. W. Portos de passagem. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. (Texto e linguagem) _____. Escrita, uso da escrita e avaliação. In: GERALDI, João Wanderley (Org.). O texto na sala de aula. 4 ed. São Paulo: Ática, 2006. MACHADO, I. A. Os gêneros e o corpo do acabamento estético. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 2 ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005. RODRIGUES, R. H. Os gêneros do discurso na perspectiva dialógica da linguagem: a abordagem do círculo de Bakhtin. In: MEURER, J. L.; BONINI, A.; MOTTA-ROTH, D. (Orgs.). Gêneros: teoria, métodos, debates. 1ª ed. São Paulo: Parábola, 2005. ROJO, R. H. Fazer lingüística aplicada em perspectiva sócio-histórica: privação sofrida e leveza de pensamento. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). Por uma linguística INdisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Os gêneros escolares – das práticas de linguagem aos objetos de ensino. In: SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. (Orgs.). Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004. Danielle Bezerra de Paula & Maria da Penha Casado Alves 1376 Abordagem da Carta Argumentativa no Livro Didático: o Ensino do Gênero Discursivo SIGNORINI, Inês. Do residual ao múltiplo e ao complexo: o objeto da pesquisa em Linguística Aplicada. In: SIGNORINI, Inês; CAVALCANTI, Marilda C. (Orgs.). Linguística Aplicada e transdisciplinaridade: questões e perspectivas. Campinas: Mercado de Letras, 1998. Danielle Bezerra de Paula & Maria da Penha Casado Alves 1377 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” CURRÍCULO E LINGUAGEM: UM POR FAZER E QUE FAZER NA SALA DE AULA Ester Maria de Figueiredo Souza JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 Currículo e Linguagem: um Por Fazer e que Fazer na Sala de Aula CURRÍCULO E LINGUAGEM: UM POR FAZER E QUE FAZER NA SALA DE AULA Ester Maria de Figueiredo Souza - UESB1 RESUMO: A questão da linguagem vem sendo extensamente discutida nas pesquisas educacionais, atravessando aspectos de identidade, subjetividade da cultura. Nesse cenário, as relações entre currículo e linguagem no contexto escolar tem sido uma centralidade nas pesquisas em educação. Questiona-se qual abordagem conceitual de currículo e de linguagem que se elege para problematizar essa relação. Este estudo assume a concepção teórica da linguagem como forma de interação (Geraldi, 1984) e Bakhtin (1982), a concepção de currículo como suportada nas teorias pós-criticas de educação, Silva(1999). O currículo não é expressão, antes disso, é construção e trabalho que, por meio da linguagem, imprime marcas de subjetividades e cultura. É um dos elementos que compõe redes de interações entre os protagonistas da sala de aula, nos papéis de professores e alunos. Retomando estudos já concluídos e ampliando a investigação, expõem-se questões sobre os limites e interfaces do currículo e da linguagem, entendendo este e essa como práticas de significação, atos do discurso, efeitos de produção de sentido, a fim de se inscrever e polemizar sobre a intrínseca relação entre práticas curriculares e práticas discursivas. Conclui-se apresentando contribuições para a reflexão sobre o discurso pedagógico, indicando a quebra de circularidade desse discurso, apoiando essa análise nos conceitos de práticas discursivas de Michel Foucault, e seus desdobramentos para o currículo, e também, no referencial da linguagem como forma de interação, postulado por Mikhail Bakhtin. PALAVRAS-CHAVE: Currículo. Discurso. Educação. Linguagem. CONSIDERAÇÕES INICIAIS No ano de 19962 conclui dissertação de mestrado que verticalizava estudos sobre práticas discursivas na sala de aula. Em 20033, defendi tese de doutorado, interrogando 1 Doutor em educação. Professor Titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. E-mail: [email protected] 2 SOUZA. E. M. F. Sala de aula: Práticas discursivas no cotidiano. Dissertação de Mestrado. UFBA/FACED, 1996. 3 SOUZA. E. M. F. Pontos para uma teoria do currículo. Tese de Doutorado. UFBA/FACED, 2003. Ester Maria de Figueiredo Souza 1381 Currículo e Linguagem: um Por Fazer e que Fazer na Sala de Aula aspectos acerca da construção de uma teoria do currículo para o segmento da educação de jovens e adultos. Registro, pontualmente, esse dois fatos constitutivos de minha experiência profissional na academia, como ilustração para, nesse espaço de quase uma década, expor, em perspectiva e prospectiva, as minhas incursões sobre currículo e linguagem. Este estudo, de natureza ensaística, é uma reconsideração de aspectos traçados naquela produção científica. Quando afirmo que currículo não é expressão, - conforme resumo desta comunicação - essa declarativa assenta-se na negação da linguagem como expressão do pensamento, no arcabouço estruturalista que orientou e ainda orienta os estudos da linguagem. Quando, também, afirmo que currículo e linguagem são práticas de significação, estou reconhecendo e vivendo a linguagem como constitutiva nos processos de interação verbal, processos esses que ocorrem em tempos e espaços determinados. No continum da formação, das leituras constantes e inquietações dos conceitos trabalhados nas atividades de ensino e nas indagações sobre o currículo que orienta/forma a profissionalidade de licenciados do curso de Letras, busquei/busco construir reflexões sobre essa relação. Dessa focalização, trata este estudo. CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM E DE CURRÍCULO Situamos-nos no mundo mediados por linguagens. Mas, não é a linguagem no sentido lato que nos orienta. É a linguagem, como trabalho constitutivo de e constituído de sujeitos, eivada de ideologia e subjetividades. Quando indicamos escolher trabalhar com esse ou aquele conteúdo de ensino, elaborar objetivos didáticos estamos exercendo o nosso espírito linguajeiro. De igual modo, também quando se recusa a expor conteúdos, (como, por exemplo, a teoria evolucionista e o criacionismo), ou até mesmo debater sobre temas emergentes de direitos humanos. Essa contradição, marcas singulares do modo de agir comunicativo e interativo do sujeito, ratifica a compreensão de que a forma como concebemos um objeto, define a nossa relação objeto/mundo. Grosso modo, o currículo é essa rede de concepções que define o modo e as atitudes que sustenta a práxis educacional, os processos de ensino e aprendizagem no ambiente Ester Maria de Figueiredo Souza 1382 Currículo e Linguagem: um Por Fazer e que Fazer na Sala de Aula escolar. A linguagem é por ela mesma produzida e revificada, sendo a sua essência a incompletude, inconclusão e o inacabamento. Será assim, a concepção de linguagem ou a concepção de currículo que determina o modo como o professor se relaciona com o seu objeto de trabalho? Para o profissional de Letras, a linguagem é o seu objeto de trabalho. Ele disserta, no seu ofício, sobre formas, métodos, práticas de língua/linguagem. Ao mesmo tempo em que é objeto, é por ela que se fala do objeto. Para outros profissionais, a linguagem é apenas meio de se expor teorias, conceitos, equações, etc. Rotineiramente, ao me situar nessa dimensão linguagem/ensino e currículo, sempre sou movida em citar Osakabe (1991) Rezende (1992) e Geraldi (1984). O que esse intertexto e diálogo com esses autores me referenciam? Eles me dizem da linguagem que perpassa o ensino é e por ele atravessado. Citemos,pois: Pensar a educação enquanto linguagem é pensar, portanto, a educação enquanto processo constitutivo (de) e constituído (por) sujeitos. E, como tal, como um processo que tem a densidade, a precariedade e a singularidade do acontecimento. Daí que não se pode pensar num processo educacional consistente sem admiti-lo como tenso, instaurado sobre a singularidade dos sujeitos em contínua constituição e sobre a precariedade da própria temporalidade que o específico do momento implica. (OSAKABE, 1991, p.8 ) E o que nos diz Rezende: A simultaneidade que colocamos acima, dizendo que duas concepções (educação e linguagem) nascem juntas, fica explícita pela não necessidade de uma ordem intrínseca, ou seja, o que vem primeiro a educação ou a linguagem? Embora coloque neste texto a concepção de educação antes da concepção de linguagem, a elaboração da concepção de educação, foi, no meu caso particular, posterior à concepção de linguagem e dela derivada. Poderia ter sido o inverso: a concepção de linguagem derivada de uma concepção de educação. Essa ausência de ordem intrínseca ocorre justamente porque existe um elemento comum que faz a passagem de um Ester Maria de Figueiredo Souza 1383 Currículo e Linguagem: um Por Fazer e que Fazer na Sala de Aula conteúdo para outro. Processos teóricos e metodológicos, entendidos como esquemas formais e operacionais, que permitem a configuração de um conteúdo ou matéria de um determinado modo. (REZENDE,1992, p.153) E Geraldi quando afirma: “Uma diferente concepção de linguagem constrói não só uma nova metodologia, mas, principalmente um novo conteúdo de ensino.” (GERALDI; 1984. p.46). Desse mosaico de citações, extraí-se a centralidade da linguagem com a educação e o ensino. Como elemento presente no cotidiano escolar, há de se concordar que a diferentes práticas curriculares, atrelam-se concepção de linguagem específica. A constante reflexão das leituras desses autores sobre o caráter constitutivo, incompleto, mediador e histórico da linguagem, extrapola o horizontes e impele-me a considerar atos e ações que se processam na sala de aula. Considero os atos de linguagem como enunciados que se especificam quer vinculado a uma ou outra concepção. Assim, esses podem ser tidos equivocadamente como expressão, ou se configurarem como ação e interação. Defino como diretriz teórica o postulado de que o sujeito não expressa ou traduz uma língua, ele a produz em um lugar de interação verbal. Define-se, para a quebra de artificialidade da linguagem e do currículo tecidos nas aulas, a proposta de se adotar uma concepção de linguagem que a considera como: ( ...) forma de interação: mais do que possibilitar a transmissão de informação de um emissor a um receptor, a linguagem é vista como um lugar de interação humana: através dela o sujeito que fala pratica ações que não conseguiria praticar a não ser falando; com ela o falante age sobre o ouvinte, constituindo compromisso e vínculos que não preexistiam antes da fala. (GERALDI, 1984, p. 43) Mikhail Bakhtin (1895 - 1975), filósofo russo, em seu livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, apresentou o subjetivismo idealista e objetivismo abstrato, como correntes lingüísticas, para, ao desconstruí-las, afirmar que : não é a atividade mental que organiza a expressão verbal , mas é “a expressão que organiza a atividade mental, que modela e determina a sua orientação (BAKHTIN, 1982, p 112). Bakhtin inaugura, Ester Maria de Figueiredo Souza 1384 Currículo e Linguagem: um Por Fazer e que Fazer na Sala de Aula pois, um novo modo de objetivar a interação verbal, situando a linguagem como trabalho, contrapondo-se ao subjetivismo abstrato, denotando o caráter materialista da linguagem, conhecida no discurso educacional como concepção socio-intercionista da linguagem, que tem orientado e servido de suporte teórico para o desenvolvimento de pesquisas sobre interação na sala de aula.. Se no ensino de línguas não se deve (é prescritivo?) trabalhar com as formas abstratas de língua, por que o currículo soa e ressoa artificialidade? A centralidade do fazer pedagógico deve partir da real produção da linguagem, dos enunciados concretos4, com uma estrutura puramente social, marcada contextual mente e historicamente. A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através a enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua. (...) Enquanto um todo, a enunciação só se realiza no curso da comunicação verbal, pois o todo é determinado pelos seus limites, que se configuram pelos pontos de contato de uma determinada enunciação com o meio extraverbal e verbal ... ( BAKHTIN, 1982 p. 123 - 125) Geraldi (1991) sintetiza as idéias de Bakhtin ao situar o espaço no qual se dão as interações entre os sujeitos. Não se dão "metafisicamente", sem constrições [...] As sociedades organizam e controlam, numa rede de sistemas, as interações possíveis [...] As interações não se dão fora de um contexto social e histórico mais amplo; na verdade, elas se tornam possíveis enquanto acontecimentos singulares, no interior e nos limites de uma determinada formação social, sofrendo as interferências, os controles e as seleções impostas 4 Conceito tratado por Mikhail Bakhtin. Ester Maria de Figueiredo Souza 1385 Currículo e Linguagem: um Por Fazer e que Fazer na Sala de Aula por esta. Também não são, em relação a estas condições, inocentes. São produtivas e históricas, e como tais, acontecendo no interior e nos limites do social, constroem por sua vez limites novos. (Geraldi,1991, p. 67) Muitos estudiosos das concepções de currículo pós-estruturalista, a exemplo de SILVA( 1991) remete a Michel Foucault contribuições para se problematizar o cenário discursivo da aula. A Foucault é creditado o conceito de práticas discursivas, selecionado e aplicado por mim em pesquisas que desenvolvo, para depreender interações e o jogo discursivo da aula. Assim, cito Foucault Não a podemos confundir com a operação expressiva pela qual um indivíduo formula uma idéia, um desejo, uma imagem; nem com a atividade racional que pode ser acionada num sistema de inferência; nem com a "competência" de um sujeito falante quando constrói frases gramaticais; é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, numa dada época, e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições de exercício da função enunciativa. (FOUCAULT, 1995, p. 136) Em sua aula inaugural no Collège de France, em dois de dezembro de 1970,( (FOUCAULT, 2004 ) indaga sobre procedimentos de exclusão e interdição e disciplinação, que remodelam o falar, o dizer, o enunciar, o próprio discurso sobre o que pode e deve ser falado em determinadas situações sócio-enunciativas. No percurso de complexificar as relações entre currículo e linguagem, pano de fundo deste texto, explicito a categoria de atos de currículo, postulada por Macedo ( 2007) . Nas suas indagações sobre currículo e multireferencialidade, compreende que os atos do currículo são todas as atividades que se organizam e se envolvem visando uma determinada formação, operacionalizadas via seleção, organização, formulação, implementação, institucionalização e avaliação de Ester Maria de Figueiredo Souza 1386 Currículo e Linguagem: um Por Fazer e que Fazer na Sala de Aula saberes, atividades, valores, competências, mediados pelo processo ensinar/aprender ou sua projeção. (MACEDO, 2007, p.38). A apropriação deste conceito de Macedo (2007) estabelece pontes com a concepção sócio-interacionista da linguagem, ao considerar que o conhecimento do mundo resulta de um processo mediado. Nesse sentido, o sujeito e a linguagem são produções sociais, o currículo não é um trabalho a priori, é um ato de currículo, que se dá pelas interações que se processam entre os sujeitos, sofrendo as interferências, modulações, os controles e seleções da situação sócio-comunicativa já estabelecida, que também se sujeita a transgressões e (desconstruções pela produção de novos/outros atos do currículo. As implicações da concepção de linguagem sócio-interacionista para o currículo escolar busca situar o lugar do sujeito no discurso pedagógico, (des)revelar a artificialidade da linguagem, como objeto de ensino. Implica, ainda, em expor a artificialidade do currículo escolar, onde não se configura o espaço de produção, mas de reprodução. Assim, podemos concordar com Geraldi (1991) os alunos não lêem textos, fazem apenas exercícios de compreensão, a leitura que se prevalece é a da voz da professora, e quando ainda, essa voz se mimetiza na do livro didático. É possível que essa artificialidade das aulas de português, também se remeta às outras disciplinas escolares. Em se tratando de currículo e linguagem, a economia de tempo e dos gastos, representa negação da palavra autoral, e assujeitamento do sujeito. Na expansão polissêmica da aula como acontecimento discursivo, a palavra é um trato de coresponsividade entre os sujeitos. Se enuncio, define-se a quem me dirijo, o quem e ao que me reporto.Foucault (1995) imprime à imagem da instituição escolar um “bloco”, com organização espacial arquitetônica e múltiplas dinâmicas discursivas do poder. Para ele, a centralidade não deve estar em saber o que é o poder, ou qual a sua origem, de onde ele provém. Enfatiza a preocupação de saber como o poder se exerce e qual o mecanismo de seu funcionamento na engrenagem dos discursos, efeitos de sentidos. Há também blocos (...) seja, por exemplo, uma instituição escolar: sua organização espacial, o regulamento meticuloso que rege a vida interior, as diferentes atividades aí organizadas, os diversos Ester Maria de Figueiredo Souza 1387 Currículo e Linguagem: um Por Fazer e que Fazer na Sala de Aula personagens que aí vivem e se encontram, cada um com sua função, um lugar,um rosto bem definido – tudo isto constitui um “bloco” de capacidade-comunicação-poder. A atividade assegura o aprendizado e a aquisição de aptidões ou de tipos de comportamento aí se desenvolve através de todo um conjunto de comunicações reguladas (lições, questões e respostas, ordens, exortações. Signos codificados de obediência, marcas diferenciais do “valor” de cada um dos níveis de saber) e através de toda uma série de procedimentos de poder (enclausuramento, vigilância, recompensa e punição, hierarquia piramidal) (FOUCAULT, 1995, p.241). Como denominar esse sistema? No nosso discurso educacional, aplica-se, genericamente, à compreensão de currículo, entendendo-se este como rede de interação de conhecimento e cultura, que se vivifica por meio das interações discursivas entre os sujeitos, assentadas em condições de produção do discurso determinadas e conformadas, sujeitas aos atravessamentos de subjetividades. De tal modo, o currículo escolar produz verdades, mentiras, assentimentos e negações, por fim: é um exercício da palavra. E como Bakhtin (1982) nos questiona acerca da natureza dialógica da linguagem, é imperioso refletir se os alunos e os professores estão de fato exercendo o seu direito de autores e produtores de discurso. Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela se constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro (BAKHTIN, 1982, p. 113). Com essas referências, construí as relações entre currículo e linguagem. Reconheça-se que, como olhar inicial, este texto, não se pretende, nem pretendeu sujeitar o currículo a linguagem ou esse a essa. As referências são tapetes de conhecimento, nos quais podemos nos sentar, deitar ou voar, a depender de nosso afã investigativo. Ante essas considerações até aqui traçadas, registro a necessidade exigência revolucionária de construção e apropriação de uma práxis pedagógica de Ester Maria de Figueiredo Souza 1388 Currículo e Linguagem: um Por Fazer e que Fazer na Sala de Aula cunho interacionista na sala de aula, facultando aos alunos e professores assumirem-se nos papéis de interlocutores da aula, fazendo uso do conhecimento como um bem material, público, de direito de todos, já que só se aprende na medida em que se desloca de si e se abre para o diálogo com o outro e com o mundo, experimentando-se novos modos de construção e de significação do estar no mundo. NA INTENÇÃO DE CONCLUIR Conclui-se o estudo pela necessidade de se instaurar na sala de aula uma prática de interação com a linguagem, a fim de se configurar o currículo escolar como processo cultural e histórico. Para tanto há de se levar em conta a exigência teórica e metodológica de se quebrar com a refletir a artificialidade do currículo e das práticas de linguagem no escola; há de se considerar a necessidade de se compreender a Linguagem e Currículo na perspectiva discursiva. Também, há de se buscar desconstruir a pseudo autonomia da linguagem, quando entendida como nato e essência do humano, visto que esta é processo e produto material, já que a autonomia da linguagem e do currículo é exercida até certo ponto, visto que não é uma produção já acontecida. A delimitação da aula como acontecimento discursivo e do currículo como um dos espaços de materialização do discurso pedagógico, também se impõe considerar. Por fim, sob a perspectiva discursiva, toda discussão sobre currículo e linguagem abarca a compreensão de que se produzem no processo de interação verbal, cunhado por Bakhtin. Reinstalam-se no acontecer da aula as condições de produção do discurso, às quais dizem respeito às situações, aos atos, às falas, aos enunciadores e constituem a base dos processos de interação. Numa relação de interação entre os sujeitos não se dá assenta em bases puramente formais, lingüísticas, estruturais da linguagem. Essa relação supõe um conhecimento mútuo, um compartilhar de significações, que sustenta os encontros entre os sujeitos. O currículo e a linguagem, perspectivados e multifacetados pelo paradigma sócio-interacionista de produção de conhecimento, quebra com a rigidez da práxis educacional. Toda ação humana procede da interação, existe um currículo escolar porque há pessoas que se interagem com saberes, com pessoas e com objetos. Da mesma forma, existe linguagem, porque as pessoas interagem entre si, consigo mesma e com objetos do mundo. As várias maneiras de Ester Maria de Figueiredo Souza 1389 Currículo e Linguagem: um Por Fazer e que Fazer na Sala de Aula substantivar e subjetivar o currículo e a linguagem na sala de aula é o a ação educativa que nos conforta, no sentido, de afirmar, que “ a interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua” ( Bakhtin, 1982, p. 123.). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec.1982. FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Trad Luiz F. B. Neves. São Paulo: Editora Forense Universitária. 1995. FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Aula inaugural do Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 10 ed .Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Ed. Loyola. 2004. GERALDI, J. W. (Org) O Texto na Sala de Aula. Cascavel/PR: Assoeste.1984. GERALDI. J. W. Portos de Passagem. São Paulo: Martins Fontes. 1991. MACEDO, R. S. Currículo, campo, conceito e pesquisa. Petrópolis, R. J: Vozes. 2007. OSAKABE, H. Linguagem e educação. In, Martins, M. H. (org).Questões da linguagem. São Paulo : Contexto. 1991. SILVA, T.T. O currículo como fetiche. A poética e a política do texto curricular. Belo Horizonte: Autêntica. 