Vol. III
ISSN 2175-831X
VIII SEMANA DE HISTÓRIA POLÍTICA
V SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA:
POLÍTICA, CULTURA & SOCIEDADE
(Anais – Iniciação Científica)
Rio de Janeiro
2014
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Reitor: Ricardo Vieiralves de Castro
Vice-Reitor: Paulo Roberto Volpato Dias
Sub-reitora de Graduação – SR1: Lená Medeiros de Menezes
Sub-reitora de Pós-Graduação e Pesquisa – SR2: Monica da Costa Pereira Lavalle
Heilbron
Sub-reitora de Extensão e Cultura – SR3: Regina Lúcia Monteiro Henriques
Diretor do Centro de Ciências Sociais: Léo da Rocha Ferreira
Diretora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH): Dirce Eleonora Nigro
Solis
Programa de Pós-Graduação em História (PPGH)
Coordenadora Geral: Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves
Coordenadora Adjunta: Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira
Coordenadora do Doutorado: Marilene Rosa Nogueira
Coordenadora do Mestrado: Maria Regina Candido
Semana de História Política | Seminário Nacional de História:
política, cultura e sociedade (x:2014:Rio de Janeiro)
Anais / VIII Semana de História Política / V Seminário Nacional de História:
Cultura & Sociedade; Vol. I; organização: Ana Beatriz Souza, David Barreto Coutinho,
Eduardo Nunes Alvares Pavão, Iamara da Silva Viana, Paulo Júnior Debom Garcia,
Renata Regina Gouvêa Barbatho – Rio de Janeiro: UERJ, PPGH, 2014.
400p.
Texto em português
ISSN – 2175-831X
1. História Política – Congresso. 2. Cultura – Sociedade. 3. Relações
Internacionais.
VIII SEMANA DE HISTÓRIA POLÍTICA
V SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA: POLÍTICA, CULTURA &
SOCIEDADE
Comissão Organizadora
Ana Beatriz Souza, David Barreto Coutinho, Eduardo Nunes Alvares Pavão, Iamara da
Silva Viana, Paulo Júnior Debom Garcia, Renata Regina Gouvêa Barbatho
Realização
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro –
PPGH/UERJ
Designer Gráfico
Junio Cesar Rodrigues Lima | email: [email protected]
Editoração Eletrônica
Junio Cesar Rodrigues Lima | email: [email protected]
Capa
Junio Cesar Rodrigues Lima | email: [email protected]
Site
Http: www.semanahistoriauerj.net/anais.htm
Todos os textos são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a
posição da editora ou da instituição responsável por esta publicação.
ÍNDICE
9
A MÚSICA COMO FONTE HISTÓRICA NA SALA DE AULA: UM
DIÁLOGO ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA DO ENSINO DE
HISTÓRIA
Ana Carla de M. Trindade
19
A CELEBRAÇÃO DO NEOCLÁSSICO NA FRONTEIRA OESTE DO
BRASIL
Ana Claudia dos Santos Bispo Neves
24
MARTINS PENA E O TEATRO COMO ESPELHO DA SOCIEDADE
Andréa Sannazzaro Ribeiro
32
A “HISTÓRIA OFICIAL” SANCIONADA EM LEI: A POLÊMICA
SOBRE A CRIMINALIZAÇÃO DA NEGAÇÃO DO HOLOCAUSTO
Antonio Isoldi Caleari
43
A REDEMOCRATIZAÇÃO BRASILEIRA EM DEBATE: PROTESTOS
POLÍTICOS NO ROCK DA DÉCADA DE 1980
Brenda Soares Silva
53
ALIMENTAÇÃO INFANTIL E PRÁTICAS MÉDICAS NO RIO DE
JANEIRO DA PRIMEIRA REPÚBLICA
Caroline Amorim Gil
63
SODOMITAS “DE COR” E INQUISIÇÃO EM SALVADOR NO
SECULO XVII.
Daniana Oliveira Bispo
74
POR UM MULTILATERALISMO AGRESSIVO: A POLÍTICA
EXTERIOR BRASILEIRA EM RELAÇÃO AO TRIBUNAL PENAL
INTERNACIONAL DURANTE A ERA LULA (2003-2010)
Drielle da Silva Pereira
84
RUPTURAS, PERMANÊNCIAS E TRANSIÇÃO: “A FORÇA DO
POVO” EM LAGES-SC (1977-1982).
Fabiano Garcia
95
RELAÇÕES MILITARES BRASIL/EUA (1934-1945)
Giovanni Latfalla
105
VICTOR KLEMPERER: UM JUDEU NA ALEMANHA NAZISTA
Gustavo Feital Monteiro
115
OS CARRASCOS VOLUNTÁRIOS: A RENOVAÇÃO
HISTORIOGRÁFICA DO HOLOCAUSTO A PARTIR DO
PARADIGMA GOLDHAGEN.
Jaqueline Rivas Paredes
127
O GOLPE CIVIL-MILITAR DE 1964 E A IGREJA CATÓLICA NA
CIDADE DE CARUARU
John Lennon José da Silva
143
DOCUMENTOS BIOGRÁFICOS: UM RETRATO DA VIDA
COTIDIANA DO IMPÉRIO MÓDULO: GRAÇAS E ORDENS
HONORÍFICAS
Júlia Lima Gorges; Rafael Monteiro de Oliveira Cintra; Renata Fernandes da
Silva Nogueira
148
A CONFEDERAÇÃO ABOLICIONISTA E O ABOLICIONISMO
NA CORTE
Júlio Cesar De Souza Dória
160
CARLOS LACERDA E A PROPOSTA PARTIDÁRIA UDENISTA DE
RELAÇÃO ECONÔMICA – DIPLOMÁTICA ENTRE BRASIL E EUA
(1945 – 1965)
Karen Garcia Pêgas
171
ÉTICA E POLÍTICA SEGUNDO MAQUIAVEL
Larissa Guimarães Valentim
182
ASPECTOS DA PROFISSIONALIZAÇÃO E RECONHECIMENTO DO
FUTEBOL NO BRASIL ENTRE 1930-1945
Liliane de Paula Gomes
188
OS ÍNDIOS E O CATOLICISMO: DISTINÇÕES ENTRE NORMA E
PRÁTICA NO MARANHÃO SETECENTISTA
Luana Maria dos Santos Leitão
196
NOVAS TECNOLOGIAS NO ENSINO DE HISTÓRIA: O USO DA
MÚSICA NA SALA DE AULA
Marcelo Márcio da Silva
205
AS REPRESENTAÇÕES DE BRASIL NAS CANÇÕES POPULARES
DE “BOM” E “MAU” GOSTO PRODUZIDAS AO LONGO DO
SÉCULO XX
Maria Letícia Silva Ticle; Isabela Lemos Coelho; Maíra Maduro Leão
214
LIBERDADE E RESISTÊNCIA NOS PANFLETOS DO GRUPO
ROSA BRANCA
Maria Visconti Sales
225
RETRATO DA SOCIEDADE RURAL INGLESA E EDUCAÇÃO
FEMININA NOS ROMANCES DE JANE AUSTEN
Mariana Aires Alves Veloso
236
ESCRITAS DA HISTÓRIA E CONSTRUÇÃO HISTORIOGRÁFICA:
JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES NO ESPAÇO DA PRODUÇÃO
INTELECTUAL DOS ANOS 1950
Mariana Rodrigues Tavares
244
HISTORIOGRAFIA E POLÍTICA NO INSTITUTO HISTÓRICO E
GEOGRÁFICO DE MINAS GERAIS
Mariana Vargens Silva
256
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL NA FRONTEIRA OESTE DO BRASIL
Mayara Laura Silva de Arruda
263
“SOB O CÉU E SOBRE O SOLO” DO SÉCULO XXI: O ATIVISMO
LÚDICO DA EXTREMA-DIREITA EM CAPTAIN SCARLET
(2005-2009)
Natália Abreu Damasceno
274
A MARINHA DE GUERRA NA AMAZÔNIA REPUBLICANA: A
ATUAÇÃO DOS NAVIOS E AS QUESTÕES DE SEGURANÇA
NACIONAL, CONTROLE E VIGILÂNCIA NO INÍCIO DO
SÉCULO XX (1900-1910).
Pablo Nunes Pereira
279
‘TRUTH WELL TOLD: O PAPEL DA AGÊNCIA PUBLICITÁRIA
McCANN-ERICKSON NA AMERICANIZAÇÃO DO BRASIL NO
SEGUNDO GOVERNO VARGAS (1951-1954)
Patrícia Sunah de Negreiros Lopes
293
O MORTO, A MORTE E O TRABALHO DE LUTO: FORTALEZA - CE
E A MUDANÇA DE SENSIBILIDADE ENTRE OS ANOS DE 1920
E 1940.
Pedro Holanda Filho
304
OS QUATORZE MESES QUE ABALARAM A SELEÇÃO NACIONAL:
JOÃO SALDANHA, TREINADOR DO BRASIL
Raphael Barroso Graciano
313
A MILITÂNCIA COMUNISTA NA FREGUESIA RURAL DE
JACAREPAGUÁ - RJ: O CASO DO MÉDICO NEGRO JACINTO
LUCIANO MOREIRA E OS CONFLITOS DE TERRA NO SERTÃO
CARIOCA (1935-1962)
Renato de Souza Dória; Leonardo Soares dos Santos
324
O "PROBLEMA AFRICANO" DA SOCIEDADE DE GEOGRAFIA DE
LISBOA: DOMINAÇÃO E "CIVILIZAÇÃO DA RAÇA AFRICANA"
Rodolfo Souza Tavares
334
OS FILMES NO ENSINO DE HISTÓRIA
Ronillo Azevedo dos Santos
343
A VISÃO DO ASTRO. UMA ANÁLISE SOBRE OS CARAMURUS NAS
PÁGINAS DO ASTRO DE MINAS
Rumennig Douglas Weitzel Teodoro
353
OS PRAZERES E OS SABORES DA MESA ORDESTINA: UMA
HISTÓRIA DA CULINÁRIA NORDESTINA NA PERSPECTIVA DE
GILBERTO FREYRE E SUA OBRA CASA-GRANDE & SENZALA.
Taísa Fernanda Souza
363
REFLEXÕES INICIAIS ACERCA DA MODA MEDIEVAL
Thaiana Gomes Vieira
373
O ESTADO PORTUGUÊS NA MODERNIDADE: TENSÕES E
RELAÇÕES DE PODER ENTRE A METRÓPOLE PORTUGUESA E A
COLÔNIA BRASILEIRA
Thaís Silva Félix Dias
381
MEMÓRIAS REPUBLICANAS DA CIDADE IMPERIAL (1930-1945):
MEMÓRIA COLETIVA E IDENTIDADE SOCIAL
Thales Rocha de Freitas
392
O CAMINHO PARA A LIBERDADE: ASCENSÃO DE “LIBERTOS”
NA CAPITAL DA PROVÍNCIA DO MARANHÃO (1830 – 1845)
Wallas Meireles Gouveia
APRESENTAÇÃO
É com felicidade que chegamos ao terceiro volume dos anais da oitava edição da Semana de
História Política – Iniciação Científica, pretendendo dar continuidade às questões que foram
abordadas nos encontros anteriores, bem como promover a pesquisa histórica e o diálogo.
Tivemos o intuito de aproximar todos os níveis acadêmicos dos pressupostos teóricometodológicos, que compõem o âmbito da História Política.
Esse projeto visa fomentar o debate com recém-doutores, prezando por divulgar a produção
historiográfica dos interessados e promover o intercâmbio de idéias entre os profissionais
(discentes e docentes) das mais variadas linhas e instituições. Desse modo, pretendemos
contribuir para a solidificação do Programa de Pós-Graduação, além de investir na produção
editorial da revista Dia-Logos, fruto imediato do desenvolvimento desta Semana de História.
Dentro de seu espírito de incentivo aos novos pesquisadores, a Semana de História inovou nesse
ano, no que tange a graduação. Abrimos espaço para que graduandos, com iniciação científica
ou em fase de conclusão, pudessem contribuir de maneira mais incisiva, se apresentando
oralmente na comunicação de trabalhos, em substituição aos painéis apresentados nos anos
anteriores.
Nossa iniciativa partiu da idéia de preencher os espaços entre graduação e pós-graduação, e da
valorização da produção dos trabalhos iniciais, os quais todos os anos eles participam no evento
com dinamismo e qualidade. Salientamos ainda que, na VIII Semana de História Política, os
resumos dos que se enquadraram na categoria de graduação, foram publicados em nosso
Caderno de Resumos.
O evento realizou-se nas dependências da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob a
direção de uma Comissão Organizadora, composta por discentes do Programa, que se liga à
Coordenação da Pós-Graduação em História, contudo, alcançou pesquisadores de todo Brasil.
Tivemos também algumas propostas de comunicação internacionais. O que sustenta a dimensão
e peso que tem nosso evento. A VIII Semana de História Política impulsionou pesquisadores de
diversos Programas do Estado, e também do país, a produzir e movimentar seus conhecimentos,
permitindo-os ganhar visibilidade, ampliar a temática e trocar experiências.
Foi de grande valia tal esforço dos discentes, junto à Coordenadoria do Programa, em
administrar a Semana, de forma que contribuísse para a construção de mais um espaço de
discussão e de apropriação do universo científico acadêmico, corroborando com a práxis de
pesquisa e de docência dos cursos de pós-graduação no Brasil.
A Comissão Organizadora gostaria de agradecer aos laboratórios vinculados ao Programa de
Pós-Graduação da UERJ, à Sub-Reitoria de Pós-Graduação e ao Fundo de Amparo á Pesquisa
do Estado do Rio de Janeiro pelo apoio ao evento, sem o qual este não seria possível.
Sobretudo, a Comissão Organizadora saúda os proponentes, estudantes de pós-graduação vindos
de universidades de todas as regiões do país. A Semana de História Política as UERJ existe por
eles, e para eles.
Comissão Organizadora (www.semanahistoriauerj.net)
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A MÚSICA COMO FONTE HISTÓRICA NA SALA DE AULA: UM DIÁLOGO
ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA DO ENSINO DE HISTÓRIA
Ana Carla de M. Trindade
Resumo:
Este trabalho problematiza a utilização da música como fonte histórica na sala de aula e as
possibilidades de utilização desse objeto no espaço escolar, bem como sua contribuição na
construção da consciência histórica dos alunos dos níveis de ensino fundamental e médio.
Dialogaremos com a historiografia do ensino de história e com trabalhos que discutem a
relação história e música. Apresentaremos resultados de intervenções realizadas com turmas
de uma escola pública da cidade de Caicó-RN, onde desenvolvemos atividades do PIBID.
Palavras-chave: Ensino de História, Música, Consciência histórica.
Abstract:
This work problematize the use of the music as historical source in the classroom and the
possibilities of use of that object in the school space, as well as their contribution in the
construction of the historical conscience of the students' from middle and high school. We
will dialogue with the historiography of the history teaching and with works that discuss the
relation between the history and the music. We will present the results of interventions
realized in classes of a public school in the city of Caicó-RN, where we developed activities
of PIBID.
Keywords: History teaching, Music, historical Conscience.
UM BREVE DIÁLOGO COM O ENSINO DE HISTÓRIA
O ensino de História passou/passa por inúmeras mudanças no que diz respeito à prática
docente e ao “fazer histórico” no ambiente escolar, principalmente depois da década de 1970,
o que exigiu do professor dessa disciplina uma renovação na sua prática pedagógica e no
“fazer histórico” ensinado na sala de aula. A esse respeito, Pinsky e Pinsky acreditam que “é
necessário, portanto, que o ensino de História seja revalorizado e que os professores dessa
disciplina conscientizem-se de sua responsabilidade social perante os alunos”1.

Licencianda em História pelo Centro de Ensino Superior do Seridó da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte e bolsista de iniciação à docência – PIBID-CAPES –, coordenada pela professora Dra. Jailma Maria de Lima.
[email protected]
1
PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla. Por uma História Prazerosa e Consequente. In: KARNAL, Leandro. História na
Sala de Aula: conceitos, práticas e propostas. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2005. p. 22.
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Nesse sentido, em várias partes do mundo, estudiosos têm se preocupado com a
prática do ensino de História no espaço escolar. Teorias como a do historiador contemporâneo
Jörn Rüsen são traduzidas e discutidas no Brasil, servindo de referência quase que obrigatória
para as pesquisas referentes ao ensino de História. Rüsen discute a aplicação da didática da
História e a construção da consciência histórica, as quais, segundo ele, têm suas origens na
ação/orientação humana no tempo. Luís Fernando Cerri, no artigo “O Historiador na reflexão
didática”, problematiza, com base em Bergmann e Rüsen, a importância da aplicação da
didática da História, permitindo refletir sobre ela, pois, segundo ele:
Faz parte da reflexão didática da História, portanto, conhecer e aprofundar-se no
contexto cultural no qual o ensino e a aprendizagem se dão, e pensar em formas
produtivas de relacionar-se com ele. O inverso disso é algo em que temos larga
experiência: a ilusão de que o ensino de História nas escolas é um processo de
simplificação e transmissão de conhecimento a recipientes vazios. Nessa ilusão, o
complemento é a perplexidade, quando constatamos que os alunos não aprendem
História ou a assimilam com uma plêiade de “distorções”2.
Cabe ao professor, portanto, problematizar os fatos históricos, encontrando meios que
possibilitem a discussão dos conteúdos propostos inseridos na cultura escolar. Com base nos
debates historiográficos acerca do ensino de História, observamos que estes nos apontam
inúmeras fontes documentais utilizadas como importantes recursos didático-metodológicos no
processo de ensino-aprendizagem de História, como: imagens, fotografias, músicas, dentre
outros. A música, por sua vez, tratada como documento histórico e recurso didáticometodológico, está ganhando destaque e espaço na sala de aula.
Desse modo, este trabalho tem por objetivo problematizar as possibilidades de
utilização desse objeto no espaço escolar, mostrando a importância/utilidade da música como
documento/fonte histórica e recurso didático-metodológico para o ensino de História. A
música auxilia na compreensão dos conteúdos históricos e exerce papel de interlocutora no
diálogo professor-aluno, contribuindo como mediadora da construção da consciência histórica
dos educandos, uma vez que, por meio dela, é possível fazer análises/reflexões do momento
histórico estudado, levando os alunos a compreenderem, conforme defende Rüsen, suas
“ações no tempo”.
Temos como base teórico-metodológica o conceito de evidência de Rosalyn Ashby, o
conceito de consciência histórica do historiador alemão Rüsen, os estudos sobre documento
22
CERRI, Luís Fernando. O Historiador na Reflexão Didática. História & Ensino, Londrina, v. 19, n. 1, p. 27-47,
jan./jun. 2013.
10
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histórico dos franceses Jacques Le Goff e Henri-Irénnée Marrou, as pesquisas que
problematizam as fontes históricas na sala de aula, de Circe Bittencourt e Katia Abud, bem
como o trabalho sobre a relação entre história e música, de Marcos Napolitano e José Vinci de
Moraes. Por fim, apresentaremos, neste estudo, a prática docente na sala de aula, realizada por
meio de duas oficinas aplicadas no Centro Educacional José Augusto, localizado na cidade de
Caicó-RN, o que somente foi possível devido às atividades do programa de iniciação à
docência na área de História – PIBID.
A MÚSICA COMO FONTE HISTÓRICA E DIDÁTICO-METODOLÓGICA
Para trabalharmos a música enquanto documento histórico na sala de aula, tomamos como
base o conceito de evidência de Rosalyn Ashby. Segundo a autora, “a evidência histórica
situa-se entre o que o passado deixou para trás (as fontes dos historiadores) e o que
reivindicamos do passado (narrativas ou interpretações históricas)” 3. Sendo assim, o conceito
de evidência “Encoraja o uso de vários tipos de materiais que o passado deixou para trás, a
fazer e a responder a questões que visam interrogar e avaliar fontes em relação a investigações
particulares e no contexto da sociedade que as produziu” 4.
Corroboramos também o pensamento dos franceses Le Goff e Marrou sobre o que
constitui um documento histórico. Segundo Le Goff, “o documento é monumento, resulta do
esforço das sociedades históricas para impor ao futuro, voluntariamente ou involuntariamente,
determinada imagem de si próprias”5. Para Henri-Irénnée Marrou, “Constitui um documento
toda fonte de informação de que o espírito do historiador sabe extrair alguma coisa para o
conhecimento do passado humano, considerado sob o ângulo da questão que lhe foi
proposta”6.
Logo, ao se analisar a música como evidência do seu tempo, conforme Ashby,
trabalhando-a como fonte histórica, é possível construir uma narrativa de determinado
3
ASHBY, Rosalyn apud MEDEIROS, Daniel Hortêncio. Conceito de Evidência: esboço de um diálogo entre
Educação, Histórica e Filosofia. Currículo sem Fronteiras, v. 7, n. 1, p. 197-205, jan./jun. 2007, p. 199.
4
ASHBY, Rosalyn apud ABUD, K. M. Registro e representação do cotidiano: a música popular na aula de História.
Caderno Cedes, Campinas, v. 25, n. 67, p. 309-317, set./dez. 2005, p. 312.
5
LE GOFF, J. apud KORNIS, Mônica Almeida. História e Cinema: um debate metodológico. Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 237-250. 1992, p. 238.
6
MARROU, Henri-Irénnée apud NAVARRETE, Eduardo. Cinema como fonte histórica: diferentes perspectivas
teórico-metodológicas. Revista Urutágua – Revista acadêmica multidisciplinar, n. 16, ago./set./out./nov. 2008, p.
20.
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contexto social no qual o compositor/intérprete estava inserido, pois, voluntária ou
involuntariamente, este recebeu influência do meio social ao qual pertencia, refletindo em
composições sobre sentimento/fatos de seu tempo; “neste caso, a utilização da música como
fonte documental, tratada como evidência, favorece a cognição histórica no sentido do
desenvolvimento de inferências pelos educandos, quando esses conseguem imaginar como
pensavam e viviam as pessoas em outros tempos e lugares”7.
Segundo Circe Bittencourt, “a música tem-se tornado objeto de pesquisa de
historiadores muito recentemente e tem sido utilizada como material didático com certa
frequência nas aulas de História”8. Estudos na área nos alertam sobre a importância e os
cuidados que devemos ter com o uso dessas fontes enquanto documento. Bittencourt, no livro
Ensino de História: fundamentos e métodos, especificamente no capítulo “Usos didáticos de
documentos”, traz uma discussão acerca da importância da prática dessas fontes na sala de
aula como intermediadora do processo de ensino-aprendizagem, bem como ressalta que “é
preciso ter cuidado para que os documentos forneçam informações claras, de acordo com os
conceitos explorados, e não tornem difícil a compreensão das informações” 9. A esse respeito,
continua:
As fontes históricas em sala de aula são utilizadas diferentemente. Os jovens e as
crianças estão “aprendendo História” e não dominam o contexto histórico em que o
documento foi produzido, o que exige sempre a atenção no momento propício de
introduzi-lo como material didático 10.
De tal modo, cabe ao professor selecionar e problematizar o documento, nesse caso, a
música, de forma clara e objetiva na sala de aula, fazendo com que os educandos participem
do “fazer histórico”, colocando-se como sujeitos ativos desse processo. O educador deve se
preocupar não somente em discutir a música como reflexão da letra, mas também ousar se
aprofundar, junto com o aluno, do universo cultural em que as canções foram produzidas,
trabalhando a melodia, a letra e o lugar social do compositor. Segundo Marcos Napolitano,
muitos ainda analisam “„letra‟ separada da „música‟, „contexto‟ separado da „obra‟, „autor‟
7
PRADO, Berenice Schelbauer. História na Música: elementos de uma metodologia para trabalhar com música no
ensino de História na perspectiva da educação histórica. 2009. 31f. Artigo de conclusão do Programa de
Desenvolvimento Educacional-PDE, Curitiba, 2009. p. 6.
8
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. 3. ed. São Paulo: Cortez,
2009. (Coleção docência em formação. Série ensino fundamental. Coordenação de Antonio Joaquim Severo, Selva
Garrido Pimenta). p. 378.
9
BITTENCOURT, 2009, p. 330.
10
BITTENCOURT, 2009, p. 329.
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separado da „sociedade‟, „estética‟ separada de „ideologia‟” 11, o que dificulta, muitas vezes, a
interpretação/contextualização histórica dos fatos. Nesse sentido, Moraes afirma:
A música, além de seu estado de imaterialidade, atinge os sentidos do receptor, estando,
portanto, fundamentalmente no universo da sensibilidade. Por tratar-se de um material
marcado por objetivos essencialmente estéticos e artísticos, destinados à fruição pessoal
e/ou coletiva, a canção também assume inevitavelmente a singularidade e características
especiais próprias do autor e de seu universo cultural12.
Sendo assim, a música, por si só, ocupa um espaço imaterial e material no universo
cultural do qual fazemos parte. Presente em nosso cotidiano, reflete os sentimentos e as
ideologias que nos permeiam, servindo como mediadora de nossas emoções, que são
traduzidas em seu universo complexo de sons, vozes e ritmos, transformando-se em trilhas
sonoras das nossas histórias cotidianas, passadas e futuras.
Várias pesquisas estão/foram feitas considerando-se a música como fonte documental
para analisar determinados períodos da História, por exemplo: o período militar brasileiro
(1964-1985), que é bastante trabalhado pelos professores e historiadores por meio de músicas
da época, principalmente as chamadas músicas de protestos, através das quais é possível fazer
uma reflexão acerca das transformações acontecidas no país, analisando a participação da
massa populacional frente à repressão vivida, assim como as ideologias presentes naquele
contexto histórico. Assim, letras como Cálice, Apesar de você, Pra não dizer que não falei
das flores, de artistas como Chico Buarque, Geraldo Vandré, Caetano Veloso, dentre outros,
são bastante expressivas para entender a participação popular frente à ditadura militar no
Brasil. Desse modo, a utilização da música enquanto fonte documental possibilita ao
educando ampliar sua visão dos fatos, bem como projetar suas ações no tempo.
O historiador brasileiro Marcos Napolitano afirma que “a música popular brasileira
tem um lugar sociogeográfico que seria tanto mais autêntica e legítima quando mais fiel a
esse passado”13. Sobre a relação entre história do Brasil e música, o autor afirma:
A música [...] ocupa no Brasil um lugar privilegiado na historiografia sociocultural,
lugar de mediações, fusões, encontro de diversas etnias, classes e regiões que formam o
11
NAPOLITANO, Marcos. História e Música: história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica,
2002. p. 08.
12
MORAES, José Geraldo Vinci de. História e Música: canção popular e conhecimento histórico. Revista Brasileira
de História, São Paulo, v. 20, n. 39, p. 211, 2000.
13
NAPOLITANO, 2002, p. 54.
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nosso grande mosaico nacional [...] arrisco dizer que o Brasil, sem dúvida [...], é um
lugar privilegiado não apenas para ouvir a música, mas também para pensar a música14.
Diante disso, podemos questionar: como pensar a música na sala de aula? Quais são as
maneiras e as dificuldades encontradas? Como sabemos, ouvir música, na maioria das vezes,
é um momento de prazer, descontração, relaxamento, sem a pretensão de analisá-la, mas
sentindo a emoção do momento e deixando-nos levar por ela. Contudo, Circe Bittencourt
afirma que esse prazer/diversão, “ao entrar na sala de aula, se transforma em uma ação
intelectual. Existe, enorme diferença entre ouvir música e pensar a música”15.
É importante ressaltar que não estamos afirmando que não é possível fazer da aula um
momento de prazer ao escutar a música enquanto fonte histórica, pelo contrário, esse
momento de prazer passa a ser acompanhado de uma discussão e construção do saber
histórico, que possibilita entender o conteúdo de forma diversificada. Sendo assim, o aluno
tem contato com dois tipos de fontes: a escrita (letra) e a oral (áudio), podendo analisar
também as transformações tecnológicas de uma determinada época, uma vez que as
gravações, por serem de outro período, não possuem as tecnologias atuais. Nesse caso, fica a
critério do professor problematizar tais vertentes inseridas no universo cultural em que as
canções foram produzidas.
Com isso, tal problematização da fonte documental, transformada em material
pedagógico, auxilia na construção da consciência histórica, uma vez que os alunos podem
interpretar como se produziram determinadas experiências humanas naquele contexto
estudado, em que a música está inserida, possibilitando, como Rüsen defende, “se orientar,
internacionalmente, sua vida no tempo”16. Segundo o autor, “se entende por consciência
histórica a soma das operações mentais com as quais os homens interpretam sua experiência
da evolução temporal de seu mundo e de si mesmo”17.
14
NAPOLITANO, 2002, p. 7.
15
BITTENCOURT, 2009, p. 380.
16
RÜSEN, J. Razão histórica: teoria da história: fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2001, p. 57.
17
RÜSEN, 2001, p. 57.
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UM DIÁLOGO COM A PRÁTICA DOCENTE: AS POSSIBILIDADES DE
UTILIZAÇÃO DA MÚSICA ENQUANTO FONTE HISTÓRICA E SEU PAPEL DE
INTERMEDIÁRIA NA CONSTRUÇÃO DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA
A escola foco de nossa pesquisa é o Centro Educacional José Augusto, localizado na cidade
de Caicó-RN. Essa instituição de ensino faz parte do projeto do Programa Institucional de
Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) na área de História, em que desenvolvo meus estudos
e minha prática docente. Usaremos nesta comunicação duas oficinas aplicadas na escola, uma
no ensino fundamental e outra no ensino médio. As turmas e os conteúdos foram os seguintes:
9° ano – Período militar brasileiro, música utilizada: Cálice, 1978, de Chico Buarque; 2° “B”
– Era Vargas, músicas: Bonde de são Januário, 1940, de Wilson Batista, Três apitos, 1931, de
Noel Rosa, e Aquarela do Brasil, 1939, de Ary Barroso.
Em cada oficina, aplicamos as músicas de forma que nos auxiliassem a transmitir os
conteúdos estudados, ajudando no diálogo com os alunos bem como na construção da
consciência histórica, uma vez que as canções serviram como mediadoras do saber discutido,
possibilitando aos educandos entenderem o seu presente por meio do estudo do passado,
fazendo uma ligação entre passado, presente e futuro. Nesse sentido, Rüsen defende:
A consciência histórica pode ser descrita como atividade mental da memória histórica,
que tem sua representação em uma interpretação da experiência do passado
encaminhada de maneira a compreender as atuais condições de vida e desenvolver
perspectivas de futuro na vida prática conforme a experiência 18.
No primeiro momento da análise, buscamos observar os produtos gerados do 9° ano,
tendo como base o conceito de consciência histórica (Rüsen), que nos ajuda a identificar a
indagação apresentada no objetivo do texto sobre o papel da música como fonte documental
que auxilia na construção da consciência histórica.
Na oficina do 9° ano, aplicada no segundo semestre de 2012, buscamos discutir o
período ditatorial brasileiro, ocorrido entre os anos de 1964-1985. Procuramos debater esse
conteúdo com o aluno, construindo o saber histórico de forma que ele entenda as
transformações ocorridas naquele contexto social, projetando-as nas organizações
socioculturais do presente. Após explanação introdutória do conteúdo e discussão sobre a
participação dos sindicatos e dos estudantes no movimento contra a ditadura, colocamos a
18
RÜSEN, Jörn. Jörn Rüsen e Ensino de História. Organização de Maria Auxiliadora Schmidt, Isabel Barca,
Estevão de Rezende Martins. Curitiba: Editora da UFPR, 2011, p. 112.
15
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música Cálice, de Chico Buarque, e a problematizamos como documento histórico. Esse
momento foi crucial na oficina, uma vez que fizemos uma ligação entre o período, a música e
o cantor, dialogando sobre o que levou o compositor a escrever determinada canção, a qual é
clara na denúncia ao regime ditatorial da época.
Através da participação dos alunos na aula e principalmente por meio das análises
feitas acerca da música, nas quais propomos que fizessem uma conexão da letra com o
contexto em que o compositor estava inserido (de forma dissertativa), observamos em várias
falas a construção da consciência história, assim como defende Rüsen, pois os educandos
afirmaram a importância de se estudar esse período para entender os direitos e a organização
social do presente. Notamos, além disso, a importância da música como mediadora na
construção desse pensamento histórico.
Com base nas análises das atividades feitas pelos alunos, observamos de forma clara e
objetiva a importância da música como documento histórico a ser trabalhado na sala de aula,
servindo como intermediadora da construção do saber, já que os alunos conseguiram fazer,
em sua maioria, a ligação da canção com o contexto no qual ela estava inserida. Ressaltamos
também o papel da música como facilitadora dessa construção, uma vez que eles conseguiram
perpetrar a conexão entre passado e presente, organizando historicamente suas “ações no
tempo” (Rüsen), apontando a importância de estudar o passado na perspectiva de se
compreender o presente, projetando-se para o futuro. A música contribui, assim, para a
aprendizagem histórica. Seguindo Rüsen:
A aprendizagem da história é um processo de desenvolvimento da consciência histórica
no qual se deve adquirir competências da memória histórica. As competências que
permitem efetuar uma ideia de organização cronológica que, com uma coerência interna
entre passado, presente, futuro, permitirá organizar a própria experiência de vida 19.
A segunda oficina foi aplicada no 2º ano “B”, denominada de “Era Vargas”.
Salientamos que essa oficina pode ser desenvolvida tanto no ensino fundamental – 9º ano
(ano que estão estudando o conteúdo) – como no ensino médio, uma vez que os alunos já
tiveram contato com o assunto no 9º ano. Nessa oficina, problematizamos o governo Vargas,
enfatizando as políticas de base e a exaltação à pátria. A música foi usada como fonte
documental que nos auxiliou a discutir as questões elencadas acima, sendo utilizada tanto no
decorrer da explanação como de forma avaliativa (dissertativa) no fim da oficina.
19
RÜSEN, 2011, p. 113.
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Após discutirmos a revolução de 1930, passamos a falar sobre as questões trabalhistas,
as leis criadas, os ministérios e a adesão das mulheres à fábrica e ao voto. Ao debatermos
esses pontos, colocamos as seguintes músicas: O bonde de São Januário, de Wilson Batista,
1940, e Três apitos, de Noel Rosa, 1931. Antes de cada uma ser reproduzida, falamos um
pouco sobre o cantor/compositor. Depois que elas foram escutadas, fizemos as seguintes
perguntas: por que essas músicas falam de trabalho? De fábrica? Bonde? Operário? Muitos
conseguiram fazer a ligação com as questões problematizadas. É claro que reformamos o
assunto, fazendo uma ligação com a música, explicando que esses compositores/cantores
viveram naquele período e, de forma involuntária ou voluntária, cantaram as transformações
sociopolíticas da época e enfatizando que eles (alunos) estavam tendo contato com um
documento histórico.
Continuamos a nos utilizar da música, mas agora para falar da exaltação à pátria.
Colocamos a canção Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, 1939. Depois de reproduzi-la,
problematizamos junto ao aluno o patriotismo presente na letra. As músicas empregadas na
aula facilitaram a explanação do conteúdo bem como o processo de ensino-aprendizagem,
uma vez que conseguimos dialogar com os alunos, que se fizeram sujeitos ativos da
construção do saber, participando da discussão, compreendendo o período explanado e
construindo uma consciência histórica, pois a maioria passou a ver que estudar esse período é
importante para entender as transformações atuais, fazendo uma conexão entre passado,
presente e futuro. Para Rüsen:
A aprendizagem histórica é um processo de fatos colocados conscientemente entre dois
polos, ou seja, por um lado, um pretexto objetivo das mudanças que as pessoas e seu
mundo sofreram em tempos passados e, por outro, o ser subjetivo e a compreensão de si
mesmo, assim como a sua orientação no tempo 20.
Antes do fim da oficina, utilizamos as mesmas músicas empregadas no decorrer da
explicação para fazer uma atividade dissertativa. Cada aluno ficou responsável por uma
música trabalhada na discussão, e sugerimos que eles fizessem uma ligação da canção com o
momento estudado. Os resultados foram satisfatórios, já que os estudantes conseguiram fazer
o exercício proposto.
Desse modo, com base nas análises feitas pelos educandos, apontamos mais uma vez a
importância da música, por ela auxiliar na construção de uma narrativa histórica por estes,
20
RÜSEN, 2011, p. 82.
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visto que eles conseguiram compreender determinadas razões ou ocorrências que aconteceram
no passado fazendo uma ligação entre as músicas e o contexto em que foram produzidas,
compreendendo que estudar tais transformações os auxilia a entender-se enquanto sujeitos
históricos e agentes ativos do espaço sociocultural do qual fazem parte. Portanto,
concordamos com Duarte quando este afirma: “é salutar a utilização da linguagem musical no
ensino de história com o objetivo de fazer com que os alunos compreendam os motivos pelos
quais as pessoas atuaram no passado de uma determinada forma e o que pensavam sobre a
maneira como faziam”21.
CONCLUSÃO
Nos questionários respondidos pelos alunos, fizemos duas perguntas: a primeira, que foi
respondida antes da oficina, questionava se os educandos já tiveram contato com a música na
sala de aula e a segunda, se a música facilitou a aprendizagem. A pesquisa nos apontou que a
maioria, mais de 70% dos alunos, não lembrava e que, quando recordava, essas músicas
ficaram reduzidas às aulas de Inglês e Espanhol, ou seja, em nenhum dos questionários havia
a disciplina de História. A segunda pergunta nos apontou resultados satisfatórios, uma vez
que mais de 90% do alunado afirmou que a música auxiliou na aprendizagem.
Sendo assim, com base nesses questionários, nas atividades feitas pelos alunos e nas
discussões historiográficas sobre o ensino de História e a relação entre música e história feitas
nesta comunicação, concluímos que a utilização da música como fonte documental e material
didático-metodológica auxilia o professor no diálogo com os alunos bem como na construção
da consciência histórica, possibilitando o contato dos educandos com o documento histórico,
os quais se colocam como sujeitos ativos da edificação do conhecimento, ampliando sua visão
sobre determinado período estudado e podendo se orientar no tempo e espaço, o que ajuda a
perceber/entender as transformações político-sociais do presente.
21
DUARTE, Milton Joeri Fernandes. A Música e a construção do conhecimento Histórico em aula. 2011. 160 f.
Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de São Paulo, São Paulo,
2011, p. 13.
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A CELEBRAÇÃO DO NEOCLÁSSICO NA FRONTEIRA OESTE DO BRASIL
Ana Claudia dos Santos Bispo Neves22
Resumo:
A cidade de Cáceres vivenciou em 1996 em âmbito municipal e estadual o tombamento de
bens imóveis. Entre as edificações tombadas está o prédio da Escola Estadual Esperidião
Marques que possui características neoclássicas; retratando uma elite local emergida após a
Guerra do Paraguai. Nas festividades de seu centenário, ocorreu além do enaltecimento
monumental do prédio, o interesse e sensibilidade por sua preservação. Nesta perspectiva, o
Projeto PIBID subprojeto/História, dissemina na rede pública de ensino a importância da
educação patrimonial.
Palavras-Chave: Educação Patrimonial, Memórias, Festividades.
Abstract:
In 1996 Carceres city experienced the municipal and state the tipping of real property. Among
the tumbled edifications is the Public School “Esperidião Marques” building that have
neoclassic features, portraying a local elite that surged after Paraguay War. On the building‟s
Centenary Festivities brought about, beyond of the aggrandizement, the interest and
sensibility for your preservation. In this perspective the PIBID Project subproject/history
disseminates the significance of the patrimonial education in the public schools.
Keywords: Patrimonial Education, Memoirs, Festivities.
Delimitada por uma região de Fronteira e localizada no Sudoeste de Mato Grosso á 220 km da
capital Cuiabá, a cidade de Cáceres fundada em 06 de outubro de 1778 com o nome de Vila
Maria do Paraguai, por iniciativa da política colonial portuguesa de ocupação, sob comando
de Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres quarto Capitão General de Mato Grosso,
apresenta diversos potenciais e atrativos turísticos, no contexto dos atrativos encontra-se o seu
conjunto arquitetônico e paisagístico nacional constituído pelas edificações mais antigas, que
foram tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN.
Cáceres conta com a formação de fazendas históricas pastoris que contribuíram para o seu
desenvolvimento e composição de sua história, grande parte dos produtos econômicos de
Mato Grosso saía dos portos de Cáceres e era escoada para os países platinos através do rio
Paraguai que é de extrema importância para a região. Com o fim da guerra da Tríplice Aliança
22
UNEMAT- Universidade do Estado de Mato Grosso-Campus Jane Vanini de Cáceres.
19
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contra o Paraguai em 1870 e com a reabertura das navegações, foram introduzidos outros
estilos arquitetônicos mais sofisticados de construção advindos de novos materiais e técnicas
importadas da Europa, como o Neoclássico e o Eclético, que tendem a construir uma memória
coletiva local, de valorização de uma elite que emergiu na cidade a partir da criação de
grandes casas comerciais, voltadas para a importação e exportação de gêneros além da
pecuária.
Em pleno pantanal mato-grossense, Cáceres integra a lista do patrimônio cultural do
Brasil. Ressaltando a necessidade da proteção federal para o município o Departamento de
Patrimônio Material e Fiscalização – Depam/Iphan destaca os valores históricos, urbanísticos
e paisagísticos de Cáceres. Desde sua fundação, a cidade desempenhou importante papel para
a definição de fronteiras entre terras brasileiras e castelhanas, foi também fundamental para a
defesa da fronteira entre terras brasileiras e bolivianas representando importante documento
da história urbana do país.
Cáceres apresenta uma forma urbana assumida como precipitação espacial da
estratégia portuguesa de expansão da colônia para oeste, e pela função que cumpriu como
entreposto comercial. O município é, ainda, testemunho vivo do intercâmbio entre os
processos naturais e sociais, em que o Rio Paraguai se destaca na configuração do sítio urbano
e como principal elemento que marca e interage com a paisagem urbana.
Começando a perder sua aparência de um passado rural e passando a se adaptar aos
modelos de progresso, é que surge nesse cenário urbano nas primeiras décadas do século XX,
as estruturas organizacionais do Grupo Escolar Esperidião Marques, inserido no campo da
História das instituições escolares. Surgiu em quatro de fevereiro de 1910 como importante
instituição escolar de Mato Grosso, alcançado pelo projeto republicano de ensino
representando o palco para a expressão do imaginário social e local da ação política da
Republica, em seu magnífico excesso de luxo. Com esse caráter a instituição alcançaria
visibilidade social e, ao mesmo tempo, ajudava a revigorar princípios culturais vivenciados
pela sociedade.
As escolas eram centradas nos ideais republicanos de modernização, e estavam juntas
num sistema cuja estrutura organizacional tinha como representantes os presidentes de estado,
seguido dos diretores gerais, da inspetoria, dos diretores das escolas e por último dos
professores e alunos. Este novo modelo criado nos moldes do projeto paulista de escola,
20
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chegou ao Rio de janeiro em 1897, e se espalhou pelo Brasil alcançando Mato Grosso em
1910, diferenciando e dando novos rumos no sistema educacional do estado.
Os moldes de educação estatal, representado pelos grupos escolares “[...] surgiu
primeiramente com a tarefa de garantir - por meio do ensino - que a população em seu
conjunto fosse homogeneizada, e, para tanto, o conhecimento das primeiras letras e das
noções de coisas era requisito básico” (REIS, 2006, p. 202).
Um dos fundadores do grupo escolar Esperidião Costa Marques o professor Venâncio
José da Silva, passou a direção da escola ao professor José Rizzo com autorização pública do
estado, e de acordo com o escritor Natalino Ferreira Mendes (1973), este passou a exercer o
cargo de inspetor escolar, vindo a organizar aquela Instituição de Ensino nos moldes de outros
Estados do país.
“Estes edifícios puderam sintetizar todo o projeto político atribuído à educação popular:
convencer, educar, dar- se a ver! O edifício escolar torna-se portador de uma
identificação arquitetônica que o diferenciava dos demais edifícios públicos e civis ao
mesmo tempo em que o identificava como um espaço próprio, lugar específico para as
atividades de ensino e do trabalho docente. Na arquitetura escolar encontram-se
inscritas, portanto dimensões simbólicas e pedagógicas” (SOUZA, 1998, p. 123)
Em Mato Grosso também procuraram erguer templos de civilização relevantes ao
republicanismo, visando à universalização da educação, traduzido regionalmente na Escola
Modelo, Barão de Melgaço na capital Cuiabá – 1º Distrito 1910, Grupo Escolar General
Caetano de Albuquerque em Poconé 1912, e Grupo Escolar Costa Marques em São Luiz de
Cáceres 1912 Grupo Escolar que mais tarde passou a denominar-se Esperidião Marques.
Definida oficialmente a criação do Grupo Escolar de São Luiz de Cáceres do Poder Executivo
de 1912, cuja base foi a Reforma da Instrução Pública Primária de 1910, erigiu-se assim uma
escola ancorada nos preceitos do positivismo, nacionalismo, liberalismo e laicismo, a qual
ganhou significado especial para a população local.
A educação escolarizada é alcançada em uma grande relevância social e política
nos primeiros anos do Brasil-República, e é neste contexto que se insere a Primeira Reforma
da Instrução Pública Paulista de 1892 a 1896, projeto bastante promissor a sua época, que
expressava o desejo dos republicanos em conceder à educação formal as camadas populares
instituindo a obrigatoriedade do ensino primário, a profissionalização dos professores,
edifícios primorosos para os primeiros grupos escolares e a aquisição de materiais didáticos
inovadores eram considerados símbolos de modernização do ensino, e de propaganda da
jovem república instaurada em 1889.
21
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Havia a possibilidade de um projeto educativo concebido de maneira não
homogênea, mais respondendo a outros projetos sociais de sujeitos ou grupos distintos. No
que se refere ao impacto da valorização da escola para a sociedade, a historiadora Circe
Bittencourt faz o seguinte destaque:
As tradições nacionais e o ritual das festas cívicas, escrito em 1988 e publicado em
1990, que o regime republicano, ao privar o direito de voto aos não alfabetizados,
colocou o ensino em posição privilegiada, sobretudo em relação à constituição do
direito político dos cidadãos brasileiros: “Ser cidadão, com determinados direitos
[...] significava também cumprir obrigações e estar de acordo com valores ditados
pelo poder constituído, sendo que estas normas estabelecidas integravam uma das
aprendizagens fundamentais para o aluno”. (BITENCOURT, 1990, p. 165).
As dimensões históricas da escola, da cidade e dos direitos envolveram a
localização (fronteira Brasil-Bolívia), e, sobretudo suas formas de representação municipal e
de relações sociais aperfeiçoados por um regime pautado na cidadania, civilidade, civismo,
higienização e progresso. Nestes quesitos a elite política e econômica da cidade tratou de se
mobilizar para levar a efeito o projeto de modernização, a partir do ensino. A construção do
grupo escolar Esperidião Marques teve inicio no ano de 1913 e foi encerrada em 1920, na
esquina da Praça Duque de Caxias, parte central da cidade, o prédio foi inaugurado em 9 de
março do mesmo ano.
Elevada em nível de 1º grau o grupo Escolar “Costa Marques”, passa a denominarse Escola Estadual de 1º grau Esperidião Marques em 06 de novembro de 1975, abrigando
outras escolas “José Rizzo” “Onze de Março”, “IESC” Instituto de Ensino Superior de
Cáceres, atualmente UNEMAT – Universidade do Estado de Mato Grosso, que deu seus
primeiros passos neste Estabelecimento de Ensino, daí a importância deste majestoso prédio
que possui tamanho valor para a sociedade cacerense.
Localizada no centro da cidade de Cáceres, a Escola Estadual Esperidião Marques,
foi tombada como patrimônio histórico pelo IPHAN dentre as 48 edificações no ano de 1996,
de estilo Neoclássico ressalta a beleza em seus detalhes, tornando-se ponto turístico
municipal, conforme certidão adquirida pela Secretaria Municipal de Esporte e Cultura e
lazer.
Sua arquitetura com ornamentos decorativos, frontões e destaque para as
platibandas é de origem portuguesa e foi introduzido na cidade de Cáceres no final do século
XIX, cuja beleza e importância atraem visitantes de diversos lugares.
22
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Nas festividades de seu centenário no ano de 2012, ocorreram além do
enaltecimento monumental o interesse e sensibilidade por sua preservação, no sentido de
disseminar essa ideia na rede pública de ensino do município, é que o projeto PIBID
Subprojeto/História chama atenção para a importância da educação patrimonial, voltada para
o Ensino de História e formação de futuros professores da disciplina.
Com a caracterização dos estilos arquitetônicos das edificações pode-se perceber
que há uma influência que tende a mutilação e transformação das edificações, quando
inseridas no centro comercial. Esses atrativos precisam estar presentes na vida cotidiana
pública local para que se consiga ter significado enquanto patrimônio, e assim ser incorporado
à atividade turística, o que pode ser obtido via educação patrimonial. 23242526
23
ARRUDA, Adson. Imprensa, vida urbana e fronteira: a cidade de Cáceres nas primeiras décadas do séc.
XX (1900-1930). Cuiabá: UFMT, 2002 pg 10.
24
PINHO, Rachel Tegon de. Cáceres: olhares sobre a tessitura urbana de São Luiz de Cáceres. Ed.
UNEMAT, Cáceres 2011. Pg 69.
25
BENCOSTTA, Marcus Levy Albino. Grupos Escolares no Brasil: um novo modelo de escola primária. In:
STEPHANOU, Maria & BASTOS, Maria Helena Camara. Histórias e Memórias da Educação no Brasil. Vol.
III – Século XX. Petrópolis - RJ: Vozes, 2005.
26
REIS, Rosinete Maria dos . A Implantação dos Grupos Escolares em Mato Grosso. In: Nicanor Palhares
Sá; Elizabeth Madureira Siqueira; Rosinete Maria dos Reis. (Org.). Instantes e Memórias na História da
Educação. Brasília; Cuiabá: Inep; EdUFMT, 2006.
23
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MARTINS PENA E O TEATRO COMO ESPELHO DA SOCIEDADE
Andréa Sannazzaro Ribeiro.27
Resumo:
Em um Brasil recém - independente, a obra de Martins Pena caracterizou as graças e
desventuras da sociedade brasileira e suas instituições. Neste trabalho pretende-se, por
meio das peças “Os Dois ou o Inglês e O Maquinista” e “As Casadas Solteiras”, de sua
autoria, a investigação de como sua obra pode servir de espelho para a compreensão da
sociedade brasileira e de seus costumes no momento em que esta começava a criar
raízes autônomas e a estabelecer projetos para a consecução de uma identidade
nacional. As obras citadas são analisadas como fonte capaz de contribuir para o
conhecimento histórico do período, objetivando-se assim construir um diálogo entre
teatro, sua função simbólica e representatividade social.
Palavras-chave: História do Teatro – Estética – Cultura.
Abstract:
In a newly independent Brazil, the works of Martins Pena characterized graces and
misadventures of Brazilian society and its institutions. By Pena's plays “Os Dois ou o
Inglês e o Maquinista" and "As Casadas Solteiras" analysis, this paper intends to
investigate how his works can serve as a mirror to understanding of Brazilian society
and its customs at the time Brazil was beginning to develop autonomous cultural basis
and establish projects to the achievement of a national identity. The mentioned works
are analyzed as a good source to contribute to the historical knowledge of the period,
thus aiming at building a dialogue among theater, its symbolic function and social
representation.
Keywords: History of Theatre - Aesthetics – Culture.
INTRODUÇÃO
O estudo da produção teatral de Martins Pena mostra-se fecundo sob a luz dos
acontecimentos de sua época, pois é capaz de proporcionar condições de possibilidade
para a investigação da construção de um imaginário social no que concerne aos
elementos constituintes da identidade nacional brasileira.
O dramaturgo carioca desenvolveu sua trajetória intelectual nas décadas seguintes
à independência política brasileira junto a Portugal, de quem fora colônia. No interior da
27
Graduanda em História na Universidade Federal de Ouro Preto. Bolsista de iniciação cientifica pelo
CNPQ, projeto que deu origem esse [email protected]
24
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nova corte, buscou rastrear e retratar, através da comédia, os modos e os costumes de
uma sociedade ainda em processo de elaboração de seu passado próprio que se
distanciasse daquele construído no seio da nação lusitana. De certo modo, pode-se dizer
que o teatro, a história, a literatura, os homens das letras, estariam em busca da
construção de uma individualidade histórica.
A obra de Pena vai de 1833 a 1845, momento este em que o Brasil começa se
reconhecer como nação autônoma. Destacamos, acerca deste período, que se o país
consegue promover sua independência, é justamente por existirem anseios neste
sentido:
A independência foi longamente preparada por uma literatura de moldes
nativistas: depois que D. Pedro I a proclamou, em 1822, as artes deveriam
incorporá-la à sua expressão. (MAGALDI, 2001:34).
Como coloca o autor Benedict Anderson, antes de uma nação ser de fato consolidada,
ela precisa ser fortemente imaginada: como a imagem viva de comunhão entre os pares.
As características comuns de determinados grupos seriam o que possibilita sua
autenticidade e autoconsciência, a ponto de se reconhecerem como nação. Este
imaginário formado é que vem a ser representado por meio das artes, do discurso da
imprensa e de ideologias políticas. Com esta consciência bem definida é que aparece o
nacionalismo, que pode ser entendido como um artefato cultural específico, e para
compreender que artefato é este é preciso entender como seus significados se
modificaram com o tempo, e como esses grupos que se reconhecem como nação se
serviram desses artefatos de diferentes maneiras e por que hoje em dia estes podem
ainda inspirar uma legitimidade profunda
. O nacionalismo , portanto, aponta as
características com que cada nação se reconhece ̶ características que a torna soberana e
única. (ANDERSON, 2008).
Dentro desta problemática, é abordo as obras teatrais de Martins Pena, destacando
suas características, a época, e o modo como esta “autoconsciência” brasileira eclode
em sua obra, indicando o caminho para a o entendimento e a consolidação de uma
identidade nacional.
Em pleno surto do movimento romântico, idealizador de um nacionalismo róseo,
Martins Pena antecipa, com noção precisa, alguns dos nossos traços dominantes,
ainda que menos abonadores. (MAGALDI, 2001:42)
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Trazendo uma temática (a temática nacional) "nova" para a dramaturgia feita no
Brasil é que Martins Pena se insere neste contexto. Para os críticos da época, é com a
estréia de: O Juiz de Paz na Roça que o autor inaugura a chamada comédia de costumes
no Brasil:
(...) a 4 de outubro de 1838, pela mesma companhia de João Caetano estreava O
Juiz de Paz na Roça, sem alarde publicitário e pretensão histórica. Era a primeira
comédia escrita por Martins Pena (1815- 1848) com observação satírica dos
aspectos da realidade brasileira. (MAGALDI, 2001:42)
Seis anos depois, em 28 de Janeiro de 1845, estréia a peça Os Dois ou o Inglês
Maquinista, comédia também feita em um ato, sendo representada no Teatro São Pedro.