1999. SOUZA. E. M. F. Sala de aula: Práticas discursivas no cotidiano. Dissertação de Mestrado. UFBA/FACED, 1996. SOUZA. E. M. F. Pontos para uma teoria do currículo. Tese de Doutorado. UFBA/FACED, 2003. REZENDE,T. Educação e Sociedade: o ensino de línguas. Didática. N0 28. São Paulo: UNESP.1992. Ester Maria de Figueiredo Souza 1390 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” POLÍTICA DE CURRÍCULO, PRECONCEITO E ENSINO DE LÍNGUA INGLESA NA ESCOLA PÚBLICA Fabiana Querino Xavier JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 Política de Currículo, Preconceito e Ensino de Língua Inglesa na Escola Pública POLÍTICA DE CURRÍCULO, PRECONCEITO E ENSINO DE LÍNGUA INGLESA NA ESCOLA PÚBLICA Fabiana Querino Xavier RESUMO: Partindo de um processo de observação de aulas e análise de alguns documentos oficiais que regem a educação brasileira, o presente estudo buscará entender as políticas de ensino de línguas na escola pública. O processo de ensino é fator indispensável ao desenvolvimento intelectual humano. O saber possibilita no aprendiz a capacidade de crescimento pessoal no meio social onde vive. A tentativa de levar o saber construído nos centros de pesquisa até o meio social se depara com uma grande ignorância sobre a importância do ensino, tal ação consegue uma considerável invisibilidade na escola pública. O aluno não tem estado convencido da importância de investir nos estudos, estudar uma língua, nem no fato de que o conhecimento de uma língua estrangeira significa exercer a própria cidadania e tomar posse do patrimônio intelectual da humanidade. “São direitos sociais, a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e a infância, a assistência aos desamparados na forma da lei” (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, Art. 6º). Sendo assim, este trabalho buscará através de uma revisão bibliográfica dos documentos oficiais que norteiam o ensino no Brasil e a formação de professores, confrontar os posicionamentos críticos da literatura dos estudos da língua com as reais ações observadas pela experiência entre professora e observadora PALAVRAS-CHAVE: Língua Inglesa, observação, documentos oficiais, formação de professores. Considerações Iniciais Partindo de um processo de auto-avaliação e observação de aulas, o presente estudo buscará entender o ensino de línguas na escola pública e observar as interferências causadas pelo mesmo com referência à construção de competências lingüísticas nos alunos. Este trabalho consta das primeiras análises que constituirão o corpo de minha dissertação de mestrado. Fabiana Querino Xavier 1394 Política de Currículo, Preconceito e Ensino de Língua Inglesa na Escola Pública Neste trabalho será empregada uma metodologia diferenciada, um tripé, ou seja, análise bibliográfica dos estudos críticos da língua, dos documentos oficiais que norteiam o ensino no Brasil, como também a busca de dados em minhas aulas através de observações em conjunto com minha observadora. Deste modo a prática de observação de minhas aulas pela observadora, professora envolvida, e do imediato registro, em uma caderneta destinada a fins de livre escrita, dos pontos relevantes encontrados pela mesma, segue uma discussão a respeito dos dados que eu considero importante e que já tenham sido escritos por mim em um diário profissional, este também de livre escrita. Esta etapa ocorre acompanhada da análise da literatura dos estudos da língua, para que haja um suporte teórico aos estudos que estarão sendo realizados, como também dos documentos oficiais. Este trabalho terá como objeto de estudo as aulas de língua estrangeira, Inglês, realizadas por mim no ensino fundamental em uma escola municipal do município de Guarabira/PB. O Ensino de Língua Inglesa e os Documentos Oficiais O processo de ensino é fator indispensável ao desenvolvimento intelectual humano. O saber possibilita no aprendiz a capacidade de autopromoção e crescimento pessoal no meio social onde vive. Apesar dos fins nobres aos quais se destina a educação, esta tem sido observada e, portanto, aplicada de forma alienada e mal entendida. No que diz respeito mais especificamente ao ensino de Língua Estrangeira, ao aluno de escola pública lhe falta aptidão para adquirir tal conhecimento. Como nos mostra o documento oficial referente à formação de professores do Brasil: É consensual a afirmação de que a formação de que dispõem os professores hoje no Brasil não contribui suficientemente para que seus alunos se desenvolvam como pessoas, tenham sucesso nas aprendizagens escolares e, principalmente, participem como cidadãos de pleno direito num mundo cada vez mais exigente sob todos os aspectos. (REFERENCIAIS PARA FORMAÇÃO DE PROFESSORES, 2002, P. 16). Muito se comenta nos dias atuais sobre a importância do ensino, de estudar uma língua estrangeira e também da necessidade de se trazer os avanços científicos das Fabiana Querino Xavier 1395 Política de Currículo, Preconceito e Ensino de Língua Inglesa na Escola Pública novas reflexões das questões envolvidas no processo de ensino para o espaço escolar. O conhecimento científico precisa deixar o ambiente acadêmico e mergulhar nas reais carências sociais do ensino ao qual se dirige, para isso a escola precisa de políticas de currículo que estejam aptas a ingressar no meio escolar, que garantam o acesso dos alunos a educação. A tentativa de levar o saber construído nos centros de pesquisa até o meio social se depara com uma grande ignorância sobre a importância do ensino, tal ação consegue uma considerável invisibilidade na escola pública. O aluno não tem estado convencido da importância de investir nos estudos, estudar uma língua, nem no fato de que o conhecimento de uma língua estrangeira significa exercer a própria cidadania e tomar posse do patrimônio intelectual da humanidade. Entendendo a cidadania como pertença ativa e passiva, interna e externa de indivíduos em estado nação com direitos e garantias universais em um nível específico de igualdade. “São direitos sociais, a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e a infância, a assistência aos desamparados na forma da lei” (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, Art. 6º), ou como nos afirma a LDB (9.394/96), sendo a mesma a Lei que disciplina a educação escolar: Artigo 1º A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. Artigo 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. O ensino de Inglês como língua estrangeira desta forma deve ser sempre repensado em termos de realidade da escola pública brasileira, tendo como ponto de partida a análise do perfil dos envolvidos neste processo de ensino, contudo o aparecimento de preconceitos inseridos na prática docente, como também a relevância destes no processo de ensino e construção de políticas de currículo. O trabalho educativo requer certas exigências constantes para atualização e aprendizagem de novas temáticas que surgem com o tempo, das mudanças sociais e das necessidades da comunidade onde o professor está inserido. Ao professor da atualidade Fabiana Querino Xavier 1396 Política de Currículo, Preconceito e Ensino de Língua Inglesa na Escola Pública exige-se uma formação continua que complemente, suplemente e aperfeiçoe sua formação inicial. Como elenca Perrenoud (2000, p. 160): Formar-se não é – como uma visão burocrática poderia, às vezes, fazer crer – fazer cursos (mesmo ativamente); é aprender, é mudar, a partir de diversos procedimentos pessoais e coletivos de autoformação. Entre esses procedimentos, podem-se mencionar a leitura, a experimentação, a inovação, o trabalho em equipe, a participação em um projeto de instituição, a reflexão pessoal regular, a redação de um jornal ou a simples discussão com os colegas; Sabe-se cada vez mais claramente que o mecanismo fundamental depende do que se chama agora com Schön (1994, 1996) de prática reflexiva. Neste sentido da prática docente vêm se exigindo algo mais que conhecimentos técnicos e metodológicos do fazer pedagógico, uma prática de observação da própria prática a fim de construir meios, políticas de currículo que favoreçam o desenvolvimento de competências que garantam o sucesso da prática educativa. A força motriz que me motivou a pesquisar tal assunto em minha própria prática está intimamente ligada a frases ditas por mim e cenas vivenciadas - a serem citadas na análise dos dados - no âmbito da escola pública onde exerço a função de professora das séries da educação básica, partindo primeiramente de minha autoobservação. Sobre educação básica assim se refere à LDB (9.394/96): “Artigo 22. A educação básica tem por finalidade desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores”. Ao meu entender a forma como o professor opera o currículo em sala de aula de línguas estrangeiras na escola pública gera preconceito oriundo da compreensão de ensino e de língua possuído pelos próprios professores, este em decorrência de uma ideologia nacional de que o aluno de escola pública é carente de habilidades indispensáveis à aprendizagem de uma língua estrangeira. Isto porque não se considera a importância do fator qualitativo de conhecimento da língua sob o aspecto quantitativo. O ensino para muitos profissionais refere-se ao programa de ensino, a lista de conteúdos de um determinado livro didático, Fabiana Querino Xavier 1397 Política de Currículo, Preconceito e Ensino de Língua Inglesa na Escola Pública e a língua é o fator comunicativo. “A educação pública tem sido descrita como uma escola contra o povo, ao invés de atendê-los.” (SOARES, 1986 p. 20). O problema do fracasso do ensino de línguas é geralmente mascarado pelo fracasso do aluno. Desta maneira a pesquisa sobre os problemas da escola pública muitas vezes toma caminhos diferentes, ou seja, onde há profissionais capacitados e preparados o índice de fracassos, certamente será quase nulo. Sobre a formação dos profissionais da educação assim menciona a LDB (9.394/96): Artigo 61. Os sistemas de ensino promoverão a valorização dos profissionais da educação, assegurando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério público: I-ingresso exclusivamente por concurso público de provas e título; II- aperfeiçoamento profissional continuado, inclusive com licenciamento periódico remunerado para esse fim; II- piso salarial profissional; III- progressão funcional baseada na titulação ou habilitação, e na avaliação do desempenho; V- período reservado a estudos, planejamento e avaliação, incluído na carga de trabalho; VI – condições adequadas de trabalho. O ingresso no cargo de professor na rede pública de ensino deve acontecer mediante a aprovação do mesmo em concurso público, o que de certa maneira comprova os conhecimentos da área que se destina a lecionar, ou seja, “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de títulos, ressalvadas as nomeações para cargo de comissão declarada em lei livre de nomeação e exoneração”. (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, Art. 37) Uma grande questão surge a despeito do sistema de avaliação utilizado em tal aprovação, se são dignos de aceitação científica ou se simplesmente procuram medir conhecimentos acumulados. Ou seja, o que tem estado ausente ou presente no processo de formação de professores de língua estrangeira, que atuam na rede pública, se comprova através de concurso público que são capazes de exercer tal cargo, que lhes tem dado espaço ao surgimento de preconceitos? Entretanto, não se pode desconsiderar que uma formação em nível superior não é, por si só, garantia de qualidade. É consenso que nenhuma formação inicial, mesmo em nível superior, é suficiente para o desenvolvimento profissional, o que torna indispensável à criação de Fabiana Querino Xavier 1398 Política de Currículo, Preconceito e Ensino de Língua Inglesa na Escola Pública sistemas de formação continuada e permanente para todos os professores. (REFERENCIAIS PARA FORMAÇÃO DE PROFESSORES 2002, p. 17). Tem repercutido bastante o preconceito por parte do professor com relação à capacidade de aprender de seus alunos, como também a crença de que existe um aluno ideal proveniente de uma família perfeita, estruturada e organizada, de posse de todos materiais escolares dos quais necessita na escola, bem vestido, comportado e consciente de seus deveres enquanto aluno. Muitas vezes o fato de o aluno de escola pública não ter acesso, ou não possuir a cultura de buscar, aos bens informativos que a classe majoritária detém como: jornais, revistas, Internet e outros geram uma certa crença de que o não acesso de meios que expõem a língua materna pode causar deficiência no processo de ensino de uma língua estrangeira. Em contrapartida há algo realmente importante e que quase não se considera é que enquanto não se tem acesso a certas leituras ele está se apropriando de uma outra linguagem própria de seu contexto social, pois somos seres necessariamente comunicativos, desta maneira não há comprometimento do desenvolvimento cognitivo das competências lingüísticas, tornando-se, pois um aliado do professor que deve ter como base as capacidades lingüísticas, isto é, a linguagem de seus alunos. Uma linguagem diferente não implica em ser deficiente, ou seja, não há razão para se entender uma linguagem diferente como deficiente (LABOV apud LOPES, 1969 p. 68). Observa-se, portanto que tal questão possui proveniência ideológica, onde a classe majoritária da sociedade é tida como modelo perfeito para ser e seguir, possuindo as melhores qualidades e exemplos a serem seguidos. O cunho ideológico dos preconceitos sobre o ensino de línguas na escola pública revela que a escola possui professores com ideologias diferentes das que a escola necessita para fornecer a seus alunos conhecimentos por meio do ensino, ou seja, o preconceito inicialmente considerado lingüístico é ideologicamente social. Assim sendo, o que a escola - enquanto instituição do sistema capitalista – tem feito é impedir o reconhecimento das relações de exploração, colocado para que as classes subalternas acreditem nas suas deficiências que, por serem próprias de sua natureza, as impedem de alterar o processo da história. (LOPES, 1996, p. 70). Fabiana Querino Xavier 1399 Política de Currículo, Preconceito e Ensino de Língua Inglesa na Escola Pública O processo de ensino que o sistema capitalista revela é responsável por, historicamente, fragmentar a sociedade contemporânea em duas classes: a hegemônica e a subalterna, de maneira que se a classe menos favorecida não tem êxito pressupõe-se que a mesma não possui conhecimentos base que determinariam seu sucesso. Os preconceitos ocorridos neste processo explicam parcialmente o não rendimento do aluno da escola pública, ou seja, ocorre uma considerável carência de desenvolvimento intelectual humano. Sendo assim, este trabalho buscará através de uma revisão bibliográfica dos documentos oficiais que norteiam o ensino no Brasil e a formação de professores, confrontarem os posicionamentos críticos da literatura dos estudos da língua com as reais ações observadas pela experiência entre professora e observadora. Análise e apresentação das observações A observação da prática educativa no Brasil ainda é algo muito recente. A maioria dos livros de didática e manuais de educação buscam propor métodos e concepções de ensino generalizadores. A pesquisa na própria prática, vai mais além em sua proposta, buscando aspectos mais abstratos que revelem a identidade da sala de aula em um modo geral e em outro mais específico, características que embora presentes em caráter especial tenham correlação com características globais presentes em qualquer outra sala de aula. Ou seja, em um aspecto geral a sala de aula possui um professor, alunos, contexto, prática docente, metodologias, recursos e outros, e isto é o que deve ser levado em consideração na construção do currículo escolar. A forma dinâmica de estes interagirem em um contexto escolar é o que uma sala de aula possui de identitário e específico. Sob certos aspectos, a escola pode parecer imóvel: um professor, alunos carteiras, um quadro-negro. Às blusas cinzentas sucederam os jeans, aos tamancos, os tênis; há um computador no canto da sala de aula, mas isso pode parecer secundário em relação à permanência de um grupo-classe, de uma relação pedagógica, de uma grade horária, de programas, de lições, de exercícios escolares, de provas, de boletins. (PERRENOUD, 2000, p. 156) Fabiana Querino Xavier 1400 Política de Currículo, Preconceito e Ensino de Língua Inglesa na Escola Pública Levando-se em consideração a especificidade de um contexto escolar, a busca de um gesto apenas generalizador o faria perder sua diferença que vai além do horizonte escolar, que permite uma homologia entre o que a sala de aula possui de específico e geral. O específico constitui o geral e o geral constitui o específico. Uma ‘sala de aula’ não é apenas um conceito fechado, algo determinado para ser o que é, mas sim uma unidade de ensino que pode possuir diferentes interpretações frente à observação e reflexão do professor. “Resta aprender a analisar, a explicitar, a tomar consciência do que se faz”. (PERRENOUD, 2000, p. 160) O processo de formação incial do professor está muito voltado ao ensino de componentes curriculares que lhe garantirão proficiência na área específica de sua licenciatura e se esquece que o professor não apenas necessita de conhecimentos específicos de seu campo de atuação, mas também de conhecimentos didáticopedagógicos, ou seja, os saberes teóricos e práticos deve andar lado a lado, um respaldando o outro, trazendo sentido e eficiência a prática. Conforme sua prática fica estável ou restritiva, seu conhecimento na prática se torna mais tácito e espontâneo. É esse conhecimento profissional que lhe permite confiar em sua especialização. Porém, à medida que os casos reflitam diferenças, ou lhe criem dúvidas [...]. Seu conhecimento profissional acumulado e tácito se mostra insuficiente para dar conta deste caso e são outros os recursos que irá utilizar. Necessita refletir, confrontar seu conhecimento prático com a situação para a qual o repertório disponível de casos não lhe proporciona uma resposta satisfatória. (Contreras, 2002, p. 107-108). O ensino precisa atender a real necessidade dos que procuram à escola. O fato de não existir um único modelo de sala de aula, dispensando assim a descrição e construção de um único método que possa corresponder a todos os lugares e clientela, vem, pois despertar no meio acadêmico e consequentente escolar a prática de observação. Deste modo cada professor pesquisa sobre sua própria prática, buscanndo entendê-la e encontrar soluções para as peculiaridades em seu lugar específico de atuação, sua sala de aula. Sobre observação assim refere-se Roca (2009, p. 162): Com a criação de um canal entre a leitura e a sala de aula, a observação se transformou também em uma prática que contextualizava leituras aparentemente longínquas. A história, entendida como uma evolução da consciência em forma espiralada, Fabiana Querino Xavier 1401 Política de Currículo, Preconceito e Ensino de Língua Inglesa na Escola Pública virou metodologia de trabalho, permitindo entender o que acontecia em sala de aula. As universidades, responsáveis na maioria das vezes pela formação inicial dos educadores, precisam promover uma cultura de pesquisa que alcance o professor ainda aluno para habituá-lo a observar e refletir sobre sua própria prática quando então professsor. A reflexão neste sentido atuará como formação continuada, pois manterá o professor em constante análise e pesquisa de suas ações, conduta e conceitos. Cabe então a academia não fornecer apenas conceitos e receitas prontas, mas a cultura da renovação do que se pensa e do que se faz. Como diz Cavalcanti e Moita Lopes (1991, p. 134): (...) a graduação concluída parece implicar o término do processo de formação do professsor. (...) O professor como qualquer profissional, deveria ter uma educação continuada que propiciasse sua autoformação e que fosse oportunizada de várias maneiras, por exemplo, cursos de extensão, especialização, e pós-graduação oferecidos pelas universidades. A crítica que aqui se coloca ás universidades é que não há planejamento efetivo de apoio ao professor que deixa de ser alunoprofessor. Os cursos de extensão e especialização que existem deixam a desejar uma vez que enfatizam regra geral, conteúdos que não favorecem a discussão da questão da interação professor-aluno (...). A prática de observação deve promover discussões relevantes que contribuam no processo de ensino-aprendizagem, de cunho investigativo e crítico. O professor precisa deixar de ser apenas objeto de pesquisa e passar a ser sujeito, observador e crítico de sua prática. A constante observação precisa iniciar-se de ‘cabeça limpa’ para que preconceitos e hipóteses não venham a contaminar subjetivamente os resultados da pesquisa, manipulando e impondo paradigmas. É preciso focalizar a prática de observação em como o professor provoca a aprendizagem e que políticas de currículo possui, analisar se estas provocam preconceito ou facilitam a aprendizagem de seus alunos e não apenas se os alunos aprendem ou o que aprendem. As citações abaixo revelam a experiência vivenciada por mim juntamente com a minha observadora, comprovando a existência de meus preconceitos no ensino de línguas na escola pública. Fabiana Querino Xavier 1402 Política de Currículo, Preconceito e Ensino de Língua Inglesa na Escola Pública O professor de línguas, quando de escola pública, possui preconceitos referentes à: limitações decorrentes do nível social, forma como o ensino público é visto indisponibilidade de recursos e a incapacidade dos alunos em aprender. Tais conceitos formam um verdadeiro ciclo vicioso, já que, não se promove uma política de formação voltada ao avanço e ao crescimento docente nas instituições as quais pertencem. Ou seja, uma prática que busque vincular a realidade ao que se necessita aprender. Fragmento 1: anotações da observadora. Durante a elaboração do plano de aula a professora se questiona se seus alunos serão capazes de aprender determinado assunto: ”Não sei o que fazer, na escola não há livros de inglês, nem dicionários, além do fato desses alunos não saberem nem Português. Na aula passada houve um aluno que me perguntou o que era ‘boy’. Fico apavorada, pois considero esta palavra tão fundamental, e estou lidando com uma turma de 9º ano do ensino fundamental. No plano anual tem que devo começar o Future, mas ainda estou revisando o verbo to be, pois percebi que eles ainda não o conheciam. Antes do concurso a professora que os ensinava era formada em história, segundo eles só levava músicas e um micro system para a aula. Talvez porque estejam muito ligados a zona rural e suas mentes estejam fechadas para tais assuntos como: aprender uma língua estrangeira. Então, o que faço? Sem livros, sem dicionários, sem alunos para aprender. Sinto-me como se falasse em uma língua estrangeira todo o tempo, pois até quando falo Português sinto que não me entendem”. O ensino de língua estrangeira na escola pública resume-se em aulas de gramática e tradução, podendo este ser decorrente da carência de suporte teórico e prático, como também da incapacidade na resolução de problemas que o mesmo encontra em sala de aula. Os cursos de formação de professores estão desvinculados da real necessidade da escola pública, se tendo como base falta de meios concretos para se obter os objetivos do ensino, com referencia a formação de competências lingüísticas no aluno, como também no não incentivo no avanço do processo de formação do professor. Fragmento 2: Anotações da professora. Fabiana Querino Xavier 1403 Política de Currículo, Preconceito e Ensino de Língua Inglesa na Escola Pública A única coisa que consigo ensinar é gramática, sinto a necessidade de criar algo, como se fosse uma fórmula matemática para eles associarem respostas, ensino inglês (gramática) mecanicamente. Eles precisam através de alguma marca na frase descobrir a resposta correta, porque não conhecem as palavras, o contexto de uso de alguma regra gramatical, faço exercícios de preencher lacunas ou marcar X, às vezes dou um voccabulário prévio com as respectivas traduções ao Português e peço para estudarem (decorarem) em casa e ponho na prova. Sinto vergonha de mim, às vezes, pois não foi isso que aprendi na faculdade, mas não disponho de outros meios, talvez ano que vem tenhamos um DVD e uma TV, mas, então me pergunto como vou elaborar uma atividade se meus alunos possuem este nível. Há uma grande distância entre o que se propõe e o que se facilita ao educador alcançar. Muitas vezes o perfil do “ótimo” professor de línguas revela um ser que obedece e repete as regras de um sistema. Quando não se investe na formação se perde qualidade na educação. Isto não significa palavras, mas sim atitudes. A função de professor é hoje uma profissão muito desvalorizada, não só pelos baixos níveis salariais, mas também pelo tratamento que o professor recebe, seja do poder público, seja da sociedade de forma geral, ainda muito presa à concepção de que o professor é um mero técnico e que ensinar é algo simples, que depende apenas de boa vontade e treinamento. É preciso desencadear ações que viabilizem condições adequadas ao trabalho, carreira e salário, desenvolvimento pessoal e profissional. (REFERENCIAIS PARA FORMAÇÃO DE PROFESSORES, 2002, p. 17). A falta de oportunidade e as barreiras que o professor encontra quando decide estudar e elevar seu nível de conhecimentos seja da própria direção ou até mesmo da representação institucional de uma edilidade, promovem uma série de conflitos internos, os quais interferem na atuação do mesmo na sala de aula, ou seja, o docente perde as razões que lhe instigam a investir na própria profissão. Fragmento 3: Anotações da professora. Sinto que deve haver outros caminhos, sim, mas me falta algo para poder enchergá-los, talvez um curso ou uma orientação mais prática, nas reuniões se fala muito, até Fabiana Querino Xavier 1404 Política de Currículo, Preconceito e Ensino de Língua Inglesa na Escola Pública aconselhei a montarem um projeto de leitura com jornais, revistas e livros da biblioteca, na reunião mencionei o problema que encontro na sala de aula e que culpo, muitas vezes, a falta de conhecimentos prévios dos alunos, de coisas que considero tão fundamental. Falei olhando para os outros professores, e expliquei que isso poderia ajudar em todas as disciplinas, porque aumentaria a capacidade comunicativa, aumentaria a visão dos alunos e os ajudariam a compreender bem mais as disciplinas que estudam, tudo faria sentido para eles. Todos concordaram, mas até hoje não se fez nada, e o projeto que a coordenadora disse que conosco ia elaborar ficou no esquecimento. Pedi autorização para realizar este trabalho e me foi negada, tive que recorrer a secretária de educação, pois a diretora disse: “Não quero este negócio de trabalho de mestrado aqui não, faça em outra escola, você trabalha em outras também, isso me incomoda muito”. Considerações Finais Este trabalho mostrou através de dados de observação de aulas, a existência de preconceitos por parte dos professores em salas de aula de língua inglesa na escola pública e a interferência dos mesmos na construção de um currículo de acesso a escola. Através da análise de documentos que doutrinam o ensino, o conceito de educação, este estudo mostrou a diferença existente entre o que propõe a lei, como se posiciona a literatura do ensino de línguas e o que de fato acontece na sala de aula. Referencias CAVALCANTI, M.C.; Moita Lopes, L.P. Implementação de pesquisa na sala de aula de línguas no contexto brasileiro. Trabalhos de Linguística Aplicada. Belo Horizonte. Scripta CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1988. CONTRERAS, José. A autonomia de professores. São Paulo, Cortez. 2002. LEI DE DIRETRIZES E BASE DA EDUCAÇÃO NACIONAL. Lei 9.394/96. Brasília. 1996. Fabiana Querino Xavier 1405 Política de Currículo, Preconceito e Ensino de Língua Inglesa na Escola Pública LOPES, Luiz Paulo da Moita. Oficina de Lingüística Aplicada: A Natureza Social e Educacional dos Processos de Ensino/Aprendizagem de Línguas. Campinas. Mercado de Letras. 1996 REFERENCIAIS PARA FORMAÇÃO DE PROFESSORES. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília. A Secretaria. 2002. PERRENOUD, Philippe. Dez Novas Competências para Ensinar. Porto alegre. Artmed. 2000. ROCA, Pilar. Relações de simulação e relações de autenticidade no ensino de línguas vivas, in PEREIRA, Regina Celi, e ROCA, Pilar: Linguística aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo. Contexto. 2009. SOARES, M. Linguagem e Escola. São Paulo. Ática. 