Alguns meses depois, no mesmo teatro, em 18 de novembro de 1845 estréia, com a
comédia feita em três atos as Casadas Solteiras. Peças essas em que a figura do
estrangeiro no Brasil é tratada de maneira peculiar, assim como era peculiar o
tratamento dado por eles ao chegar em terras brasileiras e lidar com Brasileiros, todos
esses elementos usados de maneira caricatural e cômica. Em as Casadas Solteira: uma
personagem diz que “os estrangeiros falam que não gostam do Brasil mas sempre vão
chegando, para lhe ganharem o dinheiro” (MAGALDI, 2OO1:45).
Podemos também questionar que sociedade era essa que o teatro de Martins Pena
se propunha a satirizar. Se sua obra espelhava as características de uma nação que
começava a se formar, ao fazer comédia de costumes, poderia ele revelar o que de novo
acontecia no cotidiano nacional similar às comédias de Molière, a quem é comparado.
(DÉCIO, 2008:57).
O TEATRO ESPELHO DA SOCIEDADE
Esta pesquisa se propõe como continuidade da anterior desenvolvida no período 20122013 também, intitulada “Martins Pena e o Teatro de Costumes no Brasil Império: Uma
leitura da Nação em "O Juiz de Paz na Roça”. Esta abriu um novo horizonte de questões
que necessitam ser investigadas a partir da análise de mais duas peças de Martins Pena “Os Dois
ou o Inglês e O Maquinista” e “As Casadas Solteiras”, estendendo-se a investigação para como
sua obra pode servir de espelho para a compreensão da sociedade brasileira e de seus costumes e
objetivando-se assim construir um diálogo mais profundo entre teatro, sua função simbólica e
representatividade social.
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Assim sendo, o teatro parece funcionar como espelho da sociedade e se mostra
construtor de uma individualidade histórica. Neste sentido, investigar o poder simbólico
do teatro e de seus tipos pode ser extremamente frutífero pelas questões que suscita. O
teatro era um dos espaços mais importantes onde ocorriam trocas e mediações durante o
século XIX, possibilitando circularidade cultural (BAKHTIN, 2006 [1987]). As obras
de Martins Pena eram ricas em elementos da cultura presente no país recémindependente sendo possível dessa forma, além do fortalecimento da cultura, a
possibilidade de criação de uma memória desta. O Palco e o teatro já serviam assim
desta forma como uma representação, e até mesmo uma expressão critica de vícios e
virtudes.
Na conclusão de O Teatro das Sombras, o Historiador José Murilo de Carvalho28,
faz referencia a discussão proposta por Hayden Whyte 29 de como é possível aprender
História através da ficção:
Dos quatro modos, o romance, a tragédia, a comédia, e a sátira, o que parece
melhor adequar ao sistema Imperial é mesmo a comédia. A Comédia admite o
conflito, gira em torno dele, mas permite a reconciliação final, embora parcial,
dos homens entre si e com as circunstancias, reconciliação feita em geral em
clima festivo. (CARVALHO, 2003:168).
Segundo José Murilo de Carvalho a ficção, no caso a comédia com sua estrutura
pronta a revelar desmazelas e vícios caricaturalmente com o intuito de fazer rir, servia
para representar o jogo de representações presente na Monarquia do Império. Destaca
ele como Ferreira Vianna, em 1867, usa a imagem do Imperador do Brasil em um
encontro com Nero, discutindo (no cenário de Roma) técnicas para o uso do poder
Despótico. A forma teatral, era dessa forma usada como forma de ataque ao rei. Tais
representações eram feitas com um tom crítico muitas vezes para desmascarar a forma
não verdadeira e disfarçada que o Império agia. Joaquim Nabuco em 1883 também irá
usar a metáfora teatral para definir o sistema Imperial. Para o Historiador a forma em
que o enredo do teatro é construído, se iguala com a maneira em que a Monarquia no
Brasil agia, articulando dessa maneira uma metáfora de possível expressão do jogo
político presente naquelas circunstâncias, onde a Coroa representava um jogo de
28
CARVALHO, José Murilo de. A construção da Ordem/Teatro das sombras. Rio de Janeiro, Ed.
Civilização Brasileira: 2003. PP. 168.
29
WHITE, Hayden - “O Texto Histórico como Artefato Literário”. In: Trópicos do Discurso, Ensaios Sobre
A Crítica Da Cultura. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994.
27
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aparências e rituais para criar um imaginário não condizente com a própria realidade
onde o Poder da Coroa era limitado:
A representação política tem em si elementos que podem ser comparados à
representação teatral.Ambas as representações se exercem em palcos
montados, através de atores que têm papeis conhecidos e reconhecidos.Há
regras de atuação, há enredo e, principalmente, há ficções.Em política, a
primeira ficção é a própria ideia de representação. De fato, é preciso admitir
um grande faz-de- conta, é preciso crença para aceitar que alguém possa falar
autenticamente por milhares de pessoas. (CARVALHO,2003: 166).
José Murilo se refere à discussão do autor Hayden White onde este exalta a utilização
do estilo literário ficcional, propondo uma revisão na discussão de formas narrativas para ser
incorporada na História, criando assim uma aproximação com a Literatura. Para ele, a forma de
buscar sentindo na narrativa Histórica é a mesma do processo ficcional, já que as estruturas no
qual formam as narrativas históricas são também fruto da escolha da própria imaginação do
Historiador, observa-se dessa maneira um outro significado a imaginação como sendo capaz de
se extrair dela elementos reis.
A distinção mais antiga entre ficção e história, na qual a ficção é concebida
como a representação do imaginável e a historia como a representação do
verdadeiro, deve dar lugar ao reconhecimento de que só podemos conhecer o
real comparando – o ou equiparando-o ao imaginável. (WHITE, 1994:115).
Dessa forma Hayden White irá alem, especificando que o trabalho do Historiador não se
diferencia do romancista, já que em ambas o produto da imaginação é fruto do real. A partir
destas observações, e do ponto de vista de José Murilo de Carvalho de definir a comédia como
uma representação sátira da realidade do Brasil Império, podemos assim conceber a obra de
Martins Pena, como um registro possível de ser extraído dele conhecimento Histórico. Pode-se
dessa maneira observar que Martins Pena ao expressar em forma teatral o que imaginava da
sociedade Imperial reservava dessa maneira um lugar a sua obra dentro da própria História,
reforçando um significado peculiar para arte teatral, a de produtor de conhecimento Histórico ao
servir de espelho da sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se objetiva nesta pesquisa, buscar os elementos teóricos necessários para que se
compreenda a relação entre teatro e representatividade social. Para isso menciono o
dialogo já presente na pesquisa em andamento, entre dois autores para o entendimento
28
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do teatro como arte portadora de um discurso capaz de carregar um poder simbólico,
Hannah Arendt30 e Pierre Bourdieau31:
Na analise da peça, partindo do conceito do teatro sendo uma arte da ação, sendo
seu texto criado com esse fim.
A autora Hanna Arendt define que ação é articulada
para a propagação de um discurso: Nenhuma outra atividade humana precisa tanto do
discurso quanto a ação.(ARENDT, 2009: 192). Martins Pena se insere em uma geração
Romântica no Brasil, embora não faça uma arte teatral propriamente Romântica, já que
introduz algo novo: a comedia de costumes no Brasil, a sua essência é Romântica uma
vez que transparece seu caráter primordial: o de levar para o palco características
extraídas da sociedade Brasileira, fazendo dessa forma um teatro nacionalista, são não
apenas atores Brasileiros no palco, mas personagens Brasileiros em terras brasileiras,
algo inédito no Brasil. Dessa forma Pena carrega o discurso Romântico em sua obra.E
faz isso por meio da ação. Arendt aponta que é por meio da ação e no discurso que os
homens mostram quem são, ao analisar os personagens percebemos como cada um
carrega os tipos sociais presentes na sociedade brasileira. Para Hannah Arendt a ação é
articulada para a propagação do discurso, e essa necessidade só convém no âmbito das
relações humanas. Graças a isto é possível “produzir‟‟ historias. Historias que podem
depois ser registradas ou não. Ainda autora menciona que:
O caráter de revelação,especifico da ação e do discurso, a manifestação
implícita do agente e do autor das palavras, esta tão indissoluvelmente vinculado
ao fluxo vivo da ação e da fala que só pode ser representado e “retificado”
mediante uma espécie de repetição, a imitação ou mímesis que, segundo
Aristóteles, existe em todas as artes, mas só é realmente adequada ao drama. (...)
Só os atores e interlocutores que reconstituem o enredo da história podem
transmitir o significado total, não tanto da historia em sim, mas dos “heróis” que
ela põe em cena e evidencia.(...) Esta é também a razão pela qual o teatro é a
arte política por excelência, somente no teatro a esfera política da vida humana é
transposta para a arte. Pelo mesmo motivo, é a única arte cujo assunto é
exclusivamente,
o
homem
em
suas
relações
com
outros
Homens.(ARENDT,2009: 200).
Diante disso notamos que se Martins Pena consegue colocar em evidencia os
vícios presente na sociedade Brasileira. É pelo caminho da denúncia desta sociedade
que o comediógrafo ira produzir sua comedia. O teatro será um lugar para se discutir e
30
ARENDT, HANNAH. A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2009.
31
BOURDIEU, Pierre. “Descrever e prescrever: os limites da eficácia política”, In: A economia das trocas
simbólicas. São Paulo: EDUSP, 1998.
29
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repensar o seu próprio tempo. Martins Pena nos serve com teatro neste momento para a
percepção de uma sociedade avessas em contradições,entre aquilo que se é, e aquilo que
se deseja ser.
É possível então constatar na analise
das peças como através das ações
determinadas pelo texto teatral fazem um efeito direto ao público que se dirige. No caso
a sociedade Imperial Brasileira do ano de 1833.32 Diante deste contexto é possível
analisar a peça juntamente com questão da construção da identidade nacional no século
XIX, temática central presente na cultura durante o Brasil Império, em consonância
com a análise do poder simbólico que o teatro possui. Poder-se-ia pensar a prática
discursiva de Martins Pena e de sua geração sob o prisma daquilo que Pierre Bourdieu
denomina “discurso herético”. Segundo o sociólogo, a “subversão herética explora a
possibilidade de mudar o mundo social modificando a representação desse mundo que
contribui para sua realidade”. Lutas simbólicas em torno da identidade étnica ou
cultural, como destaca Bourdieu, em torno de propriedades ligadas à origem, constituem
um caso particular de lutas entre classificações, “lutas pelo monopólio do poder de
fazer ver e de fazer crer, de fazer conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição
legítima das divisões do mundo social e, por essa via, de fazer e desfazer os grupos".
(BOURDIEU, 1998: 117-126).
Ainda Pierre Boudieu define que o sistema simbólico é como uma troca invisível,
uma construção da realidade que para ser criada tem de ter relação direta a quem se
dirige. Considerando as peças do dramaturgo oitocentista Martins Pena, teve como
inspiração as diversas características dos costumes da recém-independente sociedade
Brasileira, costumes estes que serviram de elemento primordial para compor o efeito da
comédia: fazer rir.
Busco porem, definir o teatro não como uma obra conscientemente arquitetada
com esse fim pelo autor. Mas talvez possa se dizer que a descrição que ele faz da
sociedade,também seja o que ele pensa da própria sociedade, e ele absorveu de todas as
estratégias necessárias para criar o efeito desejado, o da comedia. E não seria esse
efeito uma própria critica? De fato, essa resposta nunca será obtida, cabe aqui apenas
32
Segundo Darcy Damasceno, Martins Pena declarou ter escrito a peça no ano de 1833. In: MARTINS PENA,
Luís Carlos. Comédias de Martins Pena (Edição crítica de Darcy Damasceno, colaboração de Maria
Filgueiras). Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1966.
30
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não separar a obra do mundo em que ele está, uma vez que o trabalho do historiador
consiste também em historiscizar o horizonte de significação dentro do qual o autor
está.
31
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A “HISTÓRIA OFICIAL” SANCIONADA EM LEI: A POLÊMICA SOBRE A
CRIMINALIZAÇÃO DA NEGAÇÃO DO HOLOCAUSTO
Antonio Isoldi Caleari 33
Resumo:
Crítica à legitimidade das leis europeias que tornam crime a assim chamada “negação
do Holocausto”, bem como ao projeto de lei, de idêntica natureza, em trâmite no
Congresso Nacional. Metadiscussão sobre os limites da Revisão Histórica. Intersecção
institucionalizada entre a História e o Direito, por meio da judicialização de embates
acadêmicos. Liberdade de Expressão (Animus Revidere) na forma de um direito
fundamental contido na esfera de liberdades individuais que, assim sendo, é imune à
intervenção penal do Estado (Jus Puniendi).
Palavras-chave: Negação
Neocriminalização
do
Holocausto
–
Liberdade
de
Expressão
–
Abstract:
A critique of the legitimacy of the european laws that criminalize the so-called
"Holocaust denial", as well as the draft bill of the same nature, which is being processed
on the Brazilian National Congress. Meta-discussion about reviewing the history and its
limitations. Institutionalized intersection between the History and Law by the
judicialization of academic disputes. Freedom of Speech (Animus Revidere) in the way
of a fundamental right within the scope of individual freedoms, being immune to the
penal intervention of the State (Jus Puniendi).
Keywords: Holocaust Denial – Freedom of Speech – Neo-Criminalization
INTRODUÇÃO
Tem ocupado espaço eventual nos veículos de mídia e no seio acadêmico, já há alguns
anos, uma polêmica sobre tema dos mais sensíveis na atualidade: a Revisão Histórica
dos fatos e desdobramentos da Segunda Guerra Mundial, sobretudo o evento que
conhecemos como Holocausto Judeu. Essa teoria é representada por um movimento
intelectual anatematizado, pejorativamente alcunhado “negacionista” por seus
opositores.
Até o ponto em que se tratava de uma dissensão social, aparentemente, apenas
no plano ideológico, a pesquisa sobre o tema seria de pouco interesse aos estudiosos do
Direito. Configuraria um campo de estudos à parte das Ciências Jurídicas e mais
33
Bacharel em Direito pelo Largo de São Francisco (FD-USP) e autor do livro “Malleus Holoficarum: o
estatuto jurídico-penal da Revisão Histórica na forma do Jus Puniendi versus Animus Revidere” (Chiado
Editora: Lisboa, 2012). E-mail: [email protected]
32
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atinente ao trabalho dos historiadores profissionais, ou mesmo ao âmbito leigo de
debates acerca de tão crucial período da História Contemporânea (controvérsia
relacionada à própria fundação da ordem mundial, tal qual a conhecemos).
No momento em que se constata, porém, com base no Direito Comparado dos
sistemas normativos europeus, que alguns países aderiram à criminalização do
Revisionismo, passa-se à delineação de um novo e deveras pertinente objeto de estudos
para os juristas: a crítica à legitimidade de tais normas instituidoras de delitos de
opinião (discussão esta que se estende a toda a comunidade acadêmica, especialmente a
de historiadores, que são os profissionais diretamente interessados na intersecção que se
busca constituir entre o Direito e a História).
A exemplo deste seleto grupo de países (tais como França, Polônia, Suíça e
Hungria), no Brasil, em 2007, foi apresentado um projeto de lei34 a fim de inaugurar em
nosso território a criminalização da negação do Holocausto, constituindo no rol de
crimes um tipo adicional, pleno de controvérsia 35.
Em 2003, mais um ingrediente veio somar-se à composição do debate: o
julgamento condenatório36 (por crime de racismo antissemita), pelo Supremo Tribunal
Federal, do editor gaúcho Siegfried Ellwanger, que se dedicava a publicar obras de
natureza revisionista e de crítica antijudaica.
Já por ocasião de um pronunciamento ao vivo para o povo do Irã, em 2005, o expresidente Mahmoud Ahmadinejad qualificou como um mito o conhecido objeto
histórico Holocausto Judeu. Um ano depois, a capital Teerã sediou a conferência
internacional organizada para a exposição das teses dessa corrente historiográfica
dissidente, o Revisionismo.
Não obstante tenham sido tais episódios importante elemento de evidenciação
desta ascendente pauta jurídico-acadêmica, a difusão do Revisionismo remonta há
34
Projeto de Lei Federal nº 987 de 2007, de autoria do ex-deputado Marcelo Itagiba.
35
Em 2007, a Corte Suprema da Espanha declarou a inconstitucionalidade da lei que, até então, criminalizava
a negação do Holocausto nesse país. Em Estados de tradição mais liberal, como EUA, Reino Unido, Suécia,
Itália, Dinamarca, Irlanda e Noruega, tais ilegítimas medidas constritoras sequer são cogitadas, por sua
reconhecida afronta aos direitos individuais invioláveis (protegidos sob o manto de garantias constitucionais).
36
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Crime de Racismo e Antissemitismo: um julgamento histórico do
STF (Habeas Corpus nº 82.424/RS). Brasília: Editora Brasília Jurídica, 2004.
33
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algumas décadas e, desde sua origem, tem provocado a instauração de processos
judiciais. Inúmeros são os casos de cidadãos, dos mais variados perfis37, sentenciados
pelos tribunais e que cumprem pena em virtude da exteriorização de suas opiniões
proibidas acerca desse fato. A propagação de literatura revisionista foi bastante
considerável já a partir da década de 60, obtendo maior visibilidade na França, Áustria,
Alemanha, Espanha e Estados Unidos.
Nossa proposta de trabalho consistiu em observar o fenômeno social
revisionista, a fim de que fosse destacado seu extrato juridicamente relevante,
delimitando-se o objeto da pesquisa à análise das implicações juscriminais do PL
987/07.
O que se propõe que seja submetido à crítica é, em outras palavras, a
legitimidade da tutela de um fato histórico por meio da legislação penal, esta assim
considerada ultima ratio do aparato repressivo à disposição do Estado.
O JUS PUNIENDI
Diz-se no Direito Penal que, para além da garantia contida no princípio da legalidade,
segundo o qual um fato somente pode ser caracterizado como criminoso se estiver
prévia e taxativamente previsto em lei (conceito formal de delito), há se considerar
também a legitimidade da intervenção criminal (conceito material de delito), a fim de
suprir a insuficiência da mera legalidade como parâmetro de justiça de uma lei.
Generalizadamente conceituado o Direito como uma das formas de regulação da
sociedade, dentre os variados instrumentos de controle social, o subsistema penal é mais
um dos recursos pertencentes ao ordenamento jurídico (prescritor de condutas) e que se
caracteriza pelo seu alto poder de ingerência na vida dos cidadãos, pois atua de forma a
infringir-lhes restrições à liberdade, por meio de violência institucionalizada. Daí a ideia
de que deve ser limitado o direito de punir do Estado (Jus Puniendi) por diversos
princípios que garantam o seu legítimo emprego, sendo reconhecidas esferas de
liberdades individuais imunes à intervenção estatal.
37
Vide, p. ex., o emblemático caso de Roger Garaudy, filósofo francês que integrou a resistência contra o
nazismo e atuou na vida parlamentar de seu país, eleito pelo partido comunista. Cf. MILMAN, Luis (org.).
Ensaios sobre o Antissemitismo contemporâneo: dos mitos e da crítica aos tribunais. Porto Alegre: Sulina,
2004, p. 228 a 272. Vale destacar também os episódios de desobediência civil, na França e Alemanha,
protagonizados por Vincent Reynouard e Dirk Zimmermann, respectivamente.
34
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Quando se procura, portanto, avaliar a legitimidade de uma lei criminal, depois
de verificados os pressupostos formais de validade da norma, passa-se à fase de
identificação do seu conceito material, ou seja, aquilo que fundamenta a sua
legitimidade. Vejamos um exemplo.
Ao se afirmar que a conduta de matar alguém é um crime (homicídio) apenado
em sua modalidade simples, com reclusão de seis a vinte anos, logo sobressai o tipo
descrito no Art. 121 do Código Penal, dando-se como percorrido o caminho de
verificação formal da assertiva. É dizer, com certeza38, que matar alguém é crime, pois
há explícita previsão legal.
Reafirmando-se o intento de promover uma discussão acerca da materialidade da
norma, imediatamente vem à tona outra questão: por que matar alguém deve ser um
crime? Qual a justificativa para a intervenção penal nesta conduta, ou melhor, qual o
conceito material do delito homicídio?
Naturalmente que, por valermo-nos de tão óbvio modelo nesta abordagem, a
resposta chega a ser intuitiva às noções mais gregárias de convivência social: a
legitimidade da criminalização do homicídio se dá em função da proteção à vida
humana; a não violência como desígnio maior da sociedade. É algo que por si só
satisfaz a pretensão inicial, reputando-se preenchidas as condições de legitimidade.
Entretanto, a obviedade aparente deste trabalho de provação da legitimidade de
uma norma penal pode passar a ser algo mais atribulado, na medida em que forem
trazidos à cena outros casos menos tangíveis quanto à materialidade conceitual.
E precisamente este é o caso da polêmica presente, traduzida na seguinte
problematização: em que se fundamenta o conceito material (legitimidade) do delito
“negação do Holocausto”?
O ANIMUS REVIDERE 39
Estabelece o Artigo XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos que:
38
Ressalvadas as excludentes de ilicitude, como a legítima defesa, por exemplo.
39
Animus: diz-se, no Direito, da intenção do autor, o elemento subjetivo de uma conduta. Revidere: ver
novamente, revisar. Deste modo, Animus Revidere é a intenção revisionista, ou intuito revisor.
35
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Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a
liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar receber e transmitir
informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.
A Constituição da República Federativa do Brasil referendou, por sua vez, em
variadas passagens, a Liberdade de Expressão como um valor intrínseco à dignidade
humana:
Art. 5º, Inciso IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o
anonimato.
VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de
convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação
legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.
IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença.
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o
saber.
III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de
instituições públicas e privadas de ensino.
Art. 220º A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação,
sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição,
observado o disposto nesta Constituição.
2º – É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
Não obstante a explicitude dos textos, aliada a própria conjuntura política
brasileira (herdeira de um passado recente, popularmente caracterizado como uma
ditadura), intenta uma parcela dos antirrevisionistas, por meio de seu vetor parlamentar,
instituir no Brasil algo inédito e de profundas implicações na conformação dos limites
do Jus Puniendi: pretende-se sancionar em lei a dita “história oficial” do Holocausto.
Restará àqueles que não concordarem serem considerados delinquentes de opinião.
Estaria aberto o perigosíssimo precedente para que outros “fatos incontestáveis”
sejam analogamente alçados à condição do trânsito em julgado histórico40. O enfoque
temático circunstancial (Holocausto), na verdade, representa uma nova delineação
global da relação (agora de sujeição) entre a História e o Direito. Tal proposta, violadora
de um direito humano básico (a Liberdade de Expressão), é casuisticamente
40
Diz-se ter seu “trânsito em julgado”, no universo jurídico, aquela decisão da qual não se pode mais
recorrer, ou seja, uma sentença final terminativa que não poderá mais ser modificada. Decerto ainda não
existe nas Ciências Humanas a adequação desta figura jurídica manifesta pelo conceito do trânsito em
julgado, ou seja, a irrecorribilidade visando à consolidação de dado objeto.
36
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determinada pela proximidade temporal com uma série de eventos fulcrais para a atual
composição de forças no cenário geopolítico.
Revista Veja: por que negar o holocausto tem de ser um crime e não um direito
garantido pela liberdade de expressão?
Elie Wiesel: Porque dói. Dói nos sobreviventes, nos seus filhos e nos filhos de
seus filhos. Quem nega o holocausto, por causa da dor que inflige aos
sobreviventes e seus descendentes, comete mais do que apenas um pecado. É
uma crueldade, uma felonia. Mesmo assim, nem todos os países punem a
negação do holocausto. Na Alemanha e na França, isso é crime. Nos Estados
Unidos, não. Há o entendimento de que negar o holocausto é um direito
assegurado pela primeira emenda da Constituição americana, a que garante a
liberdade de expressão.
Revista Veja: está errado?
Elie Wiesel: Sou um grande admirador da Primeira Emenda, mas acho que
ela deveria comportar uma exceção em relação ao holocausto. 41
A eventual tutela jurídica da verdade subjetiva acreditada por uma comunidade
qualquer (ou “eleita”) há de fomentar outras anomalias. Da mesma forma que parte dos
judeus tem no Holocausto uma memória coletiva sacralizada, não seria difícil encontrar
tantos outros grupos – sejam eles étnicos, religiosos, políticos ou regionais – que, com
base na inaugural criminalização da negação do Holocausto, quisessem também ver
suas lembranças históricas protegidas pela ultima ratio do Estado.
Conforme mesmo o reconheceu o sociólogo Michael Pollak, em trabalho
específico sobre o assunto, feito com base em entrevistas a sobreviventes do
Holocausto, às memórias coletivas corresponde fatalmente uma atmosfera normal de
disputa sobre o passado partilhado entre os mais diferentes agrupamentos sociais. 42
Destarte, qualquer intento de uniformização (notadamente pelo Estado) enseja um
esforço artificial e ilegítimo de controle. Numa sociedade pluralista, é da essência das
memórias coletivas estarem em disputa e não necessariamente conformes umas com as
outras.
Imprescindível reafirmar que, metodologicamente, não se trata aqui de defender o
Revisionismo em seu mérito teórico. O objeto de discussão é decididamente outro do
que a confirmação (ou refutação) dos argumentos daqueles que concluem pela
41
WIESEL, Elie. Entrevista. Revista Veja. Edição 2.112, 13 de maio de 2009, grifo nosso.
42
Cf. POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos 1989/3. São Paulo:
Edições Vértice, 1989.
37
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inexatidão da história do alegado genocídio judeu. Trata-se, antes disso, daquilo que
conceituamos metadiscussão, a saber: a discussão voltada para si mesma, sua simples
possibilidade de existência, independentemente do mérito da causa (o que aconteceu, de
que forma, por quem praticado, qual o motivo, onde, em que tempo e quais as
consequências).
Pode até ser que o “negacionismo” seja moralmente condenável; entretanto, este
possível desvalor social competiria à exclusiva atuação das instâncias informais de
controle – debate que sequer vem ao caso – uma vez que da proposta de metadiscussão
revisionista (ou extrato juridicamente relevante da polêmica sobre a instituição de
delitos de opinião) se busca unicamente conferir a adequabilidade do meio recorrido
(projeto de lei criminal) com os dispositivos garantidores do direito à Liberdade de
Expressão.
Em oposição àquele que pode ser considerado o espírito científico, idealmente
norteador das relações acadêmicas e desvinculado de resultados pré-estipulados, os
apoiadores da criação de uma lei que resguarde a apregoada “verdade histórica”
enfocada, pautados em um correspondente espírito dogmático, sustentam que:
Obviamente, a existência em si do genocídio é um “fato” objetivo da história,
aquela camada mínima da história, [...] cuja ocorrência histórica é objetiva e não
questionável. Com o negacionismo (que se autodenomina “revisionismo” apenas
para confundir) não existe debate, não há interlocução. Os que pretendem negar
a história não pertencem ao campo do debate em história. Não há no
negacionismo nenhuma revisão da história, e a relação com este movimento deve
ser exclusivamente no campo do combate político e dos tribunais de justiça. [...]
É importante enfatizar que, mesmo diante do irracionalismo e dos relativistas
pós-modernos, existe sim uma camada de fatos objetivos na história. Nem tudo
no campo da história está sujeito à interpretação e à relativização. 43
Está aí presente (nos fundamentos da revisão histórica) a premissa de considerar
a verdade histórica como algo dependente da opinião subjetiva do intérprete,
portanto a própria história como um conjunto desconectado de fatos que
adquirem um sentido a partir da perspectiva de quem os descreve. [...] Se é
inegável que o viés interpretativo é fundamental na reconstrução de fatos, isso
não faz da ciência histórica um debate retórico, de mero confronto de opiniões.
[...] Nesse sentido, a marca distintiva da verdade histórica é a verdade fatual, que
pode ser interpretada, mas não pode ser negada, sob pena de falsidade
deliberada. Isso, para o historiador, é um limite científico (que dele exige
43
CYTRYNOWICZ, Roney. In: MILMAN, Luis (org.), VIZENTINI, Paulo (org.). Neonazismo,
negacionismo e extremismo político. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
2000, p. 192-3.
38
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pesquisa fundamentada) e ético (que o impede de mentir). [...] Enfim, quem faz
ciência sujeita-se ao julgamento da verdade e do erro. 44
Não se deve perguntar como foi tecnicamente possível um extermínio em massa.
Foi tecnicamente possível porque aconteceu. Este é o ponto de partida
obrigatório para toda investigação histórica sobre este tema. Esta verdade
queremos simplesmente lembrar: não existe debate sobre a existência das
câmaras de gás, e não deve haver nenhum. 45
Em última análise, sob uma ótica macrossocial, não necessariamente jurídica,
este espírito dogmático cultiva uma intolerância com as ideias revisionistas de hoje, de
forma a inviabilizar também o trabalho dos revisionistas de amanhã, os quais poderão
(valendo-se de outros objetos de estudo que não o cá em destaque), do mesmo modo, se
inspirar naqueles aforismos de Ségur e Giordano Bruno, os quais, respectivamente,
exprimem por excelência o sentimento germinal do espírito científico: “a dúvida é o
começo da sabedoria”; e “aquele que deseja filosofar deve, antes de tudo, duvidar de
todas as coisas”.
COMENTÁRIOS FINAIS
Num momento em que a intelectualidade jurídica, e a sociedade civil como um todo, se vê
confrontada com diversos outros tópicos de grande expressão, como a maioridade penal, a
legislação sobre narcóticos, política carcerária e Direitos Humanos, dentre destacados outros, eis
que emerge uma nova fonte de altercações: os limites da intervenção do Estado em face do
direito à Liberdade de Expressão.
Falar-se em tutelar, por meio da Lei Penal, seja uma “verdade histórica”, a
“memória coletiva” ou a “ordem política consolidada” (associadas aos pretendidos
dogmas sobre a Segunda Grande Guerra), é de uma significância ímpar para o cenário
constitucional; verdadeiro marco decisivo na política criminal brasileira.
Trata-se da temerária apropriação da História pelo Direito, revertendo numa
relação institucionalizada de sujeição entre ambos, algo que deve ser francamente
rechaçado por todos aqueles comprometidos com o ideal de liberdade científica.
44
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Holocausto judeu ou alemão? Folha de São Paulo, Caderno
Tendências e Debates. São Paulo, 19 set. 2003, p. 3.
45
Declaração de Pierre Vidal-Naquet e outros historiadores franceses, publicada no Jornal Le Monde de 21
de fevereiro de 1979, em resposta a Robert Faurisson, apud RUDOLF, Germar. Lições sobre o Holocausto.
Tradução de Marcelo Franchi, disponível em: <http://inacreditavel.com.br/wp/porque-nao-pode-ser-o-quenao-deve-ser/>.
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Frise-se que a defesa da liberdade de expressão de uma ideia não implica na
concordância com o seu mérito. Retomemos aquela máxima de Voltaire, conforme a
qual “posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei
até a morte o direito de você dizê-las”.
O que está em causa é: há de se tolerar o livre-convencimento sobre eventos
históricos (ainda que falsas convicções ou erros de pensamento46), ou é possível impor
oficialmente um dogma de uma determinada ordem mundial, com base em limites
temporalmente volúveis?
A ninguém é dado o direito de arvorar- se em conhecedor exclusivo da verdade.
Nenhuma ideia é infalível a tal ponto de gozar eternamente do privilégio de ser
admitida como verdadeira. Somente por meio do contraste das opiniões e do
debate pode-se completar o quebra-cabeça da verdade, unindo seus fragmentos.
Garantir a expressão apenas das ideias dominantes, das politicamente corretas ou
daquelas que acompanham o pensamento oficial significa viabilizar unicamente
a difusão da mentalidade já estabelecida, o que implica desrespeito ao direito de
se pensar autonomamente. Em última análise, a liberdade de expressão torna-se
realmente uma trincheira do cidadão contra o Estado quando aquele está a
divulgar ideias controversas, radicais, minoritárias, desproporcionais, uma vez
que essas ideias somente são assim consideradas quando comparadas com o
pensamento da maioria. [...] Quando somente a opinião oficial pode ser
divulgada ou defendida, e se privam dessa liberdade as opiniões discordantes ou
minoritárias, enclausura-se a sociedade em uma redoma que retira o oxigênio da
democracia e, por consequência, aumenta-se o risco de ter-se um povo dirigido,
escravo dos governantes e da mídia, uma massa de manobra sem liberdade. [...]
Há de se proclamar a autonomia do pensamento individual como uma
forma de proteção à tirania imposta pela necessidade de adotar-se sempre o
pensamento politicamente correto. As pessoas simplesmente não são obrigadas
a pensar da mesma maneira. Devem sempre procurar o melhor desenvolvimento
da intelectualidade, e isso pode ocorrer de maneira distinta para cada indivíduo.
47
Os fatos históricos, é sabido, não possuem uma só versão. Interpretá-los ou
relatá-los sob ângulo diverso da maioria, questionando fatos até então não
questionados, ainda que a conclusão obtida seja desfavorável a um determinado
povo, não pode ser considerada conduta criminosa, na forma do art. 20 da Lei nº
8.081/90. 48
46
Ao contrário do que propusera o professor Tércio Sampaio Ferraz Júnior, no seu já citado parâmetro
“quem faz ciência sujeita-se ao julgamento da verdade e do erro” (aquilo que pode ser interpretado como a
judicialização da pesquisa acadêmica), o também jurista Paulo de Souza Queiroz isenta até mesmo as falsas
convicções ou erros de pensamento da ingerência criminal do Estado: “realmente, há um âmbito da vida
pessoal intocável pelo poder do Estado e a resguardo do controle público e da vigilância policial: não só as
interações e os projetos, senão também, com maior razão, os erros de pensamento e de opinião” (Direito
Penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2001, p.11).
47
Ministro Marco Aurélio Mello, por ocasião do julgamento de Siegfried Ellwanger. In: SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL, op. cit., p. 173, 175 e 176, grifo nosso.
48
Juíza Bernadete Coutinho Friedrich, também por ocasião do julgamento (neste caso, porém, na primeira
instância) do dono da extinta Editora Revisão. In: TRIBunAl De juSTIçA Do eSTADo Do Rio GRAnDe Do
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Os episódios e personalidades que marcaram a Segunda Grande Guerra
comportam mais de uma explicação e toda pessoa é livre para se posicionar
nessa ou naquela direção. 49
O processo de emersão de ideias que afrontam o establishment encontra, por
vezes, resistência antes fundada no puro argumento de autoridade do que na objetiva
análise racional.
Há de se desconfiar de toda apregoada “verdade absoluta” baseada na censura às
vozes dissidentes. Daí a analogia que propusemos50 entre as atuais leis de proibição do
Revisionismo com o obscurantismo da época de perseguição inquisitorial contra os
cientistas insurrectos, na qual constituía heresia questionar, v.g., a “notabilíssima” teoria
geocêntrica.
Carece de reconhecimento, ainda, a patente moral-dupla de alguns países do
Ocidente que, ditos esclarecidamente democráticos e pluralistas, de um lado anuem com
as caricaturas de Maomé, mas, por outro lado, condenam as pesquisas acadêmicas que
afrontam a moderna religião do Holocausto51.
Sul. Revista de jurisprudência, edição especial, dezembro de 2004, p. 46. Disponível em:
<http://www.tjrs.jus.br/site/publicacoes/revista_da_jurisprudencia/>.
49
Ministro Carlos Britto. In: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, op. cit., p. 157.
50
Cf. CALEARI (op. cit.). Proposta conceitual alegórica (Malleus Holoficarum), decerto semântica e
etimologicamente heterodoxa, todavia que se amolda perfeitamente ao núcleo de ideias expressos nesta
pesquisa sobre o tema e que ilustra a síntese crítica de nossos apontamentos. Tal expressão fora
originalmente concebida, com base no referencial histórico medievalista (Malleus Maleficarum), pelo veículo
de mídia anglo-germânico de orientação revisionista, National Journal, por ocasião do noticiário da prisão do
poeta Gerd Honsik. Disponível em: <http://globalfire.tv/nj/09de/verfolgungen/honsik1.htm>.
51
Segundo o militante judeu Gilad Atzmon, “o professor israelita de filosofia, Yeshauahu Leibowitz, foi
provavelmente o primeiro a definir o Holocausto como a „nova religião judaica‟” (disponível em:
<http://www.gilad.co.uk/writings/after-all-i-am-a-proper-zionist-jew-by-giladatzmon.html>). Já por ocasião
de sua participação, junto a uma comitiva de rabinos ortodoxos antissionistas, na supramencionada
conferência revisionista de Teerã, o líder dos Neturei Karta, Moishe Arye Friedman, expôs que: “nos últimos
sessenta anos, a Humanidade, independentemente de religião, raça ou nacionalidade, foi confrontada com um
„conceito de Holocausto‟, que serviu de motivo para muitas guerras, mas também para a chantagem
econômica. Desde aí, especialmente os palestinos e o Mundo Islâmico têm sido sujeitos a inúmeras
atrocidades. Tudo isto é justificado pela argumentação de que milhões de judeus foram mortos num tal
Holocausto. Contudo, até hoje, não existe a possibilidade de se fazer uma pesquisa livre sobre os fatos
históricos, nem sobre os verdadeiros responsáveis, nem falar abertamente sobre o assunto, apesar de terem
surgido grandes dúvidas sobe as conexões e os acontecimentos históricos. Os principais responsáveis pela
perseguição dos judeus criaram uma religião do Holocausto, juntamente com os sionistas, que não acreditam
minimamente em Deus, e cujo objetivo é exterminar a fé em Deus no mundo. Esta religião do holocausto
exige aprovação mundial e considera-se acima de todos os acordos internacionais, da Constituição dos vários
Estados e das próprias religiões. Cientistas e autores independentes, que exigem uma investigação objetiva e
um debate sobre o Holocausto e a sua exploração política através do sionismo, são eliminados ou, no
mínimo, declarados criminosos e condenados a longas penas de prisão” (disponível em:
<http://inacreditavel.com.br/wp/plano-de-paz-internacional/>).
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Concluímos, mais uma vez, pela absoluta ilegitimidade do Malleus Holoficarum
e sua completa inadequação com os princípios garantistas norteadores do Direito Penal,
consagrados na Constituição da República e na Declaração Universal dos Direitos
Humanos.
Conforme já houvera proclamado Galileu Galilei, diante do Tribunal da Santa
Inquisição: “veritas filia temporis, non auctoritatis” (a verdade é filha do tempo, e não
da autoridade).
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A
REDEMOCRATIZAÇÃO
BRASILEIRA
EM
DEBATE:
PROTESTOS
POLÍTICOS NO ROCK DA DÉCADA DE 1980
Brenda Soares Silva *
Resumo:
Este trabalho objetiva refletir sobre a produção fonográfica do Brasil, na década de
1980, a partir de letras de músicas de bandas como ultraje a rigor, titãs e plebe rude.
Nesse sentido, selecionamos músicas que, através de ironias ou críticas diretas,
discutem aspectos políticos e sociais da época, sobretudo a respeito do processo de
abertura política e de redemocratização em curso. A pesquisa resultou em uma
experiência didática que foi aplicada no ensino médio.
Palavras-chave: Redemocratização, Rock, Reivindicações.
Abstract:
This work aims at to contemplate on the production phonographic of Brazil of the
decade of 1980, starting from lyrics of music of bands as Ultraje a Rigor, Titãs and
Plebe Rude. In that sense, we selected music that through ironies or direct critics discuss
political and social aspects of that time, above all in relation to the process of political
opening and of redemocratization in course. What resulted in a didactic experience that
was applied on High School.
Keywords: Redemocratization, Rock, Claims.
INTRODUÇÃO
Objetiva-se fazer uma análise acerca da musicalidade no período da redemocratização
brasileira da década de 1980, a partir da observação de algumas letras de músicas de
bandas como Ultraje a Rigor, Titãs, Camisa de Vênus, Legião Urbana, entre outras,
representantes do chamado BRock ou Rock Brasil, nomenclatura atribuída pelo
jornalista Arthur Dapieve, que, como aponta Aline Rochedo52, uniu o B de Brasil à
palavra Rock para definir a produção musical brasileira de rock dos anos 1980.
*
Licencianda em História pelo Centro de Ensino Superior do Seridó da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte e bolsista de iniciação à docência – PIBID-CAPES –, coordenada pela professora Dra. Jailma Maria
de Lima. [email protected]
52
ROCHEDO, Aline do Carmo. Os filhos da revolução: a juventude urbana e o rock brasileiro dos anos
1980. 2011. 154 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense/ICHF/PPGH,
Niterói, 2011, p. 30.
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Uma das características do novo BRock eram as letras em português, isso é uma
característica importante, não que não houvesse letra de rock em português antes,
mas era como se o rock só pudesse ser cantado em inglês. O instrumental tosco,
a princípio como estética mesmo, derivada do Punk. E num segundo momento,
como realidade de quem estava tocando. Com o tempo as pessoas foram
melhorando. Todos estavam começando, aprendendo a tocar. Alguns viriam a se
tornar grandes músicos53.
Pretende-se, a partir dessas letras, fazer uma relação com o fim da ditadura militar
no Brasil e com a consequente redemocratização, seja como meio de reivindicação, seja
como crítica. A pesquisa suscitou uma experiência de ensino que foi aplicada em sala de
aula, no ensino médio.
Os músicos abordados neste artigo nasceram, em sua maioria, na década de 1960
e cresceram sob o contexto político militar. Assim, seu contato direto com o período foi
fundamental para o desenvolvimento dessa vertente do rock nos anos 1980 e as
inúmeras manifestações sociais foram cruciais no processo de abertura política, pois, ao
lado das canções do período, traduziam o inconformismo da população, além de
estabelecerem uma identidade em comum.
Nesse
contexto,
há
as
bandas
acima
mencionadas
como
sendo
críticas/reivindicadoras ferrenhas, com suas músicas, de melhorias para a nova condição
do país. Por meio da crítica direta ou da ironia, questionavam acerca da desigualdade
social, do preconceito existente com a classe trabalhadora e, principalmente, da
corrupção de um governo que parecia duvidar da capacidade intelectual da população.
Mediada por sua conjuntura histórica, a música tinha um papel fundamental na
discussão acerca dos mais variados contextos sociais. No fim da ditadura e durante a
chamada Nova República, não foi diferente. Naquele contexto, a música se encontrava
inserida dentro de uma conjuntura social, política e econômica insatisfatória para boa
parte da população, pois, apesar de o país se ver em um processo de abertura, o povo se
sentia ainda em forte desvantagem. Desse modo, os músicos do período, também
enquanto sujeitos integrantes da população brasileira, possuíam seus descontentamentos
e insatisfações diante do sistema vigente, em que resquícios do período político anterior
ainda se encontram muito presentes.
53
DAPIEVE apud ROCHEDO, 2011, p. 30.
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Esse descontentamento se refletia em suas composições. As letras das suas
canções tinham um caráter bastante crítico, abordando muito bem as angústias de boa
parte da população, que, ao se identificar com as abordagens apresentadas nas canções,
aderiu ao movimento e passou a adotá-lo como forma de representar seu ponto de vista
e modo de vida. Sendo assim, de acordo com Napolitano, “toda obra de arte é produto
do encontro de diversas influências, tradições históricas e culturais, que encontram
solução provisória na forma de gêneros, estilos, linguagens, enfim, na estrutura da obra
de arte”54.
Esta pesquisa acarretou na elaboração de atividades didáticas desenvolvidas pelo
Programa de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), desenvolvido, no nosso caso, em
duas escolas públicas da cidade de Caicó-RN. Para fins deste texto e objetivo do evento,
não serão abordados os resultados didáticos da pesquisa.
PROCESSO DE ABERTURA POLÍTICA E O ROCK NACIONAL
A década de 1980 consolidou o processo de abertura política, que já fora anunciado
desde 1975 pelo então presidente Ernesto Geisel como sendo lento, gradual e seguro.
Desde o início daquela década, as insatisfações com o governo militar e com os
problemas econômicos aumentavam, bem como os grupos que defendiam o fim do
regime militar brasileiro. O crescimento desses grupos resultou em grandes
manifestações cívicas da sociedade brasileira, como a campanha pelas Diretas Já para
Presidente da República, o que somente ocorreu em 1989, pois a emenda constitucional
(intitulada de Dante de Oliveira, deputado federal que a propôs) que previa eleições
diretas em 1985 foi derrotada pelo Congresso Nacional em abril de 1984. O Congresso
Nacional elegeu indiretamente Tancredo Neves, que faleceu antes de tomar posse,
causando uma grande comoção nacional.
Assim, o vice-presidente eleito, José Sarney, foi empossado e lançou vários
planos econômicos ao longo da sua gestão, os quais não conseguiram conter os índices
inflacionários nem diminuir as grandes desigualdades sociais. Assim, a década de 1980
finalizou com a primeira campanha presidencial após o regime militar, polarizada no
segundo turno entre Fernando Collor de Melo e Luís Inácio Lula da Silva, os
representantes das esperanças de todos os brasileiros.
54
NAPOLITANO, Marcos. História & Música: história cultural da música popular. Belo Horizonte:
Autêntica, 2005. p. 79.
45
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As duas candidaturas que polarizam o cenário eleitoral são exatamente de
homens que se apresentam como não vinculados ao poder, homens comuns, e
não políticos tradicionais. [...] A coincidência, real ou imaginária, de estarem
fora do sistema, de não fazerem parte da estrutura política existente no país.
Assim, o voto em Lula ou Collor era, em verdade, um voto pela mudança, de
protesto contra a Nova República 55.
O rock, no contexto citado, é um exemplo de como a música pode traduzir o
espírito de um grupo, apresentando a sua característica elementar do inconformismo e
da rebeldia diante do conservadorismo ideológico presente na época ditatorial.
Assim, uma das maiores contribuições feitas pelo rock do período foi no que se
refere à formação da identidade nacional e da sua representação. De acordo com
Bauman56, a identidade se define por meio de um conjunto de fragmentos de
representação que são adotados por um indivíduo, a fim de ter um grupo de pertença. O
caráter nacionalista presente no BRock encontrava-se voltado para a representação da
insatisfação de um grupo que compunha a nação brasileira, motivando então um
sentimento de pertencimento a essa nação.
Seguindo a linha de pensamento de Stuart Hall, “As culturas nacionais ao
produzirem sentidos sobre „a nação‟, sentidos com os quais podemos nos identificar,
constroem identidades [...]. Como argumentou Benedict Anderson a identidade nacional
é uma „comunidade imaginada‟”57. Dessa forma, podemos identificar claramente uma
justificativa para o movimento BRock ter sido um “definidor”, por assim dizer, de
identidades, uma vez que orientados pela conjuntura política do país os músicos do
período abordavam a temática e traduziam, ou davam uma significação, de acordo com
seu ponto de vista sobre o momento, ou seja, produziam um sentido sobre ele, que
permitia às pessoas fazerem uma identificação entre si, resultando numa identidade em
comum.
Como bem demonstra Mário Luís Grangeia, em seu artigo “Redemocratização e
desigualdades sociais segundo Cazuza e Renato Russo”,
55
SILVA, Francisco Carlos Teixeira. Brasil, em direção ao século XIX. In: LINHARES, Maria Yedda
(Org.). História Geral do Brasil.9. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990. p. 400.
56
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução de Carlos Alberto Medeiros.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
57
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomáz Tadeu da Silva e Guacira
Lopes Louro. 7. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
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[...] entre todas as manifestações culturais que despontaram no Brasil no século
passado, a música popular é, sem dúvida, a mais decisiva na formação de uma
identidade nacional. Em que pese o desenvolvimento da literatura, artes
plásticas, artes cênicas e cinema, coube à música uma maior penetração nas
várias camadas da população. Segundo Mário de Andrade, trata-se da “mais
completa, mais totalmente nacional, mais forte criação da nossa raça até agora”
(ANDRADE apud NAVES, 1998, p. 21)58.
De acordo com Aline Rochedo,
[...] as bandas que surgem expressavam seus sentimentos em relação ao que
acontecia. Como existia uma insatisfação muito forte entre os jovens, era um
caminho certo esta identificação entre bandas e o público, estas que imprimiam
nas músicas o seu momento histórico-social. [...] A juventude dos anos 80 pode,
através dos elementos do rock, se reconhecer e compartilhar o sentimento de
fazer parte de um universo destacado dos demais, com seus próprios códigos e
significados num momento de riqueza e questionamentos59.
Como exemplo, podemos citar a canção Inútil, que aborda ironicamente questões
acerca da repressão existente na época. Essa música foi composta no ano de 1983,
durante o governo Figueiredo, e trata, principalmente, da pouca valorização dada à
população, traduzindo seu desejo por direitos políticos e democracia, bem como da
situação econômica de um país refém do imperialismo norte-americano:
A gente não sabemos/Escolher presidente/A gente não sabemos/Tomar conta da
gente/ [...] A gente faz carro/E não sabe guiar/A gente faz trilho/E não tem trem
prá botar/ [...] A gente faz música/E não consegue gravar/A gente escreve livro/E
não consegue publicar/“Inúteu”!/A gente somos “inúteu”! 60
De acordo com a abordagem da composição de Roger Moreira Rocha, identificase o descontentamento diante de toda a situação da época, o qual atingia boa parte da
população. Dessa forma, percebe-se que a música é um importante meio difusor e
representativo, uma vez que expressa o pensamento de um número considerável de
pessoas que partilham da mesma opinião.
Assim, a música é um importante fator de protesto político, seja no período no
qual a ditadura se encontrava em seu auge, em que artistas da MPB expressavam de
forma camuflada seus ideais, seja no período de abertura política, quando, a partir do
58
GRANGEIA, Mário Luís. Redemocratização e desigualdades sociais segundo Cazuza e Renato Russo.
Revista Aurora, n. 12, p. 48, 2011. Disponível em:
<http://revistas.pucsp.br/index.php/aurora/article/view/5889>. Acesso em: 9 mar. 2013.
59
ROCHEDO, 2011, p. 41-42.
60
ULTRAJE A RIGOR. Nós vamos invadir sua praia. WEA, 1985. Faixa 6.
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governo Figueiredo, começou a se ter uma maior flexibilidade diante dos protestos
artísticos, que podiam ser mais claros e que não mais resultavam em exílio.
REIVINDICAÇÕES E CRÍTICAS POLÍTICAS A PARTIR DO ROCK
BRASILEIRO
O rock brasileiro dos anos 1980 foi usado para realizar reivindicações e protestos. Com
suas melodias e letras, o estilo musical não era apenas um estilo, mas um movimento
característico, cujas propostas se voltavam para destacar a insatisfação com as questões
políticas e sociais da época. As músicas dos roqueiros traziam críticas de forma direta,
sem metamorfosear ou ocultar. Assim, percebe-se a ruptura entre a repressão à produção
fonográfica, que precisava disfarçar suas letras no período ditatorial ou pagar o preço do
exílio, quando não da tortura e da prisão, e a liberdade de expressão trazida nas letras de
rock do período da redemocratização, permitindo que estas pudessem criticar e fazer
reivindicações aos governos de forma direta.
A banda Titãs, por exemplo, retratava bem a questão da situação financeira do
brasileiro da época na canção Dívidas, de 1986: “Senhores, senhores, senhores/Contas,
recibos, impostos/Meu salário desvalorizou/Dívidas, juros, dividendos”61.
A MPB, representada por músicos como Caetano Veloso e Chico Buarque, foi a
principal representante do protesto fonográfico durante o período ditatorial, no entanto
as mudanças trazidas pelos novos ares de abertura política nos fizeram perceber que a
ênfase musical também se modificava, influenciada pelo novo contexto. O rock ganhou
espaço nesse momento de liberdade como símbolo da rebeldia e contracultura.
Diferindo-se da poética da música de fins de 1960 e início de 1970, os artistas
que faziam rock na geração oitenta buscavam falar de política sem, no entanto,
sentirem-se obrigados ou pressionados. Para esses jovens, a ação política tinha
outra conotação. Encontraram uma maneira muito prazerosa para dizer que o
BRock era totalmente contra o autoritarismo político. [...] Percebe-se que além
de temas relacionados à política o sujeito artista da geração 80 sentia a
necessidade de transmitir através do que escrevia o grito sufocado de toda uma
juventude equilibrando-se em meio a tantas incertezas62.
61
TITÃS. Cabeça Dinossauro. WEA, 1986. Faixa 5.
62
AMÉRICO, Elisama Bezerra. BRock e democracia: a produção do rock da banda Legião Urbana como
forma de contestação no processo de transição política na década de 1980. 2012. Trabalho de conclusão de
curso (Graduação em História) – Universidade Estadual da Paraíba, Guarabira, 2012, p. 42. Disponível em:
<http://dspace.bc.uepb.edu.br:8080/jspui/handle/123456789/1527>. Acesso em: 14 jun. 2013.
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Na década de 1980, o rock afirmou-se enquanto indústria cultural e foi bastante
influenciado pela produção das décadas anteriores, tanto pela internacional, como os
Beatles e Jimmy Hendrix, quanto pela nacional, de Raul Seixas até a bossa nova. Suas
propostas procuravam descarregar todas as frustrações ante o período de crise política
de forma subjetiva, demonstrando toda a sua desesperança com os caminhos tomados
pela nação.
As inquietações dos roqueiros do período podiam ser vistas inclusive nas capas de
seus LPs, como problematiza Aline do Carmo Rochedo (2011), em seu artigo “Rock – a
arte sem censura: as capas dos LPs do BRock dos anos de 1980”:
[...] as capas de discos do rock assumem seu papel de objeto expressivo e
antecipador da linguagem musical. A imagem, neste sentido, não é somente um
rótulo, mas uma expressão interpretativa, um meio de veicular ideias: as capas
dialogam63.
Algumas dessas letras criticavam a busca do país pelo progresso e a situação das
camadas populares nesse contexto. Um exemplo disso é a canção O Adventista, de
Marcelo Nova, gravada pela banda Camisa de Vênus, que trata de modo irônico da
“cegueira” da sociedade moderna, conformista com sua busca incessante por
entretenimento, tornando-se, assim, alienada: “Eu acredito em quem anda com fé/Eu
acredito em Xuxa e em Pelé/Eu acredito na escada pro sucesso/Eu acredito na ordem e
no progresso”64. Essas características da população diante do entretenimento podem ser
verificadas até os dias atuais. De acordo com a interpretação de Marques e Leite sobre a
proposta de Trigo:
O que se oferece ao segmento de baixa ou média renda é cada vez mais básico e
padronizado, conforme destaca Trigo (2003). O autor explica a vida do homem
médio nas sociedades atuais como [...] apoiada nas fantasias transmitidas pela
mídia e pelo entretenimento, em geral massificado, a que consegue ter acesso –
principalmente pelos meios de comunicação de massa 65.