1986. Fabiana Querino Xavier 1406 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” EVOLUÇÕES DA CIDADANIA: DA CONCEPÇÃO BURGUESA À PERSPECTIVA DE PRÁXIS SOCIAL, DE LIBERDADE DE EDUCAÇÃO PÚBLICA E DE QUALIDADE Fernanda da Costa Guimarães Carvalho JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 Evoluções da Cidadania: da Concepção Burguesa à Perspectiva de Práxis Social, de Liberdade de Educação Pública e de Qualidade EVOLUÇÕES DA CIDADANIA: DA CONCEPÇÃO BURGUESA À PERSPECTIVA DE PRÁXIS SOCIAL, DE LIBERDADE DE EDUCAÇÃO PÚBLICA E DE QUALIDADE Fernanda da Costa Guimarães Carvalho1 RESUMO: O presente trabalho é recorte e, ao mesmo tempo, continuação de uma pesquisa em nível de doutorado, apresentada em 2003 na Universidade Federal do Ceará, que trata da construção curricular de Línguas Estrangeiras – L.E. em escolas públicas de ensino médio em Teresina-Piauí, ausente até 2004, quando foram elaboradas as Diretrizes Curriculares, implantadas em início de 2009. Apontamos as mudanças no processo ensino aprendizagem de L.E ocorridas a partir dos anos 60 do século passado, que acompanharam a transformação da concepção de currículo, embora a visão tecnicista prevaleça, até o momento, nas escolas piauienses. Ressaltamos, ainda, a importância atribuída aos livros didáticos, considerados o currículo formal por parte considerável de docentes, por representarem a base para o planejamento e a prática pedagógica, sem que tenham conhecimento de critérios de avaliação dos mesmos. PALAVRAS-CHAVE: Ensino de Línguas Estrangeiras, Currículo, Livro Didático. Introdução O presente Texto versa sobre a questão da Cidadania na innfância e na adolescência. Compreendemos que a questão do acesso à escola, da universalização do ensino constitui a base na construção da cidadania, particularmente entre crianças e adolescentes pobres. Se não fosse o terreno arisco, no qual a clientela das instituições de ensino público estão inseridas, poderíamos somente dizer que a função da escola é ensinar e propor a discussão das regras que organizam o convívio social dos alunos no espaço escolar, considerando a escola, a sala de aula, como um dos primeiros espaços, de experimentações das atitudes e dos valores humanos. Contudo, este cotidiano, no entanto, necessitará ainda de um outro tipo de comprometimento. Atualmente, nossas crianças e jovens adolescentes são oriundos de 1 Professora Adjunta da Universidade de Pernambuco - FACETEG e Líder do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas e Educação [email protected] Fernanda da Costa Guimarães Carvalho 1410 Evoluções da Cidadania: da Concepção Burguesa à Perspectiva de Práxis Social, de Liberdade de Educação Pública e de Qualidade contextos pobres, violentos, estressantes e neurotizados pela disputa pela sobrevivência na vida em comunidade, em sociedade. Na escola, faz-se necessário desenvolver trabalhos que possibilitem, aos alunos, um ambiente mais livre de preconceitos. Um lugar de experimentação, de reflexões e de aquisição de conhecimentos. Para tanto, o empenho deveria ser em torno de um fazer pedagógico, compartilhado, livre de antigas formulações conservadoras e autoritárias. Neste sentido, o objetivo deste texto é analisar a evoluções da cidadania : da concepção burguesa à perspectiva de práxis social, de liberdade de educação pública e de qualidade Sabemos que a escola é um dos primeiros espaços de experimentação dos valores, dos sentimentos humanos, é um dos poucos lugares, dentro do espaço societário de socialização e multiplicação de conhecimentos. Urge superar os problemas ainda existentes, uma vez que, estudos e pesquisas acadêmicas realizadas nos anos 90, apontavam para uma escola pública com dificuldades em fazer valer o direito à educação pública e de qualidade e assim fortalecer a cidadania. Pesquisadores e Planejadores da Unicef, em seus últimos relatórios referentes aos anos de 1997 a 2003, apontam para a continuidade e a reprodução, sobre nossas crianças e jovens, de velhos padrões de desigualdade, já amplamente discutidos no Brasil. A concentração de renda persiste e é, claramente, influenciada pela cor, pelo sexo e por fatores regionais. Cidadania no mundo moderno Se em Roma o escravo é o homem sem direitos por oposição ao cidadão, na República Moderna, os direitos civis são reconhecidos, são direitos naturais e sagrados do homem. Conforme consagrado na Declaração dos Direitos do Homem da Revolução Francesa, “todos os homens nasceram livres e iguais em dignidade e direitos” (FUNARI, 2003, p.63). Dentro da concepção moderna, podemos cogitar que, na Revolução Francesa, os ideais de ‘igualdade, fraternidade e liberdade’, ampliam, ainda mais, as discussões no que se refere à cidadania. Neste sentido, é um conceito derivado deste momento histórico para designar o conjunto de membros da sociedade que têm direito e decidem o destino do Estado, diz o referido autor. Fernanda da Costa Guimarães Carvalho 1411 Evoluções da Cidadania: da Concepção Burguesa à Perspectiva de Práxis Social, de Liberdade de Educação Pública e de Qualidade Podemos perceber nas idéias de Rousseau (1979) que a concepção de política, de Estado e de sociedade da era Moderna já iniciava um processo de reordenamento. O contrato social substitui o poder dos monarcas, mudando o conceito que, de vontade singular do príncipe, passava para a vontade geral do povo. Assim, o referido filósofo propõe a participação popular. Podemos observar que, de fato, tais perspectivas não aconteceram. No século XVIII e início do século XIX a educação e a cidadania eram muito restrita, uma vez que meninas, mulheres, brancos pobres e negros não estavam nela incluídos. Os ideais de liberdade conviveram com a instituição da escravidão, que duraria até a Guerra da Secessão (1861 – 1865). Como era possível falar em cidadania em um sistema que excluía a maioria absoluta da população e, ainda, estabelecia a propriedade pessoal de um homem sobre outro ? O autor, em questão, afirma que, na verdade, o termo cidadania foi criado em meio a um processo de exclusão: Dizer quem era cidadão – ao contrário de hoje, em que supomos se tratar da maioria – era uma maneira de eliminar a possibilidade de a maioria participar, e garantir os privilégios de uma minoria. Admitir o conceito de cidadania como um processo de inclusão total é uma leitura contemporânea. No entanto, não podemos esquecer que os fundadores da República falavam de igualdade e liberdade para seiscentos mil seres humanos escravizados e analfabetos (KANAL, 2003, p. 144). A partir de então, a legitimidade de uma sociedade hierarquizada, fundada em privilégios de nascença, perdeu a força . A crítica interna dos religiosos da Reforma e a “crítica externa dos cientistas do Renascimento inviabilizaram a continuidade absoluta de uma maneira transcendente de compreender as histórias. O Homem passou não apenas, a traçar o seu destino, mas também, a ter total capacidade de explicá-lo. A decadência da noção de predestinação, de resignação, amplamente definida pelas teorias de São Tomás, pelo Neotomismo, contribuiu com o avanço irresistível da modernidade, emoldurada pelos acontecimentos que se desenrolaram entre a crise da sociedade feudal no século XIV e as revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII, que defenderam outras concepções para a cidadania. Fernanda da Costa Guimarães Carvalho 1412 Evoluções da Cidadania: da Concepção Burguesa à Perspectiva de Práxis Social, de Liberdade de Educação Pública e de Qualidade O princípio da cidadania moderna fundada sobre a idéia de humanidade enfrentou muitas dificuldades de aplicação. Para evitar o despotismo, o princípio republicano consagra a idéia do controle popular pelo sufrágio universal, inspirando-se na visão de soberania popular defendida por Rousseau, que já compreendia a importância da educação para a formação e o desenvolvimento humano e social. Vejamos: nascemos fracos, precisamos de força; nascemos desprovidos de tudo, temos necessidades de assistência; nascemos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer, é - nos dado pela educação (ROUSSEAU, 1979, p.10). Nessa perspectiva, Rousseau considera que para não correr atrás de quimeras, não esqueçamos o que convém a nossa condição. A humanidade tem seu lugar na ordem das coisas; a criança tem o seu na ordem da vida humana; é preciso considerar o homem no homem e a criança na criança. Vejamos o que nos diz o autor em questão: “ensinar a cada um o seu lugar e nele fixá-lo, ordenar as paixões humanas segundo a construção do homem é tudo o que podemos fazer para seu bem-estar” (p. 62). O processo educativo na França tinha como objetivo formar o cidadão. Entre 1762 e 1789, o processo educativo é dominado por uma luta constante e sem tréguas entre a Igreja e o Iluminismo. Entre o clero, havia unanimidade sobre este assunto, pois, embora alguns considerem a Ciência válida na promoção dos negócios humanos, ela precisa de orientação, papel que compete à Igreja, à Doutrina Cristã. A Assembléia do Clero, de 1762, considera que o processo educativo pode ter um competente secular, mas este deve subordinar-se à religião cristã. Com a publicação do livro Emílio2, a luta torna-se mais acirrada de ambos os lados. Todavia, é a ala mais radical do Iluminismo que terá maior força e influência na reformulação do processo educativo, através da legislação e de sua implementação pela Revolução. Nos Estados Unidos, a educação era voltada para o republicanismo. O problema com que os cidadãos da Nova República se defrontam é o problema da identidade nacional. Apesar do termo Estados Unidos, faltava uma base de união real. Para Giles (1987), entre a Declaração de Independência em 1776, e o Tratado de Versailles, em 1783, que a ratifica e assinala o fim da Revolução, a situação não sofre modificação substancial. 2 Livro sobre o processo educativo sem o domínio da Igreja escrito por Rousseau, J.J no século XVIII : Emílio ou da Educação. Fernanda da Costa Guimarães Carvalho 1413 Evoluções da Cidadania: da Concepção Burguesa à Perspectiva de Práxis Social, de Liberdade de Educação Pública e de Qualidade Um dos signatários da Constituição, Benjamin Rush, considerava a educação como pedra de toque da nova sociedade e, em 1795, apresenta um plano para um sistema de educação nacional. A finalidade deste projeto resumia-se na afirmação de que o processo educativo deve tornar as crianças e adolescentes “máquinas republicanas”. Na Rússia, o processo educativo era compreendido como instrumento de controle. Assim registra-se na literatura que: O sistema escolar russo evolui distante das correntes e das forças culturais que convulsionam os grandes centros da Europa. Isso inclui o movimento humanista do século XII, a Renascença e as revoluções religiosas dos séculos XVI e XVII. O impacto de todos esses movimentos sobre a Rússia foi mínimo. Em termos históricos, o país permanecia isolado dos grandes movimentos intelectuais e sociais do restante da Europa (GILES, 1987, p.218). Um dos resultados desse fato é o desinteresse pelo processo educativo. A primeira referência em termos oficiais data, apenas, do final do século XV. Mesmo numa data tão tardia como o século XV, só havia referências à instrução tutorial particular e às escolas conventuais, sob o patrocínio da igreja Ortodoxa. Nas maiores aldeias, a igreja já mantinha escolas primárias. Mas, em grande parte, os esforços em prol da educação foram esparsos e dispersos, sem qualquer tentativa de expandir o processo educativo ou torná-lo um direito. Durante o século XVIII e nas primeiras décadas do século seguinte, a burguesia foi porta-voz do sonho humano de um mundo igualitário, fraterno e livre. O lugar que ocupava a nova ordem social gerou e disseminou a crença de que este sonho se concretizaria na sociedade industrial capitalista liberal. No entanto, em meados do século XIX, o sonho havia acabado. O século XIX, em todas as suas manifestações e fenômenos, é o resultado da dupla revolução que se deu na Europa Ocidental no final do século XVIII: a Revolução Política Francesa (1789 – 1794) e a Revolução Industrial Inglesa, que tem como marco Fernanda da Costa Guimarães Carvalho 1414 Evoluções da Cidadania: da Concepção Burguesa à Perspectiva de Práxis Social, de Liberdade de Educação Pública e de Qualidade a construção, em 1780, do primeiro sistema fabril do mundo moderno, onde o trabalho escravo de crianças e adolescentes pobres, nas fábricas, confiscava o direito à educação e à vida de qualidade, à cidadania na infância e na adolescência pobres. A pesquisa histórica revela que uma política educacional, em seu sentido estrito, como a ação sistemática e permanente do Estado tem início no século XIX e decorre de três vertentes da visão de mundo dominante na nova ordem social: de um lado, a crença no poder da razão e da ciência, legado do Iluminismo; de outro, o projeto liberal de um mundo onde a igualdade de oportunidades viesse a substituir a indesejável desigualdade baseada na herança familiar; finalmente, a luta pela consolidação dos estados nacionais, meta do nacionalismo que impregnou a vida política européia nos séculos XVIII e XIX. Mais do que os dois primeiros, a ideologia nacionalista parece ter sido a principal propulsora de uma política mais ofensiva de implementação de redes públicas de ensino em parte da Europa e da América do Norte, nas últimas décadas do século XIX . Sabemos que o tráfego de negros foi intenso, mesmo considerando as pressões existentes após meados do século XIX, conforme estatísticas relativas ao total de “entradas” ou “importações”: dos livros da alfândega consta que nos anos de 1620, 1621, 1622 e 1623, num quadriênio, só do Porto de Angola foram trazidos para a capitania de Pernambuco, 15.430 “ peças”. A este propósito expressa Carvalho (2004): As crianças brasileiras, negras e pobres, desta época, quando deixavam de ser percebidas como crianças, aos sete (7) anos, já passavam a ser vistos como escravos, portanto, não teriam o direito à educação. A idade era referenciada pela Igreja, quando afirmava que, aos sete anos, a criança iniciava na idade da razão, a idade da consciência e da responsabilidade (CARVALHO, 2004p.74). Por sua vez, o Código Civil, o Código Filipino, mantido em vigor durante todo o século XIX, fixava a maioridade aos doze anos, (12), para as meninas, e aos quatorze, (14) para os meninos. Todavia, era a partir dos sete (07) anos que a criança negra e a pobre ingressavam, não no mundo da escola, mas no mundo do trabalho, na condição Fernanda da Costa Guimarães Carvalho 1415 Evoluções da Cidadania: da Concepção Burguesa à Perspectiva de Práxis Social, de Liberdade de Educação Pública e de Qualidade de “moleque” e aos doze anos, ou mesmo antes, já se constituía, plenamente, como força de trabalho escravo. Sabemos que nem a Independência nem o fim da escravidão significaram o fim das limitações à cidadania dos negros. As revoluções da Inglaterra e da França assinalavam para o mundo em transição:”a vontade coletiva dos homens apontava para novos dias. É a inquietação de uma época de transformação que se aprofunda à medida que ele toma consciência de seu papel de sujeito da sua própria existência” (MARX, 1975, p.37). As velhas ideologias mantiveram fortes influências na América Latina e no Brasil. A desigualdade social não foi superada, as oportunidades de emprego atingiram baixos índices, deixando 1/3 da população com baixa escolarização e desempregada, no final do século XX. A fase de transição ainda não foi terminada, a universalização da educação e da cidadania foi somente iniciada: ela terá pela frente, outras etapas a serem cumpridas; essas envolvem, fundamentalmente, o estabelecimento e a estabilização de padrões de interação política, qualitativamente distintos das regras autoritárias, capazes de institucionalizar a participação dos cidadãos na vida pública, assim como o funcionamento de mecanismos de controle da ação dos que exercem o poder. Cidadania da Contemporaneidade aos dias atuais Sabemos que a sociedade contemporânea é composta de duas classes sociais: a dos proprietários e a dos trabalhadores. Assim, somente os membros da classe privilegiadas são sujeitos de direitos. Para Singer (2003) são os direitos sociais, direitos condicionais vigentes apenas para quem depende deles, para ter acesso à parcela da renda social, condição muitas vezes fundamental para sua sobrevivência física e social. A presença dos direitos sociais na cena política dos trabalhadores, por sua vez, desempenhou papel central na concretização de mecanismos mais amplos de participação da vida pública e na busca por uma divisão mais justa e igualitária da riqueza social. No Brasil, a instauração do mercado livre de trabalho, com a Abolição Fernanda da Costa Guimarães Carvalho 1416 Evoluções da Cidadania: da Concepção Burguesa à Perspectiva de Práxis Social, de Liberdade de Educação Pública e de Qualidade da Escravatura (1888), logo em seguida pela Proclamação da República (1890), não conseguiu avançar muito no que se refere à cidadania, ao direito à educação pública para todos. A nova ordem política consagrada na Constituição de 1891 estendeu o direito de votar e de ser votado a todo cidadão brasileiro do sexo masculino, maior de 21 anos, excetuando-se mendigos, analfabetos e religiosos sujeitos a voto de obediência que implicasse na renúncia da liberdade individual. Podemos, assim, observar que mesmo na sociedade contemporânea, a cidadania sofre restrições, cabendo, apenas, a uma parcela não bastante expressiva de brasileiros. Basta dizer que, na década de 20, as taxas de analfabetismo chegavam a 70%, neste sentido, os direitos civis e políticos eram uma ficção. O Serviço de Estatística educacional da Secretaria Geral de Educação registrava 53,52% de retidos no 1o ano em 1936. Dados do INEP (1941) registram 58,83% de perdas do 1 o para o 2o ano em 1938. Nessa direção Lorenço Filho (1941) referia-se com entusiasmo ao crescimento quantitativo da rede de ensino primário de 1932 a 1939 e expressava duas novas preocupações, em primeiro lugar, com os altos índices de evasão e em segundo, com a repetência que se registrava nos primeiros anos da escola pública primária. Na era Vargas, os direitos foram assegurados em função da categoria profissional a que pertencia o indivíduo, ou seja, somente aqueles que integravam o universo das profissões reconhecidas no sistema. Assim, ficavam excluídos do exercício da cidadania, os trabalhadores rurais, domésticas, autônomos, desempregados, além de todos aqueles que exerciam profissões não regulamentadas como as crianças e os adolescentes pobres e menores de idade que não tinham o direito ao trabalho em detrimento do direito à educação. Tratava-se de uma cidadania regulada, ou seja, eram cidadãos todos aqueles membros da comunidade localizados em qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas por lei. Neste sentido explica Singer (2003): A extensão da cidadania se fazia, pois, por via de regulamentação de novas profissões e ou ocupações, em primeiro lugar, e mediante ampliação do escopo dos direitos associados a essas profissões, antes Fernanda da Costa Guimarães Carvalho 1417 Evoluções da Cidadania: da Concepção Burguesa à Perspectiva de Práxis Social, de Liberdade de Educação Pública e de Qualidade que por extensão dos valores inerentes ao conceito de membros da comunidade. A cidadania está embutida na profissão e os direitos do cidadão restringem-se aos direitos do lugar que ocupa no processo produtivo, tal com reconhecido por lei (SINGER, 2003, p.191). As implicações imediatas desse ponto é clara: seriam pré-cidadãos todos os trabalhadores da área rural, que fazem parte ativa do processo produtivo e desempenham ocupações difusas, para efeito legal, assim como, seriam pré-cidadãos os trabalhadores urbanos em iguais condições, isto é, cujas ocupações não tenham sido reguladas por lei. Podemos notar que a cidadania figurava-se como resultado de lutas políticas, mas dependia da benemerência do Estado. E no que se referia ao direito à educação para a criança e adolescente, os Estados ainda mantinham um relação de negligência, uma vez que somente as crianças negras e pobres eram excluídas, uma vez que os determinantes sociais e econômicos já obrigavam este contingente de pessoas ao trabalho precoce, e às vezes, ilegal. A partir da segunda metade do século XIX, tanto na Europa como na América do Norte implantava-se o ensino público e universal às custas dos cofres públicos, em grande parte devido às exigências da Revolução Industrial. Esta obrigava o próprio Estado a assumir a responsabilidade de erradicar o analfabetismo, pois as tarefas demandavam, ao menos, um mínimo de qualificação para o maior número de trabalhadores possível.. O próprio mercado de trabalho exigia o crescimento do sistema educativo. O crescimento na demanda social faz pressões sobre o processo educativo existente e, no Brasil, é a Revolução de1930 que determinou a formulação dessa nova demanda e modifica o papel do próprio Estado nesse processo. Observemos o autor abaixo referido: A modificação básica é representada pelo impulso sofrido pelo parque manufatureiro que, apesar de débil, passa a ter papel indispensável no conjunto da economia brasileira, Se em 1907 existiam no Brasil 3. 258 estabelecimentos industriais, 150,000 operários e um capital de 666.000 contos de reis; em 1920 estes números haviam aumentado para 13.336, 276 e 1.816.000 (RIBEIRO, 1984, p.101). Fernanda da Costa Guimarães Carvalho 1418 Evoluções da Cidadania: da Concepção Burguesa à Perspectiva de Práxis Social, de Liberdade de Educação Pública e de Qualidade O ensino, nesse momento histórico, mesmo sendo gratuitos não garantia o direito à educação e à cidadania para todos, uma vez que seu principal compromisso era em profissionalizar crianças e jovens para o trabalho nas indústrias. A criança e o adolescente não eram reconhecidos como sujeitos de direito, e sua sobrevivência era, muitas vezes, vinculada a trabalhos no sistema industrial. A educação era considerada em todos os graus, como uma função social e um serviço essencialmente político, que o Estado era chamado a realizar com cooperação de todas as instituições sociais. O restabelecimento do jogo democrático e a elaboração de uma nova Constituição, em 1946, recolocaram em cena os direitos civis e políticos: “os partidos políticos foram reorganizados, com destaque para o Partido Social Democrático Nacional (PSDN), Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), União Democrática Nacional (UDN), e Partido Comunista Brasileiro (PCB), cujo registro foi cassado pouco tempo depois, em 1947, tendo seus deputados perdido o mandato. Para ter certeza do caráter ainda conservador desse período histórico e do seu tênue compromisso com a cidadania, podemos perceber que, além do combate ao Partido Comunista Brasileiro e a seus integrantes, ainda encontramos a lei que garantia o direito de todos os brasileiros ao voto, todavia, deixando de fora os analfabetos que, ainda, eram quase 60% dos habitantes, incluídas as crianças e os adolescentes, em 1950. A esse propósito afirma Ribeiro (1984): O desenvolvimento econômico – social propicia uma diversificação cada vez maior das atividades econômicas, criando mais empregos, quer seja pelas novas especialidades surgidas, como pelo crescimento das já existentes, diversificando a mão de obra e ampliando o setor social médio que é integrado ao processo de desenvolvimento. No entanto, mantém-se a exploração do trabalhador como forma de acumulação (RIBEIRO, 1984, p.134). A queda de Getúlio Vargas e do regime do Estado Novo, em 1945, representam uma oportunidade para a normalização democrática do país. É promulgada uma nova Constituição, em 1946, inspirada em ideais liberais e democráticos, estabelecendo garantias de direitos individuais, o que inclui a livre manifestação do pensamento, a extinção da censura, a livre publicação de livros e periódicos. Proclama-se, sobretudo, a Fernanda da Costa Guimarães Carvalho 1419 Evoluções da Cidadania: da Concepção Burguesa à Perspectiva de Práxis Social, de Liberdade de Educação Pública e de Qualidade inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença. Ainda mais, o cidadão não pode ser perseguido ou privado de nenhum de seus direitos por causa das suas convicções religiosas, filosóficas ou políticas. Esses direitos estão diretamente ligados ao processo educativo, mas a Carta Magna é, ainda, mais específica, quando afirma que se é garantido a liberdade de cátedra, que as Ciências, as Letras e as Artes são livres, mas o direito à educação pública mostrava-se ainda incipiente. A Constituição de 1946 estipulava que à União, cabe legislar sobre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o que resulta na afirmação de que a educação é direito de todos e será dada no lar e na escola. Esta deve inspirar-se nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana. O ensino primário é obrigatório e será ministrado na língua nacional, ou seja, em Língua Portuguesa. No que se refere à cidadania na infância e na adolescência pobres, no século XX não se observa no Brasil o seu fortalecimento. O fato é que o trabalho precoce foi contemplado de fato e de direito. Alguns dispositivos legais foram instituídos, observemos: O primeiro foi o Decreto N. 5.542 de 1 de maio de 1930, que consolidou as leis do trabalho (CLT). Em seguida, foi o estabelecimento do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial e Industrial (SENAC E SENAI). As escolas de aprendizagem ofereciam treinamentos especializados, capacitando a infância e a juventude para a inserção precoce no mundo do trabalho (RIZZINI, 1995, p.139). Durante o governo Goulart (1961-64), a mobilização dos trabalhadores urbanos e rurais assumiu proporções até então desconhecidas, envolvendo sindicatos, ligas camponesas, setores da Igreja Católica, estudantes, intelectuais, sargentos, soldados e marinheiros. Todavia, multiplicavam-se as greves, tal como ocorreu entre agosto e setembro de 1961, quando se exigiu a posse do vice presidente, e no movimento de julho do ano seguinte, em favor da formação do ministério democrático e nacionalista. Para Luca, (2003) todas as manifestações públicas seriam indícios de que diferentes setores sociais desejavam participar, mais ativamente, do debate em torno das grandes questões nacionais. Fernanda da Costa Guimarães Carvalho 1420 Evoluções da Cidadania: da Concepção Burguesa à Perspectiva de Práxis Social, de Liberdade de Educação Pública e de Qualidade O momento que vem em seguida, o golpe de 1964, suprimiu, definitivamente, os direitos civis e políticos, extinguiu os partidos, cassou mandatos, esvaziou o poder legislativo, instituiu eleições indiretas para cargos executivos, impôs forte controle aos meios de comunicação de massa, vigiou, perseguiu e eliminou fisicamente os inimigos do regime autoritário, estabelecendo uma grande diminuição no que se refere à cidadania, ao direito à educação pública e de qualidade. Freire, professor pernambucano, foi exilado nesse período histórico pelo regime autoritário instituído. Ele criou, em 1962, uma proposta de alfabetização libertadora, comprometida com a vida de qualidade e consciente. Seu pensamento consistia num esforço totalizador da práxis humana, buscar, na interioridade desta, retotalizar-se como prática da liberdade, é o autor em questão quem destaca: Em sociedades cuja dinâmica estrutural conduz à dominação de consciências, a pedagogia dominante é a pedagogia das classes dominantes. Os métodos da opressão não podem, contraditoriamente, servir à libertação do oprimido. Nessas sociedades, governadas pelos interesses de grupos, classes e nações dominantes, a educação como prática da liberdade postula, necessariamente, uma pedagogia do oprimido (FREIRE, 1987, p. 09). Para o autor, não existia uma pedagogia para o aluno, mas dele. “Os caminhos da liberdade são os do oprimido que se libera: ele não é coisa que se resgate, é sujeito que se deve autoconfigurar responsavelmente. Assim, A educação proposta era a educação libertadora, incompatível como sistema autoritário instalado no Brasil, no pós 64, e com a educação dominadora instituída por eles. A prática da liberdade só encontrará adequada expressão numa pedagogia em que o oprimido tenha condições de, reflexivamente, descobrir-se e conquistar-se como sujeito de sua própria destinação histórica. A Fundação Mobral foi criada no Brasil de 1969 e, ao contrário da proposta freireana, instituía uma proposta de educação dominadora e desvinculada da realidade. O Movimento Brasileiro de Alfabetização pode ser considerado uma medida de cooptação e contenção do operário. Tratava-se da Lei 5.379, de 15-12-1967, que propunha a alfabetização funcional a jovens e adultos. Fernanda da Costa Guimarães Carvalho 1421 Evoluções da Cidadania: da Concepção Burguesa à Perspectiva de Práxis Social, de Liberdade de Educação Pública e de Qualidade A programação do MOBRAL compreendendo cursos de alfabetização e de educação continuada, foi precedida de uma avaliação das prioridades educacionais, sociais e econômicas do País. “De acordo com as prioridades estabelecidas, o atendimento do MOBRAL incidiu, inicialmente, sobre a população urbana analfabeta e na faixa etária de 15 a 35 anos” (FREITAG, 1980, p. 91). O fato de os militares terem iniciado o fim do autoritarismo pode ser explicado devido ao caráter liberal conservador do governo do general Geisel. De acordo com Carvalho, (2004) havia, ainda, outras razões para a abertura política. O fato é que em 1973 tinha acontecido o primeiro choque do petróleo, isto é, um aumento brusco no preço do produto promovido pela OPEP, Organização dos Países Exportadores de Petróleo. A triplicação do preço atingiu o Brasil com muita força, pois 80% do consumo dependia do petróleo importado. O autor a pouco mencionado, ainda salienta que nesta conjuntura seria melhor para o governo e para os militares promover a redemocratização, “enquanto ainda houvesse prosperidade econômica do que aguardar para fazê-lo em época de crise, quando os custos da manutenção e controle dos acontecimentos seriam muito mais altos” (CARVALHO, 200, p. 174). A liberdade de imprensa garantiu a vitória da esquerda. Tancredo Neves, do PMDB, em janeiro de 1985 venceu as eleições, no entanto morreu, e o seu vice, José Sarney, antigo servidor dos militares, assume a presidência do Brasil. Chegava ao fim o regime militar, apesar de permanecerem resíduos do autoritarismo nas leis e nas práticas sociais e políticas. Apesar de tudo, renasciam os movimentos de oposição e o reordenamento da esquerda fazia surgir, mais uma vez, a esperança de vivenciar, no cotidiano da vida, da sociedade brasileira, a cidadania. A crença generalizada de que chegara o momento de uma vida social igualitária e justa era o cimento ideológico que unia forças e punha em relevo a necessidade de instituir mecanismos sociais que garantissem a transformação dos súditos em cidadãos. Para isto, a constituição determinaria direitos e deveres; o aparelho judiciário, considerado um poder independente, garantiria a cada cidadão a defesa de seus direitos; a imprensa livre ficaria encarregada da denúncia e da crítica dos desvios; as eleições garantiriam a participação popular nas decisões, através da escolha de seus representantes e da rejeição dos maus governantes. Fernanda da Costa Guimarães Carvalho 1422 Evoluções da Cidadania: da Concepção Burguesa à Perspectiva de Práxis Social, de Liberdade de Educação Pública e de Qualidade Para garantir a soberania nacional e popular, que, então, se supunha possível numa sociedade de classe, a educação escolar recebe, segundo Zanotti (1972), uma fundamental missão: a ilustração do povo, ilustração pública universal e obrigatória, a alfabetização como instrumento que atingirá o resultado procurado. A escola universal, obrigatória, comum – e, para muitos, leiga – será, também, o meio de obter a grande unidade nacional. Para a concepção da escola como instituição redentora da humanidade foi um passo pequeno, o que não significa afirmar que os sistemas nacionais de ensino tenham assumido proporções significativas de imediato; ao contrário, do final do século XVIII até meados do século seguinte, a presença social da escola é muito mais intenção de um grupo de intelectuais da burguesia do que realidade. A Constituição de 1988, conhecida como a constituição mais liberal e democrática que o país já teve, merecendo, por isso, o nome de constituição cidadã, não conseguiu, entretanto, efetivar-se na prática. Os problemas econômicos mais sérios como a concentração de renda e a ausência quase absoluta de oportunidades de trabalho, não foram erradicados ou amenizados. E mesmo com todos os avanços políticos, em 1990, ainda tínhamos 8% dos eleitores analfabetos, observemos o que diz este estudioso sobre essa questão: É sabido que apesar da resistência e da reorganização da esquerda brasileira na década de 90, o Brasil era o oitavo país do mundo em termos de produto interno bruto. No entanto, em termos de renda per capita, é a trigésima quarta. Segundo Relatório do Banco Mundial (CARVALHO, 2004, p.207). A cidadania homologada contracena com a desigualdade social que é regional e racial. É ainda o referido autor que diz: Em 1997, um ano depois da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei 9.394/96), a taxa de analfabetismo no Sudeste era de 8,6%; no Nordeste, de 29,4%. O analfabetismo funcional no Sudeste era de 24,5%, no Nordeste era de 56% e no Nordeste rural, Fernanda da Costa Guimarães Carvalho 1423 Evoluções da Cidadania: da Concepção Burguesa à Perspectiva de Práxis Social, de Liberdade de Educação Pública e de Qualidade de 72%. A mortalidade infantil era de 25% no Sudeste em 1997, e de 59% no Nordeste (CARVALHO, 2004, p. 208). E ainda em 1997, esse índice permanecia inalterado. Pior, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a desigualdade econômica cresceu, ligeiramente, entre 1990 e 1998. “Na primeira data, os 50% mais pobres detinham 12,7% da renda nacional: na segunda, 11,2%. De outro lado, os 20% mais ricos tiveram sua parcela da renda aumentada de 62,8% para 63,6% no mesmo período” (CARVALHO, 2004, p.208). Para o autor em questão, o caráter discriminatório e racista, também, combatido legalmente, era alarmante. O analfabetismo, em 1997, era de 90% entre os negros e de 22% entre os brancos; os brancos tinham 6,3% de escolaridade, os negros e pardos 4,3; entre os brancos, 33% ganhavam até um salário mínimo; entre os negros, 58% estavam nessa situação. O mesmo autor demonstra que do ponto de vista da garantia dos direitos civis, os cidadãos brasileiros podem ser divididos em classe: Há os de primeira classe, os privilegiados, os “senhores”, que sempre conseguem defender seus patrimônios. Mas considera que, ao lado dessa elite privilegiada, existe uma grande massa de cidadãos “simples”, de segunda classe, que são a classe média modesta e os trabalhadores assalariados. E, ainda, um terceiro tipo de cidadão, o denominado pela polícia de “elemento”. Na maioria, destaca Carvalho (2004), esses cidadãos, de terceira classe, são invariavelmente pardos e negros, mulheres, analfabetos, ou com educação fundamental incompleta. Os primeiros documentos legais reconhecendo a criança e o adolescente como sujeito de direito no Brasil são: a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente, este último aprovado pelo Congresso Nacional, em junho de 1990. No Estatuto, crianças e adolescentes são definidos, simultaneamente, como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento – justificando, assim, a necessidade da proteção integral e prioritária de seus direitos e por parte da família, da sociedade e do Estado. E no capítulo IV e V, ainda reforça o direito à educação pública e de qualidade. No entanto, é fato, que, hoje, século XXI, as instâncias públicas, ainda, não apresentam condições eficazes para a construção da cidadania na infância e na adolescência pobres. Fernanda da Costa Guimarães Carvalho 1424 Evoluções da Cidadania: da Concepção Burguesa à Perspectiva de Práxis Social, de Liberdade de Educação Pública e de Qualidade Considerações Finais Sabemos que a construção da cidadania, particularmente, na infância e na adolescência pobres, passa pela emancipação da população, pelo reconhecimento, pela garantia e pela divulgação de seus direitos. Observemos o trecho, a seguir: “Trata-se de um exercício constante e necessário à viabilização da democracia, dentro de um processo pedagógico de construção de verdadeiros cidadãos” (DEMO, 1996, p.1). Segundo esse autor, a cidadania é a qualidade social de uma sociedade organizada, sob a forma de direitos e deveres majoritariamente reconhecidos. Assim, pensar em cidadania é pensar, primeiramente, no alargamento deste conceito dado à infância e à adolescência pobres, e entendê-lo como construção cotidiana, praticá-la e apropriá-la como instrumento capaz de reformular a ordem estrutural, a começar pelos interessados, dos desiguais, dos excluídos. A educação não substituiu a ação política, mas lhes é indispensável devido ao papel que desempenha no desenvolvimento da consciência crítica. Ferramenta significativa para o repensar a exclusão social e escolar. Neste sentido, uma pedagogia inquieta e crítica tem por função problematizar o formato do mundo social. A crise do analfabetismo, se não for combatida, exacerbará, ainda mais, a debilidade das instituições democráticas e o pleno exercício da cidadania, principalmente, na infância e na adolescência pobres. Referências BRASIL. Constituições do Brasil: de 1934,1937,1946 e 1967 e suas alterações. Brasília, Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 1986. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Brasília, D..O. . U, 5/10/1988. BRASIL. Lei n. 9394, de 24/12 /1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Nacional. Fernanda da Costa Guimarães Carvalho 1425 Evoluções da Cidadania: da Concepção Burguesa à Perspectiva de Práxis Social, de Liberdade de Educação Pública e de Qualidade CARVALHO, J.M. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Civilização Brasileira, 2004. Janeiro: DEMO,P. Educação e Qualidade. Campinas, Papirus,1995 FUNARI, P.P. A cidadania entre os romanos. In: História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003. PINSKY, J.; PINSKY, B.C. , GILES, R.T. História da educação. São Paulo: EPU, 1997. KANAL. L. Estados Unidos, liberdade e cidadania. In: PINSKY, PINSKY, B. C. História da cidadania. São Paulo: Contexto. 2003. ___ _______. Manuscritos econômico s e filosóficos . Lisbo a: ed ições 70 , 197 5 NUNES,R.C..História da educação no renascimento. São Paulo: EPU – Editora da Universidade de São Paulo, 1980 PATTO, M. H. S. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: TA- Queiroz Editor, 1990. RIBEIRO,M.L.S. História da educação brasileira: a organização escolar. São Paulo:Moraes,1984 RIZZINI, I. (org.). Olhares sobre a criança no Brasil: séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Petrobrás: Ministério da Cultura: USU ED. Universitária: Amais, 1997. ROUSSEAU, J. J. Emílio ou da educação?. São Paulo : DIFEL, 1979. SINGER, P. A cidadania para todos. In: PINSKY, J.; PINSKY, B. C. História da Cidadania . São Paulo: Contexto. 2003. SOARES, E. LDB e Sistema Municipal da Educação. In: Revista ZERON, C. A cidadania em Florença e Salamanca. In: PINSKY, J.; PINSKY, B. C. História da Cidadania. São Paulo: Contexto. 2003. Fernanda da Costa Guimarães Carvalho 1426 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” ASPECTOS CURRICULARES E ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS EM TERESINA-PI Germaine Elshout de Aguiar JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 Aspectos Curriculares e Ensino de Línguas Estrangeiras em Teresina-PI ASPECTOS CURRICULARES E ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS EM TERESINA-PIAUÍ Germaine Elshout de Aguiar Universidade Federal do Piauí RESUMO: O presente trabalho é recorte e, ao mesmo tempo, continuação de uma pesquisa em nível de doutorado, apresentada em 2003 na Universidade Federal do Ceará, que trata da construção curricular de Línguas Estrangeiras – L.E. em escolas públicas de ensino médio em Teresina-Piauí, ausente até 2004, quando foram elaboradas as Diretrizes Curriculares, implantadas em início de 2009. Apontamos as mudanças no processo ensino aprendizagem de L.E ocorridas a partir dos anos 60 do século passado, que acompanharam a transformação da concepção de currículo, embora a visão tecnicista prevaleça, até o momento, nas escolas piauienses. Ressaltamos, ainda, a importância atribuída aos livros didáticos, considerados o currículo formal por parte considerável de docentes, por representarem a base para o planejamento e a prática pedagógica, sem que tenham conhecimento de critérios de avaliação dos mesmos. PALAVRAS-CHAVE: Ensino de Línguas Estrangeiras, Currículo, Livro Didático. Ensinar e aprender Línguas Estrangeiras (L.E.) sempre fez parte da humanidade, seja com finalidades profissionais, pessoais, culturais ou político-ideológicas. Apesar da sua indiscutível importância, os idiomas, como disciplinas formais, têm ocupado, no Brasil, de 1961 a 1996, um lugar desprivilegiado, haja vista que, nas Leis de Diretrizes e Bases (LDB) 4024/1961 e 5.692/711, fica claro o caráter optativo do ensino de L.E. no Ensino Fundamental. Esta situação muda somente com a LDB 9.394/96, quando estabelece nos seus artigos que: Art.26 §5o. Na parte diversificada do currículo será incluído obrigatoriamente, a partir da 5a. série, o ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará a cargo da comunidade escolar, dentro das possibilidades da instituição (grifos nossos). Art.36, inciso III – Será incluído uma língua estrangeira moderna como disciplina obrigatória, escolhida pela comunidade escolar, e uma segunda, em caráter optativo, dentro das possibilidades da instituição. (grifos nossos). 1 Em O ensino de Língua Inglesa (2002) de nossa autoria, é feita uma retrospectiva do ensino de L.E que as situam no contexto educacional. Germaine Elshout de Aguiar 1430 Aspectos Curriculares e Ensino de Línguas Estrangeiras em Teresina-PI Macedo (In OLIVEIRA e ALVES, 2001) afirma que o estudo das disciplinas escolares é um ramo bastante recente na história do currículo. No que se refere às Línguas, particularmente, estas oferecem um vasto campo de pesquisas nesta área e, considerando-se a sua escassez, principalmente no Piauí, ressaltamos ainda mais a necessidade da conscientização de que o seu ensino-aprendizagem deve ser encarado como “um componente humanizador extremamente necessário ao currículo escolar” (SILVEIRA, 1999, p.9). 1 AS MUDANÇAS NO ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS Com a crescente importância do domínio de L.E. no séc. XX, o ensino de idiomas é caracterizado por um grande número de métodos e de abordagens. Em linhas gerais, de acordo com Richards e Rodgers (1986), Brown (1994; 2000) Silveira (1999) e Germain (1993), pode-se afirmar que, até a Segunda Guerra Mundial, era enfatizado o aspecto intelectual do aprendizado de Línguas. Os anos sessenta do século XX, com a ocorrência de mudanças radicais nos planos econômico, científico, social e educacional, inicia-se o processo de transformação no ensino de L.E., tendo como objeto a Língua em si, por meio de estudos de linguistas estruturalistas influenciados por Saussure, como, por exemplo, Fries e Chomsky2. Investigou-se científica e objetivamente o comportamento humano, o que, na lingüística, concretizou-se em um enfoque descritivo da Língua. Com isso, foi colocada a base para o estudo da natureza de L.E, da relação entre a teoria e a prática, os processos cognitivos e psicolingüísticos envolvidos no processo de aquisição/aprendizagem, dentre outros. Widdowson (1980 – aspectos da competência comunicativa, negociação do significado), Krashen (1981 – teoria de input e output, princípios e práticas na aquisição de Línguas), fundamentados em trabalhos iniciados anteriormente por especialistas como, por exemplo, Hymes (1974; funções e desenvolvimento da linguagem), contribuíram de forma significativa para uma visão diferenciada diante do processo 2 Noam Chomsky, ao afirmar que toda criança tem um mecanismo mental próprio com o qual pode acessar um código sintático-estrutural da Língua, concluiu que os indivíduos possuem uma competência lingüística nata que pode ser efetivada em atos de fala→performance. Germaine Elshout de Aguiar 1431 Aspectos Curriculares e Ensino de Línguas Estrangeiras em Teresina-PI ensino-aprendizagem, e fizeram com que o aspecto funcional (ou comunicativo) da Língua surgisse. De acordo com as novas abordagens de ensino, surgiram também diferentes definições de atividades de L.E. Nunan (1990) explica que é necessário integrar-se as atividades comunicativas com as “não comunicativas” (regras gramaticais) pelo fato de significado e forma estarem inter-relacionados, pois usamos diferentes maneiras para expressar diferentes significados. Determinar, portanto, o como ensinar, ou seja, ter conhecimento das atividades que transmitem os conhecimentos de forma que exista construção e não apenas mera transmissão de conhecimento, é uma questão fundamental no processo ensinoaprendizagem de idiomas, associada diretamente aos conteúdos e à metodologia, para a qual vem se buscando o “ideal” com a articulação de diferentes métodos de ensino, como o audiolingüismo3, o behaviorismo4 e o estruturalismo lingüístico 5, agora voltados para técnicas humanísticas, envolvendo emoções e sentimentos, tendo em vista que a dimensão afetiva do ser humano era considerada uma prioridade. Porém, para que o ensino não mais se limite apenas às atividades voltadas principalmente para a explicação das regras gramaticais 6 e traduções, como acontece atualmente na maioria das escolas de Teresina, é necessário observar, também, a concepção de currículo adotada pelos docentes, conforme discutido a seguir. 3 Também chamado de método do exército por tentar formar soldados durante a 2a Guerra Mundial em tempo curto na L.E. Foi sistematizado nos anos 50 por Lado e Fries. Apresenta como características o desenvolvimento da audição e da fala e depois a leitura e escrita, utilizando-se principalmente de repetição e memorização, gramática indutiva, reforço imediato de respostas certas, gravadores e laboratórios de Línguas. 4 Tem como característica principal os condicionamentos aos quais o aluno reage de acordo com os estímulos, reforçando a aprendizagem no esquema estímulo – resposta – reforço. 5 Aprender a Língua significa adquirir estruturas gramaticais mediante de automatismos lingüísticos por meio de exercícios graduados para treinamento da pronúncia dos padrões sintáticos e aspectos gramaticais. O ensino é centralizado no treino das estruturas em nível semântico, e contextualiza a Língua na vida cotidiana das pessoas e nos elementos culturais do país da Língua a ser aprendida. Fundamenta-se na teoria behaviorista. 6 Segundo o coordenador do curso de Letras – Inglês da UESPI, um dos fatores que contribui na ênfase do ensino das regras é a grande quantidade de conteúdos gramaticais “imposta pelas próprias escolas”, o que impede a realização de outras atividades. Germaine Elshout de Aguiar 1432 Aspectos Curriculares e Ensino de Línguas Estrangeiras em Teresina-PI 1.2 AS DIFERENTES PERSPECTIVAS DE CURRÍCULO Apesar de assumir, em nível nacional e internacional, papel cada vez mais importante no contexto educacional, ainda não existe consenso, como afirma Moreira (1997), em relação ao que se deve entender pelo conceito currículo, por este refletir problemas complexos que envolvem uma “construção cultural, histórica e socialmente determinada e por se referir sempre a uma prática condicionadora do mesmo e de sua teorização” (p.12). Existem diversas definições e perspectivas de currículo, que chega a assumir, de acordo com Pedra (1997), uma identidade polissêmica, no sentido de indicar a existência de vários significados que podem distinguir-se um dos outros. Nesse sentido, currículo foi, e ainda é, freqüentemente, definido como série estruturada de resultados buscados na aprendizagem (JOHNSON, 1967), mas também como um intento de comunicar os princípios essenciais de uma proposta educativa de tal forma que fique aberta ao exame crítico e possa ser traduzida efetivamente para a prática (STENHOUSE, 1995). Para Sacristán (1998), o currículo corresponde a uma prática, expressão, da função socializadora e cultural que determinada instituição tem, que reagrupa em torno dele uma série de subsistemas ou práticas diversas, entre as quais se encontra a prática pedagógica desenvolvida em instituições escolares que comumente chamamos de ensino, definição esta que corresponde à nossa concepção de currículo a ser adotada nas escolas de Teresina. Os diferentes sentidos podem ser traduzidos em diversas perspectivas curriculares específicas de L.E, que são, de acordo com Richards (2001) as seguintes: a) Racionalismo acadêmico: caracteriza principalmente o desejo de promover capacidades intelectuais como a memorização e a habilidade de analisar e classificar; b) Eficiência social e econômica: salienta a necessidade prática dos alunos e da sociedade e o papel de um programa educacional em promover alunos produtivos economicamente; c) Reconstrucionismo social: enfatiza o papel que as escolas e os alunos podem e devem desempenhar em identificar injustiças e desigualdades sociais; Germaine Elshout de Aguiar 1433 Aspectos Curriculares e Ensino de Línguas Estrangeiras em Teresina-PI d) Pluralismo cultural: argumenta que as escolas devem preparar alunos a participar de diferentes culturas e não apenas da dominante. A última perspectiva tem merecido, por parte dos educadores, lugar de destaque, e os seus defensores no campo do ensino de Línguas, tais como Crozet e Liddicoat (1999), Phillips e Terry (1999) e Uhrmacher (1993), argumentam que alunos de sociedades multiculturais, como é o caso do Brasil, necessitam desenvolver a sua comunicação intercultural, o que, segundo Richards, significa que um (...) “grupo cultural não é visto como superior a outros e que múltiplas perspectivas representando os pontos de vista de diferentes grupos culturais devem ser desenvolvidos no currículo”7 (Ibid, p.119). Em outras palavras, organiza-se a prática curricular abrindo-se espaço para a cultura do aluno, tomando como ponto de partida as suas experiências, e, atualmente, reconhece-se e valoriza-se o tipo de cultura que se desenvolve na educação e no ensino e que, segundo Sacristán (1998) “obviamente ganha significado educativo através das práticas e dos códigos que a traduzem em processos de aprendizagem para os alunos” (p.9). Nesta mesma direção, McLaren (1997) propõe uma pedagogia que tome os problemas e as necessidades dos alunos como ponto de partida. Considera, de um lado, que a pedagogia baseada na experiência dos alunos encoraja o professor “a analisar as formas de conhecimento dominantes que configuram as experiências dos alunos, (como também procura) dar-lhes a possibilidade de examinarem suas próprias experiências particulares e as formas de conhecimento subordinado” (p. 248) (esclarecimento nosso). Tendo em vista todas as modificações significativas ocorridas a partir de 1970 na área curricular – que refletiram diretamente na metodologia de ensino de L.E – concordamos com a necessidade de avaliações e adaptações à nova realidade de mundo e de sala de aula, a um aluno que necessita e deseja aprender Línguas. Entretanto, nas escolas de Teresina, evidenciamos uma dissociação entre aquilo que o professor ensina e aquilo que o aluno aprende, obrigando a uma redefinição do papel do professor e do 7 (…) one cultural group is not seen as superior to others and that multiple perspectives representing the viewpoints of different cultural groups should be developed within the curriculum. Tradução da pesquisadora. Germaine Elshout de Aguiar 1434 Aspectos Curriculares e Ensino de Línguas Estrangeiras em Teresina-PI conteúdo curricular, que continua, segundo Perrenoud (1995), fragmentado, desconexo, caótico. Para Perrenoud, não são os saberes em si, mas a experiência e a construção das competências resultantes que determinam a formação do aluno. O autor afirma que não existe uma “definição clara e partilhada das competências” (1999, p.19), e que a sua noção designa “uma capacidade de mobilizar diversos recursos cognitivos para enfrentar um tipo de situação” (2000, p.15), que compreendam os aspectos de mobilizar, integrar e orquestrar estes recursos, pertinentes a situações específicas, o que requer, por sua vez, operações mentais complexas, sendo que as competências profissionais8 constroem-se tanto durante os processos de formação como “ao sabor da navegação diária de um professor, de uma situação de trabalho à outra” (Id.ibid.). É natural que, neste cenário, a perspectiva curricular do racionalismo acadêmico ceda lugar para o reconstrutivismo e/ou o multicultural, e que ele seja visto de forma espiralar e não mais linear, haja vista que, a partir dos anos noventa do século XX, o currículo inclui, segundo Moreira (1997) planos e propostas (currículo formal), prática efetiva escolar (currículo real), e regras e normas não explicitadas, que governam as relações que se estabelecem nas salas de aula (currículo oculto). Transportando estes múltiplos aspectos para o ensino de Línguas, deve ser observado, como descreve Germain (1998), o SOMA, formado por quatro aspectos fundamentais no ensino de Línguas: Sujeito, (aluno); Objeto (Língua); Meio (local das relações didáticas e ensino-aprendizagem) e Agente (professor e materiais) que devem ser incluídos nos princípios norteadores de uma proposta curricular. Percebe-se, portanto, que a “nova” concepção de currículo levará, conseqüentemente, a modificações drásticas nas relações entre professores e alunos, pois terão de ser revistos os objetivos do ensino, as diferentes posturas de professores e alunos, as formas de transmissão e construção dos conhecimentos. Essas relações implicarão, segundo Doll (1997), “ (...) menos no professor instruído que informa os alunos não instruídos e mais em um grupo de indivíduos interagindo juntos na mútua exploração de questões relevantes” (p.19). 