Algumas canções entrecortaram-se por alusões críticas ao governo vigente, como
Estado Violência, do Titãs, cuja letra protesta de forma clara acerca da imposição
governamental no trecho:
63
ROCHEDO, Aline do Carmo. Rock – A arte sem censura: as capas dos LPs do BRock dos anos 1980.
História, imagem e narrativas, n. 13, p. 37, out./2011. Disponível em:
<http://www.historiaimagem.com.br/edicao13outubro2011/edicao13.php>. Acesso em: maio 2013.
64
CAMISA DE VÊNUS. Camisa de Vênus. Soma. 1983. Faixa 6.
65
MARQUES, Jane; LEITE, Edson. Impactos do entretenimento na sociedade da informação. UNIrevista, v.
1, n. 3, p. 5, jul. 2006.
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Estado Violência/Estado Hipocrisia/A lei não é minha/A lei que eu não queria.../
[...]/Estado
Violência/Deixem-me
querer/Estado
Violência/Deixem-me
pensar/Estado Violência/Deixem-me sentir/Estado Violência/Deixem-me em
paz...66
Ela aborda, ainda, a situação do brasileiro nesse contexto, quando diz: “Homem
em silêncio/Homem na prisão/Homem no escuro/Futuro da nação”67.
A banda Plebe Rude também protestou contra o regime e, após a abertura política,
encontrou espaço para isso, trazendo na canção Censura, de 1987, trechos que criticam
claramente a censura estabelecida pelo governo diante de toda produção artística
brasileira: “A censura, a censura/Única entidade que ninguém censura/Contra a nossa
arte está a censura/Abaixo a postura, viva a ditadura”68.
Algumas canções também tratavam de questões referentes à crescente
industrialização do país e seu american way of life. Geração Coca-Cola, de 1985,
destacava principalmente o caráter consumista e alienado da juventude capitalista,
abordando a busca pelo progresso incentivada no governo militar como responsável
pela formação de uma geração conformista e americanizada. Segundo Habert:
Durante a década de 70 sob o regime da ditadura militar acelerou-se o
desenvolvimento capitalista brasileiro em todos os campos e consolidou-se a
integração do Brasil ao sistema capitalista monopolista internacional como país
associado e periférico 69.
De acordo com tal situação, o Brasil foi percebido como reprodutor/receptáculo
do modo de vida americano, sobre o que Renato Russo canta:
Desde pequenos fomos programados/A receber o que vocês/ Nos empurraram
com os enlatados/Dos USA de nove as seis/Desde pequenos nós comemos
lixo/Comercial, industrial/Mas agora chegou nossa vez/Vamos cuspir de volta o
lixo em cima de vocês70.
A partir disso, compreende-se que algumas abordagens da década de 1980
trouxeram críticas ao capitalismo e consumismo exacerbado que chegou ao Brasil na
66
TITÃS. Cabeça Dinossauro. WEA, 1986. Faixa 12.
67
TITÃS, 1986.
68
PLEBE RUDE. Nunca fomos tão brasileiros. EMI, 1987. Faixa 5.
69
HABERT, Nadine. A década de 70: apogeu e crise da ditadura militar brasileira. In:_____. São Paulo:
Ática, 1992. p. 69.
70
LEGIÃO URBANA. Legião Urbana. EMI-Odeon, 1985. Faixa 6.
50
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década anterior e que modificou drástica e permanentemente os hábitos da sociedade
brasileira, como Inútil, cuja abordagem foi destacada no início deste artigo.
Em País do futuro, da banda Camisa de Vênus, composta por Marcelo Nova,
podemos perceber essa mesma preocupação com os rumos da sociedade da época,
questionando de forma irônica a situação política do país e denunciando as medidas de
Sarney para a superação da crise:
Vai
ficar
tudo
bem,/acredite
em
mim,
meu
filho/
A gente aumenta o seu salário/dispara o gatilho/Aí, pra que você não reclame/e
também pra que não esqueça/Dispararam o tal do gatilho/ em cima da sua
cabeça71.
Da mesma forma, Que país é esse?, da Legião Urbana, em 1987, destacou
questões parecidas com as de Marcelo Nova, criticando as atitudes da política do Brasil.
No entanto, fez isso por meio de uma crítica, ou talvez um desabafo, mais direta: “Na
morte o meu descanso/mas o sangue anda solto/Manchando os papéis e documentos
fiéis/Ao descanso do patrão/Que país é esse?”72.
Em suma, as letras dessas bandas do BRock, em sua maioria, contextualizaram o
período, bem como refletiram e organizaram a opinião popular. Milton Joeri Fernandes
Duarte trabalha essa questão quando relaciona o conhecimento histórico e a produção
musical:
[...] o conhecimento histórico e a produção musical [...] utilizam estratégias
retóricas de forma a narrar esteticamente os fatos sobre os quais se propõem a
falar. Da mesma maneira representam inquietudes e questões que mobilizam os
homens e, como possuem um público destinatário (leitor e ouvinte) atuam como
aproximações que unem o conhecimento histórico e a música 73.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir dos protestos nas canções de rock da década de 1980, o período definiu-se,
assim como nas décadas anteriores, no que diz respeito à participação popular. Além
disso, houve uma reflexão sobre o contexto, destacando a característica revolucionária
da época.
71
CAMISA DE VÊNUS. Duplo Sentido. WEA, 1987. Faixa 2 lado A.
72
LEGIÃO URBANA. Que país é este? 1978/1987. EMI-Odeon, 1987. Faixa 1.
73
DUARTE, Milton Joeri Fernandes. Letras de músicas e aprendizagem de história. In: ABUD, Kátia Maria.
Ensino de História. São Paulo: Cengage Learning, 2010. p. 63.
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O rock foi de fundamental importância durante o processo de redemocratização
brasileira por enfatizar, através de críticas e ironias, situações sociopolíticas do período,
traduzindo-se como “herdeiro” de um passado revolucionário, que ocorreu por parte das
esquerdas na década de 1960 e 1970 e que teve como uma das maiores formas de
expressão os protestos musicais da MPB.
As músicas produzidas pelas bandas de rock do período foram fundamentais na
formação de uma consciência acerca da situação política, econômica e social do país.
Ao mesmo tempo que foi um reflexo desta, deu um maior impulso à população e
refletiu o pensamento dela, incentivando-a a protestar e a reivindicar.
Assim, nota-se que os protestos musicais, bem como quaisquer outros, não se
resumiram apenas ao auge do período ditatorial militar, mas também atingiram o povo
numa fase posterior ao final da ditadura, bem como durante todo o período da
redemocratização. Os protestos estiveram presentes, além disso, em questões
posteriores, como no impeachment de Fernando Collor, em 1992.
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ALIMENTAÇÃO INFANTIL E PRÁTICAS MÉDICAS NO RIO DE JANEIRO
DA PRIMEIRA REPÚBLICA
Caroline Amorim Gil
Resumo:
Este trabalho objetiva estudar a relação estabelecida entre a propaganda sobre a
alimentação infantil e os projetos de assistência à infância colocados em prática na
cidade do Rio de Janeiro entre 1889-1930, período em que se processa a
institucionalização da pediatria no Rio de Janeiro. Refletiremos acerca do ideal de
infância defendido pelos médicos e o crescimento das propagandas direcionadas à
substituição do leite materno, no momento de expansão da indústria e maior inserção da
mulher no mercado de trabalho.
Palavras – Chave: Propaganda, assistência à infância, Primeira República.
Abstract:
This work aims to study the relation between the advertising of infant feeding and child
care projects put in practice in the city of Rio de Janeiro between 1889-1930, period in
which the institutionalization processes of pediatrics in Rio de Janeiro was happening.
We will reflect on the ideal of childhood advocated by doctors and the growth of
advertisements aimed at replacing the milk at the time of expansion and greater
inclusion of women in the labor market.
Keywords: Advertising, Childcare, First Republic
“Amamentar é o primeiro dever materno (...)”
Fernandes Figueira
Livro das Maes, 1919, p.361.
Este estudo tem por objetivo refletir o processo de institucionalização da pediatria no
Rio de Janeiro, no período compreendido entre 1889 e 1930 e os projetos médicos
defendidos para a construção de uma rede de assistência à infância, que se estabelece na
cidade do Rio de Janeiro, na virada do século XX. Em paralelo, a análise de
propagandas em favor da alimentação infantil, veiculada na imprensa corrente e em
revistas destinadas ao público feminino. Tendo em vista, a transformação nas relações
sociais e uma maior inserção da mulher no mercado de trabalho, as mães de família,
mulheres trabalhadoras e operárias se tornam o público alvo tanto das propostas
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médicas quanto das propagandas. Buscaremos perceber até onde os discursos condizem
com as práticas médicas e o impacto dessas propagandas na sociedade.
Os primeiros anos do século XX se configuram como cenário de intensas
transformações urbanas, embasadas pela atuação de engenheiros, arquitetos, médicos e
higienistas. O período também é marcado por uma crescente idealização da infância e a
busca pelo combate à mortalidade infantil. Nessa empreitada de um lado teremos a
presença de médicos voltados à assistência de crianças pobres, advindas de famílias
desprovidas de recursos. A atuação desses médicos se voltaria, sobretudo, pelo combate
a mortalidade infantil, através da defesa do aleitamento materno como o meio mais
eficaz de proteção. De outro lado, teremos a imprensa, que através de periódicos e
revistas direcionadas ao público feminino, iria difundir propagandas de outros tipos de
leite, para serem utilizados na alimentação infantil, despertando a atenção para a
praticidade do preparo e a acessibilidade através de preços baixos.
RIO DE JANEIRO DA BELLE EPOQUE – TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS E
URBANAS
No final do século XIX, a população da cidade do Rio de Janeiro havia crescido
consideravelmente, bem como o número de trabalhadores assalariados. O inchaço
populacional produzido pelo aumento demográfico decorrente das migrações internas e
externas, bem como pelo aumento da população economicamente ativa e consumidora,
em vista da abolição da escravidão; a crescente ocupação irregular e a busca por
moradias próximas ao local de trabalho levaram a concentração das classes populares
nas áreas centrais da cidade. Desde meados do XIX, famílias mais abastadas já
estabeleciam chácaras nos atuais bairros da Glória, Botafogo, Santa Teresa e
Laranjeiras. No entanto, para a transformação da cidade e das relações sociais entre seus
moradores, um fator primordial foi estabelecido: a transformação da concepção de
trabalho74 , que deixa de ser uma atividade relacionada ao desprestígio social, para se
74
CHALHOUB,Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle
époque. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1986.
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afirmar como objeto de integridade moral, responsável pela constituição de uma boa
sociedade75.
Por outro lado, a reforma urbana empreendida sob a gestão do prefeito Pereira
Passos (1902-1906) que tinha como objetivo modernizar e europeizar a então capital
republicana, culminou com a demolição ou redução de grande parte dos casarões que
abrigavam a preços mais acessíveis as classes populares, que residiam próximo aos
locais de trabalho, a fim de obterem custos mais baixos de locomoção. Assim, esta
reforma que representava a transformação da cidade, levando ao cartão postal do país
uma nova imagem, pronta para receber seus visitantes e apresentar suas modificações e
progresso ao mundo
76
, mas que teve impacto direto na vida da população pobre da
cidade.
No final do século XIX manter a ordem do lar e combater a sujeira se apresentava
como uma das atividades domésticas centrais, onde os “ micróbios e as doenças foram
se tornando personagens corriqueiros nas paginas das revistas femininas”77. Analisando
a relação entre médicos e mulheres através dos periódicos, Martha Freire afirma que no
decorrer da década de 1920 além de zelar pelo lar a mulher deveria zelar também pela
sua economia, nesse processo, a economia doméstica passa a ser incentivada pelos
periódicos. As revistas discutiam a importância do aprendizado de boa educação para
mulheres, bem como, ministravam aconselhamentos de como manter um casamento e
um lar feliz, tendo por base a higiene, o cuidar dos filhos, a boa conduta e a honra da
família. “Em aparente contradição, a valorização do papel da „rainha do lar‟ –
simultaneamente emancipador e restritivo – foi encampada por mulheres feministas.”78
75
BATALHA, Claudio. “A geografia associativa: associações operárias, protesto e espaço urbano no Rio de
Janeiro da Primeira República”. In: Azevedo, E. et al. Trabalhadores na cidade. Campinas: Ed. UNICAMP,
2009.
76
NEEDELL, J. D. Belle Époque Tropical – sociedade e cultura da elite no Rio de Janeiro na virada do
século. São Paulo: Cia. das Letras; 1993.
77
FREIRE, Maria Martha de Luna. Mulheres, mães e médicos: discurso maternalista no Brasil. Rio de
Janeiro, Ed. FGV, 2009. P.89.
78
FREIRE, Maria Martha de Luna. Mulheres, mães e médicos: discurso maternalista no Brasil. Rio de
Janeiro, Ed. FGV, 2009. P.94.
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Ainda segundo esta autora, até meados do século XIX, “o ensino secundário, era
destinado exclusivamente para a população masculina”79. Este quadro começou a ser
modificado com a criação da escola normal, em 1880 no Rio de Janeiro, para a
formação de professores. Mas vale ressaltar que tanto as escolas normais quanto as
particulares voltadas ao público feminino tinham um nível acadêmico inferior do que
aquelas exclusivamente masculinas.
Os ensinamentos dirigidos ao público feminino se expandem “a condição das
escolas profissionais como formadoras de mão de obra feminina que servisse,
simultaneamente, ao lar, a indústria e aos comercio foi aos poucos se consolidando” 80.
Na década de 1920 havia na cidade do RJ, escolas de formação profissional destinadas a
mulheres de origem pobre, de modo a receberem noções básicas de como ser uma boa
mãe e esposa, e sobretudo, conhecimentos domésticos a fim de poderem trabalhar. Já as
mulheres de classe média e alta urbanas, em geral, eram educadas em escolas religiosas,
para a formação de „moças prendadas‟. As escolas além de moral e educação tinham
disciplinas como higiene e puericultura, o que denota a relação entre medicina e
educação.
As revistas femininas se tornam espaço para discussões de saber medico, de modo
a tornar as mães auxiliares dos médicos no cuidado com seus filhos, “as seções de
correspondência das revistas femininas pareciam realmente funcionar como verdadeiros
„consultórios médicos‟ para puericultores”.81 Em paralelo a difusão dos conhecimentos
médicos a publicidade se esforçava para associar seus produtos a um caráter de maior
cientificidade, sobretudo nos produtos de alimentação infantil. Assim como os médicos,
as indústrias de medicamentos e alimentos passam a produziam manuais oferecidos
gratuitamente e recebidos mediante preenchimento e envio de um cupom que vinha no
anuncio do jornal. Estes manuais aconselhavam a maternidade e na diversificação no
uso do produto, em geral de leite industrializado, as farinhas lácteas.
79
FREIRE, Maria Martha de Luna. Mulheres, mães e médicos: discurso maternalista no Brasil. Rio de
Janeiro, Ed. FGV, 2009. P.111.
80
FREIRE, Maria Martha de Luna. Mulheres, mães e médicos: discurso maternalista no Brasil. Rio de
Janeiro, Ed. FGV, 2009. P.112.
81
FREIRE, Maria Martha de Luna. Mulheres, mães e médicos: discurso maternalista no Brasil. Rio de
Janeiro, Ed. FGV, 2009. P.130.
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A PROPAGANDA COMO VEÍCULO DE DIFUSÃO E INFLUÊNCIA SOCIAL
Com a maior inserção da mulher no mercado de trabalho, sobretudo, no final do século
XIX e no decorrer do XX, de um lado estavam mães que tinham o trabalho como uma
necessidade de vida e forma de sustento familiar; de outro lado mulheres de classes
médias e altas urbanas que viam na busca por uma profissão uma forma de afirmação do
seu espaço na sociedade, como um rompimento com a imagem da mulher tradicional.
Se a expansão do ensino secundário ao público feminino levaria a mulher a uma
maior possibilidade de conhecimentos, através da imprensa seria levado a cabo as
concepções em torno do papel da mulher na sociedade.
O trabalho feminino traz consigo a problemática da mulher operária e da
filantropia como meio de atuação das mulheres mais abastadas. Por outro lado, vemos o
crescimento de propagandas nos periódicos e revistas com anúncios de produtos que
deveriam fazer parte da vida dessa nova mulher. Desta forma, a inserção da mulher no
mercado de trabalho, ou a sua profissionalização, tem relação direta com as práticas
assistências desenvolvida na cidade, voltadas para o atendimento de crianças pobres.
Essas instituições se colocam como espaço para o trabalho que seria exercido por
mulheres da elite e que tinha relação direta com o atendimento de mulheres operárias,
que constituíam o público alvo das instituições – junto com seus filhos, na medida em
que visavam atender as mães a fim de contribuir para a melhor criação dos filhos. A
filantropia se constitui, assim, como lugar de trabalho para muitas senhoras da boa
sociedade e como local para se refletir a atuação social da mulher considerada moderna,
não mais restrita à vida doméstica.
Nessa redefinição do papel da mulher e do cuidado com a criança, a imprensa –
tanto a médica quanto a leiga – se tornam espaços privilegiados para a reflexão desse
processo de transformação da sociedade. Nosso estudo, como já mencionado, tem como
objeto o estudo de periódicos correntes como o Correio da Manhã e o Jornal do Brasil,
periódicos médicos como A Tribuna Medica e o Brasil Médico e aqueles mais
direcionados ao público feminino como a Revista Fon Fon e o Jornal a Mai de Família.
Estes são alguns dos periódicos já observados a fim de compreender como a questão da
alimentação infantil vai ser percebida e difundida na sociedade e como ela está
vinculada à nova mulher.
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Tendo em vista o jornal como um veículo de comunicação que não se restringia as
classes mais abastadas, mas também difundido entre as classes populares, se configura
como fio condutor de notícias. Já nas revistas femininas encontramos um espaço mais
restrito, utilizado por mulheres letradas e detentoras de algum capital para a aquisição
de uma leitura mais direcionada. E nos periódicos médicos, local de divulgação e
discussão de saberes, poderemos também perceber os debates que cercam a medicina
direcionada à infância e a defesa daqueles médicos envolvidos no processo de combate
a mortalidade infantil, que pensavam a pediatria no Brasil, em especial na capital da
república.
Em A mai de Familia82 , no ano de 1879, um artigo escrito pelo medico D. Carlos
Costa, intitulado “Minhas Senhoras” e como ressalta o nome do jornal direcionados as
senhoras da sociedade, o médico argumenta sobre o papel da mulher em ser mãe, um
sentimento que deveria ser inato. A leitura deste periódico nos interessa para entender a
bagagem intelectual dos médicos aqui estudos e, nesta temática específica, temos o
papel da mulher em ser mãe ressaltado como sua principal função de existência.
Já na Revista Fon Fon 83 , no ano de 1914, temos a propaganda do leite
“Allenburis”, que oferecia sem custos adicionais o folheto sobre “Alimentaçao e
Cuidado da Criança”. Este folheto representa a mobilização da própria indústria de leite
orientando as mães sobre a versatilidade desse alimento.
Nessas duas propagandas, cabe ressaltar que com um espaço de tempo de mais de
trinta anos, temos a passagem do papel da mulher como objeto puramente reprodutor
para um público consumidor, de mães que poderiam comprar o alimento do seu filho.
Mais do que isso, assim como os conselhos médicos, vemos a preocupação da indústria
em garantir a venda de seus produtos, se propondo a aconselhar as mães, dando a
segurança do uso do leite industrial e o colocando em igualdade ao uso do leite materno.
Interessa ressaltar ter sido encontrado em periódicos como O Correio da Manha,
O Brasil Medico e A Mai de Família, não apenas propagandas, mas espaço também de
discursos médicos, que não se restringiam aos periódicos de medicina. A conduta
82
D. Carlos Costa. “Minhas Senhoras”. A Mai de Familia. Rio de Janeiro: p.57-59, 1879. (Disponível em
hemerotecadigital.bn edição 0008)
83
Allemburis. Fon Fon. Rio de Janeiro: 1914. (Disponível em hemerotecadigital.bn Edição 0010)
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médica e mesmo do editorial do jornal A Mai de Família, do ano de 1879, se coloca
direcionada a defesa do aleitamento materno mais por uma questão moral do que
médica. A matéria se aproxima de senhoras e futuras mães pela defesa dos bons
costumes, e a arte de ser mãe como dever de toda mulher. Ao passo que na década
seguinte o posicionamento de médicos se colocaria em favor de uma vida saudável e
nos primeiros anos da República, embasados, sobretudo, por um ideal cientificista do
higienismo.
A PROTEÇÃO À INFÂNCIA E OS DISCURSOS MÉDICOS QUE CERCAM A
VIRADA DO SÉCULO XX
Nosso estudo tem em vista o trabalho de dois médicos que marcam o processo de
formação de uma rede de assistência materno infantil na cidade do Rio de Janeiro, na
virada do século. Os médicos Moncorvo Filho, muito conhecido pelas constantes
publicações em periódicos correntes de aconselhamentos as mães pobres e Fernandes
Figueira, que adquire reconhecimento internacional com a publicação do livro
“Elementos de semiologia infantil”, em 1902, na qual vem analisar o desenvolvimento
da criança. Em comum, estavam a frente de instituições voltadas a crianças pobres,
cujas mães fossem desprovida de recursos, e trabalhariam em prol da vulgarização dos
conhecimentos médicos e da higiene infantil. A alimentação infantil aparece no trabalho
desses indivíduos como caminho primordial no combate a mortalidade, cabe perceber
alem de suas divergências os projetos de assistência pediátrica que era defendido por
esses homens e a influência na sociedade, em especial, na vida das mulheres-mães.
Moncorvo Filho criou em 1899 o Instituto de Proteção e Assistência à Infância do
Rio de Janeiro (IPAI) a fim de promover assistência às mulheres/mães de baixa renda,
que necessitassem de atendimento médico e assistência ao recém-nascido. No local
eram realizados distribuição de leite esterilizado para as mães que não pudessem
amamentar, bem como, a distribuição de roupas e a conscientização para uma vida
saudável. Moncorvo se destaca na busca pela vulgarização dos preceitos de higiene
entre a população, promovendo conferências na instituição e exposições embasadas no
modelo francês sobre os cuidados com a infância84.
84
Relatórios anuais do Instituto de Proteção e Assitencia á Infancia do Rio de Janeiro, estão disponíveis
online na base de acervo da Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC RJ.
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Fernandes Figueira foi o medico convidado para dirigir a Policlínica das Crianças,
em 1909. A Policlínica era uma instituição criada pela benemerência de José Carlos
Rodrigues e doada à Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. A instituição se
manteve relacionada com a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, sendo utilizada
como o local para aulas práticas dos alunos, se configura também como espaço para
pesquisa de campo e realização de teses. Fernandes Figueira assume em 1921, a convite
de Carlos Chagas, a Inspetoria de Higiene Infantil do Departamento Nacional de Saúde.
Vale ressaltar que a ele foi destinado o titulo de presidente perpétuo da Sociedade
Brasileira de Pediatria.
Em 1908, foi realizado na cidade do Rio de Janeiro o Primeiro Congresso
Nacional de Assistência Pública e Privada, em comemoração ao Centenário da Abertura
dos Portos, que tinha por objetivo discutir e demarcar os limites da assistência pública e
privada que permeava o período. Uma sessão deste congresso foi destinada as
discussões acerca da proteção infantil. Neste grupo se encontravam Moncorvo Filho e
Fernandes Figueira, que apresentam ao que é possível perceber propostas um tanto
divergentes de atuação.
Fernandes Figueira era defensor do aleitamento materno, como dever primordial
de toda mulher e contrário aos concursos de robustez como sinônimo de saúde. No
relatório85 que apresenta ao Congresso de 1908, ressalta o trabalho de instituições
filantrópicas realizados na cidade, destacando a Santa Casa, o IPAI e a Policlínica do
Rio de Janeiro. Propõe como medidas contra a mortalidade infantil a fiscalização da
amamentação
por
médicos-inspetores,
organizados
pelo
poder
público,
a
obrigatoriedade das instituições de assistência infantil terem como base a amamentação
materna até os seis meses, premiando as mães como estímulo e facilitando suas
refeições a baixo custo. Fernandes Figueira também aponta para o recebimento das
gestantes nas maternidades com um mês de antecedência ao parto, a criação de
consultórios de lactantes e a fiscalização do leite industrial vendido na cidade.
85
FIGUEIRA, Antonio Fernandes. Assistencia Publica: Assistencia á infância e particularmente o que se
refere ás medidas a adoptar contra a mortalidade infantil. Educação das rianças deficientes. Relatorio
apresentado ao Congresso Nacional deAssitencia Publica e Privada. O Brazil Medico. Rio de Janeiro, Out. p.
401-405; 411- 415;419-420. 1908.
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Sobre o discurso do colega de profissão, no Congresso de 1908, Moncorvo Filho
tece elogios e no mesmo ano publica um artigo na Tribuna Medica 86 , defendendo a
importância de sua instituição, pouco discutida pelos seus pares no congresso, indicando
a relevância das práticas exercidas no IPAI. Moncorvo Filho se mostra indignado pelos
demais médicos não terem discutidos a assistência ali realizada, ao que relembra sua
obra como a precursora das Gotas de Leite no Brasil, da regulamentação das amas de
leite, da realização dos concursos de robustez e da distribuição de leite esterilizado.
Se Moncorvo Filho argumenta em favor da mulher pobre, por vezes miserável,
que não tinha condições de trabalhar, Fernandes Figueira tem como público um grupo
de mulheres que trabalha para manter suas casas e está empregada na indústria, são
mães operárias.
No Livro das Mães87 , cuja primeira edição data de 1910, Fernandes Figueira
defende o „alimentar como primeiro dever materno‟. Este livro é dedicado à
vulgarização do saber médico acerca da infância e voltado ao público feminino letrado,
o que denota um caráter restritito da obra, visto que a leitura não era dominada por toda
a população. Chama atenção, pois o autor perpassa o livro defendendo questões que
recaem sobre a importância do alimentar, e mais do que isso, a importância do
aleitamento materno. A ama de leite aparece como o último recurso para uma mãe
impossibilitada de amamentar, mas, ainda assim, melhor do que a utilização do leite
animal. Fernandes Figueira demonstra tolerar a ama, percebe que se as mães passassem
a amamentar seus filhos, a ama perderia sua função e, por sua vez, também alimentaria
com maior qualidade seus próprios filhos.
Moncorvo Filho, no IPAI, vai realizar desde os primeiros anos da instituição a
regularização das amas de leite, sendo encontrado no Jornal do Commercio anúncios
que buscavam de amas que fossem atestadas pelo IPAI. Quanto aos procedimentos para
a regularização, o médico estabeleceu uma ficha para as amas e seus filhos com regras e
deveres, dentre as quais a atestação era temporária, a pessoa responsável por cuidar do
filho da nutriz deveria informar quinzenalmente o estado da criança à instituição, que
86
Congresso Nacional de Assistencia Publica e Privada. Discurso do Dr. Moncorvo Filho a proposito da
discussão da these: Protecção a Infancia, relatório pelo Dr. Fernandes Figueira. Rio de Janeiro, A Tribuna
Medica, p.363-367, Out. 1908
87
FIGUEIRA, Antonio Fernandes. Livro das Mães. Consultas Praticas de Hygiene Infantil.Rio de Janeiro: 3ª
edição 1926.
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seria avaliada no Dispensário, bem como, não era permitido o acúmulo do serviço
doméstico a função de ama88. Em oposição, Fernandes Figueira verá no aleitamento
misto um meio das mães continuarem amamentando e poder trabalhar, e mais tarde iria
advogar pelo estabelecimento das creches nas fábricas e pela permissão de horários
alternativos para que o aleitamento materno não fosse cortado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As relações que se estabelecem em torno da construção da defesa alimentar na virada do
século, nos leva a diferentes vertentes que se colocam diretamente vinculadas ao
contexto social e econômico do público a ser assistido. Aqui temos propagandas
voltadas à mulher trabalhadora, que precisava alimentar seu filho e não poderia deixar
de trabalhar. A farinha láctea e o leite de vaca aparecem a preços razoáveis como
opções seguras e eficazes, e nos leva a verificar propagandas que apresentavam em seu
anúncio o endereço do estábulo ou a certificação da qualidade do leite por um órgão
público a fim de confirmar sua qualidade. Temos ainda a opinião médica, que mesmo
reconhecendo o leite materno como melhor alimento para o desenvolvimento da
criança, veria no aleitamento misto e na ama de leite um meio para a alimentação
daquelas crianças cujas mães não pudessem amamentar. As defesas convergem para a
transformação da sociedade civil e as necessidades dessa nova mulher empregada no
mercado de trabalho, que necessitava prover o sustento familiar.
Por outro lado temos a presença de médicos atestando a validade de leites indus
trializados ou mesmo produzindo tais produtos, quando não a utilização em suas
próprias instituições. O que nos leva a percepção da ambiguidade que marca o período e
as defesas realizadas. Que a entrada da mulher no mercado de trabalho mudou a ótica de
assistência é um fato, mas cabe perceber como a relação da indústria e das necessidades
sociais vão interferir na atuação e defesas médicas.
A análise das fontes está em curso, deste modo, as considerações aqui realizadas
são reflexões parciais do trabalho.
88
MONCORVO FILHO, Arthur. Regulamento do Instituto. Rio de Janeiro: Set.1913
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SODOMITAS “DE COR” E INQUISIÇÃO EM SALVADOR NO SECULO XVII.
Daniana Oliveira Bispo
Orientadora: Adriana Albert Dias
Resumo:
O estudo sobre sexualidade e sodomia, abre espaços para grandes possibilidades, logo a
presente comunicação tem como principal proposta fazer uma investigação de crimes
que estavam sob a alçada da Inquisição Portuguesa em Salvador no século XVII,
sobretudo, atos sodomitas de escravos, que depois dos cristãos-novos judaizantes, foram
os mais perseguidos por praticarem “o mais sujo pecado sexual”: a sodomia, que era
considerado um “pecado nefando” ou sujidade. Nessa perspectiva, através do sumario
de culpa encontrado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), que fora aberto
pela Inquisição contra Jerônimo Soares escravo, mulato, cozinheiro, natural de Lisboa,
morador em Salvador e em Itapicuru seiscentista procuraremos evidenciar a atuação da
Santa Inquisição Portuguesa no contexto baiano, assim como as formas de repressão
utilizadas contra esses sodomitas. Buscamos também compreender parte do imaginário
sócio-cultural e o cotidiano desses sodomitas da sociedade baiana colonial no século
XVII.
INTRODUÇÃO
O artigo visa discorrer e estreitar a relação entre a Igreja Católica e sexualidade,
objetivando destacar a Inquisição e a sodomia em Salvador no século XVII, dois temas
que embora pareçam ser independentes, estão fortemente ligados um ao outro.
Diferente da inquisição, discutir a sexualidade sempre foi um enigma para a
humanidade, todavia como bem apontou Foucault, o desejo de saber do mundo
contemporâneo, a curiosidade dos historiadores em dialogar sobre vontades e belprazeres tornou-se necessário refletir sobre o assunto. No que tange à Inquisição
qualquer leitura, análise ou resgate histórico nos levará as clássicas definições de

Graduanda do 7º Semestre do curso de Licenciatura em História da UNEB - Universidade do Estado da
Bahia CAMPUS XIII, [email protected]

Possui graduação em História pela Universidade de São Paulo e mestrado em História Social pela
Universidade Federal da Bahia. Atualmente é professora do Colegiado de História, do Departamento de
Educação da UNEB/Campus XIII onde integra o Núcleo de Estudos das Populações Negras. Tem
experiência na área de Pesquisa Histórica, História do Brasil, História da Bahia, com ênfase em História
Social da Cultura Afro-Brasileira.
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perseguições e condenações às práticas de fornicações, incestos, bruxarias, feitiçarias,
adultérios, hereges, cristãos-novos enfim, todos e quaisquer atitudes que colocasse a
humanidade em dúvida da verdadeira fé e a afastasse de Deus.
Ao pensar sobre o papel histórico dos africanos e seus descendentes no Brasil é
preciso tomar o cuidado para não se chegar a conclusões e afirmações ultrapassadas e já
superadas de um povo que ficou marcado pela escravidão, pela inferioridade, selvageria,
de sensualidade primitiva, desprovidos de religião e cultura que encontraram no Novo
Mundo por meio de Portugal – país que ficou marcado pelo imaginário coletivo daquele
que tinha como vocação a missão civilizatória, e que se mitificou como “o povo que
cumpria a vontade de Deus”-, a “divina providencia da civilização”.
O fato é que, mesmo passado 192 anos do declínio da Inquisição discutir a
sexualidade é ainda um assunto proibido, visto que a igreja Católica utilizou e ainda se
utiliza do poder da fé para determinar o que venha a ser “normal”, assim, torna-se no
mínimo polemico dialogar sobre a sodomia, que antes mesmo de propagada, foi
condenada pela Inquisição como um “pecado contra a natureza”, responsável pelo
dilúvio universal, como podemos ver na citação.
De todos os pecados, o mais sujo, torpe e desonesto é a sodomia. Por causa dele,
Deus envia à terra todas as calamidades: secas, inundações, terremotos. Só em
ter seu nome pronunciado, o ar já fica poluído. - Vide, D. SEBASTIÃO.
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, 1707. São Paulo, Tipografia 2
de fevereiro, 1853.
Contudo, raramente pensamos ou discutimos a vida sexual dos negros Africanos e
seus descendentes no Brasil durante o tempo da escravidão, assim como deixamos de
relacionar a Santa Inquisição à homossexualidade.
Dentre estes, destacamos o embate entre a homossexualidade e a religião, assim,
esta comunicação surge da necessidade de problematizar e refletir sobre o papel, as
atitudes e atuação da Inquisição, também conhecida como Tribunal do Santo Ofício,
para com estes sodomitas no contexto baiano, pleiteamos também resgatar a vida sexual
dos negros Africanos e seus descendentes no Brasil durante o tempo da escravidão, tal
como, a relação sodomita entre escravos e senhores, que por ser considerado um
“pecado nefando” mortal ou sujidade, era visto como capaz de levá-los ao inferno89.
89
Nefando: Indigno de se nomear; abominável, execrável, execrando, nefário. Pecado Nefando: sodomia,
pecado contra a natureza, cópula anal, homossexualidade.
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Nesta perspectiva procuramos evidenciar o caso do escravo Jerônimo Soares que ocorre
em Salvador no século XVII.
DESENVOLVIMENTO E CONCLUSÃO
Marcada historicamente pela coexistência das dicotomias ortodoxia e heresia,
transgressão e repressão, a Igreja com o interesse de defender a fé católica utilizou-se do
nome de Deus e da didática do pânico para reforçar sua doutrina e controlar seus
seguidores afirmando estarem preocupados com a moral e os bons costumes, assim,
diversas atitudes suspeitas foram perseguidas pela Inquisição.
Apesar do Santo Ofício posicionar todas as suas forças e atenções contra o
judaísmo, que segundo Luiz Mott, por ser “considerado não apenas uma ameaça à
religião de Cristo, como também um perigo à hegemonia dos cristãos velhos,
descendentes dos primeiros habitantes da Lusitânia”, e por isso serem penitenciados
com tanta veemência, outros crimes se destacaram na categoria dos maiores
merecedores dos castigos do Tribunal do Santo Oficio, deste modo em segundo lugar no
rol dos mais perseguidos surge a sodomia90 – cópula anal homossexual ou
heterossexual.
Nosso ponto de partida é o sumário de culpa91 encontrado no Arquivo Nacional da
Torre do Tombo (ANTT), que fora aberto pela Inquisição contra Jerônimo Soares
escravo, mulato, cozinheiro, natural de Lisboa, morador em Salvador e em Itapicuru
seiscentista que revela outros personagens sodomitas que se envolveram com ele:
Manuel Luís, Manuel Coelho e Luís de Almeida de Brito, ao cruzarmos este documento
com os demais processos inquisitoriais envolvendo os possíveis amantes de Jerônimo,
poderemos compreender algumas das aventuras amorosas do escravo Jerônimo, a
sociedade colonial e o papel da Inquisição frente a tais relações e práticas afetivosexuais, pois como afirma Mott (1983, ALDRICH apud 2002, p. 1)
"-A história da homossexualidade é muito mais que a história do sexo: ela revela
atitudes e práticas sociais, vínculos de amizade, emoções e desejos. É também a
história de como a sociedade tenta controlar, reprimir ou liberar essas práticas."
90
Entretanto, desde as últimas décadas do século XX, tal palavra tem sido considerada pejorativa.
91
Sumário de Culpa se refere à responsabilidade dada à pessoa por um ato que provocou prejuízo material,
moral ou espiritual a si mesma ou a outra.
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A prática da sodomia era considerada um ato tão grave que a sua punição se
estendia aos descendentes do criminoso, fica então notória e escancarada a repulsa da
Inquisição perante aos atos “sodomitas” como podemos notar no trecho abaixo extraído
de um discurso lido num sermão de um Ato da Fé de Lisboa em 1645.
“O crime de sodomia é gravíssimo e tão contagioso, que em breve tempo
infecciona não só as casas, lugares, vilas e cidades, mas ainda Reinos inteiros!
Sodoma quer dizer traição. Gomorra, rebelião. É tão contagiosa e perigosa a
peste da sodomia, que haver nela compaixão é delito. Merece fogo e todo rigor,
sem compaixão nem misericórdia!”
Na primeira visitação da Santa Inquisição a Bahia em 1591 o inquisidor ordenou a
todos, sem exceção que denunciassem qualquer pessoa, presente ou ausente, pecadores
de ontem e de hoje, que mostra que, todos estavam sujeitos as possíveis denúncias.
Restou a sociedade baiana, da elite aos bispos, dos representantes do povo a massa, a
promessa de obediência e empenho na perseguição de todos os desvios contrários
cometidos por pecadores à pureza da santa Religião Católica. Assim, todos os
moradores de Salvador ficavam obrigados a denunciar e se confessar.92
No entanto, apesar da metodologia do medo imposta pelo Santo Oficio que
discursava em seus dogmas o que vinha a ser “moral natural”, alguns homens e
mulheres não se amedrontaram e viveram seus desejos homoeróticos, e para tal
afirmação destacamos a importância da pesquisa pioneira do antropólogo de formação
Luiz Mott, que pós-constantes buscas de fontes no Arquivo de Portugal e do Brasil
tornou-se Etnohistoriador, e assim descobriu uma gama de documentos imaculada que
aponta as várias práticas sexuais dos nossos antepassados. Segundo (MOTT, 1986, p.
19):
“-Embora raras, dispomos de documentos importantes que comprovam
incontestavelmente a pratica do homossexualismo por parte dos africanos e seus
descendentes no Brasil e em outras colônias americanas durante o período
escravocrata.
92
Segundo rezavam os Regimentos Inquisitoriais do Santo Ofício de 1613 quem se autodenunciasse, antes de
ser acusado, visto que confissões voluntárias implicavam em autoacusação, no prazo máximo de trinta dias
corridos, assim como denunciavam tudo o que souberem de vista ou de ouvida, que qualquer pessoa tenha
feito, dito ou cometido contra nossa Santa Fé Católica, recebia o benefício da misericórdia, ficariam livres de
penas corporais e do confisco de seus bens, ou seja vivendo num clima de paranóia, acreditando terem falado
ou agido de forma inadequada no tocante ao dogma cristão, muitos brasileiros tomaram a iniciativa de se
confessar perante o Santo Tribunal.
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Ora, contamos com uma vasta bibliografia sobre a escravidão que vem discutindo
resistências, conflitos, relações senhor escravo, entretanto, no que tange a sexualidade
destes negros escravizados entendemos que há uma lacuna que a historiografia custa a
abordar.
No entanto, mesmo diante da documentação citada por Luiz Mott - que atestam
denúncias e autodenúncias ao Tribunal do Santo Oficio em suas visitas a Bahia e
Pernambuco entre os anos 1591 - 1620 de indivíduos que realizavam ou que acusavam
o ato da sodomia e ainda que com o surgimento de escritores como o próprio Luiz Mott,
Ronaldo Vainfas e Ligia Bellini que ciente desta falta de dialogo surge dando
contribuições decisivas à historiografia sobre a homossexualidade no Brasil, a nosso ver
esta abordagem ainda é discreta.
Sendo assim, esta temática não é, e nem pode ser considerada tão irrelevante
principalmente nos dias de hoje em que convivemos num presente, em que essa relação
atravessa os tempos, os lugares, o saber, o poder, o prazer e a busca incansável no
sentido de desvendar o significado mais profundo daquilo que é do nosso cotidiano.
Precisamos então, entender quais as implicações que este passado traz ao negro na
atualidade, precisamos discorrer sobre esses “ancestrais” – homossexuais - que são
sujeitos históricos, logo atores da nossa história.
Se partirmos do pressuposto que o negro além de ter sido considerado inferior e
não obter de diversos direitos como ser humano já que sofria pelo simples fato da cor da
sua pele ou devido ao tratamento escravo, intriga-nos saber o tão quão pior não deve ter
sido à vida deste ser a partir do momento em que ele praticava o ato homoerótico e tinha
a sua homossexualidade revelada, enfim, a assombração da escravidão é ainda maior se
pensarmos que além de ser negro e escravo, este também era apontado e acusado pela
pratica criminosa da sodomia.
Vide o caso de Jerônimo Soares que viveu parte de sua vida fugindo de Lisboa
para a Salvador, de Salvador para o Sertão de Itapirucu (Ba) devido às acusações
sodomitas a Santa Inquisição Portuguesa e que por continuar a prática sodomita foi
então “falado” e ate agredido por outro escravo e moradores do local.
Diante da história de Jerônimo que era escravo e sodomita, nota-se então que suas
angústias não se resumiram “apenas” à exploração escrava ou por ter nascido negro, há
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que se perceber e debater também as consequências sofridas por ele ser homossexual.
Jerônimo sofreu por conta da sociedade escravista e também por ser sodomita.
Quando tocamos no termo silenciamento historiográfico em relação a sexualidade
escrava em Salvador no século XVII, nos pautamos nas afirmações e ideias de escritores
como Luiz Mott que evidencia a existência do homossexualismo no período colonial em
sua obra Homossexuais da Bahia: dicionário biográfico (Séculos XVI-XIX) e
argumenta que a: “ documentação comprova que em seus 450 anos de história, São
Salvador da Bahia foi não apenas cidade de todos os santos, mas também de todos os
sodomitas”
É importante salientamos que o “abominável “pecado nefando” incluía tanto a
cópula anal heterossexual quanto as homossexualidades masculina e feminina, - que
embora a partir de 1646, os Inquisidores lusitanos tenham excluído o lesbianismo do
posto de sodomia “perfeita”, deixando de ser crime, para o posto de pecado mortal estas
também sentiram na pele a perseguição e o terror imposto pelos Inquisidores93. No
entanto percebemos que há igualmente por parte da historiografia a fragilidade nos
estudos referente a sodomia feminina.
Perante esse silêncio historiográfico procuramos entender quais os motivos que
levaram a essa negação histórica sobre a temática, que apesar do escritor, B.
MALINOWSKI em 1927 defender a importância de se estudar o homem nu, sem a
folha de parreira, constatamos que o conselho não foi seguido, ao contrário, durante
décadas o tema foi reprimido, negado como se fosse desmerecedor do dialogo.
Entendemos então, que em torno das relações amorosas entre homossexuais na
colônia giram muitas polêmicas e que o descaso ao assunto tem alguns algozes, dentre
eles estão: o mito da virilidade do negro, pois quando reverenciado o corpo e o sexo no
Brasil colônia, desde os tempos da escravidão criou-se a ideia de que os homens negros
tal como as mulheres seriam sexualmente "exacerbados" e livres.
93
Ao se tratar de sodomia feminina a Inquisição se via diante a algumas dificuldades em como julgar e
condenar as mulheres nefandas, já que para ser confirmada a sodomia era necessária haver o ato da
penetração anal somando ao sémem e estas não possuía um pênis para consolidar a prática definida pelo
Santo Ofício como o que seria a “sodomia perfeita”.
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Percebemos isto em iconografias que surgem apontando os negros com traços
característicos como, por exemplo, escravos andando de torso nu, em sua maioria eram
grandes e fortes, de certo devido à lida, e que possivelmente, estes despertaram as
fantasias locais94.
O estereótipo de virilidade e o mito também foram fortalecidos por características
de "boa dotação biotípica", somando-a a ideia dos negros serem sexualmente superiores
aos homens brancos.
Assim, possivelmente “parte” da sociedade que é machista, está satisfeita com
este “mito” e não acha relevante tratar da homossexualidade associando-a ao negro, ou
talvez, o “mito” prevaleça devido a questão do “ser aceito na sociedade”, pois se
reverberamos que tanto os gays quanto os negros desejam essa “aceitação”, no sentido
de que ambos lutam por direitos iguais, sem perder suas identidades. Imaginemos as
lutas e dificuldades do negro que, além de carregar a identidade negra, tem também que
carregar a identidade gay. A luta torna-se mais árdua.
A clandestinidade destes homossexuais, que temiam os castigos da Inquisição, irá
refletir na insuficiência de fontes sobre o tema, pois grande parte destes sodomitas não
assume a sua sexualidade, como cita (MOTT 1986, p. 19).
“[...] Tratando-se de um comportamento tabu até hoje em dia, os „sodomitas‟
viviam na mais completa clandestinidade, pois a revelação de suas preferências
homoeróticas poderia redundar em sua condenação à morte na fogueira, posto
que a sodomia, além de hediondo pecado, péssimo e horrendo, provocador da ira
de Deus e execrável até pelo Diabo”.
A pouca ou falta de aproximação da grande maioria dos pesquisadores com o
tema faz com que a questão da homossexualidade faça parte da teia de assuntos tabus da
cultura ocidental cristã.
A falta de interesse da Inquisição em julgar e condenar os negros escravos se
explica, já que os interesses inquisitoriais se concentravam nos donos de escravos que
eram proprietários de bens valiosos. Podemos notar isso no caso de Jerônimo. Para
entendemos parte da sua vida, do seu cotidiano precisamos recorrer aos seus amantes –
brancos -, que são citados no sumário de culpa do escravo, pois, apesar do escravo
citado praticar sodomia, não chegou a ser julgado, assim, não encontramos seu
94
De Jean Baptiste Debret (1768-1848) e Johann Moritz Rugendas (1802-1858)
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processo, apenas seu sumário de culpa, que ao nosso ver serviu como uma denúncia
e/ou ferramenta para inquisição processar os envolvidos.
Mesmo diante a carência de referências de estudos sobre a sodomia, entendemos
ser interessante repensar e discutir a existência desta que como bem disse Goethe, “A
homossexualidade é tão antiga quanto a própria humanidade”, portanto cabe evidenciar
a existência desse “amor socrático”, entre os negros Africanos e seus descendentes no
Brasil, tal como seus senhores durante o período colonial.
Amor este que segundo Luiz Mott, se deu entre africanos da costa ocidental no
período do trafico negreiro, e para esta afirmação o escritor aponta a questão cultural
das práticas sexuais dos Africanos, pois no que tange o sexo, os africanos praticaram da
masturbação a homossexualidade, ou seja, o manual inteiro de sexologia.
Examinando as diferentes atitudes eróticas dos Africanos, Mott chega a conclusão
que devido a traços culturais destas sociedades, surgem diversas práticas sexuais que se
misturaram no momento em que esses negros de diferentes etnias se relacionaram desde
os tumbeiros do navio negreiro ate sua convivência no novo mundo.
Deste modo, culturalmente falando existia locais na África em que a prática da
poligamia era comum, assim como em outras partes era costume a masturbação
recíproca, o adultério, o oferecimento de mulheres a visitantes como sinal de
hospitalidade, da mesma forma que o ritual da clitoridectomia nas meninas e a
circuncisão em meninos de 8 a 12 era natural, tal como o exercício da prática da
homossexualidade era natural entre meninos de 17-19, mais velhos, que deveriam
ensinar aos mais novos como praticar o ato sexual antes da circuncisão. E no que tange
as meninas, era aceito que elas mantivessem relações libidinosas como meninos ou
amigas.
Tanto os negros e negras, sejam eles adultos ou não que chegaram ao Brasil, não
trouxeram apenas marcas e cicatrizes tribais ou mutilações dos seus órgãos sexuais
exposta em seu corpo. Muitos deles já chegaram ao Brasil com sua sexualidade bem
resolvida, e com todas estas misturas de práticas sexuais em um navio cujas evidências
sintetizava-se em pouco espaço, ao qual predominava o amontoado do corpo a corpo, a
escuridão que era densa, a população masculina notoriamente maior. Assim, a única
liberdade que estes tinham eram suas culturas eróticas nos tumbeiros do navio negreiro.
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Deste modo, aponta Mott que a prática da masturbação e homossexualidade era
eminente.
Na chegada desses Africanos escravos ao Brasil, podemos perceber a partir de
MOTT que essas misturas de etnias encontram no Novo mundo o local certo para expor
suas práticas sexuais e alguns fatores facilitaram o florescimento da sodomia entre os
brasis e africanos.
Ora, assim que chegaram às terras brasileiras os escravos ficaram a “mercê dos
seus senhores”, tal como, o Brasil por ser um país cercado de imensas florestas acabou
por promover a prática homossexual, a fragilidade da fiscalização da Inquisição, já que
esta não consegui implantar-se no Brasil para fiscalizar com veemência as atitudes
sexuais95, a seminudez destes negros que despertava o desejo erótico dos senhores por
esses escravos, a “superioridade” sexual do homem negro que marcou longos períodos
no Brasil, os sodomitas menos informados do perigo da Inquisição, tal como aqueles
que não acreditavam que pudessem ser efetiva a ação do Santo Oficio, assim
justificamos a eficácia da sodomia no Brasil.
No entanto, pesar de apontamos as afirmações citadas acima como uns dos
motivos responsáveis pela excessiva prática homossexual no Brasil, cabe e vale lembrar
que não foi apenas por conta da desigualdade entre homens e mulheres, da mesma
forma, não foi por conta do abuso senhorial a causa destes atos homoeróticos entre os
negros e brancos. Assim, também refletimos que a ausência de registros inquisitoriais
sobre escravos sodomitas sucede não por que a prática era incomum, mais
provavelmente devido a sua pouca importância social, quando comparados aos seus
amantes brancos como dado o exemplo de Jerônimo Soares.
É importante apontar que existia entre os negros e senhores casos de relações
amorosas, portanto ocorreram episódios de senhores que como medo de perder seu
parceiro sexual incentivou que seus “cativos” fugissem para não serem pegos pela
Inquisição, como por exemplo, em 1632 Jerônimo Soares saiu fugido de Lisboa para
Salvador e de Salvador para o sertão do Itapicuru, nos limites da Bahia com Sergipe.
95
Apesar da insistência do monarca rei da Espanha/União Ibérica Felipe IV, que por duas vezes tenteou criar
um tribunal permanente da Inquisição em Salvador em 1622 e 1629, a Inquisição não o deu ouvido, já que os
interesses políticos desta falavam mais alto do que a ideia de controlar o comportamento dos que viviam
aqui.
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Tudo indica que Jerônimo Soares mantinha relações amorosas com o seu senhor
em Portugal que, temeroso de perder seu amante escravo gay, que caso fosse descoberto
poderia ser queimado no Auto da Fé pela inquisição em Lisboa, despachou-o
secretamente para o Porto, onde este foi vendido e embarcado para a Bahia, tornandose cozinheiro de Antônio de Brito Corrêa, destacado tabelião soteropolitano, da mesma
forma em 1683, após ser denunciado no Juízo Eclesiástico, o mulato foi vendido para o
sertão do Itapicuru.
Assim nota-se, que na relação homoerótica além de não existir a comparação de
poder – senhor, escravo -, percebe-se que alguns senhores eram bastante fieis a seus
amantes de cor e que as vezes existia uma relação amorosa entre escravos e senhores.
No episódio de Jerônimo podemos notar que seus amantes preferiram perder o seu
escravo a vê-lo morto, por tanto, foi este sentimento “nefando” que salvou Jerônimo dos
castigos da Inquisição oportunizando ao mesmo uma vida indômita na luxúria, pois
beirando setenta anos, Jerônimo continuará com suas práticas sodomita em Itapirucu.
Em suma, estamos cientes das dificuldades que o pesquisador encontrará em
problematizar a temática, entretanto Jerônimo Soares não é um caso único e isolado,
existem outros documentos envolvendo escravos sodomitas, afinal a Igreja Católica
principal repressora da sodomia perseguiu, julgou, estimulou as denuncias, a auto
denuncia e condenou muitos sodomitas, e neste sentido propormos uma reflexão sobre a
problemática, no qual sugerimos que saiamos deste senso comum e partimos a repensar
a história a partir da necessidade de discorrer o que se é “ocultado”.
Através do sumário de culpa de Jerônimo Soares e dos processos de seus amantes,
de alguma forma, daremos a estes personagens – Negros escravizados e homossexuais a palavra, a oportunidade de narrarem as suas histórias e do que eles realmente foram
“vitimas” no período escravista.
Entendemos
que
em
meio
a
atual
efervescência
de
preconceitos
e
fundamentalistas religiosos, seguindo das declarações homofóbicas que difamam,
oprimem, amedrontam e fazem com que muitos não tenham coragem de assumir a sua
orientação e como consequências vivem por longos anos escondendo-se na
clandestinidade, cremos ser fundamental que haja por parte do historiador a
preocupação, a sensibilidade de pensar no coletivo populacional dialogando as
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determinadas épocas, buscando contribuir e compreender as relações homossexuais
históricas no sentido de se pensar essas relações na contemporaneidade. Pois, onde há
sociedade há direitos, direitos destas pessoas narrarem a suas próprias histórias.
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POR UM MULTILATERALISMO AGRESSIVO: A POLÍTICA EXTERIOR
BRASILEIRA EM RELAÇÃO AO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
DURANTE A ERA LULA (2003-2010)
Drielle da Silva Pereira96
Resumo:
O presente trabalho procura analisar a atuação brasileira no Tribunal Penal
Internacional, órgão criado em 1998 e em vigor desde 2002; que possui por
competência julgar indivíduos responsáveis por genocídio, crimes contra a humanidade,
crimes de guerra e agressão. Nossa análise se insere nos estudos que procuram ver a
diplomacia altiva e propositiva nos espaços multilaterais durante a gestão Luís Inácio
Lula da Silva, aonde órgãos como o TPI funcionaram como espaços de crítica ao
tratamento desigual do sistema multilateral.
Abstract:
This paper analyzes Brazil's performance in the International Criminal Court, a body
created in 1998 and in force since 2002, which has jurisdiction for trying individuals
responsible for genocide, crimes against humanity, war crimes and aggression. Our
analysis is included in studies that seek to see diplomacy proud and purposeful spaces
for multilateral management Luís Inácio Lula da Silva, where organs such as the ICC
functioned as spaces of criticism unfair treatment of the multilateral system.