8 A noção de competência, fortemente presente nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN, segue a tendência atual em orientar os currículos baseados na construção de competências desde a escola fundamental, e adquire um caráter primordial, quando analisamos Tanguy (1997) que afirma ser necessário, ao definirem-se os programas de ensino, fazer “a lista de competências exigíveis, implicando a aquisição de saberes e savoir-faire correspondentes, levando-se em conta a capacidade de assimilação dos alunos e assegurando-se da possibilidade de fazer o que é proposto” (p.36). Germaine Elshout de Aguiar 1435 Aspectos Curriculares e Ensino de Línguas Estrangeiras em Teresina-PI Sob este aspecto, é necessário que o professor de Línguas tenha uma visão clara da importância de sua postura frente ao ensino-aprendizagem de idiomas. Para isto, é também importante que os currículos dos cursos de Licenciatura em Letras – L.E., sejam (re) pensados para preparar os alunos a enxergarem, durante a sua formação, criticamente o seu papel e saber tomar decisões que requerem capacidade de inovações pedagógicas, e, como afirma Celani (1996) “partilhar a Língua e a cultura dos alunos para estar habilitado a funcionar adequadamente como professor em um contexto da aprendizagem de trocas culturais” (p.31). Ao analisar os conceitos e o cenário descritos, foi interessante observarmos o que os professores e alunos formandos das universidades, bem como os professores das escolas públicas estaduais de Ensino Médio entendem por currículo, já que sua visão se traduz na prática de sala de aula. Para os professores universitários, o currículo é um conjunto de disciplinas e/ou matérias, organizadas de forma a dar melhores condições possíveis de aprendizado aos alunos; um programa que tem por finalidade definir os propósitos educacionais de um determinado curso, de acordo com as necessidades sociais, econômicas, políticas, sociais e individuais dos educandos; disciplinas que constituem uma gradação; é todo o conteúdo a ser ensinado/cursado; a descrição dos conteúdos do curso a ser ministrado e a ordem em que eles devem ser trabalhados. Também para os alunos concludentes, o currículo é o conjunto de disciplinas que deverão ser estudadas; o conjunto de disciplinas/ matérias que formam o curso; as disciplinas que devem ser cursadas dentro do seu curso; o programa de desenvolvimento de todo o trabalho feito ou ainda a ser feito; as disciplinas que norteiam toda a prática acadêmica durante um determinado espaço de tempo; todo um quadro de disciplinas; uma grade com disciplinas; é a distribuição, a organização das disciplinas; uma grade de disciplinas ou atividades; a estrutura que engloba todos os assuntos a serem trabalhados, ensinados na sala de aula; uma gama de conteúdo especifico; uma grade de conhecimentos; o leque de disciplinas; uma trajetória que devemos seguir. Germaine Elshout de Aguiar 1436 Aspectos Curriculares e Ensino de Línguas Estrangeiras em Teresina-PI Percebemos que, tanto para os professores como para os alunos formandos, mesmo com a publicação dos PCN e de todas as discussões a respeito de currículo, as suas percepções ainda estão intimamente ligadas à ideia formal e tecnicista de currículo e não à real ou à oculta, pois, a não ser uma única pessoa, que se referiu à “trajetória”, nenhuma outra considerou as relações ou a prática e/ou a experiência como sendo ponto de partida do currículo. Apesar de citarem conceitos também apontados pelos outros participantes, as definições de currículo dos professores das escolas públicas, no geral, diferiram das dos outros participantes, pois a experiência dos alunos, o contexto, a relação teoria/ prática, o planejamento e a ação aparecem com mais freqüência, e eles consideram o currículo sendo: O conjunto de disciplinas ou assuntos que compõem a grade de uma matéria de um determinado curso. Em um sentido mais amplo, engloba toda a experiência e conhecimento que construímos ao longo da vida; uma série de conteúdos a serem transmitidos ao aluno, mas com base na experiência cultural de cada um e o contexto em que ele está inserido; uma programação segmentada que deve atender às necessidades do aluno e que se enquadre às novas mudanças, que desperte o aluno como cidadão do mundo; um conjunto, a soma de conhecimentos; um método ou forma de organização da grade escolar; o modo como está organizada a grade curricular da escola, das disciplinas; a seleção de pontos positivos para o futuro; um elo entre a declaração de princípios gerais e a sua tradução operacional, entre a teoria educacional e a prática pedagógica, entre o planejamento e a ação; a organização coletiva de conteúdos feita de maneira interdisciplinar e contextualizada, observando as necessidades reais dos alunos; a matriz curricular que é composta de base comum e parte diversificada; uma graduação necessária para uma formação profissional; todos os conteúdos da grade curricular; tudo o que deve ser trabalhado em sala de aula. Enquanto para nós o currículo é um projeto flexível, com base no qual são sugeridos os conteúdos gramaticais e de assuntos, integrando necessidades, experiências reais e Germaine Elshout de Aguiar 1437 Aspectos Curriculares e Ensino de Línguas Estrangeiras em Teresina-PI habilidades linguísticas, vimos que, para a maioria dos participantes, a ideia de programação, organização, seleção, distribuição de conteúdos prevalece ao referirem-se a currículo, que, no caso, significa dizer que, para eles, existe apenas o currículo formal. Não nos posicionamos contra a ideia de organização e distribuição, mas discordamos da forma linear e unilateral como ela ocorre nas escolas, e mister se faz admitir que o currículo não é um pacote de conteúdos e materiais ou um resumo básico a ser cumprido, mas que deve ser encarado, de acordo com Stenhouse (1995), como uma tentativa de comunicar os princípios essenciais de uma proposta educacional, que esteja aberta a exames críticos para que possa ser traduzida para a prática. É fundamental, portanto, que se trabalhe com um currículo elaborado a partir de uma visão crítica, que rompe o silêncio e resgata o discurso dos alunos e professores (SILVA,1998), e que o docnete tenha sempre em mente as necessidades dos alunos, ao colocar as questões básicas de por que os alunos precisam aprender a L.E.; como e onde ela poderá ser usada, com quem eles falarão a Língua, e, ainda, quais as atividades a serem desenvolvidas, questões essas que estão diretamente ligadas ao currículo e à prática docente no ensino de idiomas. Não obstante se discutam, em nível nacional e internacional, modificações qualitativas no ensino de Línguas (HICKS, 1998; KELLEY, 1997; LUCAS, 1999; ALMEIDA, 1999; REIS, 1998, dentre outros), que envolvem renovações de conteúdos, reavaliações curriculares, além das inovações pedagógicas com base nas novas tecnologias da informação e de comunicação, aos professores em Teresina é apresentado, até o momento, um “programa”, que corresponde, na verdade, a uma lista padronizada e descontextualizada de conteúdos fragmentados e repetidos a serem trabalhados a cada série, cumprindo uma função meramente reprodutiva, sem visar a um trabalho integrado. Constatamos que os professores9 utilizam o livro didático fielmente, no sentido de seguirem, frequentemente de forma irrestrita e sem critérios, os conteúdos apresentados nestes, que acabam norteando os planejamentos bimestrais e anuais, e, neste contexto, podemos afirmar que, para os docentes, o livro representa o currículo formal, o que justificou uma análise dos distribuídos em Teresina-Piauí. 9 Durante a pesquisa de campo da nossa coleta de dados constatamos que todos os professores fazem o seu planejamento de acordo com as unidades do livro didático adotado, geralmente as duas primeiras unidades correspondendo ao primeiro bimestre, as próximas duas ao segundo e assim por diante. Germaine Elshout de Aguiar 1438 Aspectos Curriculares e Ensino de Línguas Estrangeiras em Teresina-PI 2 O LIVRO DIDÁTICO Existe uma grande variedade de livros didáticos para o ensino de Línguas, que, como sabemos, na maioria das escolas, tanto públicas como privadas, muitas vezes representam o único recurso. Apesar de sofrer inúmeras críticas, o livro didático já foi, como analisa Coracini (1999) internalizado e, segundo a autora, “ninguém conseguiu apresentar algo que rompesse radicalmente com as atividades possíveis de serem encontradas em livros comercializados” (p.37).10 Silva (2001) afirma que, por um lado, o livro é um meio para atingir os objetivos, e alerta, ao mesmo tempo, que o professor, ao transformar esse meio em fim, perde a essência do seu saber. Portanto, torna-se necessária uma avaliação criteriosa para escolher o material adequado aos objetivos estabelecidos e ao nível lingüístico, social e cultural dos alunos; para tanto, Sheldon (1987) escreve que, ao analisar o material didático, o professor deve observar principalmente se a sua concepção de Língua e/ou ensino-aprendizagem está em consonância com a do autor do livro didático. Neste sentido, deve, antes de escolher o livro com que irá trabalhar, primeiramente definir a sua noção de Língua, que pode ser concebida como um código ou sistema de sinais autônomos, fonológicos, sintáticos e lexicais, sem considerar a realidade lingüística dos alunos, característica do Método Tradicional, ou como sendo estruturada em vários planos no processo de enunciação, compreendendo os fenômenos cultural, histórico e cognitivo dos falantes, como sugerem, também, os PCN. 2.1 A ESCOLHA DO LIVRO DIDÁTICO PELOS PROFESSORES DA REDE ESTADUAL E ALUNOS FORMANDOS Principalmente o profissional ainda inexperiente deve ser cauteloso ao escolher o material com o qual irá trabalhar, e o seu trabalho “será muito mais fácil se ele puder usar um livro didático que reflita seus objetivos e o método que adotou para atingir esses objetivos”, conforme analisa Rivers (1975, p.363). Além da noção de Língua, de ensino-aprendizagem e dos conhecimentos pessoais, outros critérios devem ser respeitados como aspectos importantes no livro 10 Segundo Coracini, os livros didáticos constituem 33,5% do total de livros produzidos no país, perfazendo um total de 99% do mercado editorial brasileiro. Germaine Elshout de Aguiar 1439 Aspectos Curriculares e Ensino de Línguas Estrangeiras em Teresina-PI didático ao selecionarem-se textos novos que serão trabalhados no ensino de Línguas. Para isto, o professor deve ter conhecimento dos diferentes tipos de textos, como explicam Cassany, Luna e Sanz (2000), e que são os seguintes: Os apropriados: é o critério mais importante, pois define se os textos trabalhados em sala de aula correspondem às necessidades comunicativas, aos interesses e conhecimentos lingüísticos dos alunos; Os variados: a diversidade e variação dos textos devem ser levadas em consideração, pois temas e características lingüísticas variadas e diferentes autores, são mais enriquecedores; Os autênticos: são aqueles extraídos do cotidiano, que contêm uma linguagem atual e viva, que tratam de temas atuais, mas não são adaptados ao nível dos alunos, o que, considerando-se a deficiência lingüística dos alunos com os quais trabalhamos, representa uma das maiores dificuldades; Os preparados: são criados para finalidades didáticas específicas, e não têm a espontaneidade dos autênticos; Os completos: o ideal é trabalhar com textos completos e não fragmentados, como ocorre freqüentemente, para que não percam a unidade textual e a globalidade da comunicação. Para orientar os (futuros) professores na escolha do livro, levantamos, com base em Sheldon, St.John e Rivers, os seguintes aspectos considerados mais importantes: Critérios externos: referem-se à acessibilidade do preço; à adequação do tamanho; à qualidade das ilustrações, ao material de acompanhamento, como CD-ROM, caderno de exercícios, DVD e à qualidade do papel; Critérios lingüísticos: compreendem o tipo de linguagem, como o seu estilo, o nível de dosagem do vocabulário, bem como a sua adaptação à faixa etária dos alunos; a densidade, ou seja, a complexidade e progressão apropriada da linguagem; a seqüência, consistência e relevância dos conteúdos; a atualidade, autenticidade, o valor representativo a contextualização e o tamanho dos textos; a apresentação da gramática, seja por meio de estruturas ou por competência e atuação; Critérios didático-metodológicos: dizem respeito aos objetivos, como, por exemplo, desenvolver as quatro habilidades lingüísticas, as regras gramaticais ou apenas a leitura; Germaine Elshout de Aguiar 1440 Aspectos Curriculares e Ensino de Línguas Estrangeiras em Teresina-PI à metodologia, caracterizada como Tradicional, Audio-lingual ou de Leitura; à variedade, interatividade, à clareza, integração das habilidades comunicativas e à duração das atividades; à forma de avaliação; e, ainda, aos modelos culturais predominantes . Ao considerar o papel atribuído ao livro pelos próprios professores, foi interessante observarmos as opiniões dos 250 alunos do Ensino Médio participantes deste estudo a respeito do livro didático de Língua Inglesa: Alunos do 1O Ano: de 97 alunos, 49% afirmaram utilizar livro didático ou xerox deste. Desse total, 10% o consideraram ótimo, por “adotar vários assuntos, do tipo verbal e gramatical”; por nele encontrarem “coisas atualizadas”; por “ter vários exemplos”; por “ser completo”; por “facilitar a explicação do professor” e por “oferecer a qualidade necessária”. 21% afirmaram o livro ser bom por “ensinar o necessário”; por ter “textos ótimos e assuntos de fácil entendimento”; por “explicar bem os assuntos”; por ter “muitos exemplos e ter vários textos e exercícios”; por ter “os assuntos necessários”. Foi elevado o percentual – 57% – de alunos classificando o livro como razoável, isto porque, para a maioria, ele “apresentava poucos conteúdos, que são resumidos e os textos deveriam ser mais dinâmicos”; por “só explicar o básico, nem sempre vem completo”; por ser “incompleto, principalmente com relação à gramática”; por a parte gramatical “ser um pouco atrasada”; por “ter poucos exemplos” e por “não ter boas explicações”. Alunos do 2O Ano: nestas séries ficou visível a dificuldade financeira dos alunos, pois apenas 4 alunos, ou 6% dos 67 desta série tinham livro didático. Desses, 2 o consideraram bom por ele “ajudar nas tarefas de casa” e por “ter todos os conteúdos”. Os outros dois escreveram que ele era razoável por “ser muito resumido” e que ele “deveria ter mais assuntos e traduções”. 79% declararam utilizar xerox ou apostilas, e 25% apenas o caderno para copiar os assuntos do quadro, sobre os quais não manifestaram suas opiniões. Alunos do 3 O. Ano: 52% dos 86 alunos tinham livro didático, e 50% o consideraram bom por trazer “o necessário para sabermos”; por “ser completo e de fácil entendimento”; por “ter bastante ilustrações, com todos os conteúdos indispensáveis”; por “estar dentro dos padrões pedidos”; por “ter figuras e explicações em português”; Germaine Elshout de Aguiar 1441 Aspectos Curriculares e Ensino de Línguas Estrangeiras em Teresina-PI por “ter assuntos interessantes e foi nele que eu aprofundei mais os meus estudos”; por ser “bem elaborado, fácil de se trabalhar e ter todos os assuntos necessários”; por “ajudar na compreensão da matéria”, dentre outros. 36% dos alunos que acharam o livro razoável declararam que ele “apresenta poucas atividades e textos complicados”; “não retrata com clareza os assuntos que precisamos”; “é muito confuso, deveria ser mais explicado e a linguagem deveria ser mais fácil”; “os assuntos são muito repetidos”; “os textos não são bem definidos e são chatos de traduzir”. Cinco alunos o classificaram como péssimo por ele ser resumido demais e trabalhar “só o básico do básico”; “parece livro de 5 a. Série”, e que ele “deveria ser mais abrangente”. Os alunos que se manifestaram de forma positiva apontaram os seguintes fatores: assuntos atualizados: devem motivar aos alunos e/ou fazer parte do seu diaa-dia; a clareza das atividades e/ou exercícios: as instruções devem ser formuladas com clareza para que possam ser realizados sem a ajuda constante do professor; a quantidade de conteúdos: a abrangência deve obedecer a uma certa seqüência para que a aprendizagem seja gradual, ou seja, do geral para o particular, do simples para o difícil, respeitando, dessa forma, o desenvolvimento lingüístico dos alunos. a linguagem dos textos: deve ser acessível, de acordo com o conhecimento linguístico e com a idade dos alunos . Já para os alunos que se pronunciaram de forma negativa sobre o livro, sobressaíram-se os seguintes pontos: conteúdos limitados: apesar de, na maioria, apresentarem conteúdos em demasia, existem livros que não contêm os conteúdos em quantidade suficiente para serem trabalhados durante um ano letivo, o que leva, frequentemente, à sua repetição. poucos exemplos e/ou atividades: a quantidade e a explicação clara dos exemplos e/ou atividades são importantes para a compreensão e a fixação dos conteúdos trabalhados. No entanto, devido à preocupação dos professores em Germaine Elshout de Aguiar 1442 Aspectos Curriculares e Ensino de Línguas Estrangeiras em Teresina-PI “terminar o livro”, não há possibilidade de realizar atividades diferenciadas que, ao tempo em que fixam as regras, aumentam o vocabulário dos alunos. textos complicados ou desinteressantes: para os professores, os textos são considerados fundamentais, principalmente no Ensino Médio, onde são priorizadas a sua interpretação e tradução. O texto não é um produto acabado, como frequentemente tratado na escola. É importante que o professor escolha temas interessantes planeje atividades com as quais se possa trabalhar as habilidades lingüísticas de expressão oral e escrita (ditados, redações, debates, explanações, pesquisas etc). Além disso, também temos, de acordo com Giroux (1997), que pensar nos muitos materiais didáticos disponíveis no mercado que promovem, até, uma “incapacitação dos professores ao separar concepção de execução e ao reduzir o papel que os professores desempenham na real criação e ensino destes materiais” (p.35), pois determinam, de certa maneira, as atividades de sala de aula, trazendo implícito as respostas sobre o que e como ensinar e aprender. Estes questionamentos devem ser transportados para a concretização da prática curricular, pois, como escreve Sacristán (1998): Valorizando adequadamente os conteúdos, os vê como linha de conexão da cultura escolar com a cultura social. Mas a concretização de tal valor só pode ser vista em relação com o contexto prático em que se realiza, o que, por sua vez, está multicondicionado por fatores de diversos tipos, que se convertem em agentes ativos do diálogo entre o projeto e a realidade (p.53). Concordamos com o autor que é necessário mediar as teorizações para o contexto real, sem o qual não será possível gestionar o currículo, o que, por sua vez, se reflete na falta de reflexão sobre as ações docentes em sala de aula. Achamos, assim, que a importância dada ao livro didático, que leva à incoerência na seqüência das categorias e a sua repetição linear a cada série a cada ano, sem analisar-se o conhecimento real dos alunos, sem trabalhar-se o vocabulário, sem concentrar-se pelo menos em uma habilidade linguística, se deve, também, pela ausência de diretrizes curriculares que devem abranger o formal, o real e o oculto, pois nelas deverá estar contido tudo o que acontece dentro e fora da sala de aula. Germaine Elshout de Aguiar 1443 Aspectos Curriculares e Ensino de Línguas Estrangeiras em Teresina-PI 3 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUIAR, Germaine Elshout de. O ensino de língua inglesa. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 2002. ALMEIDA FILHO, José Carlos P.(Org.). O professor de língua estrangeira em formação. Campinas: Pontes, 1999. BROWN, Douglas H. Teaching by principles. San Francisco: Prentice Hall Regents, 1994. ________. Principles of language learning and teaching. New York: Longman, 2000. CASSANY, Daniel; LUNA, Marta; SANZ, Gloria. Enseñar lengua. Barcelona: Editorial Gras, 2000. CELANI, Maria Antonieta Alba. A integração político-econômica do final do milênio e o ensino de língua(s) estrangeira(s) no 1 e 2 graus. In: Revista Abralin, número 18, 1996, p. 21-36. CORACINI, Maria José.(Org). Interpretação, autoria e legitimação do livro didático. Campinas: Pontes Editora, 1999. CROZET, C., and LIDDICOAT, A. J. Turning promises into practices. In: Australian Languages Matters, n. 7, 1999, p. 4 -12. DOLL, William E. Currículo: uma perspectiva pós-moderna. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. GERMAIN, Claude. Evolution de l’enseignement des langues: 5000 ans d’histoire. CLE International.Paris: Série “Didactique des Langues Etrangères”,1993. GIROUX, Henry. Os professores como intelectuais. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. JOHNSON, M. Definitions and models in curriculum theory. In:GIROUX, H.A. Curriculum & instruction.Berkely:Mac Putchan, 1981, p.69-86. HICKS, Diana. Towards a glocal language curriculum: 2000 and beyond. In: New Routes in ELT. Rio de Janeiro: Disal, 1998, p.22-27. HYMES, D. On communicative competence. In: Pride, J.B. and Holmes, J. Sociolinguists. Harmondsworth: Penguin, 1972, p. 269-293. KELLEY, Stephanie. Reflections on the communicative approach. In: New routes in ELT. Rio de Janeiro, 1997, p.18-20. Germaine Elshout de Aguiar 1444 Aspectos Curriculares e Ensino de Línguas Estrangeiras em Teresina-PI KRASHEN, Stephen D. Principles and practice in second language acquisition. Oxford: Pergamon Press, 1988. LUCAS, Carmem.The english teacher at the turn of the century. In: New routes in ELT. Rio de Janeiro, 1999, p.40-41. MCLAREN, Peter. A Vida nas escolas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. MOREIRA, Antonio Flávio B. (Org.). Currículo: questões atuais. Campinas: Papirus,1997. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO. Parâmetros Curriculares Nacionais- Língua Estrangeira. Brasília, 1998. NUNAN, David. Designing tasks for the communicative classroom. Londres: Cambridge University Press, 1990. OLIVEIRA, Inês Barbosa e ALVES, Nilda (orgs). Pesquisa no/do cotidiano das escolas. Sobre redes de saberes. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. PEDRA, José Alberto. Currículo, conhecimento e suas representações. Campinas: Papirus, 1997. PERRENOUD, Philippe. Ofício de aluno e sentido do trabalho escolar. Porto: Porto Editora, 1995. ________. Construir as competências desde a escola. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999. PHILLIPS, J. and TERRY, J. (org.) Foreign language standards: linking research, theories, and practices. Licolnwood: National Textbook Company, 1999. REIS, Mariza. A importância da competência gramatical no ensino comunicativo. São Paulo: Oficina de Textos, 1998. RICHARDS, Jack C. & Rodgers, Theodore S. Approaches and methods in language teaching. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. RIVERS, Wilga. A metodologia do ensino de línguas estrangeiras. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1975. SACRISTÁN, Gimeno J. O currículo: uma reflexão sobre a prática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. SHELDON, Leslie E. ELT textbooks and materials: problems and development. London: Modern English Publications, 1987. SILVA, Tomaz Tadeu. Por uma semiótica do currículo. Texto mimeografado, 1998. Germaine Elshout de Aguiar 1445 Aspectos Curriculares e Ensino de Línguas Estrangeiras em Teresina-PI SILVA, Ezequiel Theodoro da. Bons Companheiros. In: Revista Nova Escola, número 140, p.15-20, 2001. SILVEIRA, Maria Inez Matoso. Línguas estrangeiras. Uma visão histórica das abordagens, métodos e técnicas de ensino. Maceió: Edições Catavento, 1999. STENHOUSE, L.A. (ed). An introduction to curriculum research and development in action. London: Heinemann, 1995. STENHOUSE, L.A. (ed). An introduction to curriculum research and development in action. London: Heinemann, 1995. ST. JOHN, Maggie Jô. Some criteria for text selection. In: ESP, São Paulo, vol. 13, n. 2, 1998, p. 103 – 116. Germaine Elshout de Aguiar 1446 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” POR QUE ASSOCIARMOS O CURRÍCULO AO ENSINO DE LINGUAGENS? Gracilene Barros da Silva JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 Por Que Associarmos o Currículo ao Ensino de Linguagens? POR QUE ASSOCIARMOS O CURRÍCULO AO ENSINO DE LINGUAGENS? Gracilene Barros da Silva RESUMO: O texto aborda uma discussão sobre a eficácia da aprendizagem analisada no contexto social do educando, indagando e relacionando o currículo e o ensino de linguagens em perspectiva de associação dos mesmos, sendo discutido que a desassociação leva o ensino e a aprendizagem ao fracasso, visto que o objetivo do ensino é a educação de forma integral e humanizadora em que possibilite a conquista da cidadania em sua plenitude, ou seja, levando o educando a ser crítico, sujeito e não objeto, despertando o interesse do aluno através de um currículo associado ao ensino de linguagens que respeite os interesses do educando possibilitando uma aprendizagem eficaz para que os mesmos possam aprender além do mecânico, objetivando a construção de um sujeito capaz de interferir em sua realidade, sendo co-autor de sua sociedade. PALAVRAS-CHAVE: Currículo, linguagens, cidadania, educando, aprendizagem. Introdução Para nós algo é significante quando nos interessa , como sujeitos queremos nos expressar sobre algo que vivenciamos, dominamos, o qual podemos dialogar e sugerir ideias que representem importância para quem estamos a dialogar, caso isto não ocorra o diálogo não acontece. Imaginemos então, nós como educadores trabalhando para a construção de um ser autônomo, crítico que seja sujeito em sua sociedade, buscando a liberdade como diz Freire (2000) uma educação como prática da liberdade, se em nossa prática de ensino utilizamos um currículo desassociado do ensino de linguagens, voltado para uma política capitalista que ao contrário do que Freire defende, oprime. O que usamos para despertarmos o interesse de alguém com quem queremos dialogar? Algo que lhe interesse e possibilite a comunicação, até mesmo para aquisição Gracilene Barros da Silva 1450 Por Que Associarmos o Currículo ao Ensino de Linguagens? de novos conhecimentos ou algo totalmente alheio, que reduza o diálogo a uma simples fala, sem graça? Analisaremos no desenvolver deste texto as concepções de currículo e linguagem, o currículo e o ensino de linguagens na escola e um currículo que valoriza os alunos. I - Concepções de currículo e linguagem Para Fiorim ( 2003 ), o texto é produzido por um sujeito num dado tempo e num determinado espaço. Esse sujeito, por pertencer a um grupo social num tempo e num espaço, expõe em seus textos as ideias, anseios, os temores, as expectativas de seu tempo e de seu grupo social. É impossível obtermos um cidadão crítico separando-o de sua realidade social. Percebemos a coerência entre as ideias expostas por Fiorim, percebemos que o indivíduo como um ser social se expressará melhor quando produz se estiver vinculado com seus interesses de mundo. Para Saussure (1969) a linguagem abrange vários domínios; é ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica; pertence ao domínio individual e social, e envolve uma complexidade e uma diversidade de problemas que suscitam a análise de outras ciências, ele separa a língua como parte essencial da linguagem sendo a fala um ato individual. Segundo Margarida Petter (2003) a linguagem verbal é a matéria do pensamento e o veículo da comunicação social e afirma que não há sociedade sem linguagem, e não há sociedade sem comunicação e que apesar de autônoma é orientada pela visão de mundo. É percebível nos discursos acima que a linguagem é essencial para o desenvolvimento humano possibilitando a comunicação, a análise de ciências, um veículo de comunicação, sendo a fala um ato individual. Com todos esses conceitos interrelacionados vemos o quanto a linguagem é importante na vida do ser humano, inclusive na escola, onde subtende-se que o aluno Gracilene Barros da Silva 1451 Por Que Associarmos o Currículo ao Ensino de Linguagens? está em preparação para desenvolver-se integralmente, encontramos na LDB 9.394/96 “a escola deve exercer um papel humanizador,além de desenvolver habilidades que possibilitem a construção do conhecimento e de valores necessários a conquista da cidadania plena”. Segundo Coutinho (2005) cidadania articula-se como participação consciente. Refletimos então, que a linguagem é indispensável para que o indivíduo atinja este patamar de cidadão pleno, consciente, humano. A linguagem é a ponte para o conhecimento ao mesmo tempo humaniza quando é associada a um currículo com esses objetivos. No caderno indagações sobre currículo: Diversidade e Currículo (2008, p6) é abordado que o currículo deve promover a: Interação dialógica entre escola e vida, considerando o desenvolvimento e a cultura; além de uma escola democrática que humanize, que assegure a aprendizagem e ainda considere os interesses, necessidades, potencialidades, conhecimentos e cultura do educando. Como desassociarmos o currículo do ensino de linguagens para alcançarmos tais objetivos? O artigo 210 da constituição federal (1988) descreve como “dever do estado fixar conteúdos mínimos para o Ensino Fundamental, de maneira a assegurar a formação básica comum o respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais dos educandos”. A partir do momento que não há esta integração entre currículo e ensino de linguagens como garantir a humanização de quem não compreende por não haver uma comunicação real dentro da visão de mundo do educando que respeitando aos seus interesses podemos suscitar através da linguagem a análise de diversas ciências? Olhamos na perspectiva de Saussure (1969) a linguagem associada ao interesse do aluno com certeza o levará a análise de diversas ciências, por isso compreendemos o ensino de linguagens. É possível alcançarmos estes objetivos tão mencionados por diversos autores com um currículo desassociado do ensino de linguagens? Ao refletirmos sobre cada um dos objetivos que fazemos referências acima não é difícil notarmos que um simples currículo por si só, não proporcionará um educando crítico, cidadão se não encararmos a necessidade de dialogar, refletir, ensinar, voltado Gracilene Barros da Silva 1452 Por Que Associarmos o Currículo ao Ensino de Linguagens? para interesses que levem o educando a este fim, os resultados continuarão se repetindo. Resultados estes bem visíveis a todos que querem ver. Os conteúdos mínimos que refere-se na legislação que citamos acima em nada valerá se não houver uma linguagem voltada ao interesse do educando. Se a linguagem não corresponder ao meio social ( língua ) e individual ( fala ) do educando. O diálogo não será possível. Não podemos dialogar coerentemente com alguém sobre o que é completamente estranho e que não temos o menor interesse. É necessário para que se humanize como expresso nos documentos do MEC políticas públicas que associem o currículo a linguagem. Que conteúdos podemos trabalhar e como trabalhar e que linguagem utilizar para podermos respeitar o pensamento do educando, despertando seu interesse aproveitando sua cultura. Como levar o aluno a refletir se ele não entende o que falo? No documento Indagações sobre currículo: Educando e Educadores: Seus Direitos e seus Deveres (2008, p 24-26) há uma crítica aos educandos como mercadorias para o emprego, de fato percebemos que não há uma interação do currículo ao ensino de linguagem do ponto de vista humanístico, na verdade continua-se seguindo este caminho neoliberador. Segundo Soares (1991) a linguagem utilizada na escola coloca em evidência diferentes grupos sociais e gera discriminação e fracasso. Encontramos um resumo para currículo no caderno Currículo, conhecimento e cultura (p.18): “Estamos entendendo currículo como experiências escolares que se desdobram em torno do conhecimento, em meio a relações sociais, e que contribuem para a construção das identidades de nossos estudantes”. Para Benveniste (1976) a comunicação refere-se a um dado objetivo, fruto da experiência e que a linguagem humana caracteriza-se por oferecer um substituto à experiência, apto a ser transmitido infinitamente no tempo e no espaço,ou seja, parafraseando currículo está relacionado a experiências escolares que se desdobram em torno do conhecimento, a linguagem é fruto da experiência e é da mesma um substituto infinito no tempo e no espaço. Será que o currículo desassociado do ensino de linguagens contribuirá para a construção da identidade dos educandos? Gracilene Barros da Silva 1453 Por Que Associarmos o Currículo ao Ensino de Linguagens? Se o que ensinamos pretendemos promover experiências que perdurem no tempo e no espaço temos que fazer uso da linguagem de forma adequada para que os educandos possam desenvolver suas experiências de forma significante em que construam suas identidades, sentindo-se um ser valorizado e aprendendo a valorizar o outro. Observamos a importância do currículo relacionado a linguagem para se obter êxito na aprendizagem. Nos próprios cadernos do MEC (2008), há um reconhecimento que é um desafio a implantação desse currículo por desafiar ao sistema capitalista que mantém a hegemonia ( Currículo, Conhecimento e Cultura, p.34 ). Tornamos a afirmar que para alcançarmos esses objetivos temos que reconhecer que uma educação humanizadora e no que se refere ao ensino de linguagem propriamente dito, é essencial ensinar as linguagens de forma que seja apresentada mediada a uma interação com a língua do aluno. II - O currículo e o ensino de linguagem na escola Segundo Luís Carlos Meneses (Nova Escola, abr.2009, p 90) A escola deve criar um currículo virtuoso, em que melhorem e ajudem a aprendizagem de qualquer conteúdo: Faz uma enorme diferença se antes de cada aula os docentes souberem quais linguagens desenvolverão com os alunos e como vão estimulá-los a ler os textos e a escrever o que aprenderam, as dúvidas que restaram e seus pontos de vista sobre aspectos polêmicos (MENEZES, Nova Escola, abr. 2009, p. 90). Infelizmente a escola não tem correspondido adequadamente o aluno, por querer seguir um currículo neoliberal voltado aos interesses capitalistas, fugindo na prática da teoria. Como citamos anteriormente a LDB 9.394/96, a escola deve exercer um papel humanizador e socializador, a escola tem feito esta integração do currículo a linguagem? Será que a linguagem ensinada está alcançando o aluno em sentido humanizador? Gracilene Barros da Silva 1454 Por Que Associarmos o Currículo ao Ensino de Linguagens? Será que o currículo está valorizando o conhecimento, a cultura e os saberes do aluno? Podemos perceber comportamentos de alunos transtornados por não possuírem esta construção humanizadora, os alunos que têm um possível destaque não são valorizados em seus saberes, o que não nos surpreende. Fala-se em humanizar, respeitar, valorizar as culturas os interesses dos educandos, mas que políticas públicas existem relacionando o currículo e a linguagem humanizadora? Quantos textos interessantes bem regionais são desprezados, quantos conhecimentos não são valorizados porque além de não serem aproveitados em sala de aula não existe um suporte para o aluno progredir como sujeito. Vemos a escola priozando a aprovação no vestibular (Privada) e um caráter meramente instrumental para um posto de trabalho ( pública ). No artigo de Emília Maria ( Educação e trabalho, p 15 ) ela escreve relatos de sua pesquisa na Usina São João em Santa Rita PB, ao questionar os funcionários analfabetos que não frequentavam o curso da EJA oferecido pela empresa, 80% relataram falta de interesse e a mesma relata que os mesmos foram rebaixados ou demitidos em suas funções. Que currículo deve está sendo seguido na empresa será que está sendo associado a linguagem de forma humanizadora? Que política pública está sendo oferecida para o desenvolvimento da tão falada cidadania plena? Vemos no artigo de Gaudêncio Frigotto, Maria Clavata e Marise Ramos (2005, p 1105 e 1106) uma forte crítica a esta parceria público-privada em que delega a lógica empresarial à formação dos educandos sem a interação de outras políticas públicas que venham melhorar a situação socioeconômica da família. É necessário que as escolas estejam associadas a políticas públicas que valorizem a associação do currículo ao ensino de linguagem para que de fato possamos formar indivíduos autônomos, respeitando os seus interesses e não dar continuidade aquele currículo que além de excluir o aluno o reduz a um simples depósito de Gracilene Barros da Silva 1455 Por Que Associarmos o Currículo ao Ensino de Linguagens? conhecimentos alheios de seu mundo tornando-os passivos do ponto de vista freiriano (2000 ) Sendo vítima da minoria que monopoliza e detém o capital. III - Um currículo que valoriza os alunos é um currículo que valoriza a linguagem Observamos a importância do currículo relacionado a linguagem para se obter êxito em uma educação humanizadora e no que se refere ao ensino de linguagens propriamente dito, é essencial ensinar as linguagens de forma que seja apresentada mediada a língua do aluno que segundo Saussure ( 1969 ) é instrumento fundamental de comunicação. Sem falar a língua do aluno não é possível o diálogo. Para Maria Helena (1994) aprendemos a ler a partir de nosso contexto social e temos que valorizá-lo para podermos ir além dele. No título do caderno do MEC: O currículo e o desenvolvimento humano, atentamos para a expressão que aborda um objetivo relacionando currículo e desenvolvimento humano, no caderno o currículo é tratado como um instrumento de desenvolvimento humano quando a escola é um espaço de ampliação da experiência humana ( p. 19) vimos anteriormente que a linguagem substitui a experiência porque estimula a imaginação( Benveniste,1976 ) ¹Vygostsky é citado no caderno de forma que incrementa esta ideia, o mesmo expressa que a memória possibilita a reprodução de algo, que através de uma relação dialógica pode-se construir ideias através de elementos gravados na memória, que foram percebidos anteriormente, permitindo então esta relação de compreensão num texto no ato da leitura ( p.31 ). É necessário para aquisição de qualquer conhecimento a utilização da linguagem a que corresponde, que deve envolver o significado para o educando, a percepção, através de elementos que interessem ao educando, que estimule a memória e a imaginação e é através de um currículo que se adeque ao desenvolvimento estas funções é que existe a possibilidade de efetuar-se a aprendizagem ( p. 27 - 31 ). Cita o mesmo caderno (p 48) que a atividade dada pelo professor pode articular as áreas de conhecimento entre si, mobilizando as funções mentais. Gracilene Barros da Silva 1456 Por Que Associarmos o Currículo ao Ensino de Linguagens? Para Maria Helena (1994), nossos sentidos, psique e razão respondem a algo que estão potencialmente aptos tornando-se, então disponíveis. Ela ainda expressa que aprender a ler é algo além do mecânico, é vivendo, aprendemos a ler a partir de nosso contexto pessoal. Sabendo disso é óbvio que a linguagem e currículo devem possibilitar que todo o desenvolvimento do educando como ser integral seja trabalhado de maneira eficaz dentro de seu contexto social, utilizando uma linguagem atrativa ao mesmo tempo que instrui , tornando os conhecimentos cheios de significados para a vida do educando. Seguindo esta linha de raciocínio estaremos contribuindo para que o educando seja respeitando dentro de seu contexto social, sentindo-se um ser socializado, tendo sua cultura valorizada, o que como retorno podemos ter uma sociedade mais justa, sem querer impor conhecimentos que não transformam, mas que apenas acumulam informações que com o passar do tempo, é percebível que o conhecimento não passou de um pseudo conhecimento que não foi capaz de transformar o educando em ser crítico1. Para Celso Antunes (2005) o importante é a linguagem do aluno que o torna protagonista nas aulas e que por isso deve-se haver a exaltação da linguagem, ainda afirma que a informação não transforma e sim o conhecimento. Então, por que seguirmos um currículo desassociado da linguagem do aluno para o ensino de diversas linguagens (Ciências) se temos como objetivo a transformação do educando saindo da concepção bancária que Paulo Freire tanto combate por que não atentarmos para o desenvolvimento de tais princípios humanizadores? Para Mattoso (1986) é pela posse e pelo uso da linguagem, falando oralmente ou mentalmente é que conseguimos organizar o nosso pensamento e torná-lo articulado, concatenado e nítido. O que reforça a junção de um currículo associado a linguagem significativa para o educando, para que assim ele possa organizar seu pensamento para a construção do conhecimento, não só tornando significativa a necessidade de aprendizagem, mas prazerosa para o educando, aprendendo a decodificar, mas não apenas isso, mas ler o mundo do ponto de vista freiriano . 1 VYGOSTSKY, Lev S. La imaginación y arte em la infacia. Madrid, Ediciones Akal, 1990. Gracilene Barros da Silva 1457 Por Que Associarmos o Currículo ao Ensino de Linguagens? A escola que humaniza é a escola que seu currículo e o ensino de linguagens valoriza a linguagem do aluno reconhecendo-o como um ser social inserido no mundo. Considerações Iniciei a problemática perguntando se um currículo desassociado do ensino de linguagens poderia possibilitar o desenvolvimento pleno do aluno como um ser completo e autônomo, promovendo uma aprendizagem eficaz, que respeito e valorize o educando, resgatando sua autoestima, ajudando o educando a libertar-se da subjugação dos interesses capitalistas que desumaniza para tornarem-se cidadãos críticos que desenvolvam todo o potencial que têm, problematizando as situações, articulando várias áreas do conhecimento, para assim aprender a ler além do mecânico, vivendo. Nosso objetivo neste texto é contribuir com as discussões referentes a currículo e o ensino de linguagens, partindo sempre do contexto social do indivíduo valorizando seus conhecimentos sua cultura para o desenvolvimento de aprendizagem eficaz, para que a mesma realmente aconteça e possamos ter um país não digo mais justo, porque não o considero justo, mas que busque a justiça, valorize o ser humano e possibilite uma aprendizagem real de maneira integral. Em nosso texto procuramos expor o quanto é fundamental a associação do currículo ao ensino de linguagens para que a aprendizagem possa ser eficaz unificando a teoria a prática, não ocorrendo um faz de conta, ou ignorar os interesses do aluno para cumprir com o modelo capitalista, descumprindo-se assim com todas as leis educacionais que refere-se a aprendizagem do aluno de forma integral. É preciso enfrentar a ótica capitalista para desenvolver seres críticos, capazes de interferir em sua história, mudando a realidade de sua sociedade. Isto só é possível através de um conhecimento mediado pelo diálogo, e como vimos o diálogo só possível quando usamos uma linguagem que interesse ao indivíduo. Gracilene Barros da Silva 1458 Por Que Associarmos o Currículo ao Ensino de Linguagens? Referências ANTUNES, Celso. Como Transformar informações em conhecimento. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2005. BENVENISTE, Emile. Linguagem humana e comunicação animal. Problemas de linguística geral. São Paulo: Nacional/Edusc ( tradução do francês ), 1976. BRASIL. Congresso Nacional. Constituição Federal da República Federativa do Brasil. 5 de outubro 1988. _______. Congresso Nacional. Lei Federal nº 9.394. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. 20 de dezembro de 1996. _______. Indagações sobre Currículo: Currículo Conhecimento e Cultura. Brasília: MEC, 2008. _______. Indagações sobre Currículo: Currículo e Desenvolvimento Humano. Brasília: MEC, 2008. _______. Indagações sobre Currículo: Diversidade e Currículo. Brasília: MEC, 2008. COUTINHO, C.N. Notas sobre cidadania e modernidade. 1n Revista Agora: Políticas Públicas e Serviço Social, Ano 2, nº3 dezembro de 2005- ISSN- 1807-698x. Disponível em http://www.assistentesocial.com.br. Acesso: 09 de set. de 2009. Gracilene Barros da Silva 1459 Por Que Associarmos o Currículo ao Ensino de Linguagens? FIORIM, José Luiz,et al. Introdução à Linguística. 2 ed . São Paulo: Contexto, 2003. FIORIN, josé Luiz; SAUVIOLE, Francisco Platão. Lições de texto: Leitura e Redação. Ática, 4. ed. São Paulo, 2002. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários a prática educativa. 7ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000. FRIGOTTO, Gaudêncio;CLAVATTA, Maria; RAMOS, Marise. A política de Educação profissional no governo Lula : Um percurso histórico controvertido. Educ. Soc. Campinas, vol. 26.n. 92. p. 1087-1113, Especial- out. 2005. JR, Mattoso Câmara J. Manual de expressão oral e escrita. 17 ed. Petrópolis: Vozes, 1986. MARTINS, Maria Helena. O que é leitura .19 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. MENEZES, Carlos Luis. A língua em todas as disciplinas: Por serem essenciais na formação escolar, a leitura e a escrita merecem atenção específica dos professores das diversas áreas. Nova Escola, p. 90, abril, 2009. PRESTES, Emília Maria da Trindade. Educação e trabalho: Requisitos do desenvolvimento e da sustentabilidade. Espaço do Currículo, v.3, n.1, pp. 1-21, março-setembro/2009. Disponível em: http://www.aepppc.org.br/revista. Acesso em: 02 julho 2009. SAUSSURE, Ferdinand. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1969. Gracilene Barros da Silva 1460 Por Que Associarmos o Currículo ao Ensino de Linguagens? SOARES, Magda Becker. Linguagens e Escola: Uma Perspectiva Social. São Paulo: Ática, 1991. VYGOSTSKY, Lev S. La imaginación y el arte em la infancia. Madrid, Ediciones Akal, 1990. Gracilene Barros da Silva 1461 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” MAFALDA E AS LOCUÇÕES VERBAIS: DISCUTINDO QUESTÕES DE LEITURA NO LIVRO DIDÁTICO DE PORTUGUÊS Julianny de Lima Dantas Cavalcante JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 Mafalda e as Locuções Verbais: discutindo questões de leitura no livro didático de português MAFALDA E AS LOCUÇÕES VERBAIS: DISCUTINDO QUESTÕES DE LEITURA NO LIVRO DIDÁTICO DE PORTUGUÊS Julianny de Lima Dantas Cavalcante UFRN [email protected] RESUMO: A leitura tem se apresentado como campo de investigação profícuo para a compreensão das práticas discursivas dos sujeitos. Compreender o dinamismo dessas práticas e de suas condições de leitura é trabalhar com a perspectiva de leitura em sua dimensão histórica, social e dialógica, que compreende múltiplas linguagens. A necessidade de contemplar a leitura de gêneros discursivos em sua multiplicidade e dinamicidade tem influenciado a inserção maciça de gêneros como a tira jornalística, entre outros, nos materiais didáticos de língua portuguesa, tentando configurar uma política de leitura disposta a articular-se a partir de “uma análise que, descrevendo práticas há muito efetivas, as torne politizáveis” (CERTEAU, 1996, p. 268). Tendo em mente esse uso freqüente da tira, nosso objetivo, portanto, é analisar um LDP de 5º série do Ensino Fundamental, percebendo como os autores do livro compreendem e abordam o gênero tirinha em suas questões de leitura. Para tanto, optamos pela pesquisa documental de natureza qualitativa e levamos em consideração trabalhos como os de Belmiro (2006) e Mendonça (2006), entre outros, bem como estudos específicos sobre a natureza e constituição da linguagem (Bakhtin 1981, 2003). PALAVRAS-CHAVE: Leitura, Livro didático de língua portuguesa, Tira jornalística. “Em certa medida, a compreensão é sempre dialógica.” Mikail Bakhtin A leitura tem se apresentado como campo de investigação profícuo para a compreensão das práticas discursivas dos sujeitos. Ler constitui-se, assim, em uma prática social que mobiliza sujeitos em momentos singulares e históricos. Nessa perspectiva, o leitor, enquanto sujeito histórico, deveria se constituir em sujeito Julianny de Lima Dantas Cavalcante 1465 Mafalda e as Locuções Verbais: discutindo questões de leitura no livro didático de português respondente que para o texto lido apresenta uma resposta, uma compreensão responsiva ativa qualquer que seja a sua forma de realização. (Bakhtin, 2003). Nas práticas de leitura, o sujeito-leitor vai ocupar uma posição-sujeito em relação àquela ocupada pelo sujeito-autor, identificando-se ou não com ele. Compreender o dinamismo dessas práticas e de suas condições de leitura é trabalhar com a perspectiva de leitura em sua dimensão histórica, social, dialógica, enfim, como acontecimento na e da vida do sujeito. No contexto do ensino de língua portuguesa, de acordo com Antunes (2003), é comum em sala de aula (e diríamos também no LDP) a atividade de leitura centrada apenas nas habilidades mecânicas de decodificação da escrita e reconhecimento de padrões gramaticais, muitas vezes desinteressada e aparentemente desvinculada dos diferentes usos sociais. Segundo relatos colhidos pela autora, a leitura em sala de aula se daria em segundo ou terceiro plano, já que ler “perde” o tempo da aula, “atrapalha o professor em suas explicações” ou mesmo não parece ser adequada às necessidades dos alunos (ANTUNES, p. 30), o que demonstra uma deturpação evidente no papel da leitura como atividade enriquecedora e necessária. Nas palavras da própria autora: A atividade de leitura complementa a atividade de produção escrita. É, por isso, uma atividade de interação entre sujeitos e supõe muito mais do que a simples decodificação dos sinais gráficos. O leitor, como um dos sujeitos da interação, atua participativamente, buscando recuperar, buscando interpretar e compreender o conteúdo e as intenções pretendidos pelo autor (ANTUNES, 2003, p. 67). De acordo com os PCN’s de Língua Portuguesa (1998) para o 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental, a “importância e o valor dos usos da linguagem são determinados historicamente segundo as demandas sociais de cada momento” (p. 23), sendo a escola responsável por atender a essas demandas, revisando seus métodos de ensino regularmente. A necessidade de contemplar a leitura de gêneros discursivos constituídos de linguagens diversas tem influenciado a inserção maciça de gêneros como a tira jornalística, entre outros, nos materiais didáticos de língua portuguesa. Tendo em mente esse uso freqüente da tira, nosso objetivo, portanto, é analisar um LDP de 6º série do Julianny de Lima Dantas Cavalcante 1466 Mafalda e as Locuções Verbais: discutindo questões de leitura no livro didático de português Ensino Fundamental, percebendo como os autores do livro compreendem e abordam o gênero tirinha em suas questões de leitura. Após uma abertura simpática do ambiente escolar às histórias em quadrinhos (atitude impensável há algumas décadas), pertencentes a um leque de outros textos onde a linguagem visual solicita cuidadosa consideração, o gênero passou a ser acolhido e impresso nos livros didáticos de Ensino Fundamental e Médio a partir da década de 70. Desde então, entretanto, algumas inquietações de ordem teórico-metodológicas se fazem presentes nos estudos de vários lingüistas. Belmiro (2003) sugere que não é suficiente a simples transposição, para o livro didático, do texto visual, esperando-se que, com sua visualização, a monotonia da sistematização da teoria gramatical seja amenizada. De modo semelhante, não se pode considerar um avanço o fato de “a gramática normativa ser antecedida por uma circunstância pragmático discursiva do texto” (BELMIRO, 2003, p. 317), o que reforçaria o lugar do texto como “mote” para a discussão de tópicos gramaticais. Ainda, conforme Amarilha (2006), o livro didático, apesar de seduzido pelo “glamour” das cores e pelo apelo ao caráter de conteporaneidade dos quadrinhos, ignora, não obstante, o potencial desse gênero discursivo como veículo educacional. Tendo como objetivo propor ações que integrem uma política de formação de leitores, o PNBE, já apontado anteriormente, distribui acervos diversificados, que constam, dentre outros gêneros, de coletâneas de poemas, adaptações de obras clássicas para crianças, crônicas e histórias em quadrinhos de personagens como Asterix, Mafalda e Níquel Náusea (no acervo destinado ao Ensino Médio, o programa disponibilizou criações de Will Eisner, considerado sinônimo de griffe em arte seqüencial). No entanto, embora se almeje, com essa arrojada iniciativa (e certamente dispendiosa), “a democratização das fontes de informação [e] o fomento à leitura e à formação de alunos e professores leitores” (BERENBLUM; PAIVA, 2006, p.9), os próprios organizadores do projeto1 reconhecem que a mera distribuição de títulos não é suficientemente eficaz para formar professores e alunos leitores. 