O presente trabalho tem por objetivo versar sobre a atuação da diplomacia brasileira no
Tribunal Penal Internacional, órgão criado em 1998 e que entrara em vigor no ano de
2002 tendo por competência julgar indivíduos que cometeram crimes contra a
humanidade, genocídio, crimes de guerra e crimes de agressão tendo sido fruto de longo
processo de avanços e recuos no seio da comunidade internacional desde o fim da
Primeira Guerra Mundial97. Nossa exposição procurará analisar a política exterior do
96
Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense. Esta comunicação é parte do trabalho de
conclusão de curso apresentado ao Departamento de História da UFF em fins do primeiro semestre de 2013,
tendo por orientação o prof. Dr. Bernardo Kocher.
97
O Tribunal Penal Internacional é fruto de uma longa discussão no seio da comunidade internacional que
data desde fins da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando os Estados a possibilidade e necessidade de
responsabilizarem os indivíduos que cometeram crimes contra a humanidade. Esta proposta irá se manter
parada até fins da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), onde as potências aliadas concretizam a idéia de
responsabilizar, individualmente, os agressores nazistas. Das conseqüências nefastas provocadas pela
Segunda Guerra, teremos a organização dos Tribunais de Nuremberg e Tóquio onde o primeiro fora
responsável por julgar e punir os criminosos de guerra das potências do Eixo e o segundo tribunal, tivera a
competência de se voltar para os crimes perpetrados pelos japoneses durante o conflito. Críticas foram feitas
a estas experiências jurídicas internacional, todavia, constituíram marcos na construção da idéia de
responsabilidade penal internacional individual que irá repercutir nas ações tomadas pela Organização das
Nações Unidas nos anos subseqüentes. Diante da eclosão da Guerra Fria, os trabalhos da ONU e de seu
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governo Lula em relação ao órgão acima, tendo em vista as sensíveis mudanças
passadas pelo Brasil e a condução de suas relações exteriores no período de 2003-2010.
Estas mudanças vêm sendo alvo de grande interesse diante da nova posição assumida
pelo país no cenário internacional nos últimos anos 98. Diante disto nossa exposição será
estruturada da seguinte forma: primeiro trataremos de abordar os contextos interno e
externo que propiciaram a construção da retórica e ações da política exterior brasileira
no período, num segundo momento nos voltaremos para as variadas dimensões dessa
política pública para então, nos debruçarmos sobre as posições assumidas pelo país no
TPI e, por fim, nossas conclusões.
CONTEXTO INTERNO E EXTERNO
Ao analisarmos a condução da política exterior brasileira no governo Lula temos que
levar em consideração os contextos interno e externo que propiciaram a construção do
discurso e das ações nas relações exteriores do país no período aqui abordado. Segundo
João Paulo Schittini99 três fatores internos são importantes na compreensão da atuação
brasileira na sociedade internacional durante o governo Lula: o significativo
crescimento econômico, a trajetória do Partido dos Trabalhadores e, por fim, o
adensamento democrático que aponta para a incorporação dos anseios sociais nas
decisões políticas brasileiras. Segundo Schittini:
Essa distinção adquirida credencia o país de alguma maneira a encaminhar a
crítica à ordem internacional característica da gestão Lula. A tese que se defende
CSNU ficariam marcados por impasses diante do conflito entre URSS e EUA jogando uma pá de areia no
projeto de um tribunal permanente, tendo em vista, que as duas experiências anteriores eram ad hoc. A
década de 1990 e o fim da bipolaridade marcariam novas perspectivas para os trabalhos, ao mesmo tempo,
em que tal período fora recortado por dois grandes conflitos que geraram a conformação de dois tribunais
internacionais ad hoc e dependentes do sistema ONU, neste caso, os Tribunais para Ruanda (TPIR) e para a
ex-Iugoslávia (TPII). Estas experiências irão apontar para a necessidade da criação de um tribunal
permanente e independente, traços que distinguem o TPI das experiências jurídicas que o precederam.
98
Segundo Adriano Freixo, o período de 2003-2010 fora marcado por notáveis mudanças nos rumos da
política exterior empreendidos pelo Brasil, onde o país passou a assumir um intenso protagonismo nas
grandes questões mundiais. A ênfase dada pelo governo às relações com os países do Sul fora marcada por
inúmeras manifestações entusiasmadas, mas, também, altamente críticas em âmbitos interno e externo.
Críticos ao governo colocaram a política externa promovida durante a gestão Lula como demagógica e
ineficaz enquanto outros a colocaram como inovadora e original. Em meio ao debate levantado, um dado não
pode ser deixado de lado: a política externa e suas pautas foram colocadas no debate doméstico ampliando,
assim, os campos de ação e de interesse da diplomacia brasileira. Sobre estas questões ver: FREIXO, Adriano
[et al]. A política externa brasileira na era Lula. Rio de Janeiro: Apicuri, 2011.
99
Ver: SCHITTINI, João Paulo Marques. A agenda do desenvolvimento na promoção dos direitos humanos:
uma análise da política externa brasileira no governo Lula. Rio de Janeiro,2011. 202f. (Dissertação de
mestrado em Relações Internacionais). Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
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é no sentido de a crítica se fazer a partir da incorporação da dimensão dos
valores, que se traduzirão nas reiteradas menções a necessidade de se buscar uma
globalização mais justa inclusiva, de se reduzir as iniquidades mediante a
cooperação internacional e do direito ao desenvolvimento. Ademais, entende-se
que é nessa reafirmação dos valores como parte da política externa brasileira que
se inclui a temática dos direitos humanos e o pleito pela agenda de
desenvolvimento global compartilhado. (SCHITTINI: João: 2011 p. 134)
O governo alçado ao comando do país nas eleições de 2002 irá manter os três
pilares da política macroeconômica vigente desde o início dos anos 2000, a saber:
manutenção do superávit fiscal primário, prática do câmbio flutuante e regime de metas
de inflação. Tais pilares contribuíram no controle inflacionário somando-se outros
aspectos como a internacionalização da economia e o equilíbrio das contas externas que
juntos tiveram repercussão na construção da retórica externa adotada pelo governo
durante o período. Além das questões econômicas também vale destacarmos a própria
figura do então presidente bem como do Partido dos Trabalhadores que trouxeram duas
mudanças para a política exterior: (a) o fortalecimento do discurso pautado na crítica às
iniquidades internacionais guardando relação com o histórico do próprio partido em
função do combate às desigualdades sociais e (b) ações pautadas num discurso de
ênfase ao desenvolvimento.
Autores como Miriam Gomes Saraiva 100 partem do pressuposto que o
entendimento da política externa do governo Lula implica a compreensão da própria
figura do presidente, seu histórico de vida e os rumos tomados pelo PT. Por fim, o
último aspecto interno a ser salientado neste período trata do adensamento democrático
que trouxera novos temas e agendas para os formuladores e executores da política
exterior brasileira, destacando-se aqui a questão dos direitos humanos, que irá
transpassar a própria instituição do Ministério das Relações Exteriores e incluir diversas
agências e uma ampla gama de outros ministérios101.
100
SARAIVA, Miriam Gomes. A América do Sul na política externa do governo Lula: idéias e mudanças In
FREIXO, Adriano. Obra citada. Rio de Janeiro: Apicuri, 2011.
101
O que se vê neste primeiro decênio do século XXI é a convivência do Ministério das Relações Exteriores,
instituição marcada pelo seu caráter encapsulado e insular, com os ensaios de opinião pública de um regime
democrático. Abre-se assim a necessidade de dialogar com grupos sociais dos mais diversos interesses, desde
aspectos econômicos a culturais, na conduta externa do país. Diante disto, as prerrogativas do MRE passam a
ser compartilhadas com outras esferas governamentais (Ministérios da Economia, da Cultura, da Educação,
do Turismo, etc.), além de abrir um espaço de diálogo com setores da sociedade civil como academia,
empresariado, ONGs dentre outros gerando um desafio para esta instituição no âmbito de um Estado
Democrático de Direito que se vê diante de uma politização da política externa.
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Além das questões internas apontadas acima também vale destacarmos as
mudanças percebidas no cenário internacional neste primeiro decênio do século XXI,
onde tivemos o 11 de setembro responsável por alçar a temática da segurança ao topo da
agenda internacional e mediante a deflagração da chamada “guerra ao terror” colocara
em risco as demandas internacionais na área dos direitos humanos e do próprio sistema
multilateral. Somando-se a isto também temos a mudança na economia política global,
afinal, nos últimos tempos percebemos a ascensão econômica significativa de países
como a China, Índia, África do Sul e do próprio Brasil e, diante da crise de 2008,
tiveram a abertura de um espaço de atuação conforme podemos ver na própria
organização de grupos como o G-20 financeiro102.
Tais variáveis formam o substrato o qual a diplomacia brasileira atuou ao longo
dos oito anos da gestão Lula, cujo traço principal fora o questionamento a ordem
internacional vista como não representativa das novas dinâmicas diante do novo século.
DIMENSÕES DA POLÍTICA EXTERIOR NO GOVERNO LULA
Procurando definir a política exterior adotada no governo Lula nos deparamos com seu
caráter multiforme, onde segundo Paulo Fagundes Vizentini 103 podemos defini-la a
partir de três dimensões: (a) diplomacia econômica; (b) diplomacia política e, por fim,
(c) diplomacia social. A diplomacia econômica teria sido marcada pelo viés realista,
sendo preservados os canais de contato com o Primeiro Mundo, obtendo recursos,
negociando a dívida externa e sinalizando que o governo iria cumprir com os
compromissos internacionais sem
nenhuma
ruptura
brusca
com
o modelo
macroeconômico. A segunda dimensão da política exterior seria marcada pelo viés
questionador e de resistência, criticando a ordem internacional e os tratamentos
desiguais feitos entre os países que a compõem, buscando um maior protagonismo
brasileiro no cenário internacional. Por fim, a diplomacia social teria um caráter
102
Segundo o autor Fareed Zakaria, o cenário internacional vem passando por uma profunda mudança,
sobretudo, em sua esfera econômica com aquilo que denominou de “ascensão do resto”. Esta expressão
refere-se ao crescimento econômico significativo de países como a China, Índia, África do Sul e o próprio
Brasil que, outrora, era impensável. Ver em: ZAKARIA, Fareed. O mundo pós-americano. São
Paulo:Companhia das Letras,2008.
103
Ver em: VIZENTINI, Paulo Fagundes. A Projeção Internacional do Brasil: 1930-2012. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2013.
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propositivo tendo um encontro entre a agenda interna e a agenda externa por meio de
ações de combate à fome e à pobreza no mundo.
Tendo em vista o nosso alvo de vermos a atuação diplomática no TPI, percebemos
que a mesma insere-se na segunda categoria analítica explicada por Paulo Fagundes
Vizentini. O que se verifica durante a gestão de Luís Inácio Lula da Silva é uma postura
de questionamento, por meio de ações em órgãos como o Conselho de Segurança das
Nações Unidas e no próprio TPI ao que, Carlos Milani104 chama de double standards
das potências, ou seja, critica-se o tratamento rigoroso com o qual as grandes potências
acabam dando aos demais países e, em contrapartida, são condescendentes consigo
mesmas e com certos aliados estratégicos em matéria de direitos humanos. Segundo
Milani:
O Brasil passou a denunciar o fato de que, em função dos interesses das
economias avançadas, o universalismo dos direitos humanos possa ser
politicamente instrumentalizado pelas diplomacias ocidentais. Por exemplo, na
reunião do G-20 realizada em Londres em 2009, o governo brasileiro manifestou
forte oposição às tentativas dos países desenvolvidos de flexibilizar as normas de
direito do trabalho diante da conjuntura de crise financeira e econômica.
(MILANI, Carlos:2012 p. 56)
Será com esta postura que a diplomacia brasileira irá se valer em órgãos como o
Tribunal Penal Internacional, o qual iremos analisar os posicionamentos assumidos ao
longo destes oito anos.
POSICIONAMENTOS BRASILEIROS NO TPI
Ao analisarmos a atuação brasileira no TPI iremos ver um movimento de maior inserção
no órgão de forma ascendente, ou seja, embora tenha participado do processo
negociador que dera origem a este espaço multilateral; uma atuação mais protagonista e
incisiva foi sendo gestada aos poucos. Para fins didáticos iremos expor a atuação da
diplomacia brasileira no TPI a partir de duas divisões: a primeira trata-se da relação
bilateral com os EUA que fora marcada por fissuras diante do 11 de setembro e seu
impacto na condução da política externa norte-americana e a segunda irá tratar da
atuação do país em espaços multilaterais, para além do próprio TPI mas que se
relacionam com o mesmo e com a crítica tecida pela diplomacia brasileira.
104
Ver em: PINHEIRO, Letícia. MILANI, Carlos R. S. (orgs.). Política Externa Brasileira: as práticas da
política e a política das práticas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.
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Relações Brasil-EUA e o TPI
Como dito anteriormente, o 11 de setembro trouxera sensíveis impactos para conjuntura
internacional e, em especial, para a condução das relações exteriores norte-americanas.
Diante da deflagração da guerra ao terror teremos uma série de atuações por parte do
governo norte-americano que colocariam em risco o ambiente multilateral, sendo o TPI
alvo de forte ofensiva por parte da diplomacia estadunidense. Conforme nos diz Elio
Cardoso105:
Naqueles meses pós-11 de setembro e já em plenos preparativos para a ocupação
do Iraque, prevalecia uma atitude hostil de Washington em relação ao TPI. Não
seria exagero dizer que o Tribunal, a certa altura, se transformara em espécie de
“bastião” do multilateralismo e do Direito Internacional diante dos impulsos
unilaterais então predominantes. (CARDOSO, Elio: 2010 p. 140)
O início do governo Lula ocorre no momento de eclosão da invasão norteamericana ao Iraque, aonde a diplomacia brasileira iria se posicionar de forma contrária
a qualquer ação que não fosse respaldada pelo aval da ONU 106. O ponto principal de
discórdia do governo Bush em relação ao TPI referia-se à submissão de cidadãos norteamericanos àquela jurisdição, sendo que o imbróglio estadunidense com o órgão teria
início ainda em 2002 quando os EUA viriam a notificar formalmente o Secretário Geral
das Nações Unidas sobre sua decisão de não se tornar parte do mecanismo. Tal gesto
fora o prenúncio de atitudes hostis ao TPI no CSNU, onde mediante a aproximação da
data de entrada em vigor do Estatuto de Roma o governo norte-americano iria recorrer a
medidas excessivas e não ortodoxas para que seus participantes em operações de paz
não ficassem sujeitos à jurisdição do TPI107. Mediante o funcionamento do TPI, os EUA
procurariam sugerir no CSNU a proposta de concessão de imunidade de jurisdição para
os integrantes das forças de paz, em meio às discussões sobre a Missão das Nações
Unidas em Apoio ao Timor Leste. Tal proposta seria rechaçada pelos membros do
CSNU criando um impasse dentro da própria instituição.
105
Ver em: CARDOSO, Elio. Tribunal Penal Internacional: conceitos, realidades e implicações para o
Brasil. Brasília: FUNAG, 2012.
106
Ver em: Lula reafirma posição do Brasil contra a guerra no Iraque. Disponível em:
http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2003-01-28/lula-reafirma-posicao-do-brasil-contra-guerra-no-iraque.
Acessado em 05/08/2013.
107
Vale lembrarmos que o CSNU pode remeter processos ao TPI, ainda que isto não seja sinônimo de
averiguação efetiva pelo mesmo; passando primeiro por uma análise dentre os componentes desta instância
jurídica para aí sim ser julgado ou não.
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O ponto alto da crise se daria no momento o qual o governo Bush iria anunciar a
decisão de firmar “acordos padrão” cujo objetivo seria proteger os seus cidadãos
participantes de operações de paz. Em agosto de 2002 viria a postura de retaliação
norte-americana aos impedimentos até então: sancionou-se uma lei que proibia a ajuda
militar aos países membros do TPI que não tivessem se submetido ao acordo
bilateral108; sendo que tal retaliação não seria aplicada, em contrapartida, aos membros
da OTAN e outros aliados especiais dos EUA.
O prazo dado pelo governo norte-americano de resposta aos outros países fora até
janeiro de 2003, ou seja, o governo Lula se deparara com o prazo limite de resposta.
Diante do prazo teremos a articulação entre os Ministérios da Defesa e das Relações
Exteriores109 que apresentariam a seguinte nota em 01 de maio de 2003:
O objetivo do TPI é impedir que permaneçam impunes indivíduos acusados da
prática de crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio. No
entendimento brasileiro, o acordo proposto pelos EUA seria contrário à letra e ao
espírito do Estatuto de Roma. (...) Por esses motivos, o Brasil não tenciona
firmar o acordo bilateral proposto pelos EUA. A assistência militar atualmente
prestada pelos EUA ao Brasil não é significativa. O Governo brasileiro reitera
seu interesse em preservar as tradicionais relações e a cooperação entre as Forças
Armadas dos dois países. (nota n. 257)
Diante desta postura de contrariedade à medida adotada pelo governo norteamericano, tal assunto irá permanecer na agenda dos dois países posteriormente, sendo
que no ano de 2006 a posição norte-americana seria flexibilizada dando fim às
restrições em termos de cooperação militar nas áreas de intercâmbio de ensino e
treinamento.
Espaços multilaterais
Outro espaço a ser destacado na atuação brasileira e, sem dúvida, tratou-se do local
privilegiado foram os espaços multilaterais. Em sua atuação no TPI, a principal
demanda brasileira será pela universalização do Estatuto de Roma e pelo fim dos
tratamentos excepcionais empreendidos pelos países, conforme podemos ver no
108
Os acordos bilaterais norte-americanos ficaram conhecidos como “ acordos de imunidade” que, segundo o
governo estadunidense, teriam por objetivo elaborarem uma rede global que reduzisse a zero a exposição de
cidadãos americanos ao Tribunal. Estes protegeriam não apenas os participantes de operações de paz ou
militares em geral, mas inclusive nacionais que atuavam em capacidade estritamente privada.
109
Ver em: MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Decisão sobre os EUA sobre assistência
militar e o TPI. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-aimprensa/2003/01/decisao-dos-eua-sobre-assistencia-militar-e-o-tpi. Acessado em: 05\10\2013.
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pronunciamento do Representante Brasileiro Embaixador Ronaldo Sardenberg na ONU
em debate sobre a temática da Justiça e do Estado Democrático de Direito onde o
mesmo irá destacar a “relação direta e proporcional da credibilidade da Corte com a sua
universalidade”, dando destaque ao esforço feito e que continuaria ser feito por parte do
Brasil em convencer os demais países a ratificarem o Estatuto de Roma 110.
Esta atuação brasileira se dará conjuntamente com os demais países do Sul através
de ações conjuntas em eventos como a Conferência Parlamentar Iberoamericana da
Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) sobre o TPI que ocorrera no
período de 25 e 26 de março de 2004 em Brasília resultando do documento denominado
“Declaração de Brasília” que pauta sugestões para a maior universalização do órgão.
Para além da CPLP, os países do Sul também atuariam de forma conjunta em espaços
como o Fórum do Rio e diante de casos de países africanos como a República
Democrática do Congo e Uganda que confiaram ao TPI, em outubro de 2004, o exame
da situação de seus países. Esta atenção dada ao continente africano reflete, a nosso ver,
a política de ampliação dos parceiros estratégicos do Brasil que, durante o governo
Lula, dera um destaque especial ao continente africano111.
Além destes espaços multilaterais, a Assembleia dos Estados-Partes do TPI112
consiste numa peça-chave para a visualizarmos a atuação brasileira. Ao analisarmos os
discursos feitos pelos representantes brasileiros na mesma, percebemos a constante
ênfase à cooperação entre os Estados como peça fundamental para um sistema
internacional que efetive, de fato, as normas do Direito Internacional além de, deixar
claro, a atuação perene do Brasil junto aos outros fóruns de governança global de apoio
ao mecanismo jurídico e de chamada à ratificação do Estatuto de Roma.
110
SARDENBERG, Ronaldo. Justice and The Rule of Law: the UN Role. Disponível em:
http://www.un.int/brazil/speech/004d-rms-csnu-Justice%20and%20the%20Rule%20of%20Law-0610.html.
Acessado em: 05\10\2013.
111
É importante lembrarmos a descontinuidade da política africana brasileira, onde o governo Lula seria
responsável pelo renascimento da política exterior brasileira para a outra margem do Atlântico Sul sob bases
mais permanentes que supera parte das oscilações históricas no ir e vir do Brasil no espaço do Atlântico Sul.
Mais informações ver em: SARAIVA, José Flávio. África parceira do Brasil atlântico: relações
internacionais do Brasil e da África no início do século XXI. Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2012.
112
Segundo o Estatuto de Roma em seu art. 112, a Assembleia dos Estados Partes é comporta por
representantes dos Estados que ratificaram e aderiram o Estatuto de Roma, tendo uma mesa composta por um
presidente, dois vice-presidentes e 18 membros eleitos pela Assembleia para um mandato de três anos, tendo
por critérios os princípios de distribuição geográfica equitativa e uma representação adequada dos principais
sistemas jurídicos do mundo. As reuniões da Assembleia ocorrem na sede do Tribunal ou na sede da ONU,
uma vez por ano e, quando necessário, em reuniões extraordinárias.
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É importante ressaltarmos a articulação deste chamado à cooperação internacional
e o projeto de inserção internacional brasileiro posto em prática no governo Lula. Um
dos principais pleitos brasileiros durante o governo de Luís Inácio Lula da Silva fora a
conquista por um assento permanente no CSNU, sendo uma das facetas da reforma do
sistema ONU. Ao defender valores como o Direito Internacional, os representantes
brasileiros também sinalizam à comunidade internacional uma determinada imagem de
país comprometido com determinados valores e apto a ocupar cada vez mais espaço no
cenário global.
O discurso feito pelo então chanceler Celso Amorim 113, em abril de 2003, por
ocasião da Aula Magna no IRBR, após chefiar a delegação brasileira durante a sessão
inaugural do TPI nos ilustra o comportamento da política externa e sua relação com um
projeto pautado na “reorganização das relações internacionais”. Segundo Amorim:
As visões da ordem internacional que privilegiam a força e concebem o
multilateralismo como apenas uma opção entre muitas devemos contrapor um
projeto de paz com justiça social, fundado em formas de concertação
democrática e no direito internacional. A entrada em operação do TPI constitui
um passo encorajador nessa direção. Ao comparecer a sua inauguração, em
princípios de março, pude não somente cumprimentar a brasileira Sylvia Steiner,
eleita Juíza do Tribunal, como expressar o apoio do Governo Brasileiro (..) É
um instrumento importante, cuja aplicação não deve comportar restrições ou
tratamentos excepcionais. (AMORIM, Celso: 2003 p. 155).
Este objetivo de reorganizar as relações internacionais será a principal tônica da
diplomacia ao longo dos anos e, sobretudo, da Conferência de Kampala em 2010 que
tivera por objetivo definir o conceito de crime de agressão bem como as condições de
sua jurisdição. O Brasil irá atuar conjuntamente com os países da América do Sul,
sobretudo, a Argentina procurando destacar a necessidade de rompimento com o
“multilateralismo a la carte” posto em prática por muitos países e que impedia o
desenvolvimento dos trabalhos de forma autônoma e independente.
CONCLUSÕES
Diante do caminho percorrido fica-nos a pergunta de como compreendermos a política
externa brasileira em órgãos como o TPI. Neste sentido, os estudos do sociólogo francês
113
Ver em: AMORIM, Celso. Discursos, palestras e artigos do chanceler Celso Amorim (2003-2010).
Brasília: MRE, Departamento de Comunicações e Documentação. Coordenação Geral de Documentação
Diplomática, 2011.
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Bertrand Badie114 nos ajudam a compreender o movimento feito por países como o
Brasil e vizinhos da América do Sul ao que o autor denomina de Diplomacia da
Contestação. Esta ação encontra-se pautada na possibilidade real de desempenhar um
papel ativo no cenário internacional não com o uso da força, mas sim do poder brando.
Ao fazer críticas pontuais a aspectos do cenário internacional, as potências médias
acabam por gerar uma instabilidade que faz com que se tornem um verdadeiro
componente da política internacional, afinal, trazem demandas e agendas a serem
discutidas e problematizadas no seio da comunidade internacional. Segundo Badie, este
tipo de diplomacia tem por alvo o sistema em sua totalidade, suas instituições, suas
práticas ou até mesmo seus valores.
A atuação de países como o Brasil ao longo destes oito anos em órgãos como o
TPI abre possibilidades e desafios para a atuação diplomática brasileira bem como para
a sua política interna, que por vezes, são marcadas por grandes descompassos na
retórica assumida pelo país na matéria de direitos humanos no contexto internacional e a
prática que se põe internamente. Ao mesmo tempo através de uma voz ativa no cenário
internacional e na possibilidade de se tornar um ator propositor de novas agendas e
novos comportamentos vemos a mudança do mundo, do Brasil, da noção de política
externa e do próprio partido no poder, neste caso, o Partido dos Trabalhadores que
alteram a geopolítica mundial e descortinam um cenário internacional mais complexo
nesses inícios do século XXI.
114
Ver em: BADIE, Bertrand. O Diplomata e o Intruso: a entrada das sociedades na arena internacional.
Salvador: EDUFBA, 2009.
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RUPTURAS, PERMANÊNCIAS E TRANSIÇÃO: “A FORÇA DO POVO” EM
LAGES-SC (1977-1982).
Fabiano Garcia115
Resumo:
Este trabalho discute e problematiza uma gestão municipal que ocorreu na cidade de
Lages, Santa Catarina - uma experiência que foi desenvolvida durante os anos de
abertura política da ditadura militar (1974-1985), entre os anos de 1977 e 1982. A
gestão foi formada, sobretudo, por uma equipe de jovens, que através do partido de
oposição, o MDB, tentou implementar uma gestão de “democracia participativa”. O
artigo tenta apontar algumas características que fizeram dessa experiência uma “gestão
de administração modelo” para o Brasil da redemocratização. No fim, apresenta um
pequeno panorama onde o trabalho pode estar situado.
Palavras-chave: Lages. “A força do povo”. Ditadura Militar
Abstract:
This paper discusses a municipal management that occurred in the city of Lages, Santa
Catarina - an experience that was developed during the years of political openness of the
military dictatorship (1974-1985) between the years 1977 and 1982. The management
was formed mainly by a team of young people who through the opposition party, the
MDB, tried to implement a "participatory democracy." The article attempts to point out
some features that have made this experience a 'administration management model "for
Brazil's democratization.
Keywords: Lages. “A força do povo”. Ditadura Militar.
PRIMEIRAS PALAVRAS
Antônio Luigi Negro enfatizou que “ainda há muita pesquisa e discussão a fazer sobre a
instalação das ocasiões – históricas – em que é possível implantar e consolidar a
cidadania como marca de nossas relações políticas e cotidianas”116. David Harvey, por
sua vez, seguindo as proposta de Henri Lebvre de Direito à cidade, refletindo sobre o
impacto da urbanização no último século, perguntou: “contribuíram para o bem-estar do
115
Graduando do curso de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Este artigo é
resultado do trabalho de conclusão de curso, defendido em julho de 2013.
116
NEGRO, Antonio Luigi. “Um certo número de ideias para uma história social ampla, geral e irrestrita.”
In: MALERBA, Jurandir e ROJAS, Carlos Aguirre. (org.) Historiografia contemporânea em perspectiva
crítica. São Paulo: EDUSP, 2007.p.87.
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homem”117? Essas questões permeiam este artigo, uma vez que se trata de uma
experiência desenvolvida ainda nos anos do regime militar – 1977 – 1982, no interior de
Santa Catarina, e que pela suas propostas de caráter popular e pela defesa da democracia
participativa tomou uma dimensão para além dos limites locais, além de alterar
substancialmente as relações políticas em âmbito local.
A LUZ VEM DE LAGES
“A luz vem de Lages”, assim o sociólogo Maurício Tragtenberg intitulou o prefácio do
livro que foi um dos responsáveis pela divulgação da chamada “experiência de Lages”:
tão defendida e estimulada por alguns, já que o “povo estava administrando o
município”118 e tão condenada por outros, a exemplo do então governador de Santa
Catarina, Jorge Bornhausen, que propôs o combate ao que denominou de “republiquetas
marxistas”119. A “luz”, da qual citou Tragtenberg, referia-se às possibilidades de
contornar o impasse que vivia o país, aquilo que Tristão de Athayde chamou de
“encruzilhada”, ou seja, os destinos políticos em jogo com a possibilidade de
restauração do regime democrático e o fim do regime militar, este último instaurado
com o golpe de 1964, o qual afastou ainda mais a população das decisões políticas120.
A administração que ficou conhecida pelo slogan “Lages, a Força do Povo” foi
uma das primeiras experiências políticas no contexto de abertura, além dos municípios
117
HARVEY, David. O direito à cidade. Revista Piauí. Edição 82. Tribuna livre da luta de classes, Julho de
2013. Disponível em: http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-82/tribuna-livre-da-luta-de-classes/o-direitoa-cidade Acesso em Set. 2013.
118
Conforme expressão utilizada em matéria veiculada no jornal da referida administração Lages: a força do
povo, 2 anos de administração, Fevereiro de 1979. A grafia original, tanto do livro, como de textos
veiculados em jornais grafam “Lages” com J, em função da norma culta. Apesar disso, o nome da cidade é
“Lages” em função da existência de Lajes no Rio Grande do Norte.
119
“[...] não podemos deixar prosperar republiquetas marxistas que nada trazem para o progresso catarinense,
fundadas em demagogias não caras à tradição cristã de nossa gente... não podemos deixar prosperar a
ideologia marxista”. Depoimento de Jorge Bornhausen ao Jornal de Santa Catarina, 10 de Junho de 1978.
120
Sobre Ditadura Militar e abertura política Cf. FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão. Revolução e
Democracia: 1964 (...). Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2007. CODATO, Adriano Nervo. Uma história
política da transição brasileira: da ditadura militar à democracia. Revista de Sociologia Política, Curitiba,
nov. 2005. FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília (org.). O Brasil Republicano: o tempo da ditadura:
regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Vol.4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003. FERNANDES, Florestan. A ditadura em questão. São Paulo: Queiroz, 1982. FICO, Carlos. Além do
golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record, 2004. KRISCHKE,
Paulo J. (org.). Brasil do “milagre” a “abertura”. São Paulo: Cortez, 1982. MATHIAS, Suzeley K.
Distensão no Brasil: o projeto militar (1973 – 1979). Campinas, SP: Papirus, 1995. REIS, Daniel Aarão,
RIDENTI, Marcelo. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. (orgs.). O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois (19642004). São Paulo: EDUSC, 2004. RODRIGUES, Marly. O Brasil da abertura: de 1974 à constituinte. 5 ed.
São Paulo: Atual, 1990.
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de Boa Esperança/ES e Piracicaba/SP, a executar aquilo que o Movimento Democrático
Brasileiro (MDB), então partido de oposição ao regime militar, intitulou de “a ação
municipalista”121. À frente desta administração, estava o então prefeito Dirceu Carneiro,
que venceu o pleito local com a maioria dos votos, ultrapassando o número de votos de
todos os outros três candidatos juntos, o que demonstrou que a agenda política de seu
partido e sua campanha tiveram respaldo expressivo dos eleitores122.
Carneiro, enquanto vice-prefeito da gestão anterior (1972-1976), estava à frente
de projetos como “Viva seu bairro”, que foi uma espécie de projeto piloto para a
elaboração dos projetos especiais desenvolvidos na sua gestão a partir de 1977. Além
disso, participou ativamente na articulação dos subdiretórios do MDB e nas
mobilizações sociais populares, tendo papel de destaque, por exemplo, nas mobilizações
para a ocupação de terras nas áreas dos projetos de habitação (COHAB) do governo
federal123.
Um dos pontos de destaque dessa gestão, no entanto, foi a atuação das associações
de moradores de bairro, que por sua vez, eram apoiadas pela prefeitura. Segundo
Edinara Andrade, referindo-se ao projeto das associações: “tinha por objetivo mobilizar
a população da periferia para sua participação ativa no processo político-administrativo
do município, na busca de soluções para os problemas de cada bairro”124.
121
Segundo Jucirema Quinteiro: “O primeiro seminário para candidatos a prefeito, vice-prefeito e vereadores,
realizado em Porto Alegre nos dias 28 e 29 de agosto de 1976, sob a coordenação do Diretório Regional e do
próprio IEPES, teve como conclusão a elaboração de um documento base, intitulado “o mdb e a ação
municipalista”. [...] A partir do documento gestado nesse encontro, a ação municipalista vai criar o programa
de governo que: procurava-se distinguir dois níveis de participação popular [...] Três meses depois de eleito
Prefeito do Município de Lages, Dirceu Carneiro e sua equipe, realizaram o “encontro dos prefeitos eleitos
pelo MDB de Santa Catarina”, tendo como objetivo ampliar e aprofundar os temas colocados pelo seminário
de Porto Alegre” In: QUINTEIRO, Jucirema. A “Força do povo” em Lages: mas o que foi mesmo, esta
experiência? Dissertação de mestrado em Filosofia da educação. São Paulo: PUC, 1991. p.129-133. Sobre o
MDB, ver: NADER, A. B. Autênticos do MDB: semeadores da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 1998.
122
Em relação às eleições, o historiador René Remond enfatiza que “também mereciam que alguém se
interessasse por elas; pelo menos, as renovações gerais das municipalidades”. REMOND, René. As eleições.
In: Por uma história política. 2 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p.49.
123
Suplemento especial do Correio Lageano. Os bairros de Lages. O bairro Petrópolis. 8 de Nov. de 1998.
Disponível na biblioteca da Universidade do Planalto Catarinense (UNIPLAC). Em Lages, eram três
Conjuntos Habitacionais: (I) Petrópolis, (II) Bela Vista e (III) Bates.
124
ANDRADE, Edinara Terezinha. A experiência popular no município de Lages (gestão 1977-82):
transição a um clientelismo de massas. Dissertação de Mestrado em Sociologia política. Florianópolis:
UFSC, 1994. p.95/96. Jean-Pierre Rioux destacou que “é preciso fazer a história dessa conquista da
sociedade pela associação que caracteriza o século XX”. RIOUX, Jean-Pierre. A associação em política. IN:
REMOND, René. Por uma história política. 2 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2003. p.119.
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OS PROJETOS ESPECIAIS
As propostas para resolver os problemas de moradia, além dos outros projetos especiais,
foi um dos contrapontos ao projeto de desenvolvimento apresentado pelos militares,
afinal, as pessoas com renda abaixo de dois salários mínimos não eram contempladas
pelos programas de habitação do Banco Nacional de Habitação do governo federal.
Segundo o complemento especial do Correio Lageano sobre os bairros de Lages:
A iniciativa da então administração municipal levava em conta vários fatores,
dentre os quais a necessidade de fazer frente à política governamental para o
setor habitacional popular, na época representado pelo BNH, que ao mesmo
tempo que onerava os mutuários, também excluía grande parcela da população
sem renda suficiente para se enquadrar nas exigências contratuais da referida
instituição financeira125.
O projeto envolveu centenas de famílias, sendo que para participar as famílias
tinham como critérios de seleção: ter baixa renda, o número de filhos (prioridade para
famílias mais numerosas) e que residir em Lages há pelo menos cinco anos. Alves
enfatiza que “diferentes dos esquemas espoliativos à economia popular do BNH, que só
favorecem a rotação do capital das grandes empreiteiras e construtoras, o projeto
lageano de habitação é construído pela força do povo com assessoria da equipe Dirceu
Carneiro”126. No jornal comemorativo de dois anos de gestão, há uma página dedicada a
temática do déficit habitacional:
Conquista da casa própria: um processo de libertação, a resposta lageana ao
déficit habitacional. O banco nacional de habitação é hoje mais um instrumento
de concentração de riquezas, aguçando mais ainda as dificuldades das maiorias
populacionais, ao servir os interesses e financiar o conforto de uma classe
dominante [...] o projeto lageano de habitação em nosso entendimento deverá
oferecer às pessoas a possibilidade de acreditarem em si mesmas 127.
Os projetos especiais propostos pela gestão destoaram de tudo aquilo que já havia
sido proposto pela prefeitura em Lages, e talvez, no Brasil. Na época, falava-se em “um
divisor de águas, um momento de ruptura na história da administração pública”128.
Entre os projetos especiais desenvolvidos podem ser destacados o de Associação de
Moradores de Bairros e Núcleos agrícolas; Projeto de Hortas Comunitárias; Projeto
125
Suplemento especial do Correio Lageano. Os bairros de Lages. O bairro Petrópolis. 8 de Nov. de 1998.
126
ALVES, Márcio Moreira. Op. Cit. p.10.
127
LAGES, a força do povo. Um ano de habitação popular. Fevereiro de 1979. Jornal da Equipe Dirceu
Carneiro.
128
Matéria de Jornal citada por MUNARIM, Antônio. A práxis dos movimentos sociais na região serrana.
Dissertação de mestrado em Educação. Florianópolis: UFSC, 1990. p.135.
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Lageano de Habitação; Saúde Comunitária; Núcleo Agrícola; Ação Cultural; Mostras
do Campo; Escola do Povo e Popularização do Teatro e Artes nos bairros. Segundo Lori
Silveira: “esses projetos especiais podem ser definidos como propostas alternativas de
organização popular, com sentido de trabalho coletivo e que perseguiam um processo de
conscientização política”, e complementa a autora: “com a finalidade, ainda de melhorar
as condições de vida tanto da população urbana periférica, quando da população
rural”129.
É importante ressaltar que todos esses projetos, estavam sendo idealizados e
foram realizados em um município “onde não havia qualquer tradição anterior de
participação popular [...]”130 e que também havia passado por um forte processo de
urbanização recente dado ao ciclo econômico local que ficou conhecido como “ciclo da
madeira”. Em duas décadas (1950-1970) a cidade quadriplicou sua população, sendo
um dos principais polos de atração de mão de obra, sobretudo, da população cabocla
que vivia no meio rural131. Esses pequenos processos econômicos locais, ainda estão por
ser estudados em uma perspectiva mais abrangente e em história comparada, a fim de
elucidar aproximações, sobretudo pelas mudanças no meio urbano nos municípios
brasileiros decorrente desses processos.
129
SILVEIRA, Lori Terezinha da. Mostras do campo de Lages: educação e cultura na democracia
participativa (1977 – 1983). Dissertação de mestrado em Educação. Florianópolis: UFSC, 2004, p.1. A partir
do conceito de cultura política, podemos problematizar as propostas da administração bem como os indícios
que nos apontam como estes foram executados. Segundo Patto Sá, podemos entender cultura política como
“conjunto de valores, tradições, práticas e representações políticas partilhado por determinado grupo humano,
que expressa uma identidade coletiva e fornece leituras comuns do passado, assim como fornece inspiração
para projetos políticos direcionados ao futuro”. MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). Culturas Políticas na
História: novos estudos. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009. p.21.
130
QUINTEIRO, Jucirema. Op. Cit. p.77.
131
O trabalho mais importante sobre a população cabocla e sua inserção no processo produtivo da madeira
que tomei conhecimento é o de MARTENDAL, José Ari Celso. Processos produtivos e trabalho-educação:
a inclusão do caboclo catarinense na indústria catarinense. Rio de Janeiro: FGV, 1980. Para as discussões
sobre “história urbana” cf. RAMINELLI, Ronald. História Urbana. O autor faz um balanço das abordagens
que discutiram a cidade, urbanização, industrialização passando por Fustel de Coulanges, Max Weber, Henri
Pirenne, Maurice Dobb, David Herlily, Lewis Mumford, George Simmel, Friedrich Engels, Walter
Benjamim, Marshall Berman, apontando ainda estudos da América Latina de José L. Romero, Angel Rama, e
no Brasil para José M. de Carvalho, Sérgio Pechman e Lilian Fristsch, estes últimos trabalhando sobre o
enfoque de revoltas (da vacina) e reformas (Pereira Passos no RJ). In: CARDOSO, Ciro Flamarion;
VAINFAS, Ronaldo. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. 5 ed. Rio de Janeiro: Campus,
1997. p.271-296. Além disso, lembro de Henri Lefebvre e David Harvey para análise da questão urbana.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Ed. Moraes. 1991. HARVEY, David. A produção
capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005.
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Voltando a Lages... Segundo Jucirema Quinteiro, o município contava, em 1980,
com uma população de 155.293 habitantes, dos quais 79,6% residiam na zona urbana.
Dos seus 7000 km², 97% caracterizam-se como zona rural132. Ou seja, em apenas 3% do
espaço total do município residiam aproximadamente 124.000 mil pessoas, sendo uma
maioria oriunda do meio rural, além de migrantes do Rio Grande do Sul e em menor
escala de outros estados. Conforme Munarim: “certamente que a situação histórica, de
transição na economia de toda a região e em especial de Lages, foi elemento motivador
da busca de alternativas econômicas e da tentativa de construção de um projeto
sociocultural”133.
Além disso, foi uma proposta local que acabou se transformando em um projeto
coletivo, ao ser acolhido por pessoas de diferentes cidades do país e até mesmo do
exterior. A experiência se tornou um “projeto coletivo” na medida em que um
significativo número de pessoas se reuniu para além dos limites municipais, para inserir
Lages nas discussões sobre um tema latente daquele período: a redemocratização. O
processo envolveu, inclusive, instituições de outros estados da federação, das quais
podemos citar o Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM), do Rio de
Janeiro, no qual Dirceu participava desde 1973 de cursos, o Instituto de Estudos e
Pesquisas Econômicos e Sociais – IEPES, coordenado pelo sociológico André Foster,
que, segundo Edinara Andrade, teve um papel importante na elaboração e na
implementação das propostas de administração participativa realizadas em Lages 134, a
Fundação Pedroso Horta, fundação ligada ao MDB e o Centro Brasileiro de Pesquisas
(CEBRAP) de São Paulo135.
Outra observação importante é notar que a “equipe Dirceu Carneiro” fazia um
esforço deliberado para fugir das rotulações de cunho ideológico, sem se identificar com
nenhuma tendência política da esquerda brasileira136, mas que por outro lado, segundo
Munarim: “a ação desses “intelectuais da prefeitura” significou uma forte sacudida nas
relações de classe concretas e historicamente empedernidas na Região serrana de Santa
132
QUINTEIRO, Jucirema. Op. Cit. p.84.
133
MUNARIM, Antônio. Op. Cit. p.135.
134
ANDRADE, Edinara Terezinha. Op. Cit. p.38.
135
SILVA, Elizabeth Farias da. Op. Cit., p.179.
136
MUNARIM. Op. Cit. p.157.
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Catarina”137. O que ocorreu, segundo este autor, “foi o resultado da combinação das
necessidades reais e forças potenciais das classes subalternas da sociedade com a
vontade política de um grupo de agentes sociais que ocuparam o poder público
municipal [...]”138. É nesse contexto que surge o lema de “Lages, a força do povo”, o
que também pode ser interpretado como “uma desburocratização do modo de fazer
política, com a consequente transferência da execução de reformas para os sujeitos
coletivos interessados em sua realização”139.
A nível nacional, pós-milagre econômico, com uma razoável abertura política é
importante mencionar a intensificação das contradições sociais, impulsionadas pela
nova fase econômica e política que entrava o país, no qual surgem também diversos
movimentos sociais, diferentes daqueles que haviam se organizado em períodos
anteriores e com outros tipos de demandas140. Em 1985, escrevia Francisco Weffort, “na
área dos movimentos populares, assistiu-se, nos últimos dez anos, a uma extraordinária
proliferação das sociedades de bairro”141. Skidmore, nesse sentido, fez uma interessante
observação:
Um conjunto de atores históricos sobre os quais muito se tem falado são certas
organizações de nível local, com as comunidades eclesiais de base, as
associações de bairro e a atividade sindical em nível de fábrica. [...] Todos
brandiram sua força política, embora em diferentes ocasiões e para fins diversos.
A continuação das pesquisas sobre o papel daqueles grupos será essencial, não
somente para revelar como o Brasil emergiu do regime autoritário, mas também
para esclarecer a dinâmica e o potencial democrático da Nova república 142.
É nesse período, portanto, que novos personagens entraram em cena, conforme a
feliz expressão de Eder Sader, ou seja, momento da emergência de sujeitos coletivos,
137
Idem. Ibidem p.169.
138
Idem. Ibidem.. p.162.
139
A frase é de Carlos Nelson Coutinho, sobre outro contexto, mas acreditamos ser coerente com o tema que
estamos abordando. In: COUTINHO, Carlos Nelson. Democracia e socialismo: questões de princípio e
contexto brasileiro. São Paulo: Cortez, 1992. p.45.
140
Sobre a ascensão dos novos movimentos sociais na década de 1970, cf.: CHAUI, Marilena. Cultura e
democracia: o discurso competente e outras falas. 11 ed. rev. e ampl. São Paulo: Cortez, 2006. SADER,
Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da grande
São Paulo (1970-80). 4 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, SANTANA, Marco Aurélio. Trabalhadores em
movimento: o sindicalismo brasileiro nos anos 1980-1990. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de
Almeida Neves. O Brasil Republicano: o tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins
do século XX. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2007.
141
WEFFORT, Francisco C. Por que democracia? 3 ed. São Paulo: Brasiliense: 1985. p.98/99.
142
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo 1964-1985. 4 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
p.13.
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que pela sua linguagem, seus valores, pelas suas características de ação social, moviam
e anunciavam um “novo tipo de expressão dos trabalhadores, que poderia ser
contrastada com o libertário, das primeiras décadas do século, ou com o populista após
1945”143. “Direito”, “resistência”, foram expressões chaves em um período no qual
emergiam novos atores históricos, novas discussões políticas, novas demandas nos
meios rurais e urbanos. Como assinalou Marilena Chauí:
No correr dos anos 1980, no processo de implantação da democracia, vimos
surgir no Brasil um novo sujeito político: os movimentos sociais e populares, que
deram existência a um sujeito coletivo que, na luta de classes, ergueu-se na
criação de direitos sociais, econômicos e culturais, ultrapassando os direitos civis
da democracia formal rumo à cidadania numa democracia substantiva 144.
UM BREVE “PANORAMA” E OUTRAS CONSIDERAÇÕES
Esse trabalho surgiu, além daquelas questões apontadas inicialmente, de inúmeras
inquietações e reflexões sobre história. Hobsbawm já havia assinalado que toda história
é história contemporânea disfarçada e que, como todos sabemos, existe algo de verdade
nisso145. Cabe aludir, diante disso, algumas considerações. Em um contexto um pouco
mais amplo, este trabalho está envolvido de alguma forma com a retomada dos estudos
sobre política nas últimas décadas. Na obra “Por uma história política”146, organizada
pelo historiador francês René Remond, várias questões foram abordadas - tanto aquelas
que colaboraram para o declínio desta disciplina (entre 1929 e 1970), como também
aquelas ligadas ao seu ressurgimento (após 1970).
Os autores discutem nos capítulos dessa obra, a centralidade que passa a ter o
Estado nas sociedades contemporâneas, o desenvolvimento de políticas públicas, os
fenômenos eleitorais, as relações entre mídia e política, o associativismo civil, entre
outros. Admite-se, assim, que “o político também pode ser um objeto de conhecimento
científico assim como um fator de explicação de outros fatos, além de si mesmo”.
Antes “havia chegado a hora de passar da história dos tronos e das dominações para a
dos povos e das sociedades”, agora:
143
SADER, Eder. Op. Cit. p.36/37
144
CHAUI, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 11 ed. São Paulo: Cortez,
2006, p.11.
145
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das letras, 2013, p.315.
146
REMOND, René. Por uma história política. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2003.
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À medida que os poderes públicos eram levados a legislar, regulamentar,
subvencionar, controlar a produção, a construção de moradias, a assistência
social, a saúde pública, a difusão da cultura, esses setores passaram, uns após os
outros, para os domínios da história política 147.
Sobre o fenômeno das eleições, René Remond aponta que ainda merecem estudos,
visto a renovação do papel das municipalidades e sua importância histórica 148. Em
relação ao associativismo, Jean-Pierre Rioux chamou a atenção, para o fato de a
associação se tornou, a partir da revolução francesa, um direito natural, uma liberdade
pública, em busca de reconhecimento no século XX149.
Além disso, há de se considerar, de outro lado, as mudanças na corrente do
materialismo histórico, uma das principais correntes do pensamento ocidental do século
XIX e XX. Autores como o italiano Antônio Gramsci e mais tarde a historiografia
inglesa “enriqueceram muito esta vertente historiográfica” 150. No caso de Gramsci, sua
particularidade está principalmente na sua “complexificação” do Estado, pois, “além da
estrutura repressiva- coercitiva, da sociedade política, o Estado ampliado inclui a
sociedade civil [...]”151. No Brasil, um dos grandes intelectuais responsáveis pelo
legado de Gramsci, foi Carlos Nelson Coutinho, cujos trabalhos ainda estão por serem
considerados pela historiografia.
Ainda dentro de um contexto amplo, podemos citar outro campo: a história do
tempo presente e os estudos contemporâneos. Na obra organizada por Agnes Chauveau
e Philippe Tétard, Questões para a história do presente
152
, diversos autores
demonstram como o “imediato” e o “presente”, passam paulatinamente para a atenção
de pesquisadores, principalmente, a partir dos grandes eventos do século XX como a II
Guerra Mundial e o fim da União Soviética, em 1989. São períodos nos quais se
problematizam as “memórias coletivas”, o esquecimento, a “verdade”, bem como a
própria escrita da história. Com as diversas mudanças ocorridas nesse curto espaço de
147
Idem, Ibidem. p.28 e 24.
148
Idem, p.49
149
RIOUX, Jean-Pierre. A associação em política. In: REMOND, René (org.). Por uma história política. 2
ed. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p.18/19.
150
PEREIRA, Laurindo Mékie. A nova história política e o marxismo. Revista OPSIS, UFG, v.8. n.11, 2008.
p.108.
151
Idem. Ibidem. p.110
152
CHAUVEAU, A; TÉTARD, Ph. Questões para a história do presente. Bauru, SP: EDUSC, 1999.
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tempo, com a “aceleração do tempo”, as mudanças sociais, econômicas e políticas de
diferentes níveis, a sociedade demandou e instigou os pesquisadores a elaborar estudos
a fim de compreender o seu tempo. Aí se incluí, e talvez fundamentalmente, o trabalho
dos historiadores, que então passaram a se debruçar sobre temas “recentes” e com temas
dos quais muitas vezes estavam intimamente envolvidos.
No Brasil, atualmente, tem-se como “demanda social”, ainda que localizada e não
generalizada, estudos sobre a ditadura militar, tendo em vista o surgimento das
comissões da verdade, que retomam o debate em torno da memória política do país,
além dos lançamentos de livros e filmes sobre o assunto. É importante mencionar, além
disso, que a história social oferece para os historiadores, reflexões fundamentais para
compreender o processo histórico. Hobsbawm, nesse sentido, argumenta que os
problemas sociais e políticos da cidade, surgem essencialmente das interações das
massas de seres humanos vivendo em estreita proximidade [...] a história urbana
“precisa continuar a ser a preocupação central dos historiadores da sociedade, no
mínimo porque revela – ou pode relevar – aspectos específicos de mudança e estrutura
societária com que os sociólogos e os psicólogos estão singularmente preocupados” 153.
Para nós, trata-se de impedir a instrumentalização do esquecimento como prática contra
as democracias de uma história que é ao tempo, conforme expressão de Francisco
Carlos Teixeira, “recente e esquecida”154.
E para finalizar, refletindo a cerca da experiência que estudamos neste trabalho e
de uma forma geral, sobre todo processo por qual passou a cidade, nos remetemos ao
pensamento de Florestan Fernandes, que enfatizou que a causa da democracia, como tal,
está onde sempre esteve no Brasil: na capacidade de ação construtiva das massas
pobres, os quais precisam da democracia para sair da miséria, da exclusão e da “morte
política”155. E nesse sentindo, Carlos Nelson Coutinho, referindo-se aos “novos
institutos democráticos”, as associações civis, os comitês de bairro, de empresa,
organizações culturais, nos lembra que “é por meio deles que as massas populares, e em
particular a classe operária, organizam-se de baixo para cima, a partir das bases,
153
HOBSBAWM, Eric. Op. Cit. p.124
154
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Op. Cit. p.245.
155
FERNANDES, Florestan. A ditadura em questão. São Paulo: Queiroz, 1982. p.35.
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constituindo o que poderíamos chamar de sujeitos políticos coletivos” 156. Acreditamos
que a experiência da “força do povo” merece ser revisitada por mais pesquisadores.
Acreditamos que deixamos muitas perguntas no ar por se tratar de um pequeno esboço,
algo de curto alcance, dentro dos limites de um artigo. São experiências como estas que
indicam alternativas concretas para os novos movimentos sociais e nos dão fôlego para
pensar as lutas democráticas pelas quais ainda estamos vivendo. Por fim, essas seriam
algumas conclusões, ainda que muito gerais, que acreditamos ter orientado este
trabalho, seus recortes, suas problematizações, seus limites e suas “motivações”. No
fim, temos esperança, mas como alertou Florestan: “o mal das esperanças é que elas,
por si mesmas, não movem a história”157.
156
COUTINHO, Carlos Nelson. Op. Cit. p.23.
157
FERNANDES, Florestan. Ibidem. p.36.
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RELAÇÕES MILITARES BRASIL/EUA (1934-1945)158
Giovanni Latfalla 159
Resumo:
O presente trabalho é sobre o relacionamento militar do Brasil com os EUA entre os
anos de 1934 e 1945. Inicialmente, neste período, o Brasil procurou o apoio militar
junto aos EUA, não aceito por estes, devido ao isolacionismo político. Posteriormente,
com a aproximação da Segunda Guerra Mundial, os americanos tornaram-se mais
realistas e verificaram a importância do Brasil como parte da defesa do continente
americano. Foram anos de negociações tensas e cheias de dúvidas, de ambas as partes,
até o entendimento final na aliança contra o Eixo.
Palavras-chave: militares – negociações – Segunda Guerra Mundial
Abstract:
This paper is about the military relationship between Brazil and the United States
between the years 1934 and 1945. Initially this period, Brazil sought military support
with the U.S., not accepted by them, due to political isolationism. Later, with the
approach of World War II, Americans have become more realistic and verified the
importance of Brazil as part of the defense of the American continent. Years of
negotiations were tense and full of doubts, of both parties, until the final agreement on
the alliance against the Axis.
Keywords: military – negotiations – World War Two
INTRODUÇÃO
A década de 1930 assistiu ao acirramento das tensões entre os países, o que fatalmente,
levou ao início da Segunda Guerra Mundial. Com o passar dos anos era nítido que a
Sociedade das Nações não teria condições para evitar um novo conflito. Sua fraqueza
vinha desde sua criação, após a Primeira Guerra. A agressiva política internacional deste
período indicava a aproximação de uma nova guerra.