1 Comentário parafraseado de texto não assinado que compõe a apresentação do Programa Nacional Biblioteca da Escola. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/index.php?option=content&task=view&id=371> Acesso em: 11 nov. 2008. Julianny de Lima Dantas Cavalcante 1467 Mafalda e as Locuções Verbais: discutindo questões de leitura no livro didático de português De fato, com a criação dos PCN´s, certos gêneros, antes esquecidos pela escola, assumiram um caráter maior de “validade”, sendo lembrados em documentos oficiais e incluídos em acervos como os que são elaborados pelo PNBE. Os quadrinhos, como veremos mais adiante, no capítulo Estado da arte, fazem parte desse grupo específico de gêneros. Assim, não se pode negar a presença das HQ´s no espaço escolar, seja na biblioteca, seja no livro didático de português, uma vez os LDP trazem, em larga escala, tirinhas, cartuns e charges. Não obstante, a simples presença do gênero em sala de aula não assegura um tratamento adequado das especificidades do texto; não garante que as questões de leitura formuladas a partir do gênero promoverão mais do que somente a leitura-fruição ou a leitura como apropriação de aspectos discursivos e/ou lingüísticos (POLETTO-LUGLI; NASCIMENTO, 2006) e, por fim, não garante que a linguagem visual seja explorada em sua complexidade viva e criativa. Se determinada prática discursiva está presente na escola ela precisa ser investigada, problematizada, principalmente, porque tem influência considerável na formação leitora de sujeitos envolvidos em situações de ensino. Essa problematização é interesse de uma Lingüística Aplicada que se quer híbrida e/ou mestiça, geradora de conhecimentos responsivos à vida e de inteligibilidades sobre problemas sociais nos quais a linguagem assume um papel central (MOITA LOPES, 2006). Uma vez que cabe ao pesquisador em L.A. manter o compromisso ético de “dar voz” ao não contemplado, ao que “se move sob os saberes constituídos” (SIGNORINI, 1998c, p. 105) e à margem deles, é essencial que as propostas de leitura de gêneros como a tirinha, ao contrário do que têm feito até então, contemplem mais do que a linguagem escrita. Logo, “assim posta, a presença das imagens, em suas múltiplas expressões, solicita da escola uma postura de reflexão acerca das diferentes práticas de linguagens, suas ações e suas interações” (BELMIRO, 2003, p.306). Arcabouço teórico e metodológico É essencial, na pesquisa de humanidades, compreender que o objeto estudo fala e vive, seja esse objeto um sujeito físico ou a produção desse sujeito, escrita, oral, visual, entre tantas. Compreendendo também que o enunciado é o dado primário e o homem, o Julianny de Lima Dantas Cavalcante 1468 Mafalda e as Locuções Verbais: discutindo questões de leitura no livro didático de português objetivo principal das Ciências Humanas (BAKHTIN, 2003), nosso enfoque metodológico, a pesquisa documental de natureza qualitativa e em uma perspectiva sócio-histórica, parece estar harmonizada com essa necessidade que o objeto tem de ser apreendido em sua inesgotabilidade e dinamicidade. O recorte do corpus selecionado para este artigo é constituído a partir de um livro didático de português direcionado à 6º série do Ensino Fundamental e recomendado pelo guia do PNLD/2008. A preferência pelo termo “6º série”, e não “7º ano”, se deve ao fato de ser esse o termo utilizado não só nesse exemplar como também em todos os livros que participaram da avaliação do programa nacional do ano em questão. Por sua vez, a preferência pelos LDPs dessa série se deve ao fato de ser esse o primeiro dos quatro últimos anos do Ensino Fundamental. Escolhemos os exemplares destinados ao professor, com o intuito de recuperar tanto as orientações teórico-metodológicas relativas à leitura quanto as sugestões de resposta às questões de leitura formuladas a partir da tira. Ainda, como critérios de escolha, elegemos em primeiro lugar a avaliação positiva por parte do guia do PNLD. Em especial, atentamos para os aspectos leitura e coletânea de textos, esta última enfatizando os gêneros que integram linguagens diversas, principalmente a visual. Logo em seguida, a seleção foi condicionada pela disponibilidade de exemplares, dado que algumas coleções estavam com o estoque esgotado ou simplesmente não foram encontrados na região em que se deu a pesquisa. Nosso trabalho fundamenta-se na área de estudos da Lingüística Aplicada, numa concepção sócio-interacionista da linguagem. Ao perceber a língua como interação, que penetra e é penetrada pela vida por meio de enunciados concretos (que, por sua vez, constitui elos na cadeia do discurso), adotamos a arquitetônica de dialogicidade sistematizada por Bakhtin e seu Círculo. A linguagem, produto da vida social, “vive apenas na comunicação dialógica daqueles que a usam” (BAKHTIN, 1981, p. 158). Segundo Souza (2002), “todo o projeto de investigação dialógica do enunciado concreto é uma investigação dinâmica” (SOUZA, 2002, p.76), ou, em outros termos, a idéia formalista de que uma comunicação X, já pronta, é apenas transmitida de um produtor A para um leitor R destoa completamente da noção de interação bakhtiniana, já que essa comunicação X estaria sempre em construção na relação eu/outro. Assim, Julianny de Lima Dantas Cavalcante 1469 Mafalda e as Locuções Verbais: discutindo questões de leitura no livro didático de português resumidamente, pensar sobre a concepção dialógica da linguagem envolve o esforço de considerá-la Um acontecimento social, fruto de alguma atividade de comunicação (trabalho) realizada na forma de uma comunicação verbal determinada, isto é, da interação verbal de um ou mais enunciados construídos num processo dialógico de alternância dos sujeitos envolvidos (SOUZA, 2002, p. 77). Ao conceber a linguagem como sendo fruto da interação, compreendemos que, segundo Cavalcanti (2006, p.242) “um indivíduo emerge através dos processos de interação social, não como produto final, mas como alguém que é (re)construído através das várias práticas discursivas das quais participa”. Essas práticas discursivas ― ou seja, possibilidades de produção de sentidos pela linguagem em ação nas variadas relações sociais existentes (SPINK; MEDRADO, 1999) ― abrangem naturalmente as produções verbais, visuais (e ambas interativamente), inseridas em determinadas esferas discursivas, que lhes possibilitam e dinamizam a existência, “interferindo diretamente em suas formas de produção, circulação e recepção” (BRAIT, 2008, p.261). Interessa-nos, na pesquisa proposta por este projeto, utilizar as categorias bakhtinianas gêneros discursivos, compreensão responsiva-ativa e olhar exotópico, ressaltando em todas o caráter dialógico que permeia o mundo da vida. Análise dos dados: discutindo questões de leitura O livro escolhido, “Português: idéias e linguagens2”, publicado pela editora Saraiva e destinado à 6º série do Ensino Fundamental, tem 254 páginas, acrescidas, por ser um exemplar para docentes, de um manual para o professor com cerca de 30 páginas. Ao todo, encontramos 48 ocorrências de arte e narrativa seqüencial (cartuns, charges, tirinhas, história em quadrinhos, etc.), dos quais 20 eram tirinhas. O uso ativo da tirinha no livro didático pode ser justificado pelo tamanho reduzido (um quadrinho inteiro poderia ser inviável em termos de custo de impressão) e pela sua relativa facilidade de 2 DELMANTO, D.; CASTRO, M. C. Português: idéias e linguagens, 6º série. São Paulo: Saraiva, 2005. O livro foi indicado pelo guia do PNLD/2008, no grupo 4. Julianny de Lima Dantas Cavalcante 1470 Mafalda e as Locuções Verbais: discutindo questões de leitura no livro didático de português apreensão se comparado a outros quadrinhos de extensão semelhante, já que os cartuns e as charges exigem, por exemplo, um repertório maior do leitor em aspectos sociais, políticos e econômicos. Outro fator pode ser a sedução das cores e traços que costumam caracterizar a tirinha, o que constituiria um “facilitador” da leitura e um atrativo a mais para a sistematização de atividades avaliativas. A leitura da tira é viabilizada por meio de estratégias diversas. De acordo com a seção em que se encontra, o gênero é disponibilizado apenas para leitura fruitiva (como na seção “divirta-se”, onde aparece isolado em uma página em branco). Em outros momentos o aluno é solicitado a opinar se é ou não a favor de determinada prática social, abordada direta ou indiretamente no texto. No entanto, na maioria dos casos, a tira surge como texto base para exercícios ou como exemplo ilustrativo e contextualizado para a explanação de tópicos lingüísticos ou gramaticais. De certa forma, de acordo com Poletto-Lugli e Nascimento (2006), o quadrinho no livro didático teria o objetivo de promover a leitura como apropriação das características discursivas e lingüísticas do texto e, por vezes, apenas a leitura-fruição, descompromissada em dar voz aos sentidos moventes no texto. Percebemos, ainda, que essas atividades de leitura dificilmente remetem à multiplicidade de linguagens, ficando fortemente atadas à compreensão do escrito, como apontado no exemplo abaixo: Julianny de Lima Dantas Cavalcante 1471 Mafalda e as Locuções Verbais: discutindo questões de leitura no livro didático de português A finalidade dessa atividade de leitura é configurada somente pela utilização correta das vírgulas: pede-se ao aluno que retire do texto as palavras que designam temperos e as enumere. Embora o enunciado da questão afirme que a personagem pretende utilizar os ingredientes em um molho de ervas, não há nenhuma orientação para a análise da única instância do texto que legitima a afirmação de que é um molho e não um banho que está sendo preparado. As competências necessárias para a compreensão do texto são subtendidas, como se toda a coletividade de alunos pudesse, em uníssono, resgatar as pistas deixadas na interação verbo-visual: que a tira é publicada em um jornal de Salvador, portanto, nordeste do Brasil; que a indumentária, o cenário e a própria cor3 da personagem a identificam estereotipadamente como nordestina e pobre; que, de acordo com o recorte ideológico da tira, é um indivíduo que não compra carne abatida no supermercado, mas que mata e tempera artesanalmente seus próprios animais. Essa lista de pressupostos ainda se estende: se um aluno não compreende as estrelas amarelas do desenho como demonstrativo de dor e se ele nunca foi a uma feira livre ou a outro local em que possa ver que as galinhas são presas pelos pés, como recuperar que o animal está prestes a ser abatido, e não banhado? Todas essas informações advêm do código visual próprio ao gênero e são fundamentais para a compreensão, porém, em alguns momentos, as questões de leitura privilegiam apenas os elementos verbais, com o intuito de promover o conteúdo curricular que “justifica” o uso do texto, como na tira a seguir. 3 Nesse trecho, a cor deve ser entendida em seu sentido literal: a matiz com que o autor colore os traços de sua personagem e que é indicativa da pele parda ou morena. Julianny de Lima Dantas Cavalcante 1472 Mafalda e as Locuções Verbais: discutindo questões de leitura no livro didático de português Afirmar que o humor de uma tira é provocado apenas por um jogo entre duas locuções prepositivas é reducionista. Neste ponto é válido observar mais um lapso, muito comum no tratamento de quadrinhos de pequeno porte. Assim como um enunciado representa um elo na cadeia de discursos (BAKHTIN, 2003), ligado aos enunciados anteriores e futuros, assim também a tira pertence a uma cadeia sóciohistórica e autoral, que compreende não só o estilo próprio de cada autor, mas também as características básicas de cada enredo. Na tirinha, a personagem preexiste ao texto, sendo cada narrativa o desenrolar descontínuo de ações motivadas pela sua personalidade. Caso, ao lermos uma aventura da Mafalda, não tenhamos familiaridade com a caracterização dessa protagonista, ou seja, se não saibamos de sua “natureza” ácida, investigativa e crítica ou de como se dá a representação de seus aspectos corporais (caretas, gestos etc.), o texto verbal não será suficiente para provocar o humor da tira. Voltando ao Recruta Zero, a comicidade do texto se dá pelo jogo de locuções prepositivas e também pelo conhecimento acerca das personagens, pela postura do recruta frente ao seu superior, pelo boné caído sobre os olhos, pelas representações de seu corpo cansado e preguiçoso. Talvez o cerne da questão não seja extinguir qualquer análise de fim gramatical ou discursivo, mas sim, propiciar a expressão de outros olhares, de outras compreensões construídas na interação. Em outras palavras, “assim posta, a presença das imagens, em suas múltiplas expressões, solicita da escola uma postura de reflexão acerca das diferentes práticas de linguagens, suas ações e suas interações” (BELMIRO, 2003, p.306). Podemos afirmar que, quase como uma constante, as questões de leitura relacionadas à tira são orientadas pelo conteúdo curricular sistematizado na seção ou unidade. Na maioria dos casos, porém, em que as questões de leitura ultrapassam essa obediência ao conteúdo lingüístico, percebemos elas contemplam a compreensão do texto, mas de modo limitado, dando prioridade à localização de informações em grande parte explícitas. Contudo, na atividade abaixo, o leitor é solicitado a deduzir a personalidade de uma das personagens com base quase estritamente em elementos visuais. Mesmo estando a sugestão de resposta limitando um único olhar, é válido perceber que a questão de leitura não solicita respostas baseadas no achismo, ou tão subjetivas que para elas não haja um parâmetro de avaliação (perguntas do tipo: “Você gostou desse texto?), ao Julianny de Lima Dantas Cavalcante 1473 Mafalda e as Locuções Verbais: discutindo questões de leitura no livro didático de português invés disso provoca uma atitude responsiva ativa baseada em um contexto sóciohistórico e social no qual o próprio leitor está implicado e, por isso, encontra razão para a personagem buscar uma moeda no lugar da flor. Nas duas questões seguintes os autores retornam às estratégias predominantes, associando a atividade à avaliação de conteúdos curriculares, nesse caso, do emprego da locução verbal. Mesmo em sua forma mais simples, os quadrinhos, conforme Eisner (1995, p.8), “empregam uma série de imagens repetitivas e símbolos reconhecíveis”, repetição que, ao atingir relativa estabilidade, se torna linguagem própria, partilhada por uma comunidade de experiência. Assim, não se pode negar que a linguagem visual presente nas histórias em quadrinhos seja algo difícil de ser decifrado por aqueles que detêm um mínimo de experiência de leitura com o gênero. O leitor, ao construir colaborativamente os sentidos do texto, aprende a identificar formas, expressões e traços com base em certa estabilidade de significados atribuídos socialmente desde o surgimento das primeiras HQs. No entanto, se esse relacionamento com a imagem se desenvolve de forma natural, mesmo antes da entrada da criança na escola e fora de seus domínios, no ambiente escolar esse contato com a imagem deve ser continuado de forma consciente e planejada. Segundo Costa (2005), exatamente pelo caráter afetivo e ambíguo das imagens “seu uso na educação envolve informação, conhecimento, preparo e gestão, como deveria ser com todas as atividades Julianny de Lima Dantas Cavalcante 1474 Mafalda e as Locuções Verbais: discutindo questões de leitura no livro didático de português educativas.” (COSTA, 2005, p.37). Dessa forma, a visualidade deve ser tratada de maneira análoga à oralidade, que, embora adquirida na interação do lar, deve ser sistematizada e adquirir novos usos na escola, inclusive em contextos orais, formais e públicos (DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B., 2004). Observamos que, pelos exemplos encontrados no livro didático, existem ainda muitos caminhos a serem percorridos em direção à leitura responsiva da tirinha, em direção à politização dessa multiplicidade de olhares por parte dos leitores-alunos, cada um em sua singularidade no mundo. Cobrar de uma tirinha a exemplificação às mais diversas questões discursivas e gramaticais, reservando à visualidade e à compreensão ativa um espaço ermo, mesmo essa visualidade tão cara ao universo lúdico da criança, é desperdiçar possibilidades profícuas de uma formação crítica do sujeito-leitor. Porém, muito de produtivo vem sendo incorporado aos manuais didáticos, mudanças influenciadas, em parte, pelos critérios avaliativos do PNLD na exigência de um material criativo, crítico, eficaz e competente não só no fomento ao desenvolvimento das competências de leitura como também nas demais carências do ensino tradicional da linguagem. “Há que não se perder de vista as especificidades de um livro didático que, sendo de Língua Portuguesa, se interessa por desenvolver habilidades específicas com a linguagem, o que o diferencia dos livros das demais disciplinas” (BELMIRO, 2004, p.175). Referências bibliográficas ANTUNES, I.; Aula de português: encontro e interação. São Paulo: Parábola, 2003. AMARILHA, M. Alice que não foi ao país das maravilhas: leitura crítica na sala de aula. Rio de Janeiro: Vozes, 2006. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (coleção biblioteca universal) BELMIRO, C. A. Uma educação estética nos livros didáticos de português. In: ROJO, R.; BATISTA, A. A. G. (Orgas.) Livro didático de língua portuguesa, letramento e cultura da escrita. São Paulo: Mercado de Letras, 2003. _____. O livro didático de português na formação cultural dos jovens. FACED. Bahia, n. 08, 2004. Disponível em: <http://www.revistafaced.ufba.br/ viewarticle.php?id=141>. Acesso em 08 set. 2008. Julianny de Lima Dantas Cavalcante 1475 Mafalda e as Locuções Verbais: discutindo questões de leitura no livro didático de português BERENBLUM, A.; PAIVA, J. Por uma política de formação de leitores. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006. BRAIT, B. Contribuições bakhtinianas para a análise do verbo-visual. In: BASTOS, N. B. (Orgs.). Língua Portuguesa: lusofonia, memória e diversidade cultural. São Paulo: EDUC, 2008. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília : MEC/SEF, 1998. CAVALCANTI, M. C, Um olhar metateórico e metametodológico em pesquisa em lingüística aplicada: implicações éticas e políticas. In: MOITA LOPES, L. P. (org.). Por uma lingüística aplicada INdiscliplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. COSTA, C. Educação, imagem e mídias. São Paulo: Cortez, 2005. DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2004. (col. As faces da lingüística aplicada). EISNER, W. Quadrinhos e arte seqüencial. São Paulo: Martins Fontes, 1995. MOITA LOPES, L. P. Uma lingüística aplicada mestiça e ideológica: interrogando o campo como lingüista aplicado. In: MOITA LOPES, L. P. (org.). Por uma lingüística aplicada INdiscliplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. POLETTO-LUGLI, V. C.; NASCIMENTO, E. L. O gênero história em quadrinhos no livro didático: leitura-fruição ou apropriação? Entretextos. Londrina, n. 06, jan/dez. 2006. Disponível em: <http://www2.uel.br/revistas/entretextos/pdf6/11.pdf> Acesso em 15 ago. 2008. ROJO, R. O perfil do livro didático de língua portuguesa para o Ensino Fundamental (5º a 8º séries). In: ROJO, R.; BATISTA, A. A. G. (Orgas.) Livro didático de língua portuguesa, letramento e cultura da escrita. São Paulo: Mercado de Letras, 2003. SOUZA, G. T. Introdução à teoria do enunciado concreto: do círculo de Bakhtin/ Volochinov/Medvedev. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2002. SPINK, M. J. P.; MEDRADO, B. Produção de sentidos no cotidiano; uma abordagem teórico-metodológica para análise das práticas discursivas. In: SPINK, M. J. P. (Org.) Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez, 1999. Julianny de Lima Dantas Cavalcante 1476 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” LEITURA INTERATIVA E INDICIÁRIA: (RE)CONSTRUINDO OS SENTIDOS DO TEXTO Maria Leuziedna Dantas JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 Leitura Interativa e Indiciária: (Re)Construindo os Sentidos do Texto LEITURA INTERATIVA E INDICIÁRIA: (RE) CONSTRUINDO OS SENTIDOS DO TEXTO Maria Leuziedna Dantas Mestranda UFPB [email protected] RESUMO: O presente trabalho pretende abordar a perspectiva da leitura interativa e indiciária, como sendo instrumentos para gerar o conhecimento da realidade através da realização de novas aprendizagens, ao proporcionar a ampliação de horizontes. A construção dos sentidos durante o ato de ler só é possível através da interação dos elementos textuais com os conhecimentos de mundo do leitor, bem como pela sua prática de observador. A ideia de assumir um protagonismo do leitor, quando se debruça de forma inteligente, é algo importante para a construção do sentido do texto. Consideramos, portanto, a leitura alicerce da educação, pois tudo o que é ensinado depende dela para se manter e desenvolver. PALAVRAS-CHAVE: Leitura, interação, indícios. INTERACTIVE READING AND INDICIÁRIA: (REVERSE) BUILDING THE SENSES OF THE TEXT ABSTRACT: The present work intends to approach the perspective of the interactive reading and indiciária, as being instruments to generate the knowledge of the reality through the accomplishment of new learnings, when providing the enlargement of horizons. The construction of the senses during the action of reading is only possible through the interaction of the textual elements with the knowledge of the reader's world, as well as for his/her observer practice. The idea of assuming a protagonism of the reader, when he/she leans over in an intelligent way, it is something important for the construction of the sense of the text. We considered, therefore, the reading finds of the education, because everything that is taught depends on her to maintain and to develop. KEY-WORDS: Reading, interaction, indications. INTRODUÇÃO O objetivo deste texto é relacionar a teoria do paradigma indiciário ao processo de leitura interativa uma vez que as características deste conhecimento são aplicáveis Maria Leuziedna Dantas 1480 Leitura Interativa e Indiciária: (Re)Construindo os Sentidos do Texto durante o ato de ler. Como sendo uma ponte para o conhecimento de si mesmo e da realidade, a leitura é um instrumento necessário para a realização de novas aprendizagens, ao proporcionar a ampliação de horizontes. A construção dos sentidos durante o ato de ler só é possível através da interação dos elementos textuais com os conhecimentos de mundo do leitor, bem como pela sua prática de observador. Quanto maior for à relação entre eles, maior a probabilidade de êxito na leitura tendo em vista a construção dos sentidos. Diante disto, Aliende e Condemarin (1987, p.17) afirmam que “as pessoas que não lêem tendem a ser mais rígidas em suas idéias e ações e a conduzir suas vidas e trabalho pelo que se lhes transmite”. Longe de ser um processo passivo, a leitura estimula a criatividade, o pensamento e abrem seu mundo para a construção do conhecimento, capazes de valorizar o planejamento científico e a criação do saber gerado muitas vezes não pela dedução lógica, mas através de relações empíricas surpreendentes, permitindo, assim o desenvolvimento da sociedade. Assim, para compreendermos a relação entre o paradigma indiciário e o processo interativo de leitura, apresentaremos inicialmente a concepção de leitura ancorada pelo modelo interativo, em seguida discutiremos como a perspectiva do paradigma indiciário aproxima o leitor ao sentido do texto e o faz assumir uma postura crítica, sagaz e atenta, a fim de interpretar as pistas deixadas pelo escritor, transpondo-se para além do dito. O MODELO INTERATIVO DE LEITURA A perspectiva interacionista de leitura fundamenta-se na posição de que a linguagem é processo de interação humana e que o indivíduo faz uso da língua não só para traduzir e exteriorizar um pensamento, mas para agir, atuar sobre o interlocutor e produzir efeitos de sentidos. Diante disto, Coracini (2005, p.21) afirma: No caso da interação, como o próprio nome indica, a leitura constitui um processo cognitivo que coloca o leitor em frente do autor do texto ou da obra, seja ela de que natureza for, autor que deixaria marcas, pistas de sua autoria, de suas intenções, determinantes para o(s) sentido(s) possível (eis) e como o qual o leitor inter-agiria para construir esse(s) sentidos). Maria Leuziedna Dantas 1481 Leitura Interativa e Indiciária: (Re)Construindo os Sentidos do Texto Este modelo envolve os processos buttom-up e top-down, enfatizando a interação de um com outro. Kato (1985) afirma que os teóricos das áreas da cognição propuseram dois modelos de processamentos de informação: o modelo ascendente que o chamam buttom-up, pelo fato de partir das letras para as sílabas, das palavras, às frases e funciona com base na decodificação, indo do simples ao complexo, bem como o modelo descendente, chamado de top-down que parte do conjunto até chegar a unidades menores. Estes modelos enfatizam a exploração da memória e os conhecimentos prévios do leitor durante o processamento dos dados, sendo que o primeiro privilegia o texto e o segundo o leitor. As características do processamento ascendente retomam a visão estruturalista de ler, por fazer uso linear e indutivo das informações visuais, lingüísticas e composicionais, já o modelo descendente, se caracteriza pelo aspecto não-linear, dedutivo. As palavras são transformadas em ideogramas visuais, o contexto da palavra possibilita a adivinhação de seu sentido, por isso o leitor faz antecipações e confirma expectativas, usando os elementos textuais que sugerem. Na perspectiva interacionista não há privilégio do ascendente sobre o descendente, nem vice-versa. Teóricos da leitura como Kleiman (1995) defendem a interação dos dois modelos. O leitor capta informações de várias fontes (associação letra-som; sintaxe; semântica; contexto geral), gera hipóteses em todos estes níveis; e procura informação adicional em outros níveis para confirmar ou rejeitar as predições. Desta forma, não se começa com as letras para chegar ao significado e não se começa com o significado para chegar às palavras impressas, a informação de cada nível flui para o centro de mensagens que permite a análise simultânea de predições de várias fontes. Os aspectos “compreensão” e “interpretação” (CORACINI, 2005, p. 22) aparecerem como distintos no ato da leitura, sendo que o primeiro corresponderia à etapa da decodificação e o segundo estaria repleto de experiências e opiniões pessoais. É preciso notar que no olhar interacionista as leituras repletas de inferências dependem do texto e do autor que as autoriza ou não, pois a reconstrução dos sentidos do texto se dá através das marcas deixadas pelo autor, relacionando-as com os conhecimentos prévios, socialmente adquiridos do leitor, de modo que só serão aceitas as leituras que Maria Leuziedna Dantas 1482 Leitura Interativa e Indiciária: (Re)Construindo os Sentidos do Texto fizerem parte das permitidas pelo espaço textual. Para tanto concordamos com Ângela Kleiman (1995, p. 13) quando afirma: A compreensão de um texto é um processo que se caracteriza pela utilização de conhecimento prévio: o leitor utiliza na leitura o que ele já sabe, o conhecimento adquirido ao longo de sua vida. É mediante a interação de diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento lingüístico, o textual, o conhecimento de mundo, que o leitor consegue construir o sentido do texto. E porque o leitor utiliza justamente diversos níveis de conhecimento que interagem entre si, a leitura é considerada um processo interativo. Pode-se dizer com segurança que sem o engajamento do conhecimento prévio do leitor não haverá compreensão. Podemos entender como conhecimentos prévios tudo de que se vale o leitor na reconstrução do sentido, tais como o conhecimento de escrita e das convenções da linguagem, de seu conhecimento da língua, conhecimento de estruturas textuais, conhecimento do assunto, conhecimento do mundo do qual adquirimos formal ou informalmente. Nesta visão, o texto impresso por si só, não expressa significado. Ele simplesmente fornece direções para reconstruir o significado do autor, definindo a importância da interação leitor-texto-autor, a fim de imprimir ao texto possíveis sentidos de acordo com a história do leitor e suas experiências. Kato refere-se a esse modelo como reconstrutor (2005, p.71): A leitura seria um ato de reconstrução dos processos de produção. Ao contrário das propostas anteriores, que, apesar das diferenças, partilhavam entre si uma visão formalista de leitura, a concepção reconstrutora se apóia em pressupostos funcionalistas: enquanto aquelas viam o ato da leitura como uma integração entre o conhecimento do leitor e a informação dada pela forma do texto, este modelo vê o ato de ler como uma interação do leitor com o próprio autor, em que o texto apenas fornece pegadas das intenções deste último. Este modelo valoriza o “por que o escritor está dizendo o que o texto está dizendo” (Ibidem, p. 72), desta forma o leitor é encarado como participante, buscando as intenções subjacentes diante do que está posto no texto, sendo este o ponto de partida no processo de interação. Orlandi (2008, p.39) afirma: Maria Leuziedna Dantas 1483 Leitura Interativa e Indiciária: (Re)Construindo os Sentidos do Texto Na realidade, em linguagem (e, logo, em leitura) não há grau zero assim como não há grau dez. Na dicotomia entre método de ensino e processo de aprendizagem, a escola se coloca como se o aluno não tivesse já instalado um processo de aprendizagem e ao propor, dentro de suas perspectivas e funções, um método de ensino, coloca o aluno no grau zero e o professor no grau dez. A escola muitas vezes recusa os conhecimentos prévios dos educandos, quando identifica como certa a leitura do professor ou do livro didático. Podemos afirmar que não existe grau dez em leitura, uma vez que o indivíduo não pára de aprender, assim como não existe grau zero, pois estamos integrados ao mundo e de alguma forma estamos em processo de aprendizagem. Nesta proposta de leitura interativa, a leitura assume múltiplos sentidos, pois não há apenas um único sentido para o texto, ele sempre está relacionado aos conhecimentos prévios do leitor, demarcados a partir de sua vivência no mundo. O documento Base do PROEJA que tem como finalidade discutir os princípios e concepções fundamentais ao programa da educação profissional de nível médio integrada à EJA, considera o modelo de leitura interacionista ao propor a valorização dos conhecimentos prévios dos sujeitos envolvidos no processo educativo, a fim de contribuir com um projeto educacional caracterizado pelo resgate da cidadania. Segundo esse documento (2006, p.26) “os sujeitos alunos deste processo não terão garantia de emprego ou melhoria material de vida, mas abrirão possibilidades de alcançar esses objetivos, além de se enriquecerem com outras referências culturais, sociais, históricas, laborais, ou seja, terão a possibilidade de ler o mundo no sentido freiriano”. Analisando o exposto, podemos observar a presença da perspectiva de leitura de Paulo Freire (1995, p.11) “A leitura de mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquela”. Esta proposta relaciona-se com a visão interacionista, uma vez que o contexto social é o elemento a ser considerado no processo de leitura, demarcando bem a relação linguagem e sociedade, bem como a questão do condicionamento da compreensão textual à dinâmica texto e contexto. Desse modo, priorizam-se os saberes produzidos por esses sujeitos (BRASIL, 2006) decorrentes dos variados espaços sociais que a população vivência no seu estar no mundo. Assim, o ato de ler não se esgota na decodificação da palavra escrita, nem tão pouco na leitura única produzida pela visão do professor ou do livro didático, há o Maria Leuziedna Dantas 1484 Leitura Interativa e Indiciária: (Re)Construindo os Sentidos do Texto respeito aos conhecimentos prévios dos educados, logo as determinações históricosociais dão significação e densidade à leitura. Na Proposta Curricular da EJA no 2º segmento do Ensino Fundamental (2002) também verificamos a perspectiva interacionista de leitura. Elaborada com o intuito de propiciar aos sistemas de ensino que atendem ao público da EJA, particularmente aos educadores, subsídios à elaboração e/ou reelaboração do currículo, esta proposta serve como eixo norteador à construção do projeto pedagógico, em função da cidadania dos sujeitos envolvidos no processo. Coerente com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), mas considerando as especificidades da educação dos jovens e adultos, a proposta de leitura apresentada enfatiza a necessidade de reduzir a distância entre estudante e a palavra, procurando anular experiências traumáticas com processos de aprendizagem da leitura, assim como incentiva os educadores a formar uma visão diferente da palavra, para que esses sujeitos continuem motivados a compreender o discurso do outro, interpretar pontos de vista, assimilar e criticar as coisas do mundo (BRASIL,2002). Isto acentua o fortalecimento da voz de muitos jovens que de alguma forma sofreram perversos processos excludentes. Diante disto, podemos perceber a importância de se valorizar a perspectiva interacionista de leitura em nossas escolas. Na visão de Cagliari (2000) desenvolver a leitura na escola é a atividade fundamental, pois é mais importante saber ler do que escrever. A escola precisa oferecer oportunidades significativas de leitura, garantindo também a formação humana ao adolescente, ao jovem e ao adulto trabalhador o direito a uma formação completa para a leitura do mundo e para a atuação como cidadão pertencente a um país, integrado dignamente à sua sociedade política. Vivemos em circunstâncias históricas, os sentidos são produzidos em contexto, e mesmo aqueles travados ao longo do tempo não são estáveis, por isso afirma Bakhtin (2002, p.10) “o sentido da palavra é totalmente determinado pelo contexto. De fato, há tantas significações possíveis quantos contextos possíveis. No entanto, nem por isso a palavra deixa de ser uma”. Maria Leuziedna Dantas 1485 Leitura Interativa e Indiciária: (Re)Construindo os Sentidos do Texto CAÇADOR, INDÍCIOS, SIGNIFICADO Segundo Gonçalves (2008, p.287) “o modelo indiciarista de leitura da realidade apresenta contribuições interessantes (...) pelo apreço ao desenvolvimento das pluricompetências humanas”. Isso indica que há um convite ao estado de alerta e que através da leitura dos indícios, dos sinais poderemos compreender uma realidade de forma mais aprofundada, crítica. Logo esta postura é exigida na visão de um bom leitor, que reconstrói ou recupera o sentido do texto através da observação das marcas deixadas pelo autor para chegar à formulação das próprias idéias deste, interagindo com o texto e seu conhecimento de mundo. Desta forma um leitor crítico e sagaz se utilizada da leitura interacionista, articulando as estratégias metacognitivas com a perspectiva indiciária, para exercitar o pensamento e interpretar as pistas deixadas pelo autor, numa dinâmica texto-autorleitor. Na visão de Eco (1989, p.101 apud MELO, 2005, p.78) há dois tipos de leitores: Toda obra se propõe pelo menos dois tipos de leitor: o primeiro é a vítima designada pelas próprias estratégias enunciativas; o segundo é o leitor crítico que ri do modo pelo qual foi vítima designada. Exemplo típico – mas não único- dessa condição de leitura é o romance policial que prevê sempre um leitor de primeiro nível e um leitor de segundo nível. O leitor de segundo nível deve divertir-se não com a história contada, mas com o modo como foi contada. Podemos perceber que o primeiro leitor ainda está preso apenas ao processo de decodificação textual, atrelando-se superficialmente ao que está escrito, enquanto que o segundo leitor, através dos seus conhecimentos prévios e da capacidade de observação permite a construção significativa para além dos explícitos. São casos, pistas, indícios, sintomas, signos, que permitem captar uma realidade mais profunda. Segundo Ginzburg (1989) o paradigma indiciário é um modelo epistemológico, ainda não teorizado, mas bastante operante que tem suas raízes no homem sapiens a partir de suas habilidades caçadoras ao farejar, registrar, interpretar e classificar pistas complexas. Todos os elementos são indícios para se conseguir identificar por meio da observação a explicação de uma realidade: esterco, pegadas, pêlos, plumas não podiam passar despercebidos sob o olhar do homem diante do seu objetivo, a presa. Maria Leuziedna Dantas 1486 Leitura Interativa e Indiciária: (Re)Construindo os Sentidos do Texto O método indiciário apresentado por Ginzburg fundamentou-se na prática de investigação do médico Morelli, a fim de identificar o verdadeiro autor dos quadros artísticos e distinguir originais de cópias. Para isso, usava a técnica da observação não das características mais vistosas, que são facilmente imitáveis, mas, os pormenores mais negligenciáveis e menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia, como os lóbulos das orelhas, as unhas, a forma dos dedos das mãos e dos pés. A prática de Morelli foi brilhantemente comparada aos contos de detetive, de modo particular a Sherlock Holmes, pelo seu criador, Arthur Conan Doyle. “O conhecedor de arte é comparável ao detetive que descobre o autor do crime (do quadro) baseado em indícios imperceptíveis para a maioria”, (GINZBURG, 1989, p145). Os contos de detetive dão margem para que o leitor explore significamente as estratégias metacognitivas tais como: antecipação, permitindo prever o que ainda está por vir, inferências ao fazer a captação do que ainda não está dito no texto e a verificação, que é uma forma de controle ou não das demais estratégias. Kleiman (1993, p.49) afirma que: Todas essas estratégias de leitura podem ser inferidas a partir da compreensão do texto, que por sua vez é inferida a partir do comportamento verbal e não-verbal do leitor, isto é, do tipo de respostas que ele dá a perguntas sobre o texto, dos resumos com que ele manipula, se sublinha, se apenas folheia sem se deter parte alguma, se passa o olhos rapidamente e espera a próxima atividade começar, se reler? O leitor consciente se utiliza destas estratégias defendidas pelo modelo interacionista, para conseguir mais eficiência na leitura, pois quando não está entendendo o sentido procura reler o texto, faz resumo, enfim aciona diversas medidas que possam solucionar o problema. Gonçalves (2008, p.283) afirma que “os contos de detecção incitam o leitor a expandir sua imaginação, pincelando cenários e desafios perfeitos, para soluções surpreendentes (...) ele fica tentado a antecipar soluções, as mais inesperadas”. Assim como os contos de detetive que estimulam a percepção dos sinais, a literatura de Guimaraens Rosa também nos faz este convite. Como escritor, Guimarães é uma das principais expressões da literatura brasileira. De cunho regionalista, suas obras apontavam uma mudança na tradição Maria Leuziedna Dantas 1487 Leitura Interativa e Indiciária: (Re)Construindo os Sentidos do Texto regionalista por inovar a linguagem, recriando a fala do sertanejo. Como médico atuante no interior de Minas Gerais, soube interagir com o sertanejo, recolhendo material para suas obras. Em uma carta de Guimarães a João Conde, é revelado o seu modo de ler o interior mineiro, suas paisagens, o sertanejo, o misticismo, através da observação das marcas produzidas por esses elementos. Àquela altura, porém, eu tinha de escolher o terreno onde localizar minhas histórias. Podia ser Barbacena, Belo Horizonte, O Rio, a China, o arquipélago de Neo-Baratária, o espaço astral, ou mesmo, o pedaço de Minas Gerais que era mais meu. E foi o que Preferi. Porque tinha muitas saudades de lá.Porque conhecia um pouco melhor a terra, a gente, bichos, árvores. Porque o povo do interior sem convenções, “pôses” - dá melhores personagens de parábolas: lá se vêem bem as reações humanas e a ação do destino: lá se vê bem um rio cair na cachoeira ou contornar a montanha, e as grandes árvores estalarem sob o raio, e cada talo do capim humano rebrotar com a chuva ou se estorricar com a seca (...). Então passei horas de dias, fechado no quarto, cantando cantigas sertanejas, dialogando com vaqueiros de velha lembrança, “revendo” paisagens da minha terra. (ROSA, 1984, p.8). No conto, Corpo fechado, narrativa predileta de Guimarães Rosa diante de tantas apresentadas em Sagarana, obra inaugural do autor, vemos tão nitidamente a consciência de ser homem do sertão, com traços autobiográficos quando afirma: “Manuel Fulô foi o personagem que mais conviveu ‘humanamente’ comigo e cheguei a desconfiar de que ele pudesse ter qualquer espécie de existência”. (Ibidem, p.10). Guimarães nos passa a idéia de um escritor que leu o mundo do qual estava inserido na perspectiva dos indícios, anotando, registrando, produzindo conhecimento sobre o sertão, conforme nos apresenta o trecho, logo no inicio da narrativa; Pois foi nesse tempo calamitoso que eu vim para Laginha, de morada, e fui tomando de tudo a devida nota. O arraial era o mais monótono possível. Logo na chegada, ansioso por conversas á beira do fogo, desafios com viola, batuques e cavalhadas, procurei e procurei, e quebrei a foice. As noites, principalmente, impressionavam. Casas no escuro, rua deserta. raro, o pataleio de um cavalo no cascalho.O responso pluralíssimo dos sapos.Um só latido, mágico, feito por muitos cachorros remotos.Grilos finfininhos e bezerros fonfonando.E pronto”.(op. cit., p.276) Maria Leuziedna Dantas 1488 Leitura Interativa e Indiciária: (Re)Construindo os Sentidos do Texto Em Corpo fechado, a figura do personagem doutor que vai anotando tudo, confunde-se com o procedimento do próprio doutor João Guimarães Rosa, pesquisando e descrevendo minúcias tão reveladoras. A estória deste conto é narrada em primeira pessoa por um médico de um vilarejo do interior, em forma de entrevista com Manuel Fulô, contando casos para o doutor, submersos no mundo de feitiçarias e bruxarias. Na obra, um curandeiro fecha o corpo e anula a fragilidade do protagonista que, encouraçado pela fé, vence o vilão. Em meio à narrativa, Manuel Fulô nos conta um episódio de como aprendeu com os ciganos a negociar. “Garrei a maginar: o que eu nasci mesmo pra saber fazer é negócio de negociar com animal. Mas eu queria ser o melhor de todos...” (Ibidem, p.282). A postura indiciária é também reveladora em seus personagens, tal como Manuel Fulô que se colocou no lugar do outro a fim de descobrir quais eram as técnicas utilizadas pelos ciganos para negociar, com a finalidade de superá-las, analisando pistas que revelariam os pontos fracos. O conhecimento indiciarista permite-nos abstrair teorias a partir de elementos pormenores observáveis, através do “instituto singular de suposição ou inclinação para cogitar hipóteses” a qual Pierce se refere como “abdução” (TRUZZI in ECO e SEBEOK, 1991, p. 21), estimulando o observador a encontrar respostas confirmadas e refinadas pela indução. Assim fez Guimarães, abduzindo a realidade sertaneja, através do olhar observador, associado ao raciocínio para se chegar a uma definição. Em entrevista concedida a Günter Lorenz em Gênova1, Guimarães nos mostra como seu papel de “ser homem do sertão” foi o ponto de partida, para construir narrativas, personagens que faziam julgamentos perceptíveis, tendo como base as proposições a serem deduzidas. Chamou-me “o homem do sertão”. Nada tenho em contrário, pois sou um sertanejo e acho maravilhoso que deduzisse isso lendo meus livros, porque significa que você os entendeu. Se você me chama de “o homem do sertão” (e eu realmente me considero como tal), e queremos conversar sobre esse homem, já estão tocados no fundo os outros pontos. É que eu sou, antes de mais nada, este “homem do sertão”; e isto não é apenas uma afirmação biográfica, mas também – e nisto pelo menos acredito tão firmemente como você – que ele, esse 1 Günter Lorenz é crítico alemão e entrevistou Guimarães Rosa no Congresso de Escritores LatinoAmericanos, realizado em Gênova, em janeiro de 1965, dois anos antes da morte do autor. Maria Leuziedna Dantas 1489 Leitura Interativa e Indiciária: (Re)Construindo os Sentidos do Texto “homem do sertão”, está presente como ponto de partida mais do que qualquer coisa.( LORENZ, 1965) Esta interação de Rosa com o mundo sertanejo nos revela a importância do contexto social como elemento a ser considerado no processo de leitura interativa e indiciária, constitutivas do pensamento crítico, capazes de revelar intenções comunicativas subjacentes. Desta forma, o ato de ler não se esgota na decodificação da palavra escrita, é muito mais que isso. Neste processo é mister o estabelecimento de relações dentro de contextos, vivência de mundo, é descobrir e redescobrir sentidos, emoções, vida e prazer. CONSIDERAÇÕES FINAIS Abordar a questão da leitura é sempre uma necessidade, uma vez que são irrefutáveis as condições de produção de leitura para a criação e recriação do conhecimento, alicerce da educação, já que tudo o que é ensinado depende da leitura para se manter e desenvolver. A contribuição da leitura indiciária é relevante por envolver a presença de um de um leitor atento, que processa e examina o texto a fim de construir o significado. A leitura interacionista envolve a relação autor-texto-leitor numa perspectiva social, usando simultaneamente o conhecimento de mundo e conhecimento do texto para construir uma interpretação sobre o que se lê. Desta forma, leitura interativa e indiciária quando associadas, permite-nos relações profundas diante do estudado, uma vez que a legibilidade não está condicionada ao que está dito no texto, um bom leitor é capaz de relacionar intenções comunicativas subjacentes. Portanto, a leitura não coincide com os limites da página escrita. Acreditamos que este processo se realiza quando, por meio de inferências feitas a partir de pistas lingüísticas, somadas ao conhecimento de mundo do leitor. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALIENDE, Felipe; CONDEMAIR, Mabel. A leitura: teoria, avaliação e desenvolvimento. Trad. José Claudio de Almeida. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. Maria Leuziedna Dantas 1490 Leitura Interativa e Indiciária: (Re)Construindo os Sentidos do Texto BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 10. Ed. São Paulo: Hucitec, 2002 BRASIL, Ministério da educação. Documento Base. Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos - Proeja -2006 ________________. Ministério da educação. Proposta Curricular para a educação de jovens e adultos: segundo segmento de Ensino Fundamental 5ª a 8ª série. 2002. CAGLIARI, Luis Carlos. Alfabetização e Linguísica.5 Ed. São Paulo: Scipione,1992. FREIRE. Paulo. A importância do Ato de Ler. 31. Ed. São Paulo: Cortez, 1995. GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais. Trad. Frederico Caroti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. GONÇALVES, Luiz. G. Uma reinvenção dos saberes imemoriais nos contos de investigação criminal. In: Jezine, Edineide, Batista, Maria. S. X, Moreira, Orlandil. L. (Orgs). Educação popular e movimentos sociais: dimensões educativas na sociedade globalizada. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2008. KATO, Mary. A. O aprendizado da leitura. São Paulo: Martins Fontes, 1987. ________________. No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingüística. 8. Ed. São Paulo: Ática, 2005. KLEIMAN, Angela. O conhecimento prévio da leitura. In: ______. Texto e leitor. Aspectos cognitivos da leitura. 4. Ed. Campinas, SP: Pontes, 1995. ________________. Oficina de Leitura. Teoria e Prática. Campinas: Pontes, 1993. LORENZ, Günter. Entrevista com Guimarães Rosa. Gênova, 1965. Disponível em http://maldemontano.wordpress.com/2006/12/18/entrevista-com-guimaraes-rosa MELO, Márcia. H. Leitura Crítica: uma abordagem em língua estrangeira. In: Lima, R. C. P.(org.) Leitura múltiplos olhares.Campinas, SP. : Mercado das Letras, 2005, p.731001. ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e Leitura. 8 ed.São Paulo; Cortez, 2008. ROSA, Guimarães. Sagarana. 31. Ed. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1984. TRUZZI, Marcelo. Você conhece meu método: uma justaposição de Charles S. Pierce e Sherloch Holmes. In: ECO Umberto SEBEOK, THOMAS A. O Signo de três. São Paulo: Perspectiva. 1991.p.13-58. Maria Leuziedna Dantas 1491