Entretanto, os Estados Unidos desde a década de 20 estavam mergulhados em
uma política externa isolacionista, assistindo de longe as várias crises que ocorreram
naqueles anos. O próprio governo do presidente Franklin Roosevelt, iniciado em 1933,
158
Este trabalho é resultado de uma pesquisa feita durante o segundo ano do curso de Doutorado em Ciência
Política e Relações Internacionais do IUPERJ-UCAM, sob orientação do Prof. Dr Lier Pires Ferreira Jr.
159
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais do UPERJ da
Universidade Cândido Mendes.
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procurou de todas as maneiras não se envolver nos problemas europeus. Enquanto isso,
Hitler, que também assumiu o poder em 1933, iniciava as várias violações do Tratado
de Versalhes, e preparava a Alemanha para uma nova guerra, no governo Roosevelt, leis
de neutralidade eram aprovadas, afastando a possibilidade do aumento da influência e
do poder militar norte-americano.
Este desinteresse custaria bastante caro aos Estados Unidos, país agressivo na
política econômica internacional, mas fraco e omisso em procurar usar seu poder
econômico para que, por exemplo, junto com a Inglaterra e a França, forçassem a
Alemanha nazista a cumprir os tratados existentes, ou pelo menos deixar de ser uma
ameaça à paz na Europa. Somente após a Conferência de Munique, em 1938, os
americanos começariam a mudar a postura.
Se verificarmos os gastos militares dos Estados Unidos durante estes anos, fica
bastante claro que seus investimentos não eram os maiores entre as nações mais
importantes. Mesmo com toda a recessão da década de 30, ainda era o país mais rico do
planeta, mas o isolacionismo impedia um aumento dos gastos militares. Para começar a
mudar esta situação, foi preciso visualizar que na nova guerra que se aproximava, e
mesmo com o isolacionismo político, eles seriam arrastados para o conflito, além de
estarem despreparados e fracos para se defender de um ataque externo. O governo
americano devido as circunstâncias da época, tornou-se realista.
É o momento em que os Estados Unidos verificam também que para a defesa de
seu território, e do restante do continente, era necessário contar com o apoio do Brasil,
para eles, a chave da defesa da América. Algo precisava ser feito para alterar aquela
perigosa situação. 160
As negociações entre os dois países podem ser divididas em três fases distintas: a
primeira entre os anos de 1934 e 1938, com o Brasil procurando uma maior
aproximação, a segunda entre 1939 e 1942, com os Estados Unidos agora buscando a
cooperação brasileira, e a terceira entre os anos de 1942 e 1945, em que finalmente os
dois países de fato se alinham.
160
KENNEDY, Paul. Ascensão e Queda das Grandes Potências. Rio de Janeiro: Campus, 1989, p. 287
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OS CONTATOS INICIAIS COM O BRASIL
Apesar de ter um contrato em vigor com uma Missão Militar Francesa, desde 1919, e
que perduraria até 1939, o Exército Brasileiro recebeu uma Missão Militar Americana,
em 1934, que visava organizar a artilharia de costa, ou seja, apenas aquela envolvida
com atividades de defesa do litoral do brasileiro, como por exemplo, a da capital da
república, o Rio de Janeiro. O investimento na artilharia de costa não pode considerado
como uma atividade ofensiva contra um inimigo, posto que ela só possa ser utilizada
contra alvos no mar. O tamanho dos canhões também limita o seu deslocamento.
Apesar da chegada desta missão americana, visando à melhoria das defesas
costeiras contra um ataque externo, durante grande parte da década de 1930, para o
Exército Brasileiro a principal preocupação defensiva do Brasil, naquele momento, era a
região Sul, fronteira com a Argentina, uma vez que existiam diferenças entre os dois
países.
Durante estes primeiros anos em que houve um pequeno aumento dos contatos
militares entre os dois países, deve também ser citado que em 1937, após a visita do
presidente Roosevelt ao Brasil, o presidente Vargas ofereceu aos americanos a
oportunidade de uma maior cooperação militar e naval, caso os americanos fossem
atacados. A oferta incluía a permissão para a construção de uma base naval em um porto
brasileiro. Além de não aceitarem, os americanos também em 1937, desistiram da venda
para o Brasil de alguns velhos navios de guerra, após pressões realizadas pelo governo
argentino. 161
Foi um período em que o isolacionismo americano impedia seu governo de acertar
acordos militares não só com o Brasil, mas com qualquer outro país do mundo.
Entretanto, deve ser levado em conta que inicialmente, foi o Brasil que procurou os
Estados Unidos visando uma maior aproximação militar, e não o contrário.
Um ponto de preocupação na política americana passa a ser neste período o
processo de aproximação comercial entre o Brasil e a Alemanha. O comércio baseado
nos chamados marcos de compensação, não era simpático aos Estados Unidos, mas
atendia aos dois países, porque não envolvia uma grande soma de recursos financeiros,
161
McCANN, Frank D. A Aliança Brasil-Estados Unidos, 1937/1945. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército,
1995, p. 94.
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que ambos não possuíam naquele momento. Foi crescente o aumento do comércio do
Brasil com a Alemanha na segunda metade da década de 1930, o que não agradava aos
americanos. Além disso, com a dificuldade de ser adquirir armamentos junto aos EUA,
o Brasil começou a negociar com a Alemanha, vindo, em 1938, a assinar um grande
contrato de compra de armas com a Krupp.162
APÓS MUNIQUE A SITUAÇÃO SE INVERTE
Após a Conferência de Munique ocorrida em setembro de 1938, quando ingleses e
franceses se curvaram aos interesses da Alemanha de Hitler, os americanos mudam para
uma postura mais realista, ao visualizarem a aproximação de uma nova guerra, e a
ameaça de uma agressão ao continente americano, o que para eles enfraqueceria suas
defesas.
Prevendo a guerra na Europa e uma possível derrota da França e Inglaterra, o
presidente Roosevelt fez a seguinte afirmação a uma delegação de congressistas sobre
as possíveis intenções dos países do Eixo:
“Neste caso, seus primeiros atos serão ou capturar a Marinha britânica ou pô-la
fora de ação. Então eles iriam estabelecer relações comerciais com a América
Latina, colocar instrutores nos exércitos etc. Provavelmente, eles não tocariam
nas possessões britânicas, francesas ou holandesas neste hemisfério. Mas em
muito pouco tempo nós nos veríamos cercados por países hostis. Além do mais
os japoneses que “sempre gostam de brincar com garotos maiores” iriam,
provavelmente, fazer uma aliança rápida e sólida. As marinhas alemã e italiana,
juntas, seriam quase iguais à nossa, e a dos japoneses cerca de 80% da nossa.
Deste modo, a tentação para eles seria sempre a de tentar outra rápida guerra
contra nós, se nós nos mostrarmos duros com sua penetração na América do
Sul”. 163
Para as Forças Armadas americanas em 1939, era bastante clara a preocupação
com a possibilidade da ocupação do Nordeste do Brasil, por um país inimigo, e viam
como extremamente necessária a existência de bases aéreas ou navais americanas na
região de Natal. Isto era visto como vital para a defesa da América do Sul. Os
americanos também tinham conhecimento da fraqueza militar do Brasil para impedir
um ataque a esta região. 164
162
NETO, Lira. Getúlio. 1930-1945. Do governo provisório a ditadura do Estado Novo. São Paulo: Cia das
Letras, 2013, p.347
163
CONN, Stetson e FAIRCHILD, Byron. A Estrutura de Defesa do Hemisfério Ocidental. Rio de Janeiro:
Biblioteca do Exército, 2000, p. 27 e 28.
164
Idem, p. 34 e 35.
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As negociações passam a serem mais incisivas entre os dois países a partir de
1939, ainda antes do início da Segunda Guerra Mundial. Visando uma maior
cooperação militar com o Brasil, os EUA enviaram em visita oficial, o chefe do EstadoMaior do Exército, o general George Marshall, um dos mais próximos assessores do
presidente Roosevelt. Em contrapartida receberam depois a visita do general Pedro
Aurélio de Góes Monteiro, Chefe do Estado-Maior do Exército (EME), uma das
principais autoridades do governo do presidente Vargas.
Apesar do início das negociações, os EUA haviam previsto a ocupação militar do
nordeste do Brasil. Caso elas fracassassem, foi elaborado o Plano Pote de Ouro, que
previa a invasão daquela região. Se houvesse um acordo, com o plano Rainbow 4, eles
enviariam dezenas de milhares de homens para defender o nordeste. 165
As negociações entre os dois países foram demoradas e cheias de desconfianças
de ambas as partes. Os americanos pretendendo a cessão de bases pelo Brasil e o envio
de tropas para o nordeste. O Brasil não aceitando o envio de tropas e solicitando o envio
de armas para equipar suas Forças Armadas. As promessas americanas para o envio de
armas não foram cumpridas. Inclusive armas obsoletas foram enviadas para o Brasil, e o
progresso nas negociações não era visível.
O único sucesso americano do período, foi no momento em que convenceram a
Inglaterra a liberar um carregamento de armas da Alemanha para o Brasil, que havia
sido apreendido. Este incidente causou um enorme mal estar junto ao governo
brasileiro, insatisfeito com a atuação inamistosa da Inglaterra. 166
Em julho de 1941 foi criada a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos de Oficiais
de Estado-Maior. O representante norte-americano nesta comissão era o general
Lehman Miller. Sobre as reuniões desta Comissão, que pareciam não chegar a um bom
termo, o general Estevão Leitão de Carvalho escreveu que:
“Góes costumava tomar a palavra e dissertar longamente sobre as origens
brasileiras, processo de colonização, formação racial etc., sem nada acrescentar
de prático para o momento tão sério que atravessávamos. A delegação norteamericana começou a se impacientar, achando que estavam perdendo tempo.
Solicitaram que as reuniões fossem suspensas por algum tempo, a fim de
viajarem ao Norte do Brasil e assim poderem fazer um estudo sobre a
165
Idem, p. 335.
166
McCANN, Frank D. Op.cit., p.172 e 173.
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organização da defesa que ali deveria ser estabelecida. De volta, trouxeram para
a Comissão um plano elaborado, contendo as necessidades para a defesa daquela
região”. 167
Entretanto, documentos existentes no Arquivo Histórico do Exército (AHEx)
mostram como nestas reuniões o clima era de tensão e desconfiança. O general Miller
chegou a dizer que o governo americano tinha desconfiança da postura germanófila de
autoridades e militares do Brasil, naturalmente com relação também ao próprio Góes
Monteiro, e o Ministro da Guerra, general Dutra. Góes retrucou esta colocação e cobrou
a respeito das promessas de envio material bélico americano para o Brasil, ainda não
cumpridas. Chegou a afirmar que havia recebido garrafas de uísque e maços de cigarro
Lucky Strike, mas ainda nem um carregador de munição. 168 169
Lehmann Miller também afirmava que por ser militarmente fraco, o Brasil,
deveria ceder as bases e permitir a entrada de tropas americanas, e que não estava
havendo uma cooperação a contento, o que também foi rebatido por Góes Monteiro. A
verdade é que Miller, como também autoridades americanas viam o general Góes como
o maior obstáculo para o entendimento entre os dois países, além de ser visto como um
simpatizante da Alemanha nazista.
A postura germanófila de Góes Monteiro pode ser contestada com documentos do
Estado-Maior do Exército, anteriores a entrada do Brasil na guerra, que comprovam a
tendência brasileira de acompanhar os Estados Unidos em caso de um conflito. Em
setembro de 1940, o EME havia apresentado as bases para uma cooperação com os
americanos, e tinha pleno conhecimento que os Estados Unidos teriam as bases no
Brasil, seja através de um acordo, ou pelo uso da força. A não aceitação da vinda de
tropas americanas no Brasil, era visto como necessário para a preservação da soberania
brasileira. 170
Uma proposta norte-americana para o envio de tropas para participar de manobras
junto com o Brasil no Nordeste, não foi aceita pelos militares brasileiros, desconfiados
167
CARVALHO, Estevão Leitão. A serviço do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Editora
A Noite, 1952, p. 47 e 48.
168
Arquivo Histórico do Exército. Ofício Secreto nº82. Em 02-06-1941. Do General Góes Monteiro ao
Ministro da Guerra. Documentos da Comissão Mista Brasil-EUA, p. 1-5.
169
McCANN, Frank D. Op.cit., p.156.
170
Arquivo Histórico do Exército. Ofício Secreto nº 284. Em 11-09-1940. Documentos da Comissão Mista
Brasil-EUA, p.1-4.
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das verdadeiras intenções dos EUA. O próprio Miller caracterizou este plano como “um
lobo em pele de cordeiro, que parecia muito perigoso e capaz de provocar uma reação
muito desfavorável no Brasil”. 171
Posteriormente, Miller se afastou das negociações não sem antes, em uma nova
reunião, ocorrida em outubro de 1941, dizer da desconfiança do posicionamento do
Brasil no decorrer da guerra, da tendência germanófila da maior parte dos oficiais do
Exército, da falta de ação brasileira contra a chamada 5ª coluna, entre outras
considerações. Tudo isto foi mais uma vez rebatido por Góes Monteiro. 172
Estas dúvidas e desconfiança fizeram com que, somente em 1942, o material
bélico americano começou a ser enviado com certa regularidade, mas nunca suprindo os
pedidos feitos pelo Brasil.
APÓS PEARL HABOUR
O ataque do Japão aos Estados Unidos em Pearl Habour, em dezembro de 1941, acabou
arrastando os americanos para a guerra, junto com a maior parte dos países do
continente americano. O Brasil, inicialmente, cortou seu relacionamento com o Eixo e,
posteriormente, devido ao afundamento de seus navios por submarinos alemães,
declarou guerra em agosto de 1942.
Novas promessas norte-americanas de envio de material bélico ao Brasil foram
feitas. Em maio foram criadas duas Comissões Mistas, uma no Rio de Janeiro e a outra
em Washington. E talvez, uma das mais importantes mudanças de postura dos Estados
Unidos, a partir de junho de 1942, eles passaram a defender o conceito de que os dois
países deveriam colaborar nas medidas defensivas a serem implantadas no Brasil. Não
havia mais a insistência dos norte-americanos em enviar milhares de soldados para o
Brasil.
A verdade é que até este momento, a defesa do Nordeste foi feita de longe, com a
tenaz resistência das forças soviéticas e inglesas contra o avanço alemão, e da marinha
171
CONN, Stetson e FAIRCHILD, Byron. Op.cit., p.351
172
Arquivo Histórico do Exército. Documento Secreto do General Góes Monteiro ao Ministro da Guerra. Em
30-10-1941. Acervo Góes Monteiro, p.1,2 e 3.
101
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americana no Pacífico, contra os japoneses. Se a região citada acima tivesse sido
atacada, muito pouco poderia ter sido feito.
Quanto às desconfianças americanas com relação ao Brasil, elas continuavam,
conforme o memorando abaixo, enviado pelo general Miller, naquele momento,
assessor do general Marshall para assuntos relacionados ao Brasil:
“Conhecendo o general Góes como eu o conheço, eu tenho certeza de que ele
não mudou em nenhum aspecto, e que ele está só fingindo um desejo sincero de
cooperar com os EUA, porque o Brasil, no presente momento está quase
totalmente dependente, do ponto de vista econômico, dos Estados Unidos, e
porque o general Góes ainda espera conseguir a maior quantidade de
equipamento nosso para o seu Exército. Quando ele tomar medidas enérgicas
para limpar a casa dentro do Exército Brasileiro, livrando-se dos simpatizantes
do EIXO, poderemos confiar mais nele... Se por algum motivo nosso Governo
deseja manter o fingimento de uma cooperação próxima e sincera entre os
exércitos dos Estados Unidos e Brasil, então a carta do general Góes deve ser
respondida pelo general Marshall com a mesma insinceridade. Se não, parece
não haver motivo algum para respondê-la”. 173
No período de 1939 a 1942 a Segunda Guerra Mundial encaminhava-se de
maneira bastante favorável para os países do Eixo. Entretanto, o Brasil não se voltou
para o lado que vencia a guerra, pelo contrário manteve contatos com os Estados
Unidos, sem, contudo ser subserviente as propostas apresentadas pelos americanos,
demonstrado ser um duro negociador.
A PARTIR DE 1943
Após a visita do presidente Roosevelt a Natal, em janeiro de 1943, o relacionamento
entre os dois países encaminhou-se de uma maneira diferente, com os dois países
ficando mais próximos. Logicamente que a mudança na guerra, que agora era favorável
aos Aliados, e a cooperação brasileira, com a cessão das bases aéreas, haviam facilitado
às coisas.
O Brasil também resolveu enviar tropas para lutar contra o Eixo, e inicialmente,
não teve o apoio dos Estados Unidos para lutar no continente africano, porque os
americanos não poderiam fornecer os transportes para o envio de soldados, além da falta
de equipamentos no efetivo brasileiro. Aliás, com a conquista do Norte da África,
173
HIRST, Mônica. O Processo de Alinhamento nas Relações Brasil-Estados Unidos: 1942/45. Memorando
do general Miller ao coronel Barber, 29-04-1942. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1982, p.113 e114.
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desaparecia a ameaça de ataque ao Brasil. Posteriormente, os americanos aceitaram e
apoiaram o envio da Força Expedicionária Brasileira (FEB) para lutar na Itália. 174
A cooperação brasileira fez com que os americanos passassem a pretender que no
pós-guerra, o Brasil fosse uma das nações com influência no contexto mundial. Em
outubro de 1943, na Conferência de Moscou, o Secretário de Estado americano Cordell
Hull, sugeriu que a China e o Brasil fizessem parte da comissão aliada conjunta para a
Itália. Ingleses e soviéticos não se interessaram pelo assunto. Os americanos não
insistiram nesta proposta, e a mesma não voltou a ser discutida durante a reunião. 175
Na Conferência de Dumbarton Oaks, em 1944, foram aprovadas propostas para o
estabelecimento da nova organização internacional, a futura Organização das Nações
Unidas. A ideia de Roosevelt era colocar o Brasil como membro permanente do futuro
Conselho de Segurança a ser criado. É interessante citar que o Brasil não havia sido
previamente consultado a respeito.
A proposta norte-americana desde o seu início não foi apresentada com a devida
firmeza e de maneira clara. Ingleses e soviéticos, mais uma vez, não demonstraram a
menor boa vontade em considerar esta proposta. Um dos questionamentos era sobre a
“duvidosa capacidade militar do Brasil”. Ora, naquele momento França e da China
também não eram grandes potências, mas o nome das duas nações foi mantido.
Novamente os americanos não procuraram reverter à situação. 176
Posteriormente, na Conferência de São Francisco, em 1945, os americanos
prometeram que, na hipótese de ser criado um sexto lugar permanente no Conselho de
Segurança, o nome do Brasil seria indicado. O governo brasileiro, neste momento,
ciente da situação, tinha interesse na participação no Conselho, e achava que devido à
contribuição brasileira na guerra, era uma justa pretensão. 177
Entretanto, o máximo que foi conseguido junto aos Estados Unidos foi à promessa
da indicação brasileira como membro não permanente do Conselho de Segurança, por
174
McCANN, Frank D. Op.cit., p.277.
175
FENBY, Jonathan. Os Três Grandes. Churchill, Roosevelt e Stalin ganharam uma Guerra e começaram
outra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, p. 222.
176
GARCIA, Eugênio V. “De como o Brasil quase se tornou membro permanente do Conselho de Segurança
da ONU em 1945”. Revista Brasileira de Política Internacional. Brasília: vol.54, nº l, p.. 3 e 4, 2011.
177
Idem, p. 10 e 11.
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dois anos. A justificativa dada foi à relutância das quatro potências em aumentar o
número de assentos no Conselho. 178
A grande dúvida que permanece é: os Estados Unidos haviam sido sinceros ao
usar o nome do Brasil em suas negociações com a URSS e a Inglaterra? O nome do
Brasil não foi usado nas negociações como uma parte a ser sempre cedida pelos Estados
Unidos? Um fato curioso pode ser citado neste momento: na Conferência de Yalta, em
fevereiro de 1945, quando americanos, ingleses e soviéticos deliberavam sobre a criação
das Nações Unidas, Roosevelt utilizou o nome do Brasil quando tentou desviar a
discussão de um problema importante. Ele se utilizava de manobras envolvendo
detalhes irrelevantes. Era uma velha tática de sua personalidade, que naquele momento
irritou os soviéticos, sendo o presidente alertado por seus assessores. 179
Não resta dúvida que a morte de Roosevelt em 1945, o afastamento de Cordell
Hull, por motivo de doença em 1944, e a troca do embaixador americano no Brasil,
James Caffery, também em 1945, foram desastrosas para o Brasil. Os três são vistos
como simpatizantes da causa brasileira, ao contrário dos seus substitutos. Esta pode ser
uma explicação para a fracassada promessa da inserção do Brasil no Conselho de
Segurança da ONU. 180
A mudança de postura norte-americana com relação ao Brasil fica visível:
inicialmente, a partir de 1939, os americanos haviam feito esforços para a formação de
uma aliança com o Brasil, pois necessitavam da cooperação brasileira para a defesa do
continente americano. Posteriormente, com seus objetivos atendidos, principalmente
com a cessão das bases aéreas, e a finalização da ameaça de invasão do Eixo na
América do Sul, apoiam o envio de tropas brasileiras para lutar na Europa, mas com
aproximação do final do conflito passam a ver o Brasil como um país a ser dominado.
178
Idem, p. 12
179
SHERWOOD, Robert Emmet. Roosevelt e Hopkins. Uma História da Segunda Guerra Mundial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 859 e 860
180
GARCIA, Eugênio V. Op.cit., p. 10.
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VICTOR KLEMPERER: UM JUDEU NA ALEMANHA NAZISTA
Gustavo Feital Monteiro
Resumo:
Estando presente na Alemanha durante todo o período do Nacional Socialismo,
Klemperer registrou suas opiniões sobre as medidas antissemitas do governo em diários
pessoais, oferecendo uma perspectiva única a respeito da vida cotidiana de um judeu
neste país. A partir destes diários, busca-se analisar as suas observações durante o
governo nazista e os reflexos das políticas antissemitas, da propaganda e da opinião da
população alemã, aprofundando melhor a compreensão deste contexto e daqueles nele
inseridos.
Palavras-chave: Nazismo, Antissemitismo, Klemperer
Abstract:
Being present in Germany during the period of National Socialism, Klemperer recorded
his opinions about the government's anti-Semitic measures in personal diaries, offering
a unique perspective about the everyday life of a Jew in this country. From these diaries,
it is intended to analyze his observations during the Nazi government and the reflexes of
anti-Semitic policies, propaganda and opinion of the German population, deepening the
understanding of this context, and of those therein.
Keywords: Nazism, anti-Semitism, Klemperer.
INTRODUÇÃO
Em 1933, o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, chamado também
de partido nazista, chega ao poder na Alemanha. A partir desta data, seriam
implementadas uma série de leis e medidas antissemitas que gerariam o crescente
isolamento social dos judeus alemães até o posterior extermínio físico, denominado de
Holocausto. Em um período de doze anos, o partido nazista iniciou um segundo conflito
bélico de proporções mundiais e realizou um dos maiores genocídios conhecidos,
baseando-se somente em uma ideologia de superioridade racial para legitimar as suas
ações.
Tal contexto histórico permite a abordagem de pesquisa a partir de diversos
pontos, abrangendo desde a política e os conflitos internos do partido até a opinião
pública e o cotidiano dos cidadãos considerados comuns. Cada um deles possui uma
metodologia única na tentativa de analisar questões particulares, sejam elas relacionadas
à história econômica, militar, política ou cultural, mas que todas, à sua maneira,
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contribuem para uma melhor percepção deste contexto específico. Alguns dos temas
mais pesquisados, porém, continuam sendo relacionados ao antissemitismo nazista,
desde a perseguição inicial até o extermínio, e também à opinião da população alemã,
seu conhecimento e consentimento das ideologias do partido181.
Dentro deste cenário, os diários de Victor Klemperer se apresentam como uma
das fontes essenciais para a melhor compreensão dos estudos deste período, datando
desde o início do governo nazista até o final da Segunda Guerra Mundial, e abordando a
vida cotidiana na Alemanha sob o regime nazista. Publicado pela primeira vez em 1995,
intitulado de Ich will Zeugnis ablegen bis zum letzten182, o diário se constitui de uma
fonte histórica particularmente única, uma vez que caracteriza-se como anotações
realizadas nos momentos dos eventos, cujo autor se preocupa não somente em narrar
aquilo que testemunha, mas também de fornecer suas opiniões próprias e reflexões
particulares sobre tais eventos e sobre as diferentes formas pelas quais é afetado pela
política nazista.
Klemperer, filho de um rabino e nascido em 1881, era convertido ao
protestantismo e ministrava aulas de literatura francesa na universidade de Dresden na
época em que os nazistas chegaram ao poder. Havia lutado na Primeira Guerra Mundial
como voluntário pela Alemanha e era casado com Eva Klemperer, uma mulher
considerada ariana, sendo que ambas as características mencionadas contribuíram para
que fosse possível a sua permanência e sobrevivência dentro do território alemão 183.
181
Uma das discussões mais recentes que adquiriu grande relevância entre os acadêmicos que estudam o
nazismo é voltada ao “antissemitismo popular”, ou seja, se os cidadãos alemães possuíam, de forma
homogênea e em um mesmo nível que o partido nazista, sentimentos antissemitas violentos. Iniciada pela
publicação de Goldhagen, Os Carrascos Voluntários de Hitler, essa discussão possibilitou um retorno a este
tema pelos estudos históricos. Ver GOLDHAGEN, Daniel Jonah. Os carrascos voluntários de Hitler: o povo
alemão e o holocausto. São Paulo: Companhia das Letras, 1997; e também BROWNING, Christopher.
Ordinary Men: Reserve Police Battalion 101 and the Final Solution in Poland. New York: HarperCollins,
1992.
182
Traduzido do alemão, o título significa “Eu vou testemunhar até o fim”, que foi retirado de frequentes
anotações nas quais o autor insiste em permanecer na Alemanha. O título do livro em inglês passou a ser
somente “I will bear witness”, sendo que, em português, o livro foi publicado com o nome de “Os diários de
Victor Klemperer: o testemunho clandestino de um judeu na Alemanha nazista”. Ver KLEMPERER, Victor,
Os diários de Victor Klemperer: testamento clandestino de um judeu na Alemanha nazista, 1933 – 1945, São
Paulo: Companhia das Letras, 1999.
183
As leis antissemitas possibilitavam várias exceções, e muitos casos relacionados a descendência
miscigenada e casamentos entre judeus e aqueles considerados arianos escapavam das deportações forçadas
no início, além de manterem alguns pequenos privilégios que outros judeus não poderiam obter. Por
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Porém, o fato que se torna mais relevante para a análise histórica é a percepção de
Klemperer de si mesmo como alemão, e seu forte nacionalismo que o influenciou a
permanecer na Alemanha e evitar a imigração, como vários de seus conhecidos e
familiares haviam feito184. Devido a isso, ele testemunhou e registrou o cotidiano de um
judeu na Alemanha, passando por todos os níveis do isolamento social, sofrendo
perseguições, violências físicas e verbais, presenciando a propaganda antissemita e,
também, tendo contato com pessoas educadas e gentis, que se sentiram solidárias e o
ajudavam, oferecendo-lhe comida ou até mesmo um simples cumprimento e palavras
animadoras.
Portanto, as questões que direcionam esta pesquisa se constituem de perguntas
referentes à percepção deste personagem em particular de seu contexto mais imediato.
Uma vez que há referências a diversos campos da vida social, como a influência da
política na universidade na qual ministrava as suas aulas, ou até mesmo a economia
nacional e os Jogos Olímpicos de Berlim em 1936, a análise de seus diários necessita
estender o campo de abordagem para além das políticas antissemitas. As medidas
econômicas realizadas pelo partido, a sua influência sobre as escolas e universidades,
entre outros elementos, serão igualmente abordados juntamente com a propaganda e as
leis antissemitas, na medida em que se tornarem relevantes.
Como era a vida cotidiana de um judeu na Alemanha? Como foi a sua percepção
dos eventos políticos? Como ele via o crescente sentimento antissemita? Quais as suas
opiniões relacionadas aos demais cidadãos quando presenciava atitudes violentas ou
gentis contra os judeus? Estas questões, entre demais outras, se constituem na base pela
qual esta pesquisa se procurará fundamentar para encontrar respostas.
A PROPAGANDA NA ALEMANHA NAZISTA
A propaganda antissemita, talvez, possa ser considerada como um dos principais
elementos aos quais Klemperer fornece observações em suas anotações, sendo que foi,
de forma intensa, bastante realizada pelo partido nazista desde 1933. Antes deste
exemplo, durante a guerra, havia quantidade de comida limitada disponível para a população, e Eva poderia
comprar mais do que o seu marido por ser “ariana”.
184
Pode-se mencionar uma passagem de seu diário no qual Klemperer afirma, convictamente, de que é
alemão, e classifica os nazista de não serem alemães. Outras passagens semelhantes confiram o seu forte
sentimento nacionalista. KLEMPERER, Victor, Os diários de Victor Klemperer: testamento clandestino de
um judeu na Alemanha nazista, 1933 – 1945, São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Pág. 129.
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período, pouco se abordava da ideologia antissemita uma vez que não havia respostas
positivas da população, ou seja, em outras palavras, os eleitores não se interessavam nos
judeus sendo que havia problemas muito maiores na república de Weimar para se
preocuparem. Segundo Luckert:
Anti-Semitism was always a central Nazi tenet, yet Hitler and other leaders
realized that not all Germans responded to their strident anti-Jewish messages.
(…) In other places, however, the Nazis played down anti-Semitism or left it out
almost entirely from their propaganda campaigns. 185
A partir do ano da chegada ao poder, porém, grande parte das publicações do
partido se torna voltadas ao explícito antissemitismo, sendo mais moderado em alguns
momentos e mais violento em outros, ou se focalizam nas teorias raciais mais
abrangentes como um todo, dentro das quais os judeus eram incluídos como apenas uma
dentre várias outras “raças inferiores”186. O controle do partido de todas as formas de
comunicação nacional, desde rádio até o cinema, possibilitara a divulgação de sua
ideologia racial, além de outras, por diversas formas, variando desde filmes
documentários até livros para educação infantil.
Tamanho controle exercido pelo partido e pelo recém-criado Ministério da
Propaganda, chefiado por Joseph Goebbels, podem demonstrar a princípio que havia
forte domínio sobre a produção e divulgação da ideologia nazista através da mídia.
Estudos recentes demonstram que aqueles responsáveis pela propaganda, assim como os
demais integrantes do partido como um todo, na verdade se constituíam em grupos ou
indivíduos conflitantes que buscavam aumentar seu poder dentro do partido,
expandindo sua atuação e jurisdição sobre os departamentos dos demais187. Pode-se
citar Kallis como referência, quando afirma:
The absence of a truly centralized and normative decision-making process
established parallel network of information-gathering and dissemination. (…) On
the one hand, the non-normative character of Hitler „charismatic‟ power and, on
the other, the polycratic nature of decision-making, even within allegedly
185
LUCKERT, Steven. State of Deception: The Power of Nazi Propaganda. WW Norton, 2009, pág. 39-42.
186
Diversas publicações nazistas expressam, primeiramente, a superioridade da “raça ariana” em detrimento
de todas as demais. Embora os judeus tenham sido, de fato, os que foram perseguidos com maior intensidade,
outras minorias também sofreram de acordo com esta ideologia racial, como os ciganos, negros,
homossexuais, entre vários outros. Ver GELLATELY, Robert. Social Outsiders in Nazi Germany. Princeton
University Press, 2001.
187
O próprio Goebbels, Ministro da Propaganda, era obrigado a reforçar a sua autoridade constantemente e
estabelecer a sua jurisdição contra atitudes de outros estabelecidos em hierarquias também altas, como Otto
Dietrich, o chefe da imprensa alemã.
108
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separate and specific spheres of jurisdiction, rendered centralization and
continuity practically impossible. 188
Resultava-se, deste cenário, uma série de divisões internas dentro da narrativa da
propaganda, com cada segmento interpretando aquilo que seria mais adequado para
contextos específicos e tomando como base legitimadora a “vontade de Hitler”, ou, na
maioria das vezes, como se interpretava tal vontade 189. Portanto, inclusive no discurso
ideológico transmitido pela população pelos canais oficiais, havia incoerências,
paradoxos e visíveis mentiras, facilmente perceptíveis pela população.
O próprio Klemperer realiza diversas anotações a respeito da propaganda nazista,
tanto surpreso pela sua capacidade de adquirir seguidores quanto pela sua visível
mediocridade. Embora afirme com alguma frequência que ela é bem sucedida em
estabelecer determinados sentimentos na população, na maior parte das vezes, enfatiza
que a população estava exausta e cansada de tanta insistência do governo em
determinados pontos190. Ao se referir a um discurso de Hitler, ele afirma: “A gritaria
patética – realmente gritaria – de um fanático religioso”191, sendo que, em um momento
posterior, também diz:
Goebbels, contudo, não cativa, e sim literalmente “prende”, e o faz com a pessoa
inteira, ele a tiraniza, e contra isso revolta-se a pessoa e adquire antipatia pela
absoluta monotonia daquilo que unicamente lhe é oferecido. Numa escala de
sentimentos, vai-se aqui da indiferença da apatia até a antipatia e rebelião.192
Quando explicitamente antissemita, por outro lado, a propaganda demonstrava
problemas próprios, pois procurava explorar uma temática violenta, adaptando-a para
ser adequada para todas as pessoas e idades, ao mesmo tempo em que realizava
ofensivas afirmações sobre os judeus. A diversidade de elementos negativos pelos quais
188
KALLIS, Aristotle. Nazi Propaganda and the Second Word War. Palgrave Macmillan, 2008. Pág. 8 – 9.
189
Ian Kershaw estabelece um termo relevante para explicar o trabalho dos membros do partido nazista na
direção daquilo que acreditavam ser a vontade de Hitler, chamando tal atitude de “trabalhando na direção do
Führer”. Kallis, a partir deste termo, expande e afirma que, na contínua ausência de Hitler das intrigas
internas do partido devido à guerra, ao invés de se trabalhar “na direção”, passou-se a se trabalhar “na
ausência”, o que causou caos ainda maior na narrativa da propaganda. Ver KALLIS, Aristotle. Nazi
Propaganda and the Second Word War. Palgrave Macmillan, 2008. Pág. 42.
190
Klemperer afirma, já no final de setembro de 1936, que “As pessoas estão fartas de ouvir e de saber que
realmente não estão ouvindo a verdade”. KLEMPERER, Victor, Os diários de Victor Klemperer: testamento
clandestino de um judeu na Alemanha nazista, 1933 – 1945, São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Pág.
180.
191
KLEMPERER, Victor, Os diários de Victor Klemperer: testamento clandestino de um judeu na Alemanha
nazista, 1933 – 1945, São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Pág 13.
192
Idem. Pág. 79.
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os judeus eram acusados se demonstrava bastante numerosa, abordando desde a sua
natureza preguiçosa e exploração econômica, chegando até as características físicas
derivadas de sua genética particular, que poderia contaminar o sangue puro ariano. Tais
acusações não possuíam nenhuma verificação científica, seja ela biológica ou
econômica, se caracterizando pela construção imaginária dos nazistas de um contexto
no qual os judeus possuíam grandes habilidades de controle e influência política, e que
procuravam danificar a Alemanha como um todo.
Pode-se mencionar como exemplo, dentre toda a produção antissemita da
propaganda nazista, o jornal Der Stürmer, escrito por Julius Streicher e que se
caracterizou por ser a publicação mais violenta e ofensiva contra os judeus. As matérias,
sendo a maioria delas mentiras ou histórias sem a verificação de veracidade,
demonstravam os judeus como sendo trapaceiros, molestadores, assassinos e pessoas
cruéis, possuindo também, no final da primeira página em todas as edições, a frase “Die
Juden sind unser Unglück!”, o que, traduzindo, significa “Os judeus são o nosso
infortúnio”. Este jornal era exposto em painéis distribuídos nos principais centros das
grandes cidades, para que a população, mesmo sem ter as condições de adquirir o jornal,
poderia ler nestes espaços públicos.
Klemperer menciona este jornal em algumas situações, afirmando sempre a sua
surpresa em observar a violência do antissemitismo nazista expresso nesta publicação.
Porém, ao se verificar o real impacto do Der Stürmer, é necessária a realização de uma
análise mais profunda do impacto da propaganda antissemita na sociedade alemã, uma
vez que, de forma geral, quanto mais ofensiva e violenta a propaganda se demonstrava,
ela tendia a causar mais aversão nas pessoas, ao invés de apoio. Ao se observar a
circulação do jornal, pode-se afirmar que o seu conteúdo violento e pornográfico
agradava, devido aos altos índices de vendas 193. Porém, o mesmo índice deve ser
relativizado uma vez que graves consequências poderiam seguir caso um cidadão
alemão não possuísse a assinatura do jornal, ou demonstrasse pouco interesse nas
publicações oficiais. Medidas que variavam desde advertências públicas até o
isolamento social ou perda de empresas e lojas ocorriam com alguma frequência,
193
BYTWERK, Randall. Julius Streicher: The Man Who Persuaded a Nation to Hate Jews, New York:
Cooper Square Press, 2001, pág. 57
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contribuindo para que as pessoas adquirissem o jornal não devido a inclinação
ideológica, mas por medo de represarias194.
CONVIVENDO COM O MEDO
A mesma afirmação pode ser realizada sobre diversas outras ações relativas à
participação política da população. Em outras palavras, era mais conveniente e menos
problemático atender às exigências do partido nazista, já que qualquer suspeita de
comportamento divergente poderia levar a sérios problemas com a polícia, e um
possível envio a um campo de concentração.
Tal afirmação levanta novas indagações essenciais para serem observadas a partir
dos diários de Klemperer: a opinião pública não relativa especificamente ao
antissemitismo, mas ao apoio ao governo. Uma vez que o autor realiza diversas
afirmações de que havia um grande medo presente na sociedade alemã, o que suprimia
resistência e contribuía para que todos suspeitassem de todos, outros questionamentos
surgem relacionados ao verdadeiro apoio demonstrado ao partido, se este suporte era
derivado de inclinação ideológica e ligação profunda com o pensamento e a política
nazista em todas as suas atuações, ou se era constituído de uma mistura de apoio parcial
com medo de repressão policial.
A maioria do povo está satisfeita, um pequeno grupo considera Hitler um mal
menor, ninguém quer realmente livrar-se dele, todos veem nele o libertador da política
externa, temem condições russas como uma criança teme o bicho-papão, na medida em
que não estão honestamente inebriados; consideram inoportuno, no sentido de uma
política realista, indignar-se com coisas menores como a opressão da liberdade do
cidadão, a perseguição aos judeus, a falsificação de todas as verdades econômicas, a
destruição sistemática de qualquer moral. Temem por seu pão, sua vida, todos são
terrivelmente covardes. (Devo condená-los por isso? No último ano, ainda em meu
194
O próprio Klemperer reconhece a obrigatoriedade de se adquirir jornais e outras publicações do partido,
como se pode observar na citação “agora faltam leitores para esses jornais, embora a assinatura do Stürmer e
de outros excrementos parecidos seja obrigatória em muitos lugares” em KLEMPERER, Victor, Os diários
de Victor Klemperer: testamento clandestino de um judeu na Alemanha nazista, 1933 – 1945, São Paulo:
Companhia das Letras, 1999. Pág. 180. Para observar as medidas de coerção do partido para a compra de
jornais, ver BYTWERK, Randall. Julius Streicher: The Man Who Persuaded a Nation to Hate Jews, New
York: Cooper Square Press, 2001, pág. 176.
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cargo, prestei juramento a Hitler, permaneci no país. Não sou melhor do que meus cocidadãos arianos.)195
Esta observação é relevante e permite recordar que, ao se estudar a Alemanha
nazista, havia forte repressão do Estado sobre a população, com ampla atuação da
polícia e constante vigilância oriunda de vários setores do partido. As pessoas não se
sentiam confortáveis a realizar atitudes que pudessem lhes causar problemas, mesmo se
tais ações não fossem ilegais. Com o início dos conflitos em 1939, o medo popular
aumentou de acordo com o agravamento das punições e instauração de novas leis, as
quais poderiam punir com a morte, por exemplo, qualquer um que realizasse afirmações
contra o esforço de guerra196, como chegou de fato a acontecer.
Gellately, em uma obra intitulada Apoiando Hitler, realiza um estudo sobre
diversas ações referentes ao apoio dado ao partido pela população alemã em contextos
específicos. Analisando os Sicherheitsdienst, relatórios do serviço de inteligência
nazista, o autor observa que as pessoas eram motivadas por diversas razões para agirem
de acordo com a política do partido, embora a maioria fosse, de forma geral, o interesse
em conseguir vantagens pessoais, e não uma presença ideológica. E relembra que:
(...) as racionalizações que os nazistas ofereceram à população alemã a respeito
de porque novas formas de coerção e novas leis eram necessárias constituíam
parte integral e essencial da discriminação e da perseguição. Os alemães foram
informados sobre a nova abordagem em relação ao crime, superando os
escrúpulos de liberais de “coração mole” e democratas “pusilânimes”. Termos
brutais para descrever todos aqueles considerados “indesejados” tornaram-se
uma característica da imprensa na época e “tiveram um considerável impacto
sobre a maioria da população”.197
Portanto, não somente os judeus, mas toda a população convivia com medo, pois
mesmo aqueles que se consideravam fanáticos seguidores do partido poderiam ser
presos ou sofrer represarias caso realizassem qualquer atividade que pudesse ser
considerada como ilegal. Após grandes modificações do sistema judiciário e legislativo,
195
KLEMPERER, Victor, Os diários de Victor Klemperer: testamento clandestino de um judeu na Alemanha
nazista, 1933 – 1945, São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Pág. 161 - 162.
196
Ressalta-se a passagem: “(...) it may be assumed that the readiness with which people volunteer
information on their true beliefs and sentiments decreases in inverse ratio to the scope of official doctrine and
the rigor with which deviations from it are persecuted. In short, the more „captive‟ the people the less likely
are they to speak their minds, with the result that it becomes correspondingly more difficult for their
government to know what they are thinking.” UNGER, Aryeh L. The Public Opinion Reports of the Nazi
Party. The Public Opinion Quarterly, Vol 29, No. 4. 1965. Pág. 565.
197
GELLATELY, Robert, Apoiando Hitler, Rio de Janeiro: Record, 2011. Pág. 29.
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as leis implementadas pelo partido nazista contribuíam para inserir na ilegalidade
qualquer ato, contanto que a interpretação dos agentes policiais contribuísse para tal.
Deve se levar também em consideração que o partido não costumava se importar com
questões legais, embora sempre buscasse basear legalmente as suas práticas, sendo que
era mais comum a realização de ações políticas independente das leis que as validassem.
A propaganda nazista não possuía somente o objetivo de procurar construir o
apoio e disseminar a ideologia nazista na população. Também era necessária a
demonstração de legalidade, inibir dissidências e explicar os motivos por trás das
prisões que ocorriam e que eram amplamente visíveis. Os campos de concentração eram
divulgados pela mídia de forma corriqueira, e várias pessoas eram enviadas a eles como
medidas punitivas semelhantes às prisões pelos mais variados delitos 198. Tais medidas
causaram consequências negativas na população, que passou a temer de forma crescente
o partido, que aumentava gradativamente a quantidade de leis e a severidade das
punições, assim como a sua força policial, que não se inibia de utilizar de violência
naqueles que eram considerados como “infratores”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Goldhagen, em sua obra Os Carrascos Voluntários de Hitler, provocou a comunidade
acadêmica através de conclusões que afirmaram a presença de forte sentimento
antissemita na população alemã como um todo, que necessitavam apenas de um
incentivo para gerar o Holocausto. Seguindo a publicação deste livro, iniciou-se um
debate que persiste sobre o conhecimento, pela população alemã, dos fatos relacionados
ao extermínio de judeus e também sobre a presença de sentimentos antissemitas nesta
sociedade como um todo.
Os diários de Klemperer permitem novas perspectivas de pesquisa sobre o
nazismo em muitos aspectos, podendo servir de base empírica para a formação de
argumentações relevantes presentes no debate acima mencionado. Desde a economia,
passando pela propaganda até o antissemitismo, as observações de um judeu no
198
Os campos de concentração se diferem dos campos de extermínio, uma vez que eram prisões conhecidas e
temidas pela população, presentes na Alemanha desde a ascensão do partido ao poder. Nestes campos, não
havia o interesse de matar as pessoas para lá enviadas, embora mortes ocorressem por diferentes motivos
como doenças ou falta de alimentação adequada. Os campos de extermínio só passarão a existir em 1941, em
pequena quantidade e em territórios isolados, com Auschwitz-Birkenau sendo o mais famoso deles.
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contexto da Alemanha nazista, registradas no momento de sua reflexão, se constituem
em uma fonte histórica inestimável para se estudar não somente a vida cotidiana, mas a
forma pela qual se percebia a realidade naquele momento tão conturbado.
Para finalizar estas breves observações, uma citação dos diários de Klemperer
talvez contribua para a percepção ainda mais clara da relevância destes registros para o
estudo histórico. No dia 18 de setembro de 1941, o ano em que os exércitos alemães
estavam sendo vitoriosos em quase todas as batalhas, ele registra:
A “estrela dos judeus”, preta sobre tecido amarelo, em seu centro, a palavra
“judeu” em letras imitando o alfabeto hebraico, a ser usada do lado esquerdo do
peito, do tamanho de um pires, repassada para nós ontem por dez pfennings, a ser
usada a partir de amanha, 19 de setembro. O ônibus não pode ser mais utilizado,
o bonde, apenas na parte dianteira do vagão (...).
Hoje, nosso último passeio juntos durante o dia. (...) Foi uma espécie de última
saída, uma última pequena sensação de liberdade antes de uma longa prisão
(quão longa?)
Quando um morador da casa visita o outro, toca a campainha três vezes. Foi
combinado assim para que ninguém se assuste. Um toque só da campainha
poderia ser a polícia.199
199
KLEMPERER, Victor, Os diários de Victor Klemperer: testamento clandestino de um judeu na Alemanha
nazista, 1933 – 1945, São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Pág 394 – 395.
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OS CARRASCOS VOLUNTÁRIOS: A RENOVAÇÃO HISTORIOGRÁFICA DO
HOLOCAUSTO A PARTIR DO PARADIGMA GOLDHAGEN.
Jaqueline200 Rivas Paredes201
Resumo:
A tese do livro de Daniel Jonah Goldhagen,“Os Carrascos Voluntários de Hitler”, visa
explicitar as motivações de alemães “comuns” ao perpetrar atividades genocidas. Para o
autor, o elemento motivador seria o antissemitismo eliminacionista alemão, sempre
presente nesta sociedade.Ta lmonocausalidade, associada às detecções de falhas
metodológicas, ao estridente apelo midiático para com o livro e a divergente recepção
entre acadêmicos e leigos, propiciou o desencadear de um debate no campo da
historiografia do Holocausto, bem como sua renovação.
Palavras-chave: Goldhagen. Historiografia. Holocausto.
Abstract:
The thesis of Daniel Jonah Goldhagen‟s book, “Hitler Willing Executioners”, is
intended to explain ordinary German‟s motivations. For the author, the motivating
factor was the German eliminationist anti-Semitism, always present in this society. This
factor, associated with detections of methodological flaws, the shrill media appeal to the
book and the divergent reception among scholars and laymen, provided the spark for
debate in the field of historiography of the Holocaust, as well as its renewal.
Keywords: Goldhagen. Historiography. Holocaust.
INTRODUÇÃO
A historiografia sobre Holocausto Nazista iniciou-se pouco tempo após o acontecimento
revelado em si, despertando a curiosidade de acadêmicos e também do público mais
vasto. Com uma bibliografia sobre o assunto quase incomensurável, um dos fatores para
tamanha atratividade é o caráter dito desumano dos assassinatos – e dos assassinos. Este
elemento invariavelmente recai em análise moral para com os perpetradores. Por que
realizaram tais atos? Foram voluntários? Não perceberam a barbárie de suas atitudes, a
maldade que as embasava?
200
Graduada e Licenciada pela Universidade de Brasília – UnB; Orientador: Professor Doutor Wolfgang
Döpcke
201
E-mail: [email protected] Telefone: (61) 81571442 Endereço :Sqs 103 bloco “J” apartamento
“36”. CEP: 70342100
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Em 1996 um debate caloroso – e de caráter público, não restrito à academia –
tomou forma, devido à publicação do livro “Os Carrascos Voluntários de Hitler”, de
Daniel Jonah Goldhagen. Um livro com uma tese polêmica – o dito antissemitismo
eliminacionista alemão - e amplamente criticada. Será aqui apresentado este debate e
sua natureza, que despertou amores ao público e escárnio de grande parte do mundo
intelectual. As críticas acadêmicas não se restringem ao ano de 1996, bem como não
permanecem em eterna cacofonia, repetindo acusações. A natureza delas altera-se ao
longo dos anos, mantendo o debate sobre o livro de Goldhagen presente ainda nos anos
2000. Tem-se em 1996 uma crítica contida, todavia, com forte notoriedade e aceitação
pelos meios de comunicação de massa. O ano de 1997 apresenta-se com as críticas mais
ácidas e impacientes por parte da academia, e a contínua aceitação do público leigo da
tese de Goldhagen, que tem seu livro elevado a best-seller. Os anos seguintes expõem a
alteração na abordagem sobre o livro, de renegado à integrante da historiografia do
Holocausto, mesmo que como exemplo a não ser seguido.
A base crítica provém sobretudo de resenhas e artigos, mas também de livros.
Acabam por retomar e reacender antigos debates e posicionamentos intelectuais ditos
tradicionais, renovando-os. Objetiva-se, desta maneira, não apenas reescrever uma
discussão, mas sim guiar o leitor pelos caminhos de maturação dessa mesma
historiografia.
OS CAMINHOS DA HISTORIOGRAFIA: ANTES DE GOLDHAGEN
A singularidade histórica referente à “Solução Final”- um genocídio extremo em
quantidade de vítimas, recursos e mobilizações humanas - a torna um evento-limite, tal
como discorre Caldas202. Faz com que sua escrita seja também única. Historiadores e
demais acadêmicos debruçam-se sobre o tema desde o fato revelado em si.
A fim de afastar-se de um julgamento moral, discricionário e pouco científico,
paradigmas explicativos emergiram, os quais se aprofundam e se renovam a todo o
momento. Têm o objetivo de expor racionalmente o evento – como se busca em
produções científicas -, contudo, deixam aflorar em seus discursos vínculos com
202
CALDAS, Pedro Spinola Pereira. Os Limites da Representação historiográfica do Holocausto: Um
Exercício Hermenêutico. Revista Contemporânea – Dossiê Contemporaneidades, nº 1, 2011.
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questões morais e humanitárias. O Holocausto torna-se um símbolo, um alerta para que
se busque podar eventos semelhantes que ameacem emergir.
As diferentes abordagens sobre os temas incitaram a formação de vertentes de
pensamento, sendo as principais: o intencionalismo, o funcionalismo, o modernismo
reacionário, o Sonderweg, a relativização do Holocausto e o revisionismo. De modo
sucinto, serão expostos a seguir com a finalidade de se relacionar o modo de
organização cognitiva da historiografia anterior ao livro de Goldhagen – seus principais
questionamentos, objetos, conclusões – bem como sua gradual modificação e renovação
concomitantes às críticas aos “Carrascos Voluntários”.
Intencionalistas e Funcionalistas/Estruturalistas
Em meados da década de 1960 até finais da década de 1970, uma primeira leva de
pesquisadores encontrou na busca pela compreensão da tomada de decisão do
Holocausto a explicação para este. Tal grupo fundamentou suas pesquisas sobretudo nos
documentos coletados pelo Tribunal Militar de Nuremberg, publicado em quarenta e
dois volumes203.
O ponto de consenso neste primeiro grupo está na compreensão de que Hitler,
antissemita ardoroso, planejara - desde antes de sua ascensão ao poder pelo Partido
Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP) em 1933 – a morte dos
judeus da Alemanha e da Europa. Saul Friedländer204 afirma que para esta corrente de
pensamento, que tem como expoentes Yehuda Bauer, Eberhard Jäckel e Lucy
Dawidowicz, há uma relação direta entre a ideologia racial antissemita, o planejamento
e a política de tomada de decisões do Terceiro Reich.
O antissemitismo do Führer – onde a concepção de judeus seria a de um grupo
racial, e não religioso - seria o leitmotiv de toda política eliminacionista do Terceiro
Reich. Hitler apenas estaria à espera do momento mais propício para efetuar seu plano,
203
STONE, Dan. The Holocaust and its Historiography, p.373. Disponível em
http://www.ereadinglib.com/bookreader.php/135878/the_historiography_of_holocaust.pdf Acesso em AbrilJunho de 2013.
204
FRIEDLÄNDER, Saul. From Anti-semitism to Extermination: An Historiographical Study of Nazi
Policies Toward the Jews and an Essay in Interpretation. Yad Vashem, Jerusalém. Disponível em
http://www.yadvashem.org/untoldstories/documents/studies/Saul_Friedlander.pdf Acesso em Junho de 2013.
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que veio com a eclosão da Segunda Guerra Mundial205, pois seriam possibilitados os
meios – tecnológicos, espaciais e coercitivos - para um assassinato em massa. Com
passos planejados, o líder teria dado a ordem para a Solução Final na primavera ou
verão de 1941. O Holocausto, por fim, resumir-se-ia a um confronto entre os alemães –
que seguiriam a vontade de seu líder – e os judeus. Tal característica demarcatória acaba
por tornar, nesta perspectiva, o Holocausto como um evento único, sem antecedente e
incapaz de pré/procedência na história da humanidade. Uma vertente que apela ao
cúmulo da ideologia antissemita de Hitler, planejada minunciosamente e implementada
de modo extremamente calculado.
Em 1980 esta corrente historiográfica recebeu uma nomenclatura, por encontrar
um grupo antagonista às suas ideias. Timothy Mason206os declarou “intencionalistas” e
seus opositores foram denominados “estruturalistas” ou “funcionalistas”. Para este
grupo – incluindo historiadores como Hans Mommsen e Martin Broszat – não houve e
nunca teria tido um plano para o assassinato em massa de judeus, ou, se houve, foi no
curso dos eventos, de modo quase improvisado, sem objetivos predeterminados. Não
haveria, também, uma necessária relação entre a ideologia antissemita e as iniciativas
políticas do regime nazista. O que houve foi uma “radicalização cumulativa”,
contingenciada pelos caminhos da guerra, onde as maiores decisões foram tomadas por
pressões diversas, de outros setores da maquinaria do partido. O caminho para
Auschwitz foi “tortuoso”, marcado pela improvisação, como afirma Welch207,“There
was no straight path from Hitler’s anti-Semitic intentions to Auschwitz butrather a
twisted road.”
Hitler, segundo esta vertente, não seria um líder forte, concentrando em si as
tomadas de decisão. Estas seriam tomadas pela interação de iniciativas locais, em
agências semiautônomas, que colocariam em embate as necessidades e interesses
próprios, e a tentativa de alinhá-los à vontade do líder. A natureza desorganizada e
policrática do regime Nazista seria a responsável pelas decisões que encaminharam ao
205
FRIEDLÄNDER, p. 37.
206
WILKINSON, Molly. Ordinary Man and the Final Solution: The Work of Christopher Browning. The
Wittenberg History Journal. Wittenberg, vol.24, 1995, p. 18.
207
WELCH, Steven R. “A survey of interpretative paradigms in Holocaust Studies and a Comment on the
Dimensions of the Holocaust.” Yale center for international and Area Studies Working. Nova Iorque:
University of Melbourne, 2001.
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Holocausto. Na década de 1990, em tom conciliador entre as duas vertentes, emergem,
com expoente em Christopher Browning, os “intencionalistas moderados”.
O paradigma do modernismo
A denominada “Patologia da Modernidade” se ramifica internamente, mas de modo
geral focaliza-se nas reações de um mundo moderno - em tecnologias e burocratizações
- frente ao conservadorismo das ideias políticas e estruturas sociais. Pode-se destacar
como expoentes Jeffrey Herf – que cunhou o termo “Modernismo Reacionário”-e
Hanna Arendt, com sua polêmica tese sobre a banalidade do mal.
Um caminho especial
A tese do Sonderweg – ou Caminho Especial, em alemão – trabalha com os caminhos e
descaminhos da sociedade alemã frente aos demais países ocidentais, sobretudo
Inglaterra e França. Com um inicial olhar positivo – seu ordenamento teria
encaminhado a um maior progresso, a Primeira Guerra Mundial e seu desenrolar – tanto
para a sociedade quanto para a política – atribuíram outro sabor ao caminho especial
alemão.
Desde então, historiadores autodenominados liberais-democráticos, como Gerhard
A. Ritter e Hans-UlrichWehler, ressaltam a singularidade alemã negativamente. Por
meio da trajetória da Alemanha, objetivam expor não necessariamente a ascensão do
Nacional-Socialismo, mas o caráter antidemocrático desta sociedade, como discorre
Kocka208. Assim, a trajetória alemã não justifica plenamente a ascensão nazista, mas a
nascitura República de Weimar. As características mais ressaltadas são a tardia
unificação da Alemanha como um Estado-Nação, a natureza não liberal da política e a
fraqueza do projeto de parlamentarização no século XIX, ressonante na República pós
Guerra.
Relativização do Holocausto Nazista
Enquanto o Sonderweg salienta a necessária relação entre a história da Alemanha e o
genocídio de judeus, há certos especialistas, como Mark Levene, que relativizam a
experiência do holocausto nazista. Estes acabam por comparar o assassinato em massa
208
KOCKA, Jürgen. “German History before Hitler: The Debate about the German Sonderweg”. Journal of
Contemporary History. Cambridge: Cambridge University Press, vol. 23, nº.1, 1988, p.04.
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deste momento com outros genocídios, tais como de indígenas nas Américas, como os
Tutsis contra Hutus na África, entre outros. Desta maneira, o Holocausto seria um
dentre outros genocídios, e não uma excepcionalidade histórica.
Os estudos sobre o Holocausto apresentam, por fim, linhas de raciocínio que
variam entre extremos: da decisão premeditada à improvisação, de um líder forte a um
fraco, de uma continuidade histórica à ruptura, de um acontecimento singular a mais um
tipo de assassinato em massa. Também os fatores motivacionais são plurais: obediência,
burocracia, ideologia. Logo, uma “resposta” de porque o Holocausto ocorreu, porque na
Alemanha, porque com Hitler, quais as motivações, se encontra no mundo das
hipóteses– umas mais convincentes que outras – que buscam inferências nos
acontecimentos. A questão da moral – foi certo? – é constantemente retratada ou
abordada, mesmo sendo este um caminho não-histórico de trabalhar os acontecimentos.
O historiador – e demais cientistas sociais – acaba por perder-se entre analisar, julgar,
condenar ou abster perpetradores, vítimas e observadores do Holocausto.
O livro de Daniel Jonah Goldhagen, “Os Carrascos Voluntários de Hitler: O povo
alemão e o Holocausto” 209 cai nesta linha de cientista-advogado. Mais que isso, une em
seu livro teorias de Sonderweg, Intencionalismo e singularidade da natureza do
Holocausto. O impacto no mundo intelectual – fervoroso nas críticas ao autor – fez com
que os debates historiográficos expostos acima fossem revividos, criticados,
repaginados. Um retorno não contemplativo às raízes fez-se presente na historiografia.
Impulsionou a autocrítica, e, consequentemente, um enriquecimento do campo.
OS CARRASCOS VOLUNTÁRIOS
Daniel Jonah Goldhagen é um cientista político, nascido em 1959, filho de sobrevivente
do Holocausto. Trata, em “Os Carrascos Voluntários de Hitler” sobre o voluntarismo
alemão frente ao genocídio de judeus, tanto em momento anterior à matança
sistematizada em câmaras de gás – Batalhão Policial Reserva 101- bem como após – as
“Marchas da morte”. Sua tese se embasa na assertiva de que os alemães possuíam o
antissemitismo como algo interiorizado em si, uma característica do povo alemão desde
tempos medievais. Este seria o antissemitismo eliminacionista, o qual justificaria a
209
GOLDHAGEN, Daniel Jonah; Os Carrascos Voluntários de Hitler: O povo alemão e o Holocausto. São
Paulo: Cia das Letras, 1999.
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congruência de intenções entre as manifestações antissemitas e de violência de Hitler ao
longo do Terceiro Reich e a aparente passividade – se não anuência – do povo alemão.
Sendo assim, a matança singular perante a comunidade judaica não teria sido apenas
aprovada, mas desejada e compartilhada.
A argumentação empírica do autor se embasa na análise de três diferentes
situações: Os Batalhões Policiais, os Campos de Trabalho e as Marchas da Morte 210. A
partir da análise das situações, Goldhagem afirma que os alemães não seriam movidos
por burocratização, coerções físicas ou maleáveis ao carisma de seu chefe de Estado,
justificativas amplamente discutidas na historiografia, sobretudo nas correntes de
estruturalistas, intencionalistas, moderada e o paradigma da modernidade. Bastava
serem alemães, partilhando do axioma cultural de antissemitismo eliminacionista. Em
um ambiente de guerra, este anseio pôde ser concretizado.
“CARRASCOS”
O livro de Daniel J. Goldhagen foi lançado em março de 1996 nos Estados Unidos da
América e obteve ampla repercussão na mídia. Na edição de 17 de março de 1996, o
New York Times ofereceu uma página inteira de seu jornal de domingo para a sua
divulgação, em uma breve resenha escrita pelo próprio autor. Em letras garrafais, entre
o texto, a frase “No tonly SS troop killed Jews. Ordinary Germans did so Eagerly211”.
A semana após a publicação no New York Times, inúmeras cartas foram enviadas ao
editor por aqueles que já haviam lido o livro completo, e não apenas sua chamada. Entre
estes – a maioria destes –, especialistas em história hebraica, do Holocausto, cientistas
sociais, historiadores. Uma das cartas foi enviada pelo historiador Yehuda Bauer, que
acaba por pincelar e criticar a teoria da relativização do genocídio e expor uma
contradição do autor:
(…)Mr. Goldhagen compares the act of murder by the Germans to the slaughter
perpetrated by Turks against Armenians, by Hutus against Tutsis, by the Khmer
Rouge against Cambodians and by Serbs against Bosnian Muslims. According to
Mr. Goldhagen, these societies were willing executioners like the Germans. Mr.
Goldhagen, having done research over many years and having written a book to
show that the Germans were unique in supporting what he has called
"eliminationist anti-Semitism," would now seem to contradict what he once
210
GOLDHAGEN, p.195-378.
211
GOLDHAGEN, Daniel.J. “The peoples Holocaust!” New York Times, Op-ED, 17 Mar. 1996.
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wrote: in his Op-Ed article, the murderers were ordinary men, just like Hutus,
Serbs, Turks or Khmer. Is this what He believes?212
Com uma explicação que satisfez o público leigo, logo se tornou um best-seller. A
publicação do New York Times impulsionou um debate internacional, que se prolonga
ainda nos anos 2000.
Os anos de 1996 deram fruto a críticas mais contidas, apesar de já se perceber no
palavreado um movimento anti-Goldhagen. Neste ano, a principal discussão se deu pelo
The WillingExecutioners/Ordinary Men Debate213, o qual confrontava, entre outros
autores, Goldhagen com Browning; autores que trabalham com a mesma fonte, mesmos
questionamentos, mas possuem conclusões divergentes ao extremo. Para Browning,
homens comuns foram voluntários a matar, devido a uma pluralidade de variáveis,
como pressão social, propensão do ser humano a seguir ordens, linha de pensamento
adotada por vária parte do universo intelectual.
Em 1997, “Os Carrascos” já havia sido lido pelos intelectuais alemães e a crítica
se tornava mais ardilosa e o debate mais acalorado qualitativa e quantitativamente.
Críticas à metodologia e aos argumentos persistem como no ano de lançamento, porém,
outros debates historiográficos se fazem presentes. Robert Gellately214, Bernard
Rieger215, Yehuda Bauer216, Ruth Bettina Birn217, Norman Filkenstein218, Tânia R.
Zimmerman219 e Raul Hilberg220 publicam artigos e resenhas onde se focam, sobretudo,
212
BAUER, Yehuda. “Don’t Condemn All Germans for the Holocaust; A Contradiction?” New York Times,
Op-ED, Nova Iorque, 24 Mar. 1996.
213
The Willing Executioners/Ordinary Men Debate.The United States Holocaust Research Institute, Nova
Iorque, 8 Abr. 1996.
214
GELLATELY, Robert. “Hitler's Willing Executioners: Ordinary Germans and the Holocaust.by Daniel
Jonah Goldhagen.” The Journal of Modern History, vol. 69, nº. 1, Março, 1997, p. 187-191.
215
RIEGER, Bernard. “Daniel in the Lion‟s Den?” The German Debate about Goldhagen's "Hitler's Willing
Executioners. History Workshop Journal, nº. 4, 1997, p. 226-233.
216
BAUER, Yehuda. “On perpetrators of the Holocaust and Public Discourse: Hitler’s Willing Executioners
by Daniel J. Goldhagen.” The Jewish Quarterly Review. Filadélfia: University of Pennsylvania Press New
Series, vol. 87, nº. 3/4 , Jan - Abril, 1997, p. 343-350.
217
BIRN, Ruth Bettina. “Revising the Holocaust.” The Historical Journal, vol. 40, nº. 1, Março, 1997, pp.
195-215.
218
FINKELSTEIN, Norman G. Daniel Jonah Goldhagen's 'Crazy' Thesis: A Critique of Hitler's Willing
Executioners. Londres: New Left Review, nº 224, Julho, 1997, p. 39-88.
219
ZIMMERMANN, Tânia Regina. Resenha de GOLDHAGEN, Daniel. Os Carrascos Voluntários de Hitler:
O povo alemão e o Holocausto. (Trad): ROIZMAN Luis Sergio. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.
644-652.
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na crítica à metodologia seletiva, na manipulação de fontes e bibliografias e na
argumentação monocausal e pouco convincente do antissemitismo eliminacionista
alemão. Isto tendo em vista a participação – também cruel – de outros perpetradores, e a
detenção e assassinato de outras vítimas que não judeus. Como arremate, posicionam-se
sobre a importância – ou não – do livro no debate historiográfico.
O final dos anos 1990 – 1998 e 1999 - renova a natureza do debate acerca de
Goldhagen, seu livro e sua tese. As críticas mais sórdidas – mesmo que ainda existentes
– são características de um momento passado. Todavia, mesmo que de modo pincelado,
o autor torna a aparecer em inúmeros livros, resenhas e artigos dos mais célebres
historiadores do Holocausto. Uma novidade também se faz presente: a crítica por parte
de outras áreas – como psicólogos e literatos – se faz mais comum. Um renovado e
repaginado debate historiográfico acerca do Holocausto emerge. Todavia, há
continuidade com os anos anteriores, repaginado pelo relançamento do livro de
Browning221 em 1998 e seu Posfácio dedicado a uma explanação acerca das assertivas
de Goldhagen.
OS ANOS 2000: VIRADA DO SÉCULO, VIRADA HISTORIOGRÁFICA?
As recentes publicações muito raramente citam Goldhagen de modo direto, e se o
fazem, é de modo pontual, pouco abrangente. Exceções são vistas, como em Nick
Zangwill222 e Kamber223. A natureza da historiografia do Holocausto, ao mesmo passo,
toma um novo corpo. As ausências e exageros antes não percebidos nas teorias fizeramse aparecer. Autores como Brennan224, Mews225 e Duffy226 realizam uma retrospectiva
220
HILBERG, Raul. “The Goldhagen Phenomenon”. Critical Inquiry. Chicago: The University of Chicago
Press, vol. 23, nº 4 , 1997, p. 721-728. Disponível em http://www.jstor.org/stable/1344046. Acesso em Abril
de 2013.
221
BROWNING, Chr.; Ordinary Men. Reserve Police Battalion 101 and the Final Solution. Nova Iorque:
Harper 1998, p.191-223.
222
ZANGWILL, Nick. “Perpetrator Motivation: Some Reflections on the Browning / Goldhagen Debate.”
Moral Philosophy and the Holocaust. (ed.)GARRARD, Eve Garrard e SCARRE, Geofre. Ashgate: 2003, p.115
223
KAMBER, Richard. “The Logic of the Goldhagen Debate”.Res Publica, vol 6, 2000.
224
BRENNAN, Michel. “Some Sociological Contemplations on Daniel J. Goldhagen Hitler's Executioners.”
Theory, Culture & Society, vol 18, Agosto, 2001.
225
MEWS, Siegfried. Review: The "Goldhagen Effect." History, Memory, Nazism: Facing the German Past
by Geoff Eley. The German Quarterly, Berlim/Nova York, vol. 75, nº. 1, 2002, p. 91-92.
226
DUFFY, Gaven. “Why were so many Germans prepared to participate in the Holocaust?”, University of
Ireland Galway, Agosto, 2012.
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da historiografia do Holocausto e inferem motivações dos perpetradores. Novos artigos,
como em Ian Kershaw227, repaginam a discussão intencionalista a por meio da
argumentação de Goldhagen. A relação entre moralidade e estudos do Holocausto se faz
aparecer, bem como novas hipóteses sobre a singularidade do Nazismo e o Holocausto.
Acabam por revelar um retorno a antigos debates – o modernismo, o Sonderweg, o
processo de tomada de decisão. Todavia, não mais com autores se posicionando entre
uma ou outra vertente, mas analisando-as de modo o mais imparcial e crítico possível, a
fim de fortalecer as argumentações, e não desmenti-las. De enriquecer a historiografia,
torná-la a mais completa, com temas que se complementem, e não entrem em embate de
surdos, onde cada trabalha com suas teorias sem analisar a dos demais 228. O debate
desencadeado por Goldhagen não foi, enfim, vazio. O vigor do conteúdo pode ser
discutível, mas os resultados de sua discussão expuseram-se construtivos.
CONCLUSÕES
“Os Carrascos Voluntário de Hitler” foi publicado há mais de quinze anos. Por quase
duas décadas, críticas o retomam, o revivem, repaginam o debate e o mantém um livro
essencial na biblioteca de um historiador, de um cientista social. De tamanhas revisões e
artigos a ele direcionados, é possível salientar as principais críticas por temática. Estas
são o uso inadequado da metodologia, a abordagem sobre antissemitismo, as vítimas, os
perpetradores e os bystanders e, sobretudo, a tese.
Mas por que um livro tão negativamente criticado expõe-se tão indispensável a
um acadêmico do Holocausto? Ora, a importância do livro não está tão somente no
conteúdo em si. A visível apreciação desfavorável por maior parte do meio acadêmico,
como demonstrado acima, não rescindiu a argumentação de Goldhagen. Uma
argumentação falha, mas que trouxe à superfície, ao público amplo, o tema do
Holocausto Nazista trabalhado como História Social. Uma história que não se restringe
à Hitler e seus imediatos, à cúpula do Partido, às suas decisões e prováveis
227
KERSHAW, Ian. Hitler and the Uniqueness of Nazism. Journal of Contemporary History, University of
Chi-cago Press, Chicago, vol. 39, nº. 2: Understanding Nazi Germany, 2004, p. 239-254.
228
Ver por exemplo GREGOR, Neil. “Culture, Political Culture: Recent Work on the Third Reich and Its
Aftermath.” The Journal of Modern History, University of Chicago Press, Chicago, vol. 78, nº.3, 2006,
p.643-683 e FITZPATRICK, M.P.”The Pre-History of the Holocaust? The Sonderweg and Historikerstreit
Debates and the Abject Colonial Past” .Central European History. Chicago: University of Chicago Press,
vol. 41, nº. 3, 2008, p. 477-503.
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manipulações. Não se busca olvidar os trabalhos anteriores direcionados pelo viés da
História Social. Contudo, a repercussão do livro d‟Os Carrascos desencadeou a
autocrítica destes antigos trabalhos, sinalizando suas ausências e falhas, sejam
temáticas, metodológicas e até mesmo discursivas. Do mesmo modo as críticas também
auxiliaram – inclusive em assuntos mercadológicos – na produção de novos livros e
teses com enfoque nos perpetradores “comuns” e embasados na História Social.
Goldhagen traz à lembrança algo banal. Lembra a todos que governos e seu
aparato institucional-burocrático são compostos por seres humanos, capazes de juízo
crítico. As escolhas, o processo de tomada de decisão individual, são motivadas por
diferentes fatores, sejam eles materiais ou morais. No processo decisório, há o embate
entre altruísmo ou egoísmo. O mesmo se deu entre as nações partícipes da Segunda
Guerra Mundial. Em uma guerra onde a sobrevivência de sua própria nação entrava em
questão, a Questão Judaica foi deixada, pela grande maioria, para um último momento.
Este fato, todavia, é pouco ressaltado pela historiografia. Salientar que interesses
materiais e políticos eram postos acima da vida de milhões de pessoas é destacar a falta
de humanidade e de boa moral nos países envolvidos, em seus chefes de Estados e seus
“cidadãos comuns”. É dar margem para aqueles que afirmam que a natureza humana é
má e egoísta por natureza, assertiva há tempos pronunciada por Hobbes. É mais cômodo
focar-se no desvio de alemães, sejam eles de cúpula do partido ou não. Seja na história
singular que encaminhou ao Holocausto, ou na estrutura burocrática emergente
exclusivamente no Nazismo. Tal como o antissemitismo eliminacionista, são
argumentos que enfocam singularidades de uma Alemanha, e deve-se destacar, não
mais existente no século XXI. Apenas uma nação desviante da civilização ocidental, da
moralidade objetiva universal, com uma trajetória histórica singular seria capaz de
efetivar o Holocausto, pois a responsabilidade apenas sobre ela recai.
Infelizmente, não são estes os fatores que impossibilitam a recorrência de outros
genocídios, como a própria história pós Segunda Guerra demonstra. Não há, aqui, a
tentativa de subtrair a magnitude do Holocausto Nazista frente aos judeus. Mas sim,
trazer à luz que o Holocausto, por mais traumático que tenha sido – para indivíduos,
grupos e nações – não é necessariamente um acontecimento iniciado e acabado por um
grupo específico, em um momento único, com sistema de governo singular. Todas as
nações e seus concidadãos são potenciais perpetradores. Mesmo que por omissão de
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auxílio. Resta o pensamento crítico, capaz de colocar a humanidade acima de interesses
imediatos. Resta a não abstenção. Resta o pensamento ao próximo, por menos próximo
que este possa estar. Isto só é possível a partir da análise racional das tomadas de
decisão
e
participações
em
assassinatos
em
massa,
tendo
como
vértice,
indubitavelmente, o regime de Hitler na Alemanha dos anos 1930 e o Holocausto de
judeus, que foi por alemães incentivado e perpetrado, mas apenas possível pela
colaboração passiva de inúmeros cidadãos em todo o globo. Por fim, deve-se ressaltar
que uma efetiva análise só é possível com estudo. Entretanto, o paradigma iniciado por
Daniel Jonah Goldhagen expõe a pouca amplitude que os estudos sobre o Holocausto
têm naqueles não acadêmicos. “Os Carrascos Voluntários” foi redigido em um linguajar
que atingiu o grande público, que foi capaz de transmitir certo sentido e convencer
acerca do argumento central. Ao se observar as críticas ao livro em 2013, feitas por não
acadêmicos, percebe-se a boa recepção do livro ainda nos dias de hoje. Com tantas
críticas e novas publicações, ainda é Goldhagen que atinge os cidadãos “comuns”. A
memória geral do Holocausto – por aqueles que não o viveram - ainda é aquela
atribuidora de culpa e julgamento moral. Ainda é aquela do reconforto que os novos
dias não podem conter em si a maturação de tamanha desumanidade, se não um
holocausto229,algo tão atroz.
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O GOLPE CIVIL-MILITAR DE 1964 E A IGREJA CATÓLICA NA CIDADE
DE CARUARU
John Lennon José da Silva230
Resumo:
O presente artigo é o resultado de pesquisa no PIC (programa de iniciação cientifica) da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru (FAFICA). A pesquisa tomou
como recorte temporal o período da instituição do golpe militar na década de 1960,
tendo como foco o ano de 1964 com a instauração do golpe civil-militar. A pesquisa
desenrolou-se sobre os flashes do cenário político-religioso da cidade de Caruaru no
referido período, e teve como um dos objetos fazer uma análise dos discursos
ideológicos de articulistas e clérigos da diocese de Caruaru, buscando fazer referências
à posição política e ideológica da ala conservadora da Igreja Católica no Brasil na
legitimação da chamada “Revolução de 31 de Março”. Em um contexto marcado pelas
preocupações sociais que permeavam o pensamento de parte do clero católico, e
também pela condenação do socialismo, marxismo e comunismo por parte do
Magistério extraordinário da Igreja Católica.
Palavras-chave: Diocese de Caruaru. Ideologias. Política. Jornal A Defesa. Golpe
civil-militar de 64.
Abstract:
This article is the result of research on PIC (scientific initiation program), of Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru (FAFICA). The research took time frame as
the period of the establishment of military coup in the 1960s, focusing on the year 1964
with the establishment of civil-military coup. The research took place over the flashes of
political-religious city Caruaru in that period, and one of the objects was to make an
analysis of the ideological discourses of writers and clergy of the diocese of Caruaru,
seeking to make references to the political and ideological position the conservative
wing of the Catholic Church in Brazil in legitimizing the so-called “Revolution 31 of
March”. In a context marked by social concerns that permeated the thinking part of the
Catholic clergy, and also the condemnation of socialism, Marxism and communism by
the extraordinary Magisterium of the Catholic Church.
Keywords: Diocese of Caruaru. Ideologies. Policy. The Defense Journal. Coup civilmilitary of 64.
230
Estudante de graduação do 6º período de História pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Caruaru (FAFICA). É aluno-bolsista egresso do NUPESQ no programa de iniciação cientifica 2011-2012, na
mesma instituição.
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INTRODUÇÃO
Prentendendo perceber como a Igreja participou de momentos políticos delicados e
complexos de nossa História recente, o presente trabalho busca analisar as relações
existêntes entre o Golpe civil-militar de 1964, e a mentalidade política de setores da
Igreja na época em sua grande maioria conservadora, tendo como proposta final à
confecção de uma trama da postura da Igreja em relação ao golpe civil-militar que
acabara de se institui no país, principalmente quanto a sua colaboração com a
legitimação. A pesquisa procurou reconstruir factualmente o impacto e repercussão do
golpe de Estado nos círculos conservadores e clero da Igreja Católica na cidade de
Caruaru, município localizado a 130 Km de Recife, que naqueles dias possuía a maior
população do interior do estado de Pernambuco, somando 105 mil pessoas era a mais
importante cidade do interior comercialmente, economicamente, detinha também uma
forte tradição política local.
É interessante mencionar que a tarefa da reconstrução temporal dos anos que
antecederam ao golpe-civil militar e no ano de sua instituição foi produzida a míngua
das poucas fontes escritas que resistiram aos 30 anos de abandono. O trabalho tomou
como ancora para sua edição as preciosas informações sobre o cotidiano e o cenário
político-religioso de Caruaru, expostas nas colunas, artigos e reportagens do jornal “A
Defesa”, semanário de orientação católica que circulou na cidade mantido pela Diocese
de Caruaru, entre os anos de 1932 e 1985. A análise do jornal A Defesa como fonte
documental, tenta perceber como o golpe e sua legitimação político-ideológica
tornaram-se possível a partir de setores conservadores da Igreja Católica em Caruaru,
estrategicamente produzida através da difusão de mensagens de apoio ao golpe e de
desqualificação às esquerdas e ao marxismo.
Por isto, foi necessário e importante ao trabalho o uso e a leitura do jornal A
Defesa para o desenvolvimento da pesquisa e construção do trabalho, tais recursos
facilitam o trabalho com as representações, interpretações e compreensões da época
como considera Montenegro (2010):
Ler esses jornais do período, com representações diferenciadas do universo
social e político de Pernambuco e do Nordeste, é percorrer trilhas que por meio
de notícias e reportagens moldavam, modelavam, instituíam formas de
percepção, de compreensão e de ação em face do que se apresentava como real.
O perigo, o medo, a insegurança eram signos que acompanhavam
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constantemente uma parcela significativa dessas matérias jornalísticas e
concorreram para a efetivação do golpe civil-militar de 1964231.
A pesquisa recorreu ao estudo teórico-histórico, que auxilie na aproximação do
pesquisador com os acontecimentos e impasses que antecederam e se seguiram ao golpe
de 1964, ou que tocam na atuação da Igreja nas décadas de 1940, 1950, em meio a
movimentos laicos ou eclesiásticos que tinham por missão reafirmar o papel da Igreja
na sociedade, e de ação em defesa de seus interesses e princípios. Auxiliado também por
entrevistas com alguns personagens da época, verdadeiros relatos de memória: A
pesquisa procurou levantar informações sobre a postura e nomes no meio católico que
durante o inicio da década de 1960, ajudarão a Igreja em sua colaboração mais estreita
com os militares durante a legitimação do golpe civil-militar ante ao imaginário
político-religioso da sociedade.
O estudo teórico buscou compreender as dimensões histórico-culturais em que
conflitos foram formados ou emergiram tomando como recursos referenciais, fontes
documentais e o trabalho de realizar entrevistas que possibilita a reconstrução de
práticas e impasses destes conflitos. Tendo frente aos olhos que: “a historiografia que
estuda a resistência da Igreja ao regime militar tem centrado primordialmente seu foco
de análise nos discursos e ações de bispos ou em acontecimentos exemplares que
envolveram padres”232.
Foi de enorme desafio historiográfico configurar este pequeno trabalho e fazê-lo
captar as nuanças e conflitos que cercaram a segunda metade do século XX
principalmente os conflitos em que a Igreja Católica, local ou universalmente envolveuse como a contenta com o liberalismo, modernismo e marxismo. Neste último inimigo
declarado da Igreja encontrava-se o maior dos perigos do século XX, o “comunismo”
que na perspectiva de grande parte do clero católico da época era a pior das ameaças à
vida e a missão da Igreja.
Conforme Montenegro (2010) o século XX, é um “tempo” permeado pela
“possibilidade do domínio comunista”, não só no Brasil, mas em toda a América Latina,
o autor considera que:
231
MONTENEGRO, Antonio Torres. História, metodologia, memória. São Paulo: Contexto, 2010, p. 182183.
232
Ibid., História, metodologia, memória. São Paulo: Contexto, 2010, p. 147.
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Pensar no Brasil e América Latina na década de 1960, no contexto da Guerra
Fria e no pós-Revolução Cubana, é reconstruir um tempo em que a possibilidade
do domínio comunista tornava-se uma grande ameaça, principalmente para
sociedades em que as desigualdades sociais constituíam-se numa marca
dominante. (MONTENEGRO, 2010: 142).
É indispensável afirmar que o maior dos desafios para o presente trabalho, foi
procurar entender como a Igreja, constituiu-se teatro de operações políticas, de
“manipulações de símbolos” como diria Balandier233; e de instrumento viável para
legitimação do poder nas mãos de muitos poderosos durante o século XX, tomando
como afirmação para esta colaboração entre a Igreja e um governo instituído as pressas a imagem do famigerado “comunismo”, além da criação de um clima nebuloso de medo
pela “comunização” da pátria que estava em andamento, como defenderam alguns
setores da sociedade no Brasil e alguns religiosos e padres durante os anos finais do
governo de Goulart.
O CLERO DE CARUARU ENTRE O FIM DE 1950 ATÉ 1964
O clero diocesano em particular uma parcela significativa dos padres da hierarquia
local, falo dos que residiam ou exerciam atividades pastorais ou junto à diocese em
Caruaru principalmente os padres que desempenharam papeis de destaque na diocese
constituía-se de sacerdotes que residiam em Caruaru. É tocante aos padres 234 Carlos de
Lira Torres235, Pedro Solano de Lira, Sebastião Rodrigues da Silva 236 e os monsenhores
José Batista Florentino Oliveira 237, Severino Otoni238, Bernardino de Adrião
Carvalho239; uma “postura conservadora” em torno de temas que versavam ideologia
233
BALANDIER, Georges. O Poder em Cena. Brasília: UNB, 1982.
234
Os dois últimos padres citados foram também cônegos da Diocese.
235
Em 1964 o Padre Carlos Lira Torres é o diretor do semanário A Defesa, tendo como responsável pela
sessão editorial do jornal o caruaruense Lenildo Pessoa Tabosa.
236
Entre os anos de (1960-1972) Pe. Sebastião Rodrigues da Silva foi diretor do Colégio Diocesano de
Caruaru.
237
Mais conhecido como Monsenhor Florentino, nasceu em 1942 e faleceu no ano de 1988.
238
Seu nome completo é Severino Otoni da Cruz Gouveia.
239
Nasceu em 1º de março de 1905, em Camaragibe, então município de São Lourenço da Mata, sendo filho
de Heleno Quintino de Carvalho e de Maria das Dores de Carvalho. Foi ordenado em 21 de Dezembro de
1927, pelo arcebispo de Olinda e Recife Dom Miguel de Lima Valverde. Seu apostolado sacerdotal foi
exercido nas paróquias de Vitória de Santo Antão, São Joaquim do Monte, Altinho, Nossa Senhora das Dores
e Capela de Nossa Senhora da Conceição, de Caruaru. Fundou o Grupo de Esperanto Odilon de Araújo e
lecionou História e Gramática da Língua Esperanto. Instalou o Cinema Paroquial em Altinho. Formou núcleo
do Movimento Bandeirante no Nordeste, com a Tropa de Escoteiros Padre Manuel da Nóbrega em Altinho.
Deixou grandes contribuições na área de educação em Altinho fundando várias escolas pela cidade. Cuidava
da Catequese na Diocese, além de ser também seu vigário geral. Trabalhou pelo reconhecimento da
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política e ao catolicismo no decorrer dos anos de 1960. Estes clérigos acima citados,
serão apontados segundo os entrevistados João Bosco Cabral e Guilherme Gomes da
Silva como parte de um “clero mais reacionário”240, ou simplesmente eram “padres
radicais”241.
O clero da cidade é herdeiro de um vivo espírito e mentalidade tradicionalista,
esta herança remonta à atividade de seus primeiros padres e do primeiro bispo
diocesano Dom Paulo Hipólito de Souza Libório242, esta primeira geração hierárquica é
marcada pelo desenvolvimento de práticas claramente conservadores do ponto de vista
religioso ou ideológico e político. É verossímil que no transcorrer do fim de 1950, até os
primeiros anos da década de 1964 o clero da cidade irá se destacar pela posse de um
“clero conservador”. É perceptível esta tradição na hierarquia da cidade, pelo fato, de
ainda na década de 1930; antes da criação da Diocese de Caruaru em 1948, quando só
existia na cidade à Paróquia de Nossa Senhora das Dores. A Igreja localmente registra
na pessoa de seu vigário o Pe. João Tabosa 243 uma postura radicalmente anticomunista
principalmente se tratando de política.
Em 1936 durante a campanha do caruaruense Álvaro Lins para a Câmara dos
deputados através de chapa do Partido Social Democrático (PSD) fez em Caruaru
ferrenha oposição ao candidato Álvaro Lins e aos candidatos de esquerda por meios de
violentas homilias em suas missas que também tinham como alvo o comunismo. Este
fato é recordado pelo escritor caruaruense Assis Claudino: “Pe. Tabosa fez sermões
gigantescos contra os candidatos de esquerda e contra a candidatura de Álvaro Lins, isso
na década de 1930” (CLAUDINO, Assis. Entrevista. Caruaru, 22 de Março de 2012).
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Caruaru (FAFICA) no Conselho Federal de Educação em 1969.
Tendo também na referida instituição exerceu a docência por vários anos, onde também publicou alguns
livros. Destacou-se como sociólogo, filósofo, escritor e jornalista.
240
DA SILVA, Guilherme Gomes. Entrevista, Caruaru, 20 de Abril de 2012.
241
BOSCO, João Cabral. Entrevista, Caruaru, 22 de Março de 2012.
242
Nasceu em Picos, estado do Piauí, a 10 de outubro de 1913. Filho de Carlos de Souza Libório e de Maria
Izabel Ferreira Libório. Em 02 de fevereiro de 1929 ingressou no seminário de Teresina. É ordenado
sacerdote aos 8 de abril de 1939 na Patriarcal Basílica de São João do Latrão no Vaticano. Eleito bispo
primeiro bispo da diocese de Caruaru pelo Papa Pio XII aos 15 de março de 1949, tomou posse no dia em 15
de agosto de 1949 onde permaneceu até o ano de 1959 em que foi transferido para outra diocese. Em 15 de
Agosto de 1950 Dom Hipólito restaurou ao semanário A Defesa.
243
O padre João Tabosa foi um dos assistentes eclesiásticos que fez parte da Comissão Pró-bispado a partir
de 1944 e que mais tarde terminará por ajudar solidamente na criação da Diocese de Caruaru em 7 de agosto
de 1948, pelo Papa Pio XII, através da Bula "Quae Maiori Christifidelium", sendo a Matriz de Nossa Senhora
das Dores a Catedral Diocesana.
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A “REVOLUÇÃO DE 64” E SUA REPRODUÇÃO EM CARUARU
A instituição do golpe civil-militar em 31 de Março de 1964, ganhou às manchetes dos
jornais da maioria das grandes cidades do país, gerando sentimentos de alegria e
animosidade entre os brasileiros. Tais sentimentos se conglomeravam também aos
interesses das forças políticas de direita e esquerda que se propunham a obter o poder
executivo do Brasil. É necessário relembrar que nos anos do governo de Goulart que
antecedem a eclosão da “revolução” de 64 por parte dos militares da Escola Superior de
Guerra (ESG), dos setores mais conservadores da sociedade civil e dos favores da
política externa norte-americana; sobressaiu-se aquele momento pelo um clima de
insegurança política, auxiliado pela assombrosa “ameaça comunista”, a forte atuação a
Igreja entre os leigos e da participação dos católicos com a política em prol da
restauração das velhas ordens que dirigiu a Igreja por muito tempo.
Em Caruaru coube unicamente ao Jornal “A Defesa” mantido pela Igreja à tarefa
de informar a sociedade caruaruense que contabilizava na década de 1960, um total de
105.135244 mil pessoas sobre a “revolução de 31 de Março” como na época foi também
designado o movimento de militares e civis que pós-fim ao governo de Goulart. Apenas
quatro dias após o golpe militar, no dia 4 de Abril de 1964 ocupava a primeira página
do jornal a seguinte manchete “Libertação do país” (veja abaixo todo o texto).
Os últimos acontecimentos ocorridos na Pátria Brasileira neste primeiro de abril
já estavam de um certo modo sendo previstos pelos homens de bom senso.
O clima de agitação, de provocação das massas sempre iludidas, já havia tomado
proporções de uma verdadeira calamidade. Mais ainda em Pernambuco aqui
tínhamos um governo estadual conivente com as pseudo reformas cuja finalidade
principal era entregar o país aos comunistas. Em boa hora o glorioso exercito
brasileiro tendo à frente valorosos comandantes, resolveu de uma vez para
sempre acabar com os oficiais agitadores, os quais se vestiam como amigos dos
trabalhadores, dos humildes e dos camponeses para no fim de tudo entregar a
Nação à Rússia. Se tivesse vencido o clima de insegurança e agitação no Brasil,
não eram os brasileiros que tinham vencido e sim a União Soviética que passaria
a contar mais um Satélite ideológico na América Latina. E desta vez era um
grande Satélite, muitíssimo mais importante do que Cuba.
Em nome da Democracia e das liberdades constitucionais os “nacionalistas”
vermelhos queriam acabar com a verdadeira democracia. Enquanto caminhava
esse processo acelerado de comunização do país, por outro lado, a administração
ia ficando de parte.
No Estado de Pernambuco, como sabemos pela experiência, já não havia mais
tranquilidade para o comércio, industria, proprietários de qualquer natureza.
Não se tinha para quem apelar e por isso aqueles que possuíam seus bens se
preparavam para defendê-los fazendo justiça com as próprias mãos.
244
Dados do escritório do IBGE-Caruaru em pesquisa realizado em 2008, pelo professor e pesquisador José
Daniel da Silva.
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Agora, mudou se a fisionomia política do Estado e do Brasil. Agora, a população
parece exultar de alegria como se um grane peso tivesse saído das costas. Onde
estão os provocadores de greves com o CGT, CONSINTA, Ligas Camponesas e
catervas? O povo portanto fica mais uma vez convencido de que era o próprio
governo que deixava agitar. Quando nas classes armadas viu se também que a
desordem queria imperar, então reagiram à altura os amigos da ordem e da
disciplina, numa revolução sem sangue, sem mortes, sem ódios e sem luta entre
irmãos. Uma revolução branca. Diferente da revolução que os comunistas
queriam fazer: revolução contra Deus e contra a própria Pátria. Ai estão
funcionando as instituições democráticas, o Congresso e os escolhidos pelo povo
nas eleições, mas sòmente os que não tinham o desejo de entregar a Pátria aos
seus agentes do imperialismo soviético. (LIBERTAÇÃO do Brasil, Jornal A
Defesa, Caruaru, 4 abri. 1964, p. 1).
A reportagem como pode ser vista através de sua linguagem expressa elogios ao
“patriotismo dos militares” e a coragem destes em colocar abaixo, através, da
“revolução” o que chamou os conservadores da época de “escalada do comunismo”.
Sobre este espírito anticomunista que se fundava em ideias como a “escalada do
comunismo” tomando terminologia usada pelo A Defesa. Reflete o escritor caruaruense
Assis Claudino que após o golpe de Estado de 1964, foi perseguido pelo governo
militar:
Fizeram do comunismo um bicho papão, o argumento para derrubar o poder: o
comunismo, Jango vai instalar uma republica sindicalista, o comunismo vai
tomar conta do mundo [...] Usaram o comunismo como objeto com o objetivo de
sensibilizar o povo e realmente muita gente sensata, muita gente direita mais não
radicais, empresários, muitos intelectuais bem intencionados [...] realmente se
deixou envolver pelo medo do comunismo e muita gente [...] colaborou com esta
fé de evitar que o país caísse na mão do comunismo245.
Os estudiosos deste período concordam que parte significativa do clero católico
brasileiro apoiou ao movimento dos militares em 1964, dado que este na visão de
muitos bispos colocaria ao fim a “comunização do Brasil”. Isto se explica pela
plasticidade que têm o catolicismo oficial em “se afirmar como poder e, em várias
situações, alia-se ao poder político para combater o liberalismo, o comunismo e
assegurar a ordem na nação Brasileira”246.
Foi exatamente o movimento militar de 1964 que derrubou ao governo de
Goulart, uma destas “situações” que proporcionou a Igreja uma aliança com o “poder
245
CLAUDINO, Assis. Entrevista, Caruaru, 22 de Março de 2012.
246
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves; PASSOS, Mauro (Org.). Catolicismo: direitos sociais e direitos
humanos (1960 -1970). In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Org.). O Brasil
Republicano: o tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 98.
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político” para colocar fim ao “comunismo”. Que para grande parte do clero brasileiro se
constituía um “dragão”247 a ser combatido nos muitos espaços de seus voos, nas
camadas sociais, nos meios universitários, nas produções acadêmicas e jornalistas. Os
militares tornavam-se os soldados que impunham as espadas ante ao “dragão” que
arregimentava acordar e por fim à pátria, ao espírito religioso do povo, e as
propriedades das elites.
A analogia que acabo de produzir, talvez, descreva com simplicidade a trama que
se seguia em torno do comunismo nas décadas de 1940, 1950 e 1960 no Brasil. A
cidade de Caruaru não ficava excluída deste ambiente de animosidade e oposição com o
“dragão” dos conservadores. Dom Augusto Carvalho248 bispo da Diocese de Caruaru
durante todo o governo do militares, assim como grande parcela do episcopado
brasileiro condenava e se opunha ao comunismo. Ele mesmo inseria-se no conjunto
destes bispos dizendo:
Hoje, condenamos o COMUNISMO e com razão. O cristianismo, sobretudo, o
condena porque, não só na teoria mas na prática, aquela ideia recusa Cristo e seu
Evangelho como fontes de luz e de vida, e deprecia, porque materialista, os
valores espirituais. O comunismo construiu um mundo cujo centro é o HOMEM,
não DEUS; “o único Deus do homem é o próprio homem” 249.
Portanto, como pode ser notado às razões pelas quais o bispo de Caruaru
condenava ao comunismo baseavam-se nos clássicos argumentos de oposição ao
cristianismo e incompatibilidade com a doutrina católica como tradicionalmente legava
à teologia da Igreja as teses de Marx e Engels.
Que seja entendida esta aversão ao comunismo, por parte das autoridades
eclesiásticas como habitual às décadas de 1950, 1960. O comunismo na segunda metade
do século XX constituiu-se para a política da Igreja em uma verdadeira ameaça, por
isso, a instituição receava que o avanço comunista, sobretudo a pregação marxista de
que “a religião é o ópio do povo”, fizesse com que ela perdesse definitivamente a
hegemonia não só no Brasil, mas em todo o continente. (MONTENEGRO, 2010: 139).
247
Mais especificamente para muitos católicos o comunismo se constituía em “dragão vermelho”, palavra
que trás alusão a revolução vermelha como é chamada por alguns a revolução bolchevique de 1917.
248
Nasceu em Floresta em 26 de maio de 1917, faleceu em 8 de Agosto de 1997. Foi o segundo bispo da
Diocese de Caruaru tendo exercido seu bispado entre os anos de 1959 e 1993.
249
CARVALHO, Augusto. Pedras e flores do caminho. Caruaru: Edição do autor, 1981, p. 77. Este livro
reúne uma série de crônicas produzidas por Dom Augusto Carvalho para o Jornal A Defesa no decorrer dos
anos de 1971 e 1977.
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Os sentimentos anticomunistas que permeavam o imaginário dos padres no
decorrer de algumas décadas de nossa história, como vimos em capítulos anteriores.
Eram vivos e fortes em Caruaru, outro fato chama a atenção neste sentido, se trata da
expulsão de um aluno secundarista do Colégio Diocesano pelo seu diretor o Pe.
Sebastião Rodrigues da Silva pelo fato de o referido aluno, cujo nome infelizmente
nossa pesquisa não conseguiu registrar, ser comunista. O acontecido ocorreu anos antes
do Golpe de Estado de 1964 como lembra um dos entrevistados “Pe. Sebastião chegou a
expulsar um aluno da escola porque ele era comunista, isso antes do golpe”250.
LOUVORES AO GOLPE CIVIL-MILITAR DE 1964 E AS RELAÇÕES DA
IGREJA COM O PODER ESTABELECIDO
Ao alvorecer o golpe de Estado em 1964, que foi articulado pelos militares da Escola
Superior de Guerra tendo como respaldo as aspirações, sentimentos e interesses dos
setores conservadores da política e sociedade brasileira, além de parte significativa da
Igreja Católica no país. Apoios manifestados publicamente pelos jornais da época e
também pelas Marchas da Família com Deus pela Liberdade251 que se repetiria em
várias capitais e localidades do territorio nacional em comemoração a vitóriosa
“revolução de 64”.
Em Caruaru, por exemplo, a Diocese de Caruaru convocou realização de uma
marcha, atráves do jornal A Defesa:
No próximo dia 1 de maio, dia do trabalho, o povo desta cidade sem distinção de
côr partidária ou credo religioso, fará também a sua triunfal marcha com Deus
pela Liberdade para comemorar a vitória das forças democráticas sobre o
comunismo ateu, [...] Estão sendo convidados todos os educandários, fôrças
armadas, associações de classe, sindicatos, comerciantes e comerciários e todo o
povo em geral. [...] Os organizadores da Marcha, pedem insistentemente o
comparecimento da população para maior êxito do movimento como aconteceu
250
CLAUDINO, Assis. Entrevista, Caruaru, 22 de Março de 2012.
251
A primeira destas marchas foi realizada 5 dias após o comício de João Goulart em 13 de Março de 1964
no Rio de Janeiro, neste Goulart anunciou diversas reformas constitucionais. Logo a “Marcha pela Família
com Deus pela Liberdade” foi uma expressão de descontentamento e protesto da elite e de parte da Igreja
para com as reformas anunciadas por Goulart. Esta foi articulada pelo deputado Antônio Sílvio da Cunha
Bueno juntamente com o padre irlandês Patrick Peyton, contou o apoio do governador Ademar de Barros,
através de sua esposa, Leonor Mendes de Barros. Sendo organizada pela União Cívica Feminina, pela
Campanha da Mulher pela Democracia, e patrocinada pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, (IPES).
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em outras cidades e capitais brasileiras. [...] Às 8 horas da manhã será celebrada
na Igreja da Conceição pelo Mons. Bernardino uma Missa gratulatória. 252
A primeira convocação que fez o jornal marcou data para o dia 1 de Maio, mas na
semana seguinte no dia 2 de Maio, o jornal trazia uma outra notificação sobre a marcha
com Deus pela Liberdade:
Este Jornal noticiou na sua última edição que no 1 de maio seria realizada em
Caruaru, a marcha com Deus pela Liberdade, com a iniciativa dos estudantes.
Tal não aconteceu em razão, do mesmo movimento cívico já ter sido programado
pelas autoridades, como sejam: Prefeitura Municipal, Associação Comercial de
Caruaru, Rotary Club, Câmara de Vereadores e UESC. A data escolhida foi o dia
10 de maio logo depois da aprovação pela Câmara de Vereadores do título de
cidadão de Caruaru ao General Justino Alves Bastos e Coronel Justo Moss. Estes
dois bravos militarem receberam neste mesmo dia o título merecido, no palanque
oficial em praça pública depois da passeata da vitória. Todo povo democrático de
Caruaru está convidado a tomar parte do referido movimento empunhando
cartazes e dísticos alusivos ao acontecimento.
O programa a ser cumprido é o seguinte: 9 hora chegada da caravana; 10 horas –
Missa Campal em frente à Igreja da Conceição; 12 horas – almoço; 14 horas –
desfile e 6 horas – Concentração.
Homenageados: General Joaquim Justino Alves, Comandante do 4 Exército;
Brigadeiro Homero Souto d Oliveira, Comandante da 2 Zona Aérea; Almirante
Antônio Roque Dias Fernandes, Comandante do 3 Distrito Naval; Coronel Justo
Moss Simões dos Reis, Comandante da 22a. C.R.
Convidados: Dr. Paulo Pessoa Guerra, Governador do Estado; Dr. Walfredo
Siqueira, Pres. da Assembleia Legislativa de Pernambuco; Sr. Deputado Augusto
Lucena prefeito do Recife; Wandenkolk Wanderley, Pres. da Câmara Municipal
do Recife; General da 7a. Região Militar; Renato Bezerra de Melo, pres. da
Federação das Indústrias de Pernambuco.
Comissão de honra: D. Augusto Carvalho, Bispo Diocesano; Dr. Drayton
Nejaim, prefeito do Município; Sr. Armando da Fonte pres. da Associação
Comercial de Caruaru; Tem. Antônio Barbosa Bacelar. 253
Como pode ser visto a grande maioria das instituições civis na cidade são
referenciadas na organização da marcha, não podemos também de deixar notar
principalmente que nesta segunda data programa pelas autoridades municipais para
entrega do título de “cidadão de Caruaru”, estava representada a Igreja local por meio
do seu bispo Dom Augusto Carvalho que compunha a comissão de honra do evento.
Não podemos deixar de mencionar também que a Igreja se manifestava
solenemente no evento, através de Missa campal em ação de graças à vitória dos
militares em 1964. Outro órgão de imprensa da cidade na época, o Vanguarda também
confirmou a data para entrega dos títulos aos militares, assim como fez referencia a
252
CARUARU realizará marcha com Deus pela Liberdade. A Defesa, Caruaru, 25 Abr. 1964. p. 1.
253
A MARCHA com Deus pela Liberdade será no dia 10. A Defesa, Caruaru, 25 Abr. 1964. p. 1.
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aprovação de projeto do vereador municipal Elias Soares da Silva que foi aprovado “em
reunião extraordinária realizada no dia 23 de abril”,254 daquele ano.
Foi também durante aquele mês de Maio de 1964 que se realizou no seminário da
Diocese de Caruaru, retiro para todo o clero diocesano, na pauta das conversas
informais entre os padres, estava o momento político que passava o Brasil, foi nos
registrou um dos entrevistados que “haviam entre os padres conversas sobre política,
mas eu não dava tanta atenção para essas conversas”255.
O maior dos atores, entre os padres diocesanos em meio a encontros do clero, era
sem dúvida a figura forte e respeitada de Dom Augusto. Que como já aludimos aqui
possuía ideologicamente com grande parte do clero um espírito anticomunista e dotava
de uma imagem tradicional. Já que “Dom Augusto Carvalho era meio conservador”, 256
na perspectiva do monsenhor Bosco que no mês do golpe civil-militar e também durante
o retiro do clero, se encontrava na Europa, 257 recorda inclusive que foi dias antes a uma
viagem à Alemanha oriental, através, de uma rádio francesa 258 que teve a noticia da
“revolução”259. Na visão do monsenhor Guilherme que reprova 260 o comunismo até os
dias atuais, Dom Augusto “era um bispo moderado que tinha um bom relacionamento
com todos”261.
254
MILITARES receberão títulos. Vanguarda, Caruaru, n. 1610, 1 Mai. 1964. p. 1.
255
DA SILVA, Guilherme Gomes. Entrevista, Caruaru, 20 de Abril de 2012.
256
Ibid., Entrevista, Caruaru, 20 de Abril de 2012.
257
A viagem do Pe. Bosco para Europa, com a finalidade de fazer um curso de sociologia foi em 6 de
Setembro de 1963, como registrou o 2º livro de tombo da Diocese. O jornal A Defesa sob o título de
“Regressou da Europa o Revmo. Padre João Bôsco” de 29 de Agosto de 1964, menciona chegada de vigem
do Pe. Bosco em Caruaru no dia 25 de Agosto e diz que “na sua estada de um ano no Velho Mundo visitou
vários países inclusive a Alemanha Oriental onde esteve com o Bispo de Berlim colhendo informes da vida e
do apostolado entre os comunistas”.
258
Após descrever como recebeu a noticia do golpe civil-militar em Março de 1964, foi perguntado ao
monsenhor Bosco sobre sua reação a noticia, ele enfatizou que: “havia um misto de satisfação e tristeza, por
que naquele tempo o comunismo era um monstro, um bicho papão”.
259
O termo “revolução” foi empregado pelo monsenhor João Cabral Bosco três vezes para designar ao golpe
civil-militar de 1964, durante entrevista quando perguntado sobre sua postura na época “eu era um
moderado”. O sacerdote também considerou que: “eu na época era considerado como avançadíssimo, e não
era”.
260
Quando perguntado sobre sua opinião a respeito do comunismo: “Eu acho que é uma discrepância, vou
utilizar uma palavra da antropologia: considera o homem pela metade, afasta Deus do homem então é uma
coisa esquisita; então nunca aprovei e nem aprovo” (DA SILVA, Guilherme Gomes. Entrevista, Caruaru,
2012)
261
BOSCO, João Cabral. Entrevista, Caruaru, 22 de Março de 2012.
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De fato, Dom Augusto demonstrava um “bom relacionamento” com todos, não só
no seio da Igreja, mas com as demais autoridades caruaruenses da época. Haja vista, sua
colaboração com o poder municipal e também com o evento de concessão de títulos de
“cidadão de Caruaru” aos dois militares referidos pelo A Defesa, cujo era membro da
comissão de honra. No referido dia também celebrou Missa campal em ação de graças à
derrocada de João Goulart e ascensão dos militares ao poder.
Esse “bom relacionamento” em particular também é confirmado por um episodio
que ocorreu dias após o golpe civil-militar de 31 de Março, envolvendo Dom Augusto
Carvalho e o Coronel Justo Moss Simões dos Reis262 comandante da 22ª. Circunscrição
Militar de Caruaru em virtude de nome Pe. Jeová Brasil ter sido levantado para
prisão263. Segundo algumas informações que sobreviveram ao tempo, Dom Augusto
dissera ao Cel. Justo Moss que este fizesse o seu trabalho junto à sociedade, pois que
“dos meus padres cuido eu”264. Mons. Guilherme Gomes também relatou durante sua
entrevista essa pequena contenda entre Dom Augusto e o comandante da 22ª
circunscrição em Caruaru Cel. Justo Moss que desejava prender o Pe. Jeová Brasil, “Ele
o Jeová Brasil não foi preso porque Dom Augusto interviu, eu não sei se Dom Augusto
foi ao comandante ou se mandou chama-lo para falar com ele. Sei que Dom Augusto
não deixou ele ser preso”265.
Mas era comunista o Pe. Jeová Brasil? Ou era um dos muitos personagens que
foram confundidos pelos órgãos de repressão dos militares com “comunistas” ou
suspeitos de “subversão”, pelo fato de desenvolverem qualquer trabalho social com as
classes mais pobres. Nas palavras do monsenhor Guilherme Gomes colega de
262
É apontado como um dos muitos torturados durante o período de governo dos militares por lista divulgada
no site: Documentos Revelados: Disponível em: <http://www.documentosrevelados.com.br/nome-dostorturadores-e-dos-militares-que-aprenderam-a-torturar-na-escola-das-americas/lista-dos-torturadores/>
Acesso em: 13 Ago. 2012.
263
Se de fato, esta prisão do Pe. Jeová Brasil tivesse ocorrido não seria a única. O jornal A Defesa em 4 de
Abril de 1964, publica sob o título de “Tropas do Exército garantem a ordem em Caruaru” pequeno texto em
que menciona vinda de um contingente de soldados do Recife para assegurar ordem pública em Caruaru,
também menciona o jornal “prisões de comunistas” e recolhimento de “material de propaganda vermelha”
efetuadas pelos militares.
264
Informação relatada pela Sra. Nair Silva de 60 anos.
265
DA SILVA, Guilherme Gomes. Entrevista, Caruaru, 20 de Abril de 2012.
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sacerdócio e amigo durante a época, o sacerdote “era um libertador, um revolucionário
[...] Era um esquerdista, não foi preso porque o bispo Dom augusto interviu” 266.
A Igreja naquele momento era parte integrante dos setores da sociedade civil que
manifestavam apoio aos militares, grande parte das instituições civis de Caruaru que
manifestaram sua mais elevada gratidão para com os militares. É valido salientar que
muitos leigos ligadíssimos a Igreja na época, também manifestaram o seu mais alegre
apoio, o que pode ser verificado no mesmo dia 10 de Março, no qual o Círculo Operário
de Caruaru (COC), “prestou vibrantes homenagens às Fôrças Armadas”, 267 estiveram
presentes na reunião o Cel. Justo Moss, homenageado; o Dr. Luiz Pessoa da Silva que
saudou o militar; o presidente da (COC) O Sr. José Rodrigues da Silva e o vereador
Anastácio Rodrigues, representante da Câmara de Vereadores; além de outros
circulistas.
Percebemos assim, que a Igreja local, através de seus membros mais ilustres como
o Dr. Luiz Pessoa da Silva que mantinha uma profunda relação268 com a Diocese e com
Dom Augusto Carvalho, além de ser também diretor da FAFICA 269, se representava nos
demais setores da sociedade, não só, especificamente no evento da marcha e premiação
do general Joaquim Justino e o coronel Justo Moss com os títulos de “cidadão de
Caruaru”, e nos gestos de gratidão da Igreja que celebrava Missa de ação de graças para
com a “revolução” de 1964. Mas onde existisse presença católica, lá estava à postura da
Igreja que se sintonizava com as preocupações suas e de seus filhos espirituais.
Quero concluir este capítulo com uma pergunta que direcionei ao monsenhor
Guilherme Gomes da Silva, sua resposta é um testemunho que demonstra o estado de
alma dos personagens naquela época e o espírito que se seguiria aos anos depois do
golpe civil-militar em 1964. Fiz a seguinte pergunta: “Depois das perseguições do
regime militar aos padres, o Sr. acha que a postura dos padres aqui mudaram”. Eis sua
266
Ibid., Entrevista, Caruaru, 20 de Abril de 2012.
267
Título da publicação do jornal A Defesa em 23 de Maio de 1964 descrevendo o evento da (COC).
268
Quando perguntado durante entrevista sobre esta relação entre Dom Augusto e Luiz Pessoa, monsenhor
Guilherme Gomes considerou que: “Eu sei que um ajudava o outro, é só isso que sei”.
269
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Caruaru que desde sua fundação é mantida pela Diocese de
Caruaru.
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resposta conclusiva: “Você fala aqui em Caruaru, não quem era, era, mas já morreram
todos”.270
CONSIDERAÇOES FINAIS
Após um emaranhado de histórias, acontecimentos, e fatos que integraram nossa
tentativa histórica de trançar um caminho de interpretação e reconstituição dos dramas
que permearam o imaginário da Igreja Católica em todo o mundo na década de 1960,
tornou-se possível filtrar os medos e sentimentos que compunham a mentalidade e
postura da Igreja Católica na cidade de Caruaru, que na mesma década auxiliou o novo
regime que se instaurava, através da produção de discursos que ajudavam na
legitimação do golpe civil-militar de 1964. E acabavam por sacralizar o evento de 1964,
como um ato de “salvação do Brasil”271 de “bravura” da parte dos militares para com a
pátria que “caminhava rumo ao comunismo”, como vimos no decorre de nossa
produção cientifica.
O presente trabalho se pautou pela “reflexão interpretativa das ações humanas” 272,
mas especificamente refletiu sobre as ações de padres e leigos que no decorrer do inicio
da década de 1960, auxiliaram a Igreja no processo de legitimação do golpe civil-militar
de 1964. Portanto, com as várias evidências apresentadas durante o desenvolvimento da
pesquisa, podemos considerar que:
I- Parte do clero caruaruense durante a década de 1960, particularmente os padres
conservadores, apoiaram o golpe civil-militar de 1964, ante ao, que era entendido, não
só entre esta parcela de padres, mas em todo o país como: “perigo vermelho”. A Igreja
fez uso de argumentos que viabilizavam a necessidade de aniquilar a esquerda e
desbaratar os esforços comunistas no país, além de tomar como pano de fundo para seus
pronunciamentos a forte preocupação religiosa com os males do marxismo, que
segundo os conservadores atingiam negativamente a vida e ação da Igreja.
II- A Igreja na cidade reproduziu o golpe através de sua imprensa como um
“movimento revolucionário” que salvaguardava a democracia do país e expurgava o
270
Ibid., Entrevista, Caruaru, 20 de Abril de 2012.
271
Título de matéria do jornal A Defesa em 4 de Abril de 1964 sobre o golpe-civil militar de 1964.
272
ADILSON FILHO, José. A cidade atravessada: velhos e novos cenários na política belojardinense. Recife:
COMUNIGRAF, 2009, p. 227.
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mal do ateísmo. Através, do jornal A Defesa, órgão da Diocese de Caruaru foi enalteceu
ao movimento dos militares em 1964, o jornal também procurou de forma pertinaz
persuadir os fieis católicos em favor da “revolução de 64”.
III- É presente na Igreja, através, de seu veículo de comunicação; o sentimento de
combate para com o progressismo eclesial e com a tentativa de infiltração do marxismo
no interior da Igreja, por meio, da colaboração dos católicos progressistas com o
marxismo. Em seus artigos o jornal apresenta oposição ferrenha entre democracia e o
socialismo e em contrapartida entre o cristianismo e o comunismo. Um dos jornalistas
que teve seus textos reproduzidos em grande número no jornal foi o caruaruense
Lenildo Tabosa Pessoa, colunista do Jornal da Tarde e O Estado de S. Paulo, possuía
grande notoriedade jornalística por nutrir posições anticomunistas, conservadoras e de
apoio ao governo militar durante a década de 1960.
IV- O bispo Dom Augusto Carvalho, padres conservadores e leigos da Igreja,
estes últimos eram compostos por intelectuais, profissionais liberais ou políticos;
auxiliaram, não só na legitimação argumentativa do novo regime inaugurado pelos
militares, mas também com suas respectivas presenças pessoais em cerimônias de
comemoração à vitória dos militares em 1964, organizadas pela sociedade civil em
Caruru, através, de algumas instituições da época como a Câmara de Vereadores, que
premiou militares com títulos de “cidadão de Caruaru”; a Prefeitura de Caruaru que
organizou homenagens aos militares premiados. Que no dia 10 de Maio de 1964, data
de realização do evento contou com o apoio da Igreja, na pessoa de seu bispo que
celebrará Missa em ação de Graças pelo maior acontecimento político daquele ano. O
bispo dias antes também autorizará o jornal A Defesa, a fazer convocação aos católicos
e a sociedade de Caruaru a tomar parte de marcha em comemoração à vitória dos
militares no evento organizado em Caruaru no dia 10 de Maio de 1964.
No decorrer deste artigo, tornou-se perceptível a posição das autoridades
eclesiásticas da cidade em apoiar e colaborar de forma discursiva e cerimonial com a
aceitação do novo governo, promovendo consequentemente legitimação ao golpe civilmilitar de 1964, frente à sociedade. Essa “legitimação” se alinhava perfeitamente à
necessidade que tinham os militares de manter o novo “poder estabelecido”. Segundo
considera o sociólogo francês Georges Balandier, esse poder estabelecido só pode se
realizar e se conservar “pela transposição, pela produção de imagens, pela manipulação
141
VIII Semana de História Política
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de símbolos e sua organização em quadro cerimonial”273. E a Igreja particularmente os
padres conservadores, durante aquela época na cidade; produziu imagens, manipulou
símbolos e foi cerimonialmente peça principal na trama política do imaginário de
muitos caruaruenses.
273
BALANDIER, Georges. O Poder em Cena. Brasília: UNB, 1982. p. 7.
142
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DOCUMENTOS BIOGRÁFICOS: UM RETRATO DA VIDA COTIDIANA DO
IMPÉRIO MÓDULO: GRAÇAS E ORDENS HONORÍFICAS
Júlia Lima Gorges274
Rafael Monteiro de Oliveira Cintra
Renata Fernandes da Silva Nogueira
Resumo:
Através do convênio estabelecido entre o CONARQ e a UERJ, a Divisão de
Manuscritos da Biblioteca Nacional desenvolve o Projeto “Documentos Biográficos:
Um Retrato da Vida Cotidiana do Império – Módulo Graças e Ordens Honoríficas”. O
objetivo é desenvolver um catálogo facilitando a busca e acesso aos documentos
relativos aos títulos honoríficos concedidos pelo imperador. Inicialmente, trabalha-se
com a Ordem da Rosa, que premiava militares e civis por serviços prestados ao Estado.
Essa documentação contribuirá para o desenvolvimento de novas pesquisas.
Palavras-chaves: Documentos Biográficos. Títulos Honoríficos. Império do Brasil.
Abstract:
Through the agreement established between CONARQ and the UERJ, the Divisão de
Manuscritos da Biblioteca Nacional develops the project "Documentos Biográficos: Um
Retrato da Vida Cotidiana do Império – Módulo Graças e Ordens Honoríficas". The
goal is to develop a catalog search and facilitating access to documents relating to
honorary titles granted by the emperor. Initially, working with the Ordem da Rosa,
which was rewarded by military and civilian services to the state. This documentation
will contribute to the development of new research.
Keywords: Biographical Documents. Titles honorary. Empire of Brazil.
O PROJETO
Com o objetivo de recuperar documentos referentes aos registros de estrangeiros no
Brasil, documentos referentes às solicitações de privilégios indústrias e documentos que
dizem respeito aos pedidos e concessões de graças e ordens honoríficas no conjunto
conhecido como coleção Documentos Biográficos, proveniente da Secretaria dos
Negócios do Império, foi apresentada à Seção Brasileira da COLUSO, realizada no dia
17 de janeiro de 2012, proposta para o desenvolvimento do projeto Documentos
Biográficos: Um retrato da vida cotidiana do Império, que abrange três módulos:
Estrangeiros, Privilégios Industriais e Graças e Ordens Honoríficas. Este projeto tem
274
Graduandos do 6º período em licenciatura em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro/
Faculdade de Formação de Professores, Bolsistas UERJ/CETREINA
143
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como objetivo proceder à revisão dos documentos da coleção, a fim de elaborar um
inventário temático, facilitando a busca e o acesso aos pesquisadores.
Atualmente, está sendo trabalhado o módulo Graças e Ordens Honoríficas, no
qual se busca a documentação que contenha os pedidos e concessões de graças, títulos,
ordens e favores ao soberano que eram mediados pela Secretaria de Estado dos
Negócios do Império. Todo o fundo proveniente desta secretaria se encontra na coleção
Documentos Biográficos:
Os assuntos relativos à graças e ordens honoríficas [...], por exemplo, guardam a
rotina das práticas interativas entre a Corte e o Estado, a permanente barganha
por distinções honoríficas como títulos de nobreza e lugares nas ordens militares
e religiosas, por funções e empregos públicos [...] e lugares na máquina
administrativa ou por tipo de vantagens (como as cartas de sesmarias), franquias,
privilégios, liberdades e isenções. O Tribunal do Desembargo do Paço emitia as
devidas Provisões das Ordens de Cristo, São Bento de Aviz e São Tiago da
Espada [...]275
METODOLOGIA
A coleção denominada Documentos Biográficos é formada por um conjunto adquirido
no final do século XIX, proveniente do Arquivo da Secretaria dos Negócios do Império.
Atualmente, essa coleção ocupa um espaço de 29 arcazes, perfazendo um total de 1.044
gavetas, ou 180 metros lineares. Reunindo requerimentos de graças honoríficas,
privilégios industriais e outros assuntos concernentes à jurisdição do Ministério do
Império, foi organizada, inicialmente, em ordem alfabética de requerente, tendo seu
arranjo refletido em um índice alfabético pelo prenome, datilografado e encadernado e
11 volumes.
Toda essa documentação passou por um processo de revisão do tratamento
técnico a partir da década de 1980, resultando na produção de inventário topográfico,
índice temático, índice onomástico e digitação, já na década de 1990, de 90.000 fichas
manuscritas. Hoje seus registros podem ser acessados na página web da Biblioteca
Nacional.
As etapas do trabalho realizadas pelos estagiários do Projeto consistem em:
275
MALERBA, Jurandir. Jóias da Casa Real. O Arquivo Nacional e a História Luso – Brasileira – Casa Real
– Comentário. http://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br. Acessado em 01/10/13.
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1. Pesquisa em todos os registros da Coleção para selecionar os documentos
referentes ao tema, no caso, Ordem da Rosa.
2. Revisão da descrição e conferência dos documentos.
3. Acondicionamento em novas capas, visando a melhor conservação dos
documentos.
4. Inserção dos registros revistos e corrigidos na base de dados.
5. Publicação do inventário.
AS ORDENS HONORÍFICAS
Desde o século XV eram concedidas em Portugal graças honoríficas àquelas pessoas
que as solicitassem ou fossem consideradas merecedoras, por terem prestado serviços ao
Estado, à Família Real, etc. Tais graças constituíam honrarias não pecuniárias, que
podiam ser requeridas, propostas ou concedidas espontaneamente pelo governo. Sua
concessão não exigia nenhum pressuposto anterior: nobreza, prova de sangue, etc.
Quando conferidas, no entanto, atribuíam a seu portador certas distinções. No Brasil,
começaram a ser constituídas em 1808 com a vinda da Família Real portuguesa e são
extintas em 1891. São graças honoríficas, os brasões de armas de nobreza e fidalguia, as
medalhas humanitárias, as ordens honoríficas, os títulos de nobreza, os títulos de
conselho, os foros de fidalguia, os ofícios das casas Real e Imperial e os tratamentos e
títulos de real e imperial concedidos a empresas. Os pedidos e concessões de graças,
títulos, ordens e favores ao soberano eram mediados pela Secretaria de Estado dos
Negócios do Império, principal órgão administrativo estabelecido.
As ordens militares portuguesas foram distribuídas em larga escala por D. João VI
e, posteriormente por D. Pedro I. Passou-se a existir a Imperial Ordem de Aviz,
a Imperial Ordem de Cristo e a Imperial Ordem de Santiago da Espada. A partir de 1843
foram “nacionalizadas” por D. Pedro II, passando estas a serem consideradas “Ordens
Imperiais brasileiras”, com caráter civil e político. A partir daí, pela primeira vez, desde
1822, foram regulamentados seus graus, além de terem sido modificadas suas cores e
fitas.
Além das ordens citadas acima, foram criadas outras, como a Imperial Ordem da
Rosa, a Imperial Ordem do Cruzeiro e a Ordem de Pedro Primeiro, considerada a mais
145
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rara de todas as ordens brasileiras do período imperial. Todas as seis ordens foram
criadas ainda no Primeiro Reinado.
Contabilizando-se as quatro principais ordens durante os cinquenta e sete anos
do Segundo Reinado – de Avis, de Cristo, da Rosa e do Cruzeiro --, D. Pedro II do
Brasil condecorou em torno de 25.109 pessoas, entre nacionais e estrangeiros.276
A ORDEM DA ROSA
Nos anos de 2012 e 2013 foram conferidos documentos referentes à Ordem da Rosa na
Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Esta é uma ordem honorífica criada
pelo imperador Pedro I, na década de 1820, com o objetivo de perpetuar a memória de
seu casamento com Amélia de Leuchtenberg.
A Ordem da Rosa foi concedida durante o Primeiro e Segundo Reinados e foi
extinta após a proclamação da República no Brasil. Durante o período do Império houve
uma grande distribuição desta comenda. A maior parte delas durante o Segundo
Reinado. Esta Ordem possuía também um caráter civil, sendo continuamente usada para
condecorar pessoas ligadas à arte em geral. Nos anos finais do império, D. Pedro II
buscou usá-la como “moeda de troca”, com o objetivo de incentivar fazendeiros a
alforriar seus escravos.277
No acervo encontrado na Fundação Biblioteca Nacional, na Divisão de
Manuscritos, encontra-se um total de 2580 documentos referentes à Ordem da Rosa,
incluindo requerimentos, ofícios, procurações, cartas, alvarás etc. Foram concedidos
tratamentos e honras militares, tais como: grão cruz, dignitário, comendador, oficial e
cavaleiro.
Ao realizar a análise desses documentos, foi possível perceber que durante o
período da Guerra do Paraguai (1864-1870) houve um aumento da concessão da Ordem
da Rosa. Verificou-se também um grande número de requerimentos de pessoas que
estavam na guerra, solicitando prestarem através de procuradores os devidos juramentos
à Ordem. Tal fato se justificaria pela não existência de uma medalha específica para os
276
POLIANO, Luís Marques. Heráldica, pág. 372. Ed. GRD. Rio de Janeiro, 1986.
277
POLIANO, Luís Marques. Imprensa Nacional – 1943; SANTOS, Francisco Marques dos. A Guerra do
Paraguay na Medalhística Militar Brasileira. 1937; LAGO, Laurenio – coronel. Medalhas e Condecorações
Brasileiras – 1935.
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atos de bravura durante a Guerra, tendo em vista que estes também almejavam um
reconhecimento pelos trabalhos prestados nela.
RESULTADOS E PERSPECTIVAS
O trabalho referente à Ordem da Rosa está na fase de inserção dos registros na base de
dados, para, posteriormente, ser organizado um inventário a ser publicado nos Anais da
Biblioteca Nacional.
Este projeto viabilizará a completa disseminação dessas informações, que se
encontram reunidas nessa coleção, através da elaboração de instrumentos de pesquisa –
base de dados on-line e impresso – o que facilitará a busca dos usuários do acervo de
manuscritos da Biblioteca Nacional.
A importância deste projeto está em promover melhores condições de pesquisa a
um tema pouco abordado pela historiografia brasileira, limitando-se a obras
enciclopédicas que visavam à publicação de coletâneas de legislação e breves resumos
históricos sobre o tema, sendo que os estudos se tornam mais escassos quando se
referem ao período do império.278
278
SILVA, Camila Borges da. As comendas honoríficas e a construção do Estado Imperial (1822-1831).
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011. Acessado em 03/10/13.
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A CONFEDERAÇÃO ABOLICIONISTA E O ABOLICIONISMO NA CORTE

Júlio Cesar De Souza Dória
Resumo:
Os debates sobre a abolição da escravidão no Império do Brasil, desde os anos 1870,
levantaram temáticas concernentes às reivindicações e propostas apresentadas por
intelectuais do país. Estes intelectuais apresentavam projetos de nação que almejavam
levar a nação ao estágio civilizatório dos principais Estados-nação europeu, e neste
sentido, a Confederação Abolicionista, enquanto rede de sociabilidades, capaz de
congregar alguns intelectuais, desenvolveu um projeto de nação próprio, destinado à
inserção social dos libertos.
Palavras-Chave: Abolição – Intelectuais – Confederação Abolicionista
Abstract:
The debates on the abolition of slavery in the Empire of Brazil, since the 1870s, raised
issues concerning the claims and proposals presented by intellectuals of the country.
These intellectuals had national projects which sought to take the nation to the stage of
civilization of the major European nation-states, and in this sense, the Abolitionist
Confederation as a network of sociability, able to gather some intellectuals developed a
national project itself, for the insertion social freed.
Keywords: Abolition – Intellectuals – Abolitionist Confederation
Ao longo do século XIX no Brasil a escravidão e suas consequências – fossem sociais
ou econômicas – foram tópicos recorrentes nos debates sociais e políticos desde José
Bonifácio e João Severino Maciel279 durante o Primeiro Reinado. O encaminhamento de
chamada questão servil, até meados dos anos 1870, era adequado às necessidades do
setor agroexportador – mormente o cafeeiro do sudeste do Império –, e nesse sentido,
era caracterizado pela defesa de uma emancipação gradual da escravidão de forma a não
prejudicar economia da “grande lavoura”. Esta postura fora definida como
emancipacionista em oposição ao abolicionismo encampado a partir de fins dos anos
1870 – emblemático nesse sentido foi o discurso do deputado baiano Jerônimo Sodré
que reintroduziu no cenário político-parlamentar do Império do Brasil uma proposta
objetivando o fim imediato da escravidão em todo território brasileiro280.

Mestrando em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (Capes).
279
COSTA, Emília Viotti da. A Abolição. 7ª ed. São Paulo: Global, 2001. p.20
280
CONRAD, Robert. Os Últimos Anos da Escravatura no Brasil. Tradução de Fernando de Castro Ferro Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.pp.166-167
148
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No tocante aos círculos decisórios – a elite imperial281 -, gradativamente
aumentaram as diferenças econômicas e políticas entre os fazendeiros do nordeste e
sudeste. Diante da relativa independência de alguns setores da economia do Império em
relação à mão de obra escrava, foi possível emergir no parlamento um crescente
combate à escravidão, tendo como consequência uma campanha política e social
destinada à efetiva resolução da questão escravista, não mais em caráter protelatório ou
gradual, mas sim de forma objetiva. Assim, as críticas de Jerônimo Sodré em relação à
morosidade e ineficácia das leis emancipacionistas - mormente a Lei de 1871 - são
acompanhadas de propostas voltadas para a extinção imediata da escravidão.
Concomitante às propostas e debates parlamentares também aumenta a mobilização da
sociedade em torno da questão servil, que passa a ter novos contornos, iniciando a
chamada Campanha Abolicionista.
Assim, a partir de fins dos anos 1870 e ao longo da década seguinte a campanha
abolicionista – conjunto de práticas empreendidas por clubes, associações, indivíduos e
sociedades destinadas à desestruturação do sistema escravista, através da propaganda na
imprensa e em livros, conferências públicas, saraus, meetings, discursos no parlamento
e em logradouros públicos, além da alforria coletiva de escravos entre outras práticas –
tornou-se elemento fundamental na desarticulação do sistema escravista no Império.
A década de 80 do século XIX reflete então uma imagem marcada pela agitação
social e os embates políticos acalorados em torno da escravidão. Houve uma crescente
polarização da sociedade imperial – mormente na Corte – entre abolicionistas e
escravistas de tal forma que as violências e agressões recíprocas se tornaram uma
constante neste cenário de crise do sistema. Nesse contexto, na medida em que a perda
de espaço e do ideário emancipacionista em relação às propostas e ideias de
abolicionistas torna-se inevitável, a dinâmica da campanha abolicionista perde coesão
nas ações e projetos destinados à supressão do cativeiro, de tal forma que é possível
encontrar abolicionismos dentro do movimento.
Nesse contexto de embates e profusão de ideias surge a Confederação
Abolicionista, em maio de 1883. Já em 11 de agosto do mesmo, é assinado o Manifesto
281
CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: A elite política imperial. Teatro de Sombras: A
política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. pp.19-20
149
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Abolicionista282 por representantes das primeiras associações, grupos, clubes e
instituições que compuseram a Confederação. Dentre os representantes da Confederação
Abolicionista e signatários do Manifesto podemos destacar: João Clapp, José do
Patrocínio, André Rebouças e Joaquim Nabuco283.
A Confederação expressa em seu manifesto284 um repúdio à escravidão e elenca
motivos plausíveis - segundo seus argumentos – para a abolição imediata da escravidão,
endereçada aos “Representantes da Nação”. Alicerçado em argumentos jurídicos e
históricos, o Manifesto é um pedido de criação e execução de uma lei que extinguisse a
escravidão no Brasil. Apesar do documento tratar diretamente da questão escravista no
país, não é encontrado as diretrizes da Confederação em relação aos seus integrantes – o
Manifesto se direciona aos “Representantes da Nação” e não propõe uma orientação
ideológica ou pragmática para seus integrantes -, essas podem ser identificadas desde o
início do mês de maio de 1883 nas páginas do Jornal Gazeta da Tarde, que dentre outras
funções e objetivos a que se destinava, funcionava como propagandista e difusor das
ideias, pensamentos e práticas da Confederação.
A edição do dia 18 de maio de 1883 enfatiza a obrigatoriedade de todos os clubes
e associações emancipacionistas que compunham a Confederação em tornarem-se
abolicionistas, pois deveriam adotar “medidas que levassem o temor a escravistas” e
por último, concitava os integrantes da instituição a abandonar “o discurso
sentimentalista” e exigiam do Império “uma resolução imediata da questão servil no
país285”. Essas orientações bem como os projetos abolicionistas e a ações voltadas para
a libertação de escravos, entre outras, feitas pela Confederação são frequentemente
apresentados nesse jornal. No século XIX, a imprensa e a propaganda – por meio desta
– ganham um acentuado destaque na vida pública dos centros urbanos. Assim, a
estratégia da Confederação em publicar assuntos, ideias e propostas de seu interesse em
um jornal da Corte garantia uma maior visibilidade de seus projetos a um número cada
vez maior de pessoas, que possivelmente, poderiam se solidarizar e engrossar as fileiras
282
Manifesto Abolicionista. http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/82010
283
Idem.
284
Ibdem.
285
Jornal Gazeta da Tarde, 18 de maio,1883.
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não só do movimento como da própria Confederação, que admitia sócios contribuintes e
colaboradores eventuais.
A Confederação era formada por intelectuais286 que gestavam suas ideias e
práticas voltadas para os interesses e necessidades locais, mas, alinhada aos parâmetros
intelectual cosmopolita. De fato, no decorrer dos anos 1870 e 1880 emergia no cenário
político e social do Império uma nova geração de intelectuais com aspirações e
formações diferentes de seus antecessores. A geração que atravessou o Primeiro
Reinado, o período das Regências e consolidou a monarquia, com a implantação do
Segundo Reinado, tinha como objetivos primordiais a estabilização política e
manutenção da ordem hierárquica herdada do passado colonial, assentada na escravidão
e na posse da terra, através, da centralização do poder na formação de um Estado
essencialmente burocrático287.
Esses intelectuais da geração de 1870288 não encontravam espaço na participação
política institucional e percebiam de forma negativa os valores herdados da tradição
ibérica, sobretudo, a concepção patrimonialista do Estado e uma centralização política
baseada nos valores da tradição católica barroca. Deste modo, alijados das posições de
destaque e comando na sociedade imperial entre meados dos anos 1860 e ao longo da
década seguinte - além de perceberem as dificuldades e barreiras impostas quando não
vedadas às possíveis oportunidades de inserção na política e de atuação regular em suas
áreas profissionais289 que possibilitassem uma autonomia financeira e reconhecimento
social-, emergem a necessidade de criação e divulgação de projetos capazes de extinguir
os valores e hábitos considerados atrasados e inadequados ao seu tempo. E em última
análise, esses projetos configuravam uma estratégia de inserção desses intelectuais em
postos chaves e importantes em suas áreas de atuação profissional e política.
Os projetos de reforma social, política e econômica gestados por esses intelectuais
alinhavam-se a um cosmopolitismo legitimador de suas proposições. Embasados em
286
SIRINELLI, Jean-Françoise. Os intelectuais In: Por uma história política. Rio de Janeiro, pp.242-244.
287
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: A formação do estado Imperial. São Paulo: Hucitec,
2004. pp.207-211
288
ALONSO, Angela Maria. Ideias em Movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil Império. São Paulo:
Paz e Terra, 2002. pp.21-22.
289
Idem, pp.97-101.
151
VIII Semana de História Política
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teorias cientificistas, que explicava e justificava o progresso material e intelectual dos
Estados europeus, os intelectuais da geração de 1870 identificaram a problemática da
formação da nação brasileira como o ponto chave para a modernização do país,
consonante aos padrões de progresso e civilização europeus. Porém, a lógica do
pensamento intelectual brasileiro de fins do século XIX encontra-se na aplicação das
ideias gestadas e difundidas no continente europeu ou nos Estados Unidos da América,
de forma adaptada às especificidades, necessidades e disputas políticas e intelectuais
locais.
Assim, os projetos apresentados por esses intelectuais tendem a pensar na Nação
brasileira desejada e nesse sentido, podemos identificar de forma genérica ao menos três
modelos político-sociais responsáveis pelo embasamento dos projetos de nação e
reforma do Império do Brasil em fins do século XIX, são eles: o modelo republicano
norte americano, o monárquico parlamentar inglês ou francês – em referência a
Napoleão III – e as monarquias liberal alemã e italiana. A pluralidade de projetos
destinados à reforma ou mesmo transformação do Brasil nesse período estavam
atrelados às filiações politicas e intelectuais estabelecidas por intermédio de leituras e
mesmo viagens aos países analisados e destacados, que permitiam vislumbrar na prática
as realidades apresentadas em livros e periódicos. E nesse contexto, a apreciação de
temas como raça, nação, progresso e civilização eram comuns a todos eles.
As diferenças de projetos de construção nacional passavam também pela forma na
qual seria resolvida a questão do trabalho escravo no Império, já que, segundo as teorias
econômicas e sociais desenvolvidas ao longo do século XIX na Europa - que apontavam
para o progresso material e econômico de um Estado-nação - era incompatível com as
formas de organização socioeconômica escravista – identificadas com o atraso social e
econômico. Nesse caso, o Império do Brasil estava em oposição aos modelos em que se
alicerçavam as sociedades industrializadas e civilizadas da Europa e Estados Unidos na
qual se baseavam e pretendiam alcançar, pois, a Economia do império estava baseada na
herança colonial da grande lavoura - e principalmente nos privilégios econômicos e
sociais concedidos ao setor agroexportador cafeeiro.
Os parcos incentivos do Estado imperial a setores considerados modernizantes da
economia, como a indústria e o comércio, em oposição à preponderância concedida ao
setor agroexportador eram identificados como a principal causa de atraso do país –
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sobretudo por alicerçar-se na mão de obra escrava como força de trabalho, decorrendo
dai uma série de questionamentos sobre a sua eficácia e desdobramentos sociais que
degeneravam a Economia e a sociedade brasileira. Logo, e como ponto em comum, a
maioria dos intelectuais brasileiros identificava o sistema escravista como o principal
responsável pelo atraso econômico e social – englobando os aspectos culturais da
sociedade – do Império, e nesse sentido, os projetos voltados para o fim da escravidão e
consequentemente o sistema político capaz de levar a nação ao progresso material e
moral, deveria ser a primeira medida para que o Império alcançasse os status de nação
civilizada.
Diante desse aspecto, o debate sobre a raça e a consequente apreciação do tipo
ideal para a construção de uma nação viável290 polarizaram os defensores da
miscigenação e do negro ora como um fator pouco relevante – às vezes até positivo – da
formação do tipo étnico nacional e ora - por outro lado - como defensores de um
branqueamento da nação – objetivando com o tempo neutralizar os traços físicos e
valores morais concernentes aos negros e consequentemente transmitidos à nação, por
intermédio do intercurso sexual, vistos então, como prejudiciais ao desenvolvimento da
nação por ser moral e culturalmente degradantes.
Dentre as motivações que deram origem a este debate no século XIX estão as
construções das nações – e como seu legitimador um Estado que a representasse e
defendesse – e as justificativas imperialistas e neocolonialistas por parte dos Estados
industriais europeus em submeter populações inteiras, consideradas atrasadas, a partir
de um arcabouço intelectual e mental racialista. Em relação ao Brasil, esse paradigma
racialista pelo qual se analisava cientificamente as formações nacionais e suas possíveis
(re)construções, destacava-se por um certo pessimismo devido ao caráter miscigenado
da nação a partir da fusão da três raças: indígena, negra e branca, apesar de haverem
vozes dissonantes291.
290
Ver HOBSBAWN, Eric J. Nações e Nacionalismos: desde 1870. Tradução de Maria Celia Paoli e Anna
Maria Quirino. São Paulo: Paz e Terra, 1990. pp.125-153. A viabilidade da nação seria um dos critérios
adotados por intelectuais e dirigentes de Estados europeus, para avaliar a legitimidade e mesmo o poderio
econômico e social de nações e Estados que surgiam em fins do século XIX na Europa.
291
ANDREWS, George Reid. América Afro-latina:1800-2000. Tradução de Magda Lopes. São Carlos:
Edufscar, 2007. pp. 151-186.
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Neste contexto, partindo da premissa que a criação de projetos para o Império
passava necessariamente sobre a temática da nação – ou seja, como e o que esta nação
deveria ser e do que dela poderia se esperar a partir de seus elementos (raças)
formadores – e esta seria definida essencialmente pelas características de seus
elementos étnicos formadores, alguns intelectuais brasileiros, dentre eles, Silva Rocha,
Visconde de Taunay, Joaquim Nabuco, André Rebouças, Silvio Romero, e entre outros,
emitiam suas opiniões, ideias e projetos sobre o Império a partir de um viés direcionado
para reconstrução da nação em sentido latu, englobando os aspectos políticos,
econômicos e sociais do país.
As ideias e projetos defendidos por esses intelectuais identificavam no Brasil um
atraso cultural e econômico em comparação com os modelos civilizacionais da Europa e
Estados Unidos, e por isso, projetavam a nação brasileira num tempo futuro a se
construir292, alicerçado em aspectos científicos capazes de levar o país a um progresso
material e cultural que iria alça-lo ao patamar de nação civilizada. Nesse cenário, os
discursos políticos e sociais destinados à formulação dos projetos capazes de
modernizar o país, passaram a repercutir nas sessões parlamentares e nos debates sociais
– originado inclusive a criação de sociedades e instituições de ambos os matizes –, e a
campanha abolicionista foi uma das tópicas fundamentais desta perspectiva de
reformulação e (re)construção da nação. Pois, o encaminhamento da questão relativa ao
fim da escravidão configurava um ideal por parte da maioria dos intelectuais do
Império, caracterizado pela reforma de suas instituições e da sociedade - em última
instância -, se tornando a meta inicial para construção de um projeto de nação capaz de
modernizar o Império brasileiro.
É nesse contexto que os intelectuais André Rebouças e Joaquim Nabuco, ao
analisar o problema da escravidão na sociedade brasileira, conseguiram de certa forma,
desenvolver pontos importantes concernentes a um projeto de nação. Através de suas
obras principais293, ambos propuseram uma modernização do país tendo como ponto
292
PERES, Wilma Costa. Viajantes europeus e o escrever da nação brasileira. In: Marco A. Pamplona e Don
H. Doyle. (Org.). Nacionalismo no Novo Mundo - a formação de estados-nação no século XIX. 1ed.Rio de
Janeiro: Record, 2008, v. 1, p. 299-327.2008: pp.300-325
293
REBOUÇAS, André. Agricultura nacional: estudos econômicos, propaganda abolicionista e democrática.
Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 1988.
NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo: Vozes, 2012.
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inicial a abolição da escravidão. Ao unirem-se com João Clapp, Joaquim Serra, João
Serpa Jr., José do Patrocínio entre outros intelectuais, para fundar a Confederação
Abolicionista estabeleceram uma rede de sociabilidade 294 voltada promover a
propaganda abolicionista e desenvolver em conjunto projetos de nação para o Brasil.
Assim, essa rede de sociabilidade formada em torno e a partir da Confederação
Abolicionista, permitiu a troca de ideias e opiniões sobre os principais temas ligados às
transformações e reformas pelas quais - segundo os intelectuais que a compunham – o
país deveria passar, para o alcance do progresso econômico e social semelhante às
principais potências capitalistas e os Estados civilizados da Europa. As divergências e
pluralidades de ideias em torno de uma associação de tais características possibilitava a
troca de experiências sociais, políticas e culturais bem diversas, pois, leitmotiv desta
união era o fim imediato da escravidão. Mas, a forma pela qual ocorreriam as mudanças
ou reformas no país após a abolição apresentava-se como um ponto de divergência
comum entre esses intelectuais295.
As características de Agricultura Nacional de André Rebouças e o Abolicionismo
de Joaquim Nabuco são emblemáticos para a percepção de divergências em relação aos
propósitos da Abolição e da consequente adaptação dos libertos na sociedade imperial.
Enquanto a preocupação de Rebouças estava voltada para a autonomia social e
econômica do negro no pós-abolição, a perspectiva de Nabuco direcionava-se para uma
inserção social do liberto, por intermédio da educação, objetivando apagar as marcas
degenerativas causadas pela escravidão na raça submetida ao cativeiro 296.
Em comum, esses intelectuais identificavam a escravidão como a responsável
pelos vícios e inferioridade do negro em relação ao branco, ou seja, segundo Rebouças e
Nabuco, a origem dos males atribuídos e reproduzidos pelos escravos e libertos eram a
294
Op. Cit. SIRINELLI,2007: pp.248-250. Para Sirinelli as redes de sociabilidade são formadas por
indivíduos com experiências pretéritas e contemporâneas, objetivos e anseios em comum, que por meio de
uma relação de trocas e interdependências formam uma espécie de grupo, associação ou pequena
comunidade de interesses específicos. Podemos pensar a Confederação como um espaço no qual houve a
formação de redes de sociabilidade Essa perspectiva tem se mostrado bastante fecunda, tendo em vista que
permite mapear um espaço social objetivo, ou seja, organizacional, tais como:- Escolas, Universidades,
Associações Intelectuais, Jornais, Revistas, Editoras, etc, que possibilitam observar a produção e circulação
de ideias, esclarecendo as questões políticas e intelectuais surgidas em determinado período e lugar.
295
CARVALHO, Maria Alice Rezende. O quinto século: André Rebouças e a construção do Brasil. Rio de
Janeiro: Revan-iuperj, 1998.pp. 215-233.
296
NABUCO. Joaquim. O Abolicionismo. Petrópolis: Vozes, 2012.p.12
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herança dos trezentos anos de escravidão aos quais estiveram submetidos. Contudo,
suas interpretações e alternativas para resolução de tais questões estavam inseridas em
uma lógica voltada para o alcance da civilização e do progresso como metas da nação
brasileira.
A partir da criação da Confederação Abolicionista os intelectuais que a
compuseram redefiniram a noção de abolicionismo. Inicialmente essa perspectiva
representava apenas o fim imediato da escravidão, enfim a abolição da escravidão.
Porém, ao incorporarem suas ideias e projetos nas propostas e campanhas
abolicionistas, estes intelectuais alargaram a noção de abolicionismo como um conjunto
de reformas e práticas que deveriam acompanhar o fim da escravidão. Nesse sentido, o
abolicionismo da Confederação Abolicionista representava um projeto de nação para o
Brasil, que em última instância representava um conjunto de reformas pelas quais o
Império deveria passar para adequar-se à modernidade industrial e civilizacional
europeia e norte-americana.
A Confederação Abolicionista promovia uma série de ações e adotava um variado
conjunto de práticas destinadas à contribuição para o fim da escravidão, além de
guardarem uma estreita relação com os projetos apresentados e defendidos no jornal A
Gazeta da Tarde entre os anos 1883 e 1887. Nesse sentido, a Confederação organizava
encontros literários, artísticos e musicais voltados para as temáticas abolicionistas ou
apenas objetivando angariar recursos para o financiamento de suas ações297.
Os representantes e componentes da Confederação também realizavam palestras
públicas de forma espontânea na rua ou através de conferências em teatros e clubes 298,
além de comparecerem em sessões da Câmara para pressionar os deputados sobre a
elaboração e aprovação de leis destinadas ao fim da escravidão. Alguns membros desta
rede de sociabilidade também exerceram cargos parlamentares durante a campanha
abolicionista e através do parlamento buscavam também promover o fim da escravidão.
O caráter legalista da Confederação e de seus componentes é constantemente destacado
na historiografia a cerca do tema da abolição e do abolicionismo. Sobretudo, pelas
297
Jornal Gazeta da Tarde, 18 de maio de 1883. Mais a frente definirei quais eram estas ações
298
< http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/174470/000119432.pdf?sequence=1>
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origens sociais de seus integrantes e por seus discursos e textos – livros ou artigos -, que
publicamente defendiam tal perspectiva.
Porém, a Confederação Abolicionista era composta por diversos clubes
abolicionistas de quase todas as províncias do Império. E o caráter confederativo
permitia que os representantes e componentes de cada clube agisse de forma livre e
independente, no tocante a organização e execução de suas ações voltadas para a
contribuição do fim da escravidão em suas respectivas províncias. Contudo, algumas
diretrizes da Confederação que eram expostas e veiculadas no jornal Gazeta da Tarde,
deixavam clara duas recomendações aos clubes abolicionistas que a ela estavam
filiados, eram elas: promover o terror aos escravistas e abandonarem o
emancipacionismo em favor do abolicionismo299.
Assim, a pretensa ingenuidade ou incoerência dos Confederados pode ser
esclarecida, ao identificarmos a relação estabelecida entre os sr. Seixas – dono do
Quilombo do Leblon – com os representantes da Confederação Abolicionista300. O
Quilombo do Leblon funcionava como esconderijo e pouso momentâneo para escravos
fugidos de várias regiões do país. Lá, eles permaneciam o tempo suficiente para
recobrar a saúde e acalmar os ânimos de seus senhores, que os procuravam com seus
respectivos capitães do mato e também, através, dos anúncios de jornais. Após esta
estadia - que variava em cada caso – os escravos fugidos eram encaminhados para
escolas noturnas, de propriedade de clubes e indivíduos abolicionistas, além de
ocuparem profissões em estabelecimentos urbanos ou fazendas de abolicionistas301.
Joaquim Nabuco – considerado elitista e um dos maiores defensores da legalidade
na abolição da escravidão –, estava igualmente envolvido na orientação e criação de
planos de fugas de escravos302, descortinando uma ampla rede abolicionista preparada e
destinada para a promoção da fuga e libertação de escravos em grande parte do Império.
Logo, as ações da Confederação alinhavam-se às práticas comuns adotadas pelos
299
Op.cit. Gazeta da Tarde.
300
SILVA, Eduardo. As Camélias do Leblon e a Abolição da Escravatura: Uma investigação de história
cultural. São Paulo:Companhia das Letras,2003. pp.13-18.
301
Idem.
302
Apud. CARVALHO, Maria Alice Rezende. O quinto século: André Rebouças e a construção do Brasil.
Rio de Janeiro: Revan-iuperj, 1998. Pag.215.
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abolicionistas considerados radicais pela historiografia brasileira, como os Caifazes e
Antônio Bento303, além de apresentar uma peculiaridade, qual seja, estavam coadunadas
aos dois principais projetos defendidos pela Confederação: a instrução 304 e a autonomia
socioeconômica do liberto, através da posse e cultivo de sua própria terra ou de sua
capacidade de inserção social nos centros urbanos em profissões que requeriam uma
instrução adequada ás novas tecnologias e funções gradualmente introduzidas nas
principais cidades brasileiras.
O projeto de reforma agrária foi introduzido como um dos pontos principais
defendidos pela Confederação Abolicionista através de seu idealizador, André
Rebouças, que igualmente foi um dos fundadores da Confederação. A proposta de
Rebouças era complexa305 e considerada de difícil aplicação, porém, tocava em uma
questão fundamental no contexto das reformas defendidas pelos intelectuais da geração
de 1870, o poder exercido pelos fazendeiros oriundos, sobretudo da detenção grandes
extensões de terra, o que Rebouças convencionou chamar de lanlordirsmo.
A valorização de uma educação universalizada e de qualidade era uma das
principais propostas defendidas pelos intelectuais da Confederação. Os artigos
veiculados na Gazeta da Tarde, assinados pela Confederação, destacam a importância
de tal perspectiva, inclusive, a existência e manutenção de escolas noturnas gratuitas por
parte de alguns clubes abolicionistas, apontam para a valorização da instrução e do
ensino formal como um dos elementos fundamentais para o alcance dos valores
civilizacionais por parte dos liberto.
Nessas escolas, eram oferecidas as disciplinas, de Matemática, Português, Lógica
e Filosofia, além de ensino profissionalizante. O fato de serem oferecidas as disciplinas
de Lógica e Filosofia nos leva a questionar o elitismo creditado a este movimento e
também a alguns de dos líderes da Confederação Abolicionista, contudo, no presente
artigo nos interessa a existência de um ensino profissionalizante por parte dessas escolas
gratuitas abolicionistas.
303
Op. Cit. COSTA, 2001:pp.83-84.
304
Gazeta da Tarde, 17 de abril de 1883.
305
PESSANHA, Andréa Santos da Silva. Da abolição da escravatura à abolição da miséria: a vida e as ideias
de André Rebouças. Rio de Janeiro: Quartet, 2005.pp.101-118.
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Os intelectuais da Confederação Abolicionista - oriundos da geração de 1870 eram caracterizados por um intelectualismo cosmopolita, e neste sentido, podemos
compreender a existência de cursos profissionalizantes nas escolas noturnas da
Confederação, como uma preparação e adequação da mão de obra e das formas de
trabalho do Brasil às modernas organizações e estruturas produtivas capitalistas – fruto
desse cosmopolitismo, pois, esses cursos destinavam-se à construção civil e serviços
urbanos.
Contudo, dentre as limitações desse projeto, estava na incapacidade em promover
uma ampliação no nível de instrução dos libertos e negros do Império. Ou seja, não se
pensava na inserção desses libertos a longo prazo, destinados à instituições de nível
superior e consequentemente nas chances de poder comum às elites nacionais. Enfim, a
proposta inicial era promover a inserção do liberto na sociedade, de forma coadunada
aos valores e padrões civilizacionais europeus, já que a instituição da escravidão havia
desumanizado os negros do Brasil e assim, através da educação, esses padrões
desejados seriam almejados. Ao mesmo tempo também estava sendo preparada uma
mão de obra especializada - à semelhança das nações europeias e norte-americana - para
a modernidade, a qual o país deveria chegar.
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CARLOS LACERDA E A PROPOSTA PARTIDÁRIA UDENISTA DE
RELAÇÃO ECONÔMICA – DIPLOMÁTICA ENTRE BRASIL E EUA (1945 –
1965).
Karen Garcia Pêgas306
Resumo:
Com base nas propostas de política econômica internacional entre Brasil e EUA
elaboradas pelo partido da União Democrática Nacional, especialmente, a partir da
atuação de Carlos Lacerda o trabalho visa através de artigos de jornais, cartas e cartilhas
de autoria de Carlos Lacerda uma maior compreensão acerca das propostas relação
econômica – diplomática entre ambos os países propostas por esses udenistas e a
problematização do termo “entreguista” criado pelos varguistas e que atingiu ao senso
comum na historiografia.
Palavras-Chave: Carlos Lacerda; UDN; Economia Internacional.
Abstract:
Based on the proposals of international economic policy between Brazil and the United
States established by the National Democratic Union party, especially from the actions
of Carlos Lacerda one of the largest representes UDN carioca primarily during the years
1960 and 1964 it was the ancient ruled state of Guanabara Rio de Janeiro today, the
work aims through newspaper articles, letters and booklets written by Carlos Lacerda
greater understanding of the proposed economic relationship - diplomatic between the
two countries proposed by these udenistas and questioning the term "submissive"
created by varguistas and reached to common sense in historiography.
Keywords: Political Party; international economic policy; Relation Brazil and the
United States
O partido da União Democrática Nacional foi fundado em 3 de março de 1945 e teve
como princípios norteadores de seu surgimento o ódio declarado à figura pessoal e
política de Getúlio Vargas e à centralização política e econômica do Estado sobre o
país. E foram justamente esses signos do “antigetulismo” e do antiestatismo que se
tornaram a principal bandeira do partido.
Dessa forma, a UDN foi marcada desde a sua formação pela atuação de seus
partidários em busca de uma maior disputa dos cargos políticos para além do
crescimento do partido, pois a busca maior ocorria na verdade em torno da constituição
306
Graduanda da Universidade Castelo Branco e Orientanda da Prof.ª: Luciana Lamblet Pareira. E-mail:
[email protected]; telefone: 97452971 e endereço: Rua Barbosa. N.4 Apt. 403. Cascadura.
160
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de uma maior base de oposição ao governo de Getúlio. Por isso, era forte entre os
udenistas o desejo de ocupação do cargo mais alto de presidente da República a fim de
que pudessem suplantar a forte política estadista existente e acabar com qualquer
herança getulista que ainda pudesse existir no governo.
Diante disso, a UDN mesmo com a já esperada vitória de Getúlio Vargas nas
eleições de 3 de outubro de 1950 ainda se mantinha esperançosa de uma possível
mudança no dia das eleições que levasse à vitória de seu candidato o Brigadeiro
Eduardo Gomes. Este concorria novamente às eleições após ter perdido os pleitos de
1945 para o major Eurico Gaspar Dutra. Porém, foi a então derrota das eleições de 1950
que gerou nos udenistas um sentimento de frustração ainda mais agudo do que o que
havia ocorrido em 1945 pelo fato de que tiveram que engolir a seco a vitória
esmagadora de Getúlio Vargas. Já que além de inimigo declarado do partido Vargas
retornara ao poder democraticamente “nos braços do povo” eleito pela maioria
significativa dos votos.
Diante dessa situação, alguns udenistas radicalizaram ainda mais na sua
atuação política tomando a direção do partido e exigindo que fosse adotada uma posição
contra a posse de Getúlio. A volta do ex-ditador provocava nos udenistas um sentimento
de frustração e de derrota muito mais forte do que se fosse qualquer outro candidato que
tivesse ganhado as eleições.
Esse retorno de Vargas à presidência anulava também o propósito de
“redemocratização” defendido ostensivamente pelos udenistas e que criava uma série de
dúvidas de como ficaria a organização e a atuação partidária dos membros da UDN daí
em diante. Essa condição fez com que os udenistas iniciassem a realização de uma nova
prática de contestação dos resultados eleitorais legais que iria se repetir por diversas
vezes e que acabou se tornando uma prática corriqueira do partido. Estes alegavam
dever realiza-la pelo compromisso político que tinham de proteger ao país da corrupção
impedindo a repetição dos erros e a retomada de políticos corruptos ao governo.
Foi então, em uma das primeiras reuniões partidárias após o pleito que o líder
do partido Soares Filho após analisar as derrotas da UDN “responsabilizava ao acordo
interpartidário (entre a UDN e o PSD) pelas defecções que ocorreram em virtude dos
161
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interesses estaduais”
307
. Diante disso, o deputado pela UDN do nordeste Aliomar
Baleiro apresentou uma nova estratégia de defesa que consistia na luta para anulação
das eleições, uma vez que o vencedor não conseguira a maioria absoluta do total de
votos. Foi apresentada uma nova proposta pelos udenistas a fim de que o Congresso
escolhesse o presidente, por meio de um sistema colegiado, ou através de uma nova
disputa eleitoral entre os dois candidatos mais votados, ou seja, Getúlio Vargas e
Eduardo Gomes. Essa tese da maioria absoluta dos udenistas recebeu também amplo
apoio de setores expressivos da imprensa como os diretores do Jornal Estado de São
Paulo Prudente de Morais Neto e Pedro Dantas e Pompeu de Souza que era diretor do
Jornal Diário Carioca.
Os debates via Congresso acerca da maioria absoluta que foram liderados pelos
partidos da UDN e pelo PL se estendeu do final de outubro de 1950 até o dia 18 de
janeiro de 1951. Quando o Supremo Tribunal Federal enfim diplomou como presidente
da República Getúlio Vargas e como vice – presidente da República João Café Filho.
Com o retorno de Vargas à presidência, agora por meios legítimos, a UDN foi
obrigada a se repensar quanto aos alcances e os limites de sua atuação. Embora ainda
oscilando entre manter uma postura favorável às táticas legalistas e táticas golpistas de
oposição.
A UDN ao se consolidar oficialmente como o partido da oposição tomou a
uma postura amarga e agressiva. Como ficou evidenciado no desabafo do líder udenista
Otávio Mangabeira: “O que se instalou no Catete com a volta do ex-ditador, não foi
propriamente um governo. Foi uma conspiração”
308
. Porém, não conseguiam
compreender claramente a conspiração a qual falavam “do governo que conspirava
contra a democracia, no sentido de promover a subversão social e a construção de uma
República sindicalista”
309
. Sem saber de fato com ocorria a conspiração e para quem e
o que ela se destinava.
307
- BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. Os Anos Cinquenta: A Oposição Real. In: BENEVIDES,
Maria Victoria de Mesquita. A UDN e o Udenismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. Pág. 82.
308
- MANGABEIRA, Otávio. A situação Nacional. Discursos Parlamentares, Brasília, v: 2 ;n:7;p:83;
1978.
309
- BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. Os Anos Cinquenta: A Oposição Real. In: BENEVIDES,
Maria Victoria de Mesquita. A UDN e o Udenismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. Pág. 84.
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Essa situação provocou o início das práticas das conspirações udenistas, através
da formação de coalizões com uma série de partidos opositores ao PTB e
consequentemente também a Vargas e a união de alianças com os mais variados setores
sociais dominantes como: as grandes empresas midiáticas nacionais e até mesmo
internacionais, empresas industriais e com algumas parcelas das Forças Armadas,
principalmente dentro na Aeronáutica, a fim de desestabilizar o governo de Vargas.
Essa condição levou o partido a adotar uma reação tipicamente conservadora de
acusação e refletiu também em uma posição totalmente contraditória da UDN, pois se
diziam responsáveis por varrer a desmoralização que havia no governo com a presença
de Vargas, mas tentavam por diversas vezes impugnar os projetos de base getulista na
tentativa de apenas enfraquecer ao governo, mas sem nenhum motivo concreto que
provasse as acusações que faziam contra o presidente Getúlio Vargas de fato.
Essas contradições udenistas também se acentuaram em suas próprias
declarações explícitas, assumidas e frisadas com orgulho pelos mesmos em que
afirmavam que “a UDN monopolizou as artes conspiratórias nos primeiros anos 50”
310
.
Estes declararam que isso havia acontecido através de contatos mais privativos e
implícitos com algumas parcelas de setores militares e da imprensa mais voltados para
um caráter público em que visaram alcançar a opinião pública como a defesa do “estado
de exceção”. Com isso, a conspiração udenista se justificou como uma contrapartida
eficaz para a frustração de um partido que fora duas vezes derrotado nas urnas, e o que
acabou por se caracterizar como a urdidura para o “golpe-branco” de agosto de 1954.
A oposição udenista à figura política e pessoal de Vargas ocorreu de forma
sistemática e agressiva no Congresso, violenta, não se poupando em fazer críticas
virulentas na imprensa e conspiratória nos setores militares vinculados à Cruzada
Democrática. Assim, durante os primeiros três anos e meio do governo de Vargas a
UDN não mediu esforços para recuperar-se da postura antes mantida de “mancha
conciliatória e adesista” do período dutrista. Sua atuação se tornou muito mais
acusatória do que opositora e se desenvolveu, sobretudo a partir de 1952, abarcando a
três grandes temas: a desgraça para o país com a volta do ex-ditador (insistência na
lembrança do Estado Novo e nas glórias de 45); as denúncias constantes de corrupção
310
- BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. Os Anos Cinquenta: A Oposição Real. In: BENEVIDES,
Maria Victoria de Mesquita. A UDN e o Udenismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. Pág. 84.
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administrativa, a “caça aos escândalos” (o moralismo udenista surge como a marca
“ideológica” do partido); a necessidade da intervenção militar contra a “subversão” e a
“desordem social” (o golpismo e o elitismo udenista).
No congresso, a liderança opositora da UDN ocorreu através da “Banda de
Música”, grupo formado por bacharéis como Adauto Lúcio Cardoso, Afonso Arinos,
Aliomar Baleeiro, Bilac Pinto, José Bonifácio, entre outros, que sentados na primeira
fila do plenário, dispondo de uma oratória inflamada e por muitas vezes virulenta,
apartearam ou discursaram diariamente contra o governo. Essa analogia com orquestra
aconteceu pelo fato do grupo propositalmente “fazer barulho”, gerar confusões,
dificultar e tirar a serenidade do orador durante o seu discurso. Em termos de denúncia
de corrupção a atuação da “Banda de Música” ocorreu em meio a dois exemplos ilustres
disso: o chamado caso “Última Hora” e o inquérito sobre o Banco do Brasil.
No caso do Jornal Última Hora, seus diretores foram acusados de receber apoio
financeiro do governo e a UDN conseguiu a aprovação da formação de uma Comissão
Parlamentar de Inquérito. E no caso das denúncias contra o Banco do Brasil, alguns
udenistas como os deputados José Bonifácio, Aliomar Baleeiro entre outros chegaram a
adquirir ações do Banco do Brasil para comparecer as assembleias gerais a fim de tentar
impugnar as contas do Banco e criar dificuldades para o governo esclarecesse as
supostas irregularidades com relação à concessão de créditos e licenciamento para as
importações.
A “Banda de Música” se dedicou a atacar sistematicamente a política
econômica e financeira do governo varguista, visando da atuação de dois Ministros da
Fazenda (Horácio Lafer e Oswaldo Aranha) e a alegação de corrupção com outros
órgãos como a CEXIM, a CACEX e a SUMOC. Na verdade, essa tese liderada por
grande dos udenistas recebeu amplo apoio da oposição conservadora do Congresso com
relação às críticas quanto à política econômica do governo pela aversão que tinham as
propostas de política social e salarial anunciadas por Getúlio. Como por exemplo, o
combate ao salário mínimo em nome da estabilização, e a questão do avanço do
nacionalismo, referente à intervenção estatal e ao controle do capital estrangeiro.
A grande maioria dos udenistas que encabeçava essa tese compunha uma linha
mais tradicional do partido formada em grande maioria de bacharéis da economia e do
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campo jurídico. A supervalorização desse ideal do “bacharelismo” fez com que por
diversas vezes muitos deles defendessem incondicionalmente o papel político das elites
como as únicas pessoas dotadas dos plenos conhecimentos teóricos das questões
políticas e jurídicas capazes de gerir um governo de forma digna. Essa situação fez com
que elaborassem vários programas que ficavam limitados apenas nos aspectos mais
fundamentalmente políticos de cada questão e negligenciassem as questões técnicas da
realidade financeira. Com isso, foram muitas vezes essas influências que acabariam por
levar aos udenistas a desvincular- se dos fatores técnicos econômicos e gerariam na na
verdade uma concepção mais teórica e isolada da realidade prática econômica. Isso
provocou a diversas implicações principalmente quanto à elaboração de projetos que
fossem de fato eficientes e eficazes em questões como: a intervenção do Estado na
economia, a política de proteção aos recursos naturais e de estímulos a empresas
públicas.
O debate em torno da adoção de uma política de industrialização e proteção
aos recursos naturais também acarretou grandes embates parlamentares. Houve uma
divisão política entre os “nacionalistas”, que apoiavam ao projeto do presidente Getúlio
Vargas em defesa do monopólio econômico do Estado na implementação de uma
política econômica de desenvolvimento industrial no país. E a outra ala composta pela
maioria dos udenistas e que foi apelidada de “entreguistas” pelos nacionalistas varguistas pelo fato deles apresentarem uma posição mais favorável ao capital
estrangeiro e serem contrários ao monopólio estatal econômico no desenvolvimento
industrial. Essa questão suscitou maiores debates, principalmente, na área relativa aos
recursos naturais como foi o caso da questão da instalação das indústrias petrolíferas da
Petrobrás e Eletrobrás.
A posição dos partidários udenistas quanto abertura ao capital estrangeiro,
principalmente estadunidense, que lhes acarretou a alcunha de “entreguistas” pelos
varguistas pode ser evidenciada a partir da fala do udenista Carlos Lacerda que
demonstra a posição do partido com relação à concessão do capital estrangeiro: “...
Somos de opinião que o capital estrangeiro não tem pátria. Desejamos que o capital do
165
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mundo inteiro venha ajudar-nos a construir nosso país, mas não queremos capitais
parasitas e especuladores”. 311
Foi justamente o debate referente a questão das riquezas minerais, que
envolveu além do capital estatal, o estrangeiro e o privado e que provocou uma cisão
intrapartidária na UDN quanto a dois projetos políticos: o de Odilon Braga, que era
ministro de Vargas e executor do Código de Águas e Minas, tido como “entreguista”,
por ter defendido a ampla participação privada e também do capital estrangeiro na
indústria petrolífera. E o projeto nacionalista e estatista do deputado Bilac Pinto, que
garantiu como única solução para o caso petrolífero o monopólio estatal do petróleo que
surpreendeu a todo o Congresso principalmente por vindo ter vindo de um partidário da
UDN contrariando a postura ante estatista defendida de forma tão ostensiva pela UDN.
Assim, outro projeto que também entrava na votação junto ao dos udenistas era
o da Assessoria Econômica de Getúlio Vargas que foi encaminhado ao Congresso em
1951, e que propunha uma economia mista sobre o controle do Estado, mas na qual era
facultativa a escolha da presença do capital privado e em bem menor escala a do capital
estrangeiro.
Diante disso, a grande maioria dos udenistas a fim de romper com a base de
legislação getulista se declararam a favor do projeto de Bilac Pinto. Essa situação
evidenciou também o forte contra-senso da atuação udenista, principalmente, quanto ao
liberalismo defendido por eles que sempre se diziam ante estatista e contrários à
intervenção do Estado na economia. Mas mostraram a mudança de postura, adotando
postura pragmática, mudando de lado quando percebiam propostas que lhe pareciam
mais vantajosas. E foi a partir dessa artimanha udenista que Bilac Pinto conseguiu a
aprovação de sua proposta graças ao apoio em peso dos udenistas que viabilizou a
formação de ampla base de apoio a esse projeto em conjunto com os outros partidos.
No que se referiu ao outro inimigo declarado da UDN o anticomunismo, o
partido assumiu a postura ainda mais radicalizada e reforçou as suas afinidades com os
militares da Cruzada Democrática, vitoriosa nas eleições do Clube Militar, como os
311
Jornal Correio da Manhã. CL não sabe mais se é candidato. Recortes de Jornais referentes a Carlos
Lacerda, governador do Estado do Rio de Janeiro. BR AN, RIO PH. 0. TXT. 2502 Rio de Janeiro\ São Paulo;
15\10\1963 -20\11\1964.Arquivo Nacional.
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generais Canrobert Pereira da Costa e Juarez Távora que eram contrários a ala
nacionalista (porém considerada “de esquerda”) liderada pelo Gen. Zenóbio da Costa.
A UDN defendeu, em 1952, o Acordo Militar Brasil-Estados Unidos e apresentou como
justificativas o contexto “da guerra fria e da solidariedade continental” que eram os
mesmos argumentos utilizados pelos militares.
O “antiesquerdismo” aparecia para os parlamentares udenistas como uma
“ideologia exótica” e que mais tarde se tornou tão ameaçadora quanto o próprio
“getulismo”, ou seja, tido por eles, como o perigo da ascensão popular e assim a
“comunização” do país. Na Convenção Nacional de maio de 1953 as diretrizes
partidárias
que
foram
apresentadas pelo
líder
Afonso
Arinos
basearam-se
principalmente em três pontos e revelaram a importância primordial da postura
“antigetulista”:
“a oposição ao governo federal (aplaudida de pé); a não necessária participação
direta no governo a fim de livrá-lo da falta de imoralidade administrativa e da
corrupção, mas o permanente compromisso de colaboração do governo, sem
prejuízo das liberdades de crítica, em todas as medidas legislativas de interesse
público”. 312
A partir do ano de 1953, sobretudo com a nomeação de João Goulart para o
Ministério do Trabalho sob o risco de uma revolução sindicalista e da ameaça
comunista, levou a uma maior aproximação e fortalecimento dos laços entre a UDN e os
militares, no combate ao “getulismo” e ao alegado comunismo. A atuação de Goulart
que foi vista por Getúlio como o ponto de convergência das classes populares passou a
ser alvo da crítica de civis e militares que denunciavam as suas “intenções sindicalistas”
e os seus incentivos à “subversão social”. O ano de 1953 se instaurou diante de uma
difícil conjuntura de crise econômica, social e política; da inflação e declínio na taxa de
produção industrial; da intensificação dos movimentos reivindicatórios (“a greve dos
cem mil”), da radicalização da polêmica militar em torno da questão do petróleo e da
instabilidade governamental, com mudanças nos Ministérios do Trabalho, da Fazenda e
da Aviação.
Os agravantes que contribuíram para a conjuntura de 1954, que culminou com
o seu trágico desfecho foram: o agravamento da crise de econômica e das tensões
312
- BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. Os Anos Cinquenta: A Oposição Real. - BENEVIDES,
Maria Victoria de Mesquita. A UDN e o Udenismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. Pág. 87.
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sociais (greves, o aumento de 100% no salário mínimo); a intensificação da intervenção
militar na política (o “memorial dos Coronéis”, o documento dos Generais pedindo
afastamento do Ministério do Trabalho de João Goulart, o papel predominante da
Aeronáutica na condução do inquérito sobre o atentando a Carlos Lacerda - em 5 de
agosto de 1948 que terminou com a morte do major Rubens Vaz de um tiro partido de
um militar que era membro da guarda pessoal de Getúlio Vargas); a radicalização da
oposição parlamentar em torno da corrupção administrativa (as denúncias sobre o “mar
de lama”) e as diferentes tentativas de golpe contra Getúlio (impeachment, renúncia,
licença) lideradas por civis e militares.
A atuação decisiva da UDN e levou a elaboração de um pedido de renúncia do
presidente encaminhado pelo líder da oposição parlamentar (UDN-PL-PR-PDC) Afonso
Arinos então “maestro” da “Banda de Música”. A repercussão da pregação golpista de
Carlos Lacerda, apoiado por importantes setores da imprensa, entre os militares, e,
sobretudo a jovem oficialidade da Aeronáutica e os membros da Cruzada Democrática
(pela segunda vez consecutiva vencedora das eleições no Clube Militar) o transformou
de fato em um dos maiores líderes de posição civil e militar a Getúlio, mesmo diante da
hostilidade que sofria de certa parcela de udenistas que o achavam favorável demais às
ideias conspiratórias e a atitudes golpistas. Essa conduta de Lacerda contribuiu
diretamente para o aumento da intensidade das conspirações através das alianças entre
políticos, jornalistas e militares que já se tornavam real.
Se durante o ano de 1953 a oposição ocorreu contra o governo e o difuso
“getulismo” em 1954, o círculo se fecha na figura central do presidente Getúlio Vargas.
O processo de impeachment encaminhado a Câmara pela UDN foi derrotado com ampla
margem de votos inclusive de alguns udenistas a fim de evitar a outro terrível grande
problema que seria a vitória hegemônica e absoluta do PSD. Mas as tônicas das
acusações se refletiam nos debates contrários ao então presidente Getúlio Vargas.
O então processo conspiratório e de concentração de pressões civis e militares
que culminou com o suicídio de Getúlio Vargas (24\08\1954) foi considerado como um
“golpe-branco” pelos udenistas. Assim, a posição do “antigetulistismo” defendida
emblematicamente pelos udenistas causou-lhes ao mesmo tempo um forte sentimento
de ambiguidade que passou de depressão a euforia em virtude do trauma provocado pela
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morte de seu arque- rival que refletia ao mesmo tempo a “razão de ser” e a bandeira de
luta do partido
Portanto, é através do período que marcou a vitória legítima de Getúlio Vargas
ao poder que se faz imprescindível compreender o importante papel desempenhado pelo
partido da UDN no que se referiu: os projetos udenistas Não estiveram distantes em
muitos casos dos processos implantados, pois o liberalismo econômico udenista não se
mostrou totalmente derrotado. Já que as ideias que permearam a adoção de uma política
econômica de industrialização, principalmente no que se refere à questão do petróleo,
contaram com a organização da maioria udenista junto aos outros votos do pleito para a
vitória da implementação de um política econômica udenista.
O pensamento udenista influenciou efetivamente na política econômica
brasileira. Já que apesar da UDN ser vista como um partido perdedor por nunca ter
conseguido eleger nenhum dos seus representantes ao cargo máximo de presidente
República conseguiu eleger ministros, governadores (como Carlos Lacerda (1960-1964)
no Antigo Estado da Guanabara), prefeitos, deputados entre outros cargos políticos. E
muitos dos seus projetos foram implementados direta ou diretamente, pois mesmo
Vargas a fim de atrair a oposição nomeou vários udenistas para comporem ao seu
Ministério o que permitiu também a elaboração de vários projetos de lei que tiveram
apoio e influência desses udenistas, assim como também a oposição de muitos outros
nas votações de pleito no Congresso e que fizeram com que o executivo tivesse que
muitas vezes que ajustar certas disposições do programa atendo aos interesses desses
udenistas.
A UDN desempenhou um papel muito importante no cenário político no
período da Era Vargas, visto que não só o seu o surgimento se deu justamente com o
objetivo voltado ao combate explícito contra a figura política e pessoal de Getúlio
Vargas e que mobilizou a todos os seus partidários, bem como fez com que formassem
alianças com outros partidos unindo as forças de direita e extrema - direita a fim de
compor a maioria nos vetos do Congresso em torno dos projetos de legislação getulista.
Desta forma, formou um forte vínculo junto à imprensa a fim de influenciar a opinião
pública brasileira e até mesmo estrangeira com as acusações contra Vargas por meio de
visitas diplomáticas e alianças com os Estados Unidos para o reforço da ajuda que
buscava quanto ao temor da alegada “comunização do Brasil” e a “garantia de
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estabilidade da ordem”. Contaram também para a defesa desses ideais com a grande
parceria junto aos militares, e o que possibilitou também ao fortalecimento ainda maior
da oposição constante e sistemática dos udenistas ao durante principalmente o segundo
governo Vargas e que foi um dos principais fatores vai que desembocar no seu suicídio
em 24 de agosto de 1954.
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ÉTICA E POLÍTICA SEGUNDO MAQUIAVEL
Larissa Guimarães Valentim313
Resumo:
Em meio a um contexto político de crise da República de Florença, Nicolau Maquiavel
escreve, no livro O Príncipe, de 1516, um tratado político no qual apresenta conselhos
aos novos príncipes, principalmente de que modo deveriam agir para se manterem no
governo em meio às tribulações do meio político. Todavia a obra fora interpretada,
desde então, de forma a aludir um príncipe sem ética. Assim, o artigo se propõe a
analisar a questão ética e moral na política de Maquiavel.
Palavras-chave: Maquiavel – Ética – Política.
Abstract:
In the midst of a political crisis in the Republic of Florence, Niccolo Machiavelli writes
in his book The Prince, 1516, a treaty which provides political advice to the new rulers,
especially how they should act to keep the government amid tribulations of the political
environment. However the work was performed, ever since, to refer a prince unethical.
Thus, the article tries to analyze the ethical issue and moral politics of Machiavelli.
Keywords: Machiavelli – Ethics – Policy.
Nicolau Maquiavel, humanista, nascido a 3 de maio de 1469 em Florença, cidade da
qual fora chanceler durante boa parte da sua vida política, e falecido na mesma cidade
em 21 de junho de 1527, é reconhecido como o precursor da ciência política moderna.
Por muitos anos o autor fora evocado desde os discursos políticos até no cotidiano
do povo de forma, se não errônea, no mínimo equivocada. Associa-se, com frequência,
Maquiavel ao substantivo maquiavelismo e ao adjetivo maquiavélico de forma a aludir
um sujeito com pretensões a atos que transgridam a ética e a moral dos homens.
Tão logo nota-se o entendimento que se tornou senso comum ao longo do tempo a
respeito desse autor, cujo verdadeiro ideal político ficou, por anos, restrito nas
entrelinhas mal interpretadas de seus textos. Por pouco não se deixou permanecer na
história a visão de que Maquiavel defendia um Estado inescrupuloso, que, ardiloso, não
respeitaria leis e tratados sociais. Entretanto o autor não se referia a essas condições ao
313
Graduanda em História pela Universidade Federal Fluminense e integrante do grupo de pesquisa: Retórica
e Política no Renascimento: reflexões sobre os textos de Coluccio Salutati, Leonardo Bruni e Nicolau
Maquiavel.
Orientadora: Fabrina Magalhães Pinto, professora Adjunta do curso de História da UFF – Campos. E-mail:
[email protected]
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propor um príncipe astuto na política; muito pelo contrário: estava descrito no livro O
Príncipe um governante astuto, no sentido de ser sábio e forte capaz de mediar os
conflitos civis objetivando manter-se no poder. De form314a que Maquiavel propôs a
análise de um Estado pautado na veracidade da condição humana, podendo assim,
enxergar o que é realmente o governo e quem é o governante.
Partindo do pressuposto de que Cícero é considerado um dos maiores filósofos da
Antiguidade, nota-se que, o pensamento ciceroniano está presente em muitos textos de
autores modernos, como por exemplo, n‟O Príncipe e na História de Florença, ambos
escritos por Nicolau Maquiavel. A influência ciceroniana é notória, sobretudo, no
conceito de “História Magistra Vitae”. Essa ideia, quase assumida como um lema nos
discursos filosóficos e políticos modernos permeia o conceito maquiavélico para a
construção de um Estado adequado ao contexto histórico. A História torna-se, a partir
de Cícero, um meio importante para se explicar os acontecimentos e as questões sociais
e políticas. Em Maquiavel a História torna-se a legitimadora da potência de Florença,
tão bem relatada no livro História de Florença tal como explica Bignotto: “Recorrer ao
passado não era para Maquiavel uma maneira de se tornar mais culto ou erudito, mas
uma forma de aprender com o exemplo dos que já haviam enfrentado o mesmo
problema.”. 315
Seria, então, uma maneira de recorrer ao passado, pois a partir da leitura dos
autores antigos, como por exemplo, Cícero e Tito Lívio, poderia ser construído um
conhecimento concreto e aplicado de maneira a não se questionar a veracidade da
argumentação. Uma vez que a natureza humana é imutável e os fatos costumam se
repetir, considera-se, então, que a História é cíclica, segundo a ideia ciceroniana de
Historia Magistra Vitae. Logo a resolução para os problemas teriam, segundo Bignotto,
“as mesmas ferramentas teóricas”, de forma a se aprender com os erros e procurar não
mais cometê-los. 316
Newton Bignotto explica o porquê de se retomar a alguns autores da antiguidade:
“Cícero e Tito-Lívio tinham uma importância crucial nesse contexto, pois serviam de
315
316
BIGNOTTO, Newton. Maquiavel. RJ: Zahar. 2003, pp. 13 – 14.
² Ibidem, p. 14.
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modelo tanto no que diz respeito à narrativa dos eventos quando do que se podia
aprender com eles.”317 Usando desses clássicos, Maquiavel constrói o importante livro
O Príncipe.
O Príncipe, caracterizado como um manual de aconselhamento ao governante,
como era de costume desde o período medieval, é um livro revolucionário, pois
apresentou ao mundo um novo perfil de príncipe que rompia com os padrões de
moralidade na política até então ditados pela Igreja.
De acordo com os manuais medievais o bom governo seria construído através da
prática das virtudes cristãs e da boa fé. Consequentemente o bom príncipe seria aquele
que seguisse fielmente os preceitos destes manuais, que eram carregados de concepções
virtuosas cristãs, ou seja, esperava-se que todo governante exercesse o poder de forma
ética. Entretanto Maquiavel acreditava na incerteza da alma humana, que variaria de
acordo com a necessidade apresentada ao indivíduo ao longo da vida, pois, não se pode
apostar na certeza de que os homens agirão como planejado. Temos que estar
precavidos ao momento em que a sua natureza má se manifestará, portanto, segundo o
que Maquiavel, propôs a alma humana não seria boa completamente, tal como era
pregado pela Igreja na época.
O homem medievalista estava fadado às ações e intempéries da vida terrena, de
modo a não poder fazer nada para mudar a própria condição, já que nascera marcado e
condenado pelo pecado. Não obstante a Igreja, instituição que exercia máximo poder
espiritual e temporal, se fazia necessária nesse momento, pois a única maneira de
amenizar as questões acerca da salvação da alma seria se cada indivíduo a reconhecesse
como único meio pelo qual o homem teria seus pecados amenizados ou perdoados. Este
fato dependeria das condições estabelecidas pela Igreja para a remissão dos pecados, ou
seja, os próprios religiosos instalavam os problemas estando neles a solução, tornandose um círculo vicioso. Segundo Delumeau: “A indivíduos e sociedades pesaram as
consciências e se sentiram culpados. Só o pecado pode explicar tantas desgraças.” 318
317
BIGNOTTO, Newton. “Maquiavel historiador” In: Revista USP. SP (29): 182. p. Março/ Maio de 1996, p.
03.
318
DELUMEAU, Jean. “A reforma: Por quê?” In: Nascimento e afirmação da reforma. Tradução de João
Pedro Mendes. SP: Livraria Pioneira. 1989, p. 60.
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A Igreja, contudo, não controlava e ditava apenas os rituais e a vida cristã, ela
interferia também na vida política. Esse fato foi notado e criticado por pensadores como
Dante, Marsílio de Pádua e o próprio Maquiavel. Assim afirma Jean Delumeau: “Em
face ao enfraquecimento da Igreja, e numa época em que os papas se comportavam
muitas vezes como príncipes, as autoridades laicas ganharam cada vez mais consciência
de suas responsabilidades religiosas.” 319
Dessa forma considera-se que o destino de cada homem, segundo Maquiavel,
seria determinado pela vontade de cada um, pois já tendo culminado o Renascimento e a
ideia do antropocentrismo permeando os ideais humanistas, os indivíduos, a partir de
então, se considerariam sujeitos racionais e conscientes da própria existência.
Uma das argumentações para fundamentar a tese estaria baseada na essência do
homem, afirmando que a natureza deste seria má e as relações entre eles tenderiam a
conflitos civis, segundo exposto no capítulo IX d’O Príncipe. No capítulo XVII,
Maquiavel afirma que o homem seria um ser volúvel, dissimulador, ingrato e estaria
sempre em busca do poder. Tão logo o autor, entra em conflito com diversos pensadores
de seu tempo, como por exemplo, São Tomás de Aquino que, sendo cristão, acreditava
que todos os homens estariam sempre em busca do bem e, por natureza, tenderiam à
paz, por serem, de certa forma, uma extensão de Deus. E até contra pensadores
clássicos, como Cícero: “De todas as injustiças, a mais abominável é a desses homens
que, quando enganam, procuram parecer homens de bem.” 320
O Estado idealizado por Maquiavel caracterizar-se-ia na presença de um
governante, forte e capaz de manter-se fielmente no poder, mediando com destreza os
impasses civis. Esses conflitos são constantemente travados entre os grandes e o povo
fazendo parte da vida pública de uma cidade, posto que sejam frutos da natureza
humana irremediavelmente má e submetida às paixões e aos vícios. Ademais a ordem, o
oposto ao caos iminente entre os homens, seria em igual instabilidade, pois não
perduraria. Segundo afirma Bignotto: “(…), para Maquiavel não existe poder que possa
319
Ibidem, p. 74.
320
CÍCERO, Marco Túlio. Dos Deveres. Tradução de João Mendes Neto. SP: Saraiva, p. 43.
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durar para sempre. As coisas humanas resistem apenas o tempo que lhes é possível,
sendo em seguida corrompidas pelo efeito de sua própria natureza.” 321
O autor Florence estabelecerá uma solução para esses conflitos: o governante. O
governante deveria ser o responsável pela mediação dessas divergências sociais, pois
caberia a ele ter a capacidade de atender às necessidades de ambos os interessados. O
príncipe representa o poder político, fruto da necessidade humana, e tomado por esse
poder mediaria os conflitos, que nunca cessariam uma vez que os homens, entre si,
estão sempre em discordância.
Não obstante, Maquiavel, em momento algum afirmara que o homem, em todas as
situações, seria movido pela maldade, até porque o ser humano, para estar em
sociedade, não poderia agir de forma irracional, movido somente pelas paixões. Na
verdade o que autor estava demonstrando no livro O Príncipe era que, no jogo político,
não se deve supor ou esperar que os homens ajam como planejado.
À necessidade de exemplo, o autor Florence, apresenta no capítulo VII os
problemas dos principados novos, que seriam os estados formados a partir da conquista
de novos territórios ou adquiridos por herança e que, ironicamente, logo eram perdidos.
Diferentemente dos principados formados há mais tempo e que se beneficiavam da
tradição e dos costumes, dos quais poderiam inspirar-se, adquirindo conhecimento para
manterem-se no poder.
De certo uma coisa é ter a força de um exército e outra bem diferente é saber
manobrar e administrar uma cidade. Maquiavel interverá nessa questão apresentando
aos recentes e frágeis príncipes como poderiam se transformar em prósperos e
resistentes, alcançando a riqueza, a fama, a honra e a glória. Segundo ele:
“Tais homens se mantêm no poder simplesmente pela vontade e pela sorte
favorável de quem lhes outorgou o Estado, as quais são duas coisas grandemente
volúveis e instáveis; e não sabem e não podem manter sua posição.” 322
Não se deve confiar simplesmente no “valor” ou na “boa sorte” o homem que
deseja vir a adquirir o poder. Como exemplo Maquiavel toma César Bórgia,
321
BIGNOTTO, Newton, op. cit, p. 23.
322
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Tradução de Antônio D‟Elia. SP: Cultrix. 2006, p. 61.
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popularmente conhecido como Duque Valentino, e Francesco Sforza, sendo que
priorizarei discorrer acerca do primeiro. O duque adquiriu o poder a partir das graças do
pai, futuro papa Alexandre IV, que manobrando politicamente para fins próprios
conseguiu um Estado para que o filho governasse.
Durante toda sua empreitada, César Bórgia fora bem sucedido. Usara sabiamente
das oportunidades que lhe foram apresentadas. Teve a cada um de seus lados a Fortuna
e a virtú, tais termos serão explicados no decorrer do texto. Fora astuto nas alianças
feitas, nas batalhas promovidas, ou seja, na trama política. De forma que, à vista de
Maquiavel, tenha se tornado um grande homem, tal como demonstra: “(…) julgo um
dever apresentá-lo, como o fiz, como modelo a ser imitado por todos os que chegaram
ao poder pela sorte ou pelas armas alheias.”323
Entretanto, após a morte do pai, o duque viu-se perdido, pois, além da saúde
frágil, uma série de eventos aconteceu desfavorecendo sua boa sorte; desde batalhas
perdidas até o renascimento de antigos inimigos, como os Orsini. O golpe fatal veio na
escolha do papa. Ao fazê-lo erroneamente, César Bóriga assinou sua derrota final.
No caso de Bórgia, ele estava muito dependente da boa sorte do pai, que lhe
apoiava nas empreitadas, de forma que Alexandre IV veio a falecer cinco anos depois
que o filho começara as conquistas, deixando o duque em xeque no meio de batalhas e
tendo que enfrentar uma grave doença. César Bórgia foi o exemplo máximo de
Maquiavel, pois o duque representava os novos príncipes que encontravam problemas
para governar, por estar lidando com um principado recém-adquirido.
Segundo o nosso autor apresenta no capítulo VII, o duque Valentino teve a deusa
fortuna ao lado e nela depositou muita fé e consequentemente acabou por arruinar-se,
deixando de lado a virtú estritamente necessária a um governante que desejasse manterse no poder de forma gloriosa. Para Maquiavel, o príncipe deve ser sábio nas suas
escolhas, deve ter, principalmente, astúcia afortunada, como bem afirma no capítulo IX.
Na sorte não reina todo o poder de um príncipe. Deve-se, demonstra Maquiavel, ter
equilíbrio entre a fortuna e a virtú, sendo esta última a maior qualidade de um
323
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe – Comentado por Napoleão Bonaparte. Tradução de Pietro Nassetti.
8ª edição. SP: Martin Claret. 2009, p. 48.
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governante. Pois a virtú não é volúvel como a Fortuna, que abandona o homem quando
este não a satisfaz mais.
Ou seja, os novos príncipes e mesmo muitos daqueles que já estavam no poder a
mais tempo iludiam-se em pensar que manteriam um reino simplesmente pelo uso da
força ou da boa sorte.
“O exemplo do Duque não era o de um ser acima das potencialidades humanas,
mas o de alguém que soube aproveitar a ocasião que lhe foi oferecida pela sorte
para galgar os degraus do poder que se apresentaram para ele. Mesmo assim foi
tragado pela força da contingência.” 324
Segundo Maquiavel, alguns governantes que herdam ou conseguem o poder
facilmente por intermédio da fortuna confiam muito na estabilidade das coisas humanas
e não se preparam corretamente para as diversas situações que a vida pode apresentar.
Cometiam, assim, erros que poderiam ser evitados caso desenvolvessem a virtú que lhes
era necessária. Tal como afirma Skinner: “Maquiavel aqui apresenta a virtú do
governante como uma força espantosamente criativa, a chave para que ele „mantenha
seu estado‟ e se capacite a esmagar seus inimigos.” 325
Então o que seria a virtú para Maquiavel? Por que a Fortuna em consonância com
a virtú faria um príncipe comum e propenso à fatídica ruína ser um príncipe bem
sucedido em seu governo? Ética e política estariam correlacionadas?
Em relação à virtú, Bignotto afirma: “A virtú, (…), diz respeito à capacidade do
ator político de agir de maneira adequada no momento adequado.”326
A virtú tão importante para Maquiavel era as virtudes necessárias a um príncipe
para que este pudesse exercer seu poder de forma plena e gloriosa. Em oposição a Santo
Agostinho, o qual afirmava na obra Cidade de Deus, que o homem só poderia alcançar
as virtudes através de Deus, através da busca da graça divina, Maquiavel afirmava n‟O
Príncipe, que este poderia alcançar a virtú por si próprio.
Importante ressaltar neste artigo que a virtú descrita no livro é diferente, por
exemplo, das virtudes cardeais tão tradicionalmente trabalhadas pelos autores
324
BIGNOTTO, op. cit, p. 24.
325
SKINNER, Quentin. “A era dos príncipes” In: As Fundações do Pensamento Político Moderno. SP:
Companhia das Letras. 1996, p. 146.
326 12
BIGNOTTO, Newton, op. cit, p. 24, loc. cit.
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precedentes a Nicolau Maquiavel. As virtudes cardeais advindas de Platão são: a virtude
da Prudência, da Temperância, da Fortaleza d‟Alma e da Justiça. Não obstante o autor
não deixa de concordar com Platão nesse ponto, mas acrescenta o sentido particular de
virtú, que já foi explicado anteriormente.
Para Maquiavel, a virtú, não estaria inteiramente relacionada a valores cristãos, ou
seja, o príncipe deveria estar disposto a usar de meios ilícitos também, para manter-se
no poder. Logo, se fosse necessário, por exemplo, que o príncipe enganasse, então, este
deveria fazê-lo, tal como o autor demonstrou no capítulo XVIII. O príncipe deveria
fazer com que o povo acreditasse nele e lhe fosse fiel sempre, mas não poderia
esquecer-se de usar sua astúcia, pois uma coisa é persuadir o povo e outra bem diferente
é mantê-los crentes nas palavras do príncipe.
Entretanto, afirma Skinner, que no livro de Maquiavel, o príncipe não deve
abandonar as virtudes principescas tradicionais que a ele lhe convinham, pois seria
muito sábio o príncipe que as possuísse e conseguisse usá-las. Tão logo bem aventurado
aquele governante que conseguisse agir em conformidade com a ética e a moral cristã
do seu tempo em equilíbrio com as necessidades da política, conseguisse desvincular
sua cristandade da realidade conflituosa humana.
Entende-se, portanto, que a virtú maquiaveliana não diz respeito fazer somente o
bem, mas sim, em saber agir de acordo com as circunstâncias, não se privando, o
príncipe, dos vícios para alcançar seus objetivos. Tal como Maquiavel afirma no
capítulo XV: “E é que, se se considera bem tudo, pode-se dar com algo que parecerá
virtude e que, praticado, conduzirá à ruína; ou com outra coisa qualquer que parecerá
vício e que, praticada, proporcionará a segurança e o bem-estar do príncipe.” 327
De modo algum a frase “os fins justificam os meios”, que tanto foi associada a
Maquiavel caberia nessa teoria. Posto que o autor não tenha apresentado um Estado
formado sobre as ideais de um príncipe vituperado e desprovido de moral.
No trecho a seguir, presente no livro Discursos do Segundo Tratado de Tito Lívio,
Maquiavel afirma que os homens não saberiam comportar-se mediante determinada
situação, pois não teriam a capacidade de usar a virtú para mediar as necessidades
327
MAQUIAVEL, Nicolau, op. cit, 2006, p. 102
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singulares do jogo político. Noutras palavras, num momento de guerra, por exemplo,
caberia ao governante a decisão de como agir, ou seja, se se fizesse necessária a
utilização de meios “ilegais”, não morais, que fosse feito, então com honra: “(…) mas
concluiu-se que os homens não sabem ser maus com honra nem bons com perfeição, e
que, quando uma maldade tem em si grandeza ou é parcialmente generosa, eles não
sabem praticá-la.” 328
Entretanto a virtú somente não seria suficiente para a formação de um governante
excelente. Maquiavel apresenta, então, a Fortuna, que era uma deusa romana da sorte e
da esperança. Ela era geralmente representada com os olhos vendados, demonstrando a
sua imparcialidade ao distribuir os bens aos homens.
A representação da deusa é muito usada ao explicar a questão da sorte apresentada
no livro O Príncipe. De modo que a sorte poderia ser favorável ao governante ou não,
pois ela é efêmera e inconstante, pois as coisas humanas são passíveis de mudança a
todo o momento. Não obstante a sorte é um bem necessário a todo príncipe que deseja
conquistar e manter-se forte no poder. Tal como diz Bignotto: “A fortuna aparece
sempre como uma força que não pode ser inteiramente dominada pelos homens. Num
mundo
sujeito
a
movimentos
constantes,
ela
representa
o
elemento
de
imponderabilidade das coisas humanas.”. Contudo, os erros cometidos pelos príncipes
novos é exatamente acreditar em demasia na Fortuna e não ter a capacidade de exercer a
virtú, faltando a virtude da astúcia, indispensável, para que o governante possa realizar
suas decisões. 329
Pode-se uma hora estar no vento a favor da boa sorte e num momento seguinte ser
derrubado pela má sorte, uma vez que os homens não tendem a acompanhar a rapidez
com a qual a deusa Fortuna age em proveito próprio. De forma a não haver homem
algum que, agindo com parcimônia, não esteja na possibilidade de arruinar-se. Afirma
Maquiavel no capítulo XXV:
“(…) o príncipe que se apoia inteiramente na sorte arruína-se quando ela varia.
Creio, ainda, que é feliz aquele que regra a sua maneira de proceder de acordo
328
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Tradução de MF. 1ª edição. SP:
Martins Fontes, 2007, p. 90.
329
BIGNOTTO, Newton, op. cit, 26.
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com as circunstâncias e, a par, é infeliz aquele cujo procedimento discorda das
circunstâncias.”330
Entretanto, afirmar que a Fortuna é sempre destrutiva ou sempre benevolente
significa afirmar que se conhecem seus desígnios, o que não seria verdade. Segundo
Maquiavel no capítulo XXV: “Não obstante, para não descartar inteiramente nosso
livre-arbítrio, creio que se pode admitir que a sorte seja árbitra da metade dos nossos
atos, mas que nos permite o controle sobre a outra metade aproximadamente.” 331
Segundo Maquiavel, na política não se trata em ser ético ou não. Questionar-se a
respeito da ética não cabe na trama política a partir do momento em que os valores
cristãos possam suprimir do príncipe a capacidade de discernir o que seria mais cabível
na decisão das próprias ações visando o poder, pois a ele cabe, indubitavelmente,
manter-se no poder; e deverá, assim, fazê-lo. Todavia a ética aqui dita se trata daquela
tradicional, imbuída de valores morais cristãos. Tal como aponta Bignotto:
“Ética e política dissolvem seu casamento eterno, mas continuam a conviver na
arena dos negócios humanos. Cabe ao príncipe saber escolher o que o fará atingir
seus objetivos a que se destinou, sabendo que caminhará para a ruína se
continuar a agir apenas segundo os manuais de moral.”332
Ademais, Nicolau Maquiavel prioriza analisar os valores morais na “esfera
política”333 de forma a estabelecer uma nova concepção aquém das discussões acerca da
ética tradicional, mas sem abster-se dela. Na qual traz à tona o príncipe cada vez mais
afastado da figura de divindade, diferentemente do que se acreditava naquele período,
no qual os governantes eram virtuosos e escolhidos por Deus e, portanto, estavam mais
próximos a Ele. Uma vez que o autor apresentara o governante como um homem tal
como seus súditos, à mercê da inconstância das coisas humanas.
Entretanto, Maquiavel entendia que o governante deveria ter qualidades
específicas que satisfariam as necessidades do governo, sendo este um homem público.
Essas qualidades são aquilo que o autor Florence chamou de virtú: uma virtude política
330
MAQUIAVEL, Nicolau, op. cit, p 144.
331
MAQUIAVEL, Nicolau, op. cit, 2009, 131.
332
BIGNOTTO, Newton, op. cit, 32.
333
Ibidem, p. 31.
180
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que, segundo Limongi: “(…) consiste na capacidade de criar e respeitar as instituições
necessárias ao convívio comum.”334
As medidas tomadas pelo príncipe no governo devem ser bem vistas, entretanto
ele não deve ser ético, no sentido tradicional, caso seja necessário tomar alguma medida
visando atingir seus objetivos. Todavia esta atitude poderá frustrar muitas expectativas
postas sobre ele. Segundo Limongi: “O que é bom ou mau segundo a „verdade efetiva‟ é
o que de fato contribui para a estabilidade da vida pública e não os comportamentos que
são esperados do príncipe segundo a avaliação e as expectativas de seus governados.” 335
Não se trata, n‟O Príncipe da ética que conhecemos pautada no bem cujo sujeito
que a pratique possua qualidades boas e exemplares. Maquiavel, então, nos chama a
desmistificar essa ideia, uma vez que é impossível haver na política uma ética pautada
nas virtudes tradicionais unicamente. Dessa forma explica Limongi: “(…) os valores
estão sujeitos à disputa, sendo a arena política justamente aquela em que essa disputa
pode se dar de maneira ordenada e civil.”336
O autor Florence afirma no livro Discursos sobre a Primeira Década de Tito
Lívio acerca da capacidade dos príncipes em exercer o poder: “(…) há e houve muitos
príncipes, mas bons e sábios houve poucos: falo dos príncipes que conseguiram
desembaraçar-se dos freios que poderiam corrigi-los, (…)”.337
Maquiavel descontrói o exemplo de governante que estava abaixo das leis
religiosas e morais, que deveria ser prudente, desconhecendo a força da eventualidade
das ações com a probabilidade aparente de ser tragado pela fúria da Fortuna.
Consequentemente apresenta o príncipe capaz de burlar as inconstâncias da vida, cuja
virtú seria passível de conformidade com a fortuna, de modo a não ser tragado pela
deusa e arrastado para o declínio fiando-se na “verdade efetiva” das coisas, abstendo-se
de propor ou idealizar um ser humano ético na política e de índole imparcialmente
cristã.
334
LIMONGI, Maria Isabel. Ética e Política n’o Príncipe de Maquiavel. In: Seis Filósofos na Sala de Aula.
Vol. 2. SP: Berlendis & Vertecchia, 2006, p. 67.
335
Ibidem, p. 77.
336
LIMONGI, Maria Isabel, op. Cit p. 67, loc. cit.
337
MAQUIAVEL, Nicolau, op. cit, 2007, 167.
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ASPECTOS DA PROFISSIONALIZAÇÃO E RECONHECIMENTO DO
FUTEBOL NO BRASIL ENTRE 1930-1945
Rodrigo Rainha (Orientador) 338
Liliane de Paula Gomes (Orientanda)339
Resumo:
O objetivo deste artigo é refletir sobre as tensões vividas pelos atletas antes e depois da
profissionalização, a lógica da paixão que moveu de certa forma a idéia do futebol no
Brasil e a sua reflexão intelectualizada.
Amor vs Profissionalização era uma das discussões principais, porém durante o Regime
do Estado Novo, o esporte adquire o status de representante da virilidade e força do
homem brasileiro, recebendo apoio e incentivo midiático, o que possibilita a
profissionalização do atleta de futebol.
Palavras-chave: Futebol; Estado novo; Profissionalização.
Abstract:
The objective of this paper is to discuss the tensions experienced by athletes before and
after the professionalization, the logic of passion that moved somehow the idea of
football in Brazil and its reflection intellectualized.
Love vs Professionalization was one of the main discussions, but during the regime of
the Estado Novo, the sport acquires the status of representative of virility and strength
of the Brazilian man, receiving support and encouragement media, which enables the
professionalization of the soccer player.
Keywords: Football, Estado Novo, Professionalization.
INTRODUÇÃO
As décadas de 30 e 40 no Brasil foram marcadas por intensas reflexões sobre a
identidade nacional e o ideal de nação que almejavam viver, com atuação politica
influenciando todos os setores sociais, reformulando e repensando a atuação social que
cada um deveria ter. (VELLOSO, 2008)
338
Professor orientador Dr. Rodrigo Rainha graduado em História pela UFRJ seguindo o mestrado e o
doutorado na mesma instituição em História comparada, atualmente leciona para a graduação de licenciatura
em História na Universidade Estácio de Sá- Centro I.
339
Estudante de graduação de Licenciatura em História da Universidade Estácio de Sá –
[email protected]
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O objetivo deste trabalho é analisar a relação entre o pensamento modernista e as
discussões encontradas nos periódicos da época. Refletir a respeito do discurso Estado
novista, e seu suposto ineditismo, em relação ao reconhecimento de práticas trabalhistas
e resgatar os debates gerados na imprensa da época – revistas e jornais – sobre a
representação da nação dentro do campo, a normatização dos jogos e clubes e a
ascensão de camadas populares num esporte originariamente elitista.
Sendo assim podemos observar que é na década de 30 que a questão da
profissionalização do atleta de futebol começa a ganhar mais força, tanto pela cobertura
midiática quanto pelo incentivo que os próprios clubes recebiam de seus torcedores.
Não é possível afirmar que houve de imediato, muitas transformações no
entendimento das pessoas acerca da profissionalização ocorrida em 1933 após tantas
discussões, o modo como se jogava continuou praticamente o mesmo, sem muitas
regras, com disputas regionais mais fixadas entre Rio de Janeiro e São Paulo, mas podese afirmar que gradativamente o esporte foi adquirindo um status social que ele jamais
perderia nos anos seguintes com a popularização.
Para compreender melhor esta iniciativa do Estado novo em incluir o esporte
numa categoria de trabalho, temos que analisar o contexto em que a sociedade se
encontrava. Em 1930 após o golpe de Estado em que Getúlio Vargas rompe de uma vez
com a politica do café com leite que já produzira bastante instabilidade econômica e
social no país, a oligarquia de São Paulo, uma oligarquia produtora e exportadora de
café que se via como a personificação do progresso nacional se viu bastante prejudicada
com este novo cenário que se iniciava, anteriormente já sofria com a crise externa que
estourou em 1929 e que influenciou muito na queda de exportação do produto, porém
ainda no governo de Washington Luiz o Estado de São Paulo não se via desamparado,
como ficou após a revolução de 30.
Devido à preocupações politicas e econômicas que giravam em torno deste
produto, o café, e também pelo rompimento da politica anteriormente estabelecida,
surge outro cenário de disputa no país, a revolução constitucional, que deu inicio em
1932 reivindicando uma maior participação dos paulistas na politica nacional, São
Paulo perde e após esta guerra civil inicia no país uma relação não só de disputa
regional fortalecida traçando os caminhos da discussão do profissionalismo e escolha
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dos atletas que representariam o país na seleção durante os mundiais como fica evidente
na copa do mundo realizada no Uruguai, retratado no periódico carioca “Diário
Carioca” em 20 de agosto de 1930:
“Por ocasião da disputa do campeonato do mundo, quando os futebolistas
patrícios, soffreram aquelle revés de saudosa memória, não faltaram aquelles
que, com o espirito de bairrismo avivado, glozaram a derrota, dizendo muito da
inferioridade do futebol carioca.”
Neste mesmo contexto surgem vinculados a movimentos modernistas, intelectuais
de todas as áreas que se propuseram a pensar e articular o ideal nacional com a realidade
da nação discutindo o que viria a ser o brasileiro e que corpo melhor o representaria,
questões como a mestiçagem eram muito discutidas vista por uns como motivo de
degradação social, havendo uma necessidade de branqueamento, e por outros como uma
das causas da força e da virilidade, aquilo que fazia o Brasil ter uma outra face, um jeito
próprio.
Umas das grandes manifestações politicas presentes no Estado Novo, foi a
implantação de uma politica trabalhista que fosse efetiva e guardasse alguns dos direitos
do trabalhador, alguns grupos foram privilegiados com esta nova fase da politica
nacional, dentre eles podemos citar o artistas que na lei Getúlio Vargas (1928)
apresentada na CLT (1943) como o grupo que tinha o sentido de engrandecer a cultura
nacional, e o atleta que fazia parte do grupo de “cultura física” que terminou sendo
utilizado para representar a superioridade da nação brasileira em partidas mundiais e
âmbito nacional para reforçar aspectos regionais.
Todas essas questões influenciaram os rumos do futebol no Brasil, a
profissionalização do atleta fazia parte de todo um espirito de legitimidade do esporte
que nasceu na elite e se popularizou rapidamente, mas necessitava de respaldo politico
para se afirmar entre os demais, de maneira geral, as leis trabalhistas significaram que a
partir daquele momento haveria um interventor entre o Clube e o atleta, o Estado, e isso
assegurava estabilidade para o esportista.
Isso eleva as questões ligadas ao campo trabalhista em especial o esporte para
uma categoria de cidadania e respeito, já que agora os diretores clubistas teriam que se
submeter às diretrizes do Estado.
184
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Havia uma luta pela normatização das partidas que aconteciam em sua grande
parte sem fiscalização dos órgãos responsáveis e sem que o atleta fosse respeitado em
sua integridade física já que eram realizados sob o calor em tardes quentes ou em noites
muito quentes no Rio de Janeiro, chegando a parar nas páginas dos jornais como o
Diário Carioca alguns pontos que deveriam ser debatidos pela A.M.E.A. 340
Apesar de proibido, era frequente a ocorrência de clubes remunerando os atletas
de futebol, e seguindo o modelo inglês, o futebol amador era diferenciado do
profissional através do investimento diretamente destinado ao atleta como sugere o
Diario Carioca em 4 de fevereiro de 1933 quando o Estado de São Paulo amplia sua
discussão, posicionando-se sobre a questão, vale ressaltar que é uma fonte carioca
trabalhando o ponto de vista de um Estado que exerce sobre ela uma pressão regional ou
bairrista como era tratado na época
“Os jornaes perguntam agora, se essa resolução da Apea, tem caráter oficial,
pois, deste modo, tomando tall atitude, ella própria abraça o profissionalismo,
visto que, pelas leis internacionaes o jogador de foot-ball amador, uma vez que
receba qualquer remuneração, dede que não seja o dinheiro estricto de sua
locomoção é considerado profissional?”
O futebol amador poderia receber somente o equivalente aos gastos na sua
locomoção o que também era muito discutido já que outros setores esportivos como o
Remo, nem isso recebiam e essa prática do não recebimento chegou por um tempo
legitimar o Remo como um esporte autentico e feito com excelência e amor patriota,
mas como poderia um jogador vindo de uma camada popular, trabalhar e manter o
corpo no ritmo de uma partida?
Nesta fase surgem no cenário alguns personagens importantes, dentre eles
destacamos Leônidas da Silva que viria a ficar conhecido como Diamante Negro após a
Copa de 1934 na França, importante partida que marcaria sua carreira, após sua atuação
nos campos de futebol, aumentam também o numero de publicações ligadas a questões
de “raça”, Gilberto Freyre é dos intelectuais que escreve que o nosso futebol tinha um
340
Associação Metropolitana de Esportes Atléticos ( A.M.E.A) que surge com a cisão na Liga Metropolitana
de Desportos Terrestres na cidade do Rio de Janeiro em 1924 .
185
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jeito particular porque integrava negros e mestiços341 a figura deste atleta se torna
importante nesta reflexão, pois integra várias questões sociais que rodeavam o esporte.
Se para os clubes a questão de sobrevivência implicava em atender a demanda de
torcedores, para os jogadores significava ascensão socioeconômica para aqueles que não
conseguiriam isso através do trabalho, fato que se tornou recorrente com a
popularização do esporte, e o Leônidas assim como muitos meninos negros da época
vinha de classe proletária e serviu de inspiração para outros meninos.
Foram muitos os fatores342 que levaram o Estado novo a se enquadrar nos novos
modelos europeus de normas esportivas, já que Inglaterra, Itália, Espanha e logo depois
Uruguai e Argentina iriam profissionalizar este esporte que tomou rumos inesperados e
se tornou símbolo nacional, com a CBD presidida por Luiz Aranha, irmão de Oswaldo
Aranha, ambos, personagens ligados a Vargas no cenário politico brasileiro atuando a
favor do esporte a ponto de até mesmo a filha de Getúlio, Alzira Vargas torna- se
madrinha da seleção com ampla cobertura da imprensa, demonstrando que havia mais
do que uma partida em jogo, o que estava na disputa era a nação com forte atuação do
Estado interventor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O esporte, em especial o futebol moderno foi idealizado pelos ingleses como uma forma
de polir o homem inglês e torna-lo gentil sem agressividade natural, neste contexto
educacional Norbert Elias343(1992) afirma que o esporte seria uma reprodução da guerra
sem o perigo dos confrontos diretos e armados, e separar a população da elite fazia parte
do processo que o amadorismo marca muito bem como um espaço propicio para a
aristocracia esbanjar seu ócio e de certa forma se divertir.
Fugindo do controle da elite brasileira, inicia-se a popularização do futebol no
Brasil através da cobertura midiática ao mesmo tempo surgem criticas a forma como era
341
Gilberto Freyre foi um sociólogo conhecido pela repercussão e os impactos de sua obra Casa grande e
Senzala na Historiografia brasileira, amante do futebol, escreve em 1938 o texto Foot-ball mulato onde chega
a comparar o futebol com uma dança.
342
Os fatores citadas no decorrer do texto integram todo o contexto que tornaram possível a
profissionalização do atleta no estado novo, a popularização do esporte, a reformulação do espaços sociais
como o trabalho, as disputas regionais e a ascensão do nacionalismo.
343
Elias, Norbert. ( 1992) Ensaio sobre o desporto e a violência. In: Norbert Elias e Eric Dunning. A busca da
excitação. Lisboa. Disfel.
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tratado o futebol e que haveria uma necessidade de higienização do mesmo, mas que
não seria profissionalizando que isso ocorreria, ora, tornar uma pratica educacional das
elites, uma profissão, mudaria os conceitos, além de abarcar para o estilo de vida
aristocrático, pessoas que não faziam parte originariamente daquele gosto.
Além de ser explicitamente uma disputa social entre as classes erudita e popular, é
também um forte fator politico que já na dita republica velha causava transtornos entre
os Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, e no estado novo, ganha outras formas,
sendo claramente visíveis as disputas regionais principalmente quando o que estava em
jogo era representar a nação em campeonatos mundiais.
O período Getulista apesar de ter sido um Estado autoritário com uma censura
bem articulada, foi extremamente importante para o reconhecimento de alguns grupos,
principalmente em questões trabalhistas, a criação da CLT, o uso politico do futebol
como símbolo nacional, a profissionalização, engloba todo um momento de
reformulações sociais, onde o capital no esporte torna-se o responsável por macular a
diversão, em contraponto a perda de jogadores para outros países implicava na perda de
títulos internos, a forma como lidar com todas essas questões, denuncia a atuação de um
forte Estado interventor e em como o escrete adquire tão rápido se comparado a outros
esportes, um status que ele não perderia nos anos posteriores a 1945.
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OS ÍNDIOS E O CATOLICISMO: DISTINÇÕES ENTRE NORMA E PRÁTICA
NO MARANHÃO SETECENTISTA344
Luana Maria dos Santos Leitão345
Resumo:
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707, estabeleciam as normas
para viver na colônia e adequar os costumes às determinações do Concílio de Trento. Os
processos do Arquivo Público do Estado do Maranhão nos mostram as transgressões a
essa norma. Proponho apresentar os resultados parciais da pesquisa de iniciação
científica que busca investigar como os indígenas recebiam as imposições da doutrina
católica, bem como as transgressões a ela, a partir do uso de fontes produzidas pela
Justiça Eclesiástica.
Palavras-chave: Catolicismo. Índios. Tribunais Eclesiásticos. Normas. Transgressões.
Abstract:
The First Constituitions from Bahia Archbishopric, in 1707, established the rules for living in
the colony, including the customs to the Council of Trent. The processes of the Maranhão
Public Archives show the transgressions this standard. In this paper, we propose to analyze
results of the study lead that investigate how the Indians received the imposition of Catholic
doctrine, as well as her transgressions, from the use of sources produced by the Ecclesiastical
Court.
Keywords: Roman Catholicism. Indigenous. Ecclesiastical Court.
O período colonial brasileiro está inserido em uma época na qual a mentalidade das
pessoas era influenciada pelos ideais católicos; a moral era determinada pelos princípios
cristãos e o comportamento, tanto social quanto político, era regrado segundo os
ditames da Igreja Católica. O Concílio de Trento, que ocorreu entre os anos de 1545 a
1563, fez importantes reformas na Igreja e teve entre suas principais consequências a
reformulação de comportamentos, tanto do clero quanto dos leigos.
Na América Portuguesa, as determinações deste Concílio se fizeram presentes
através das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, promulgadas em 1707.
Estas eram uma espécie de compêndio, distribuídas em cinco livros que estabeleciam
normas para adequar os costumes e comportamentos destes territórios, doutrinando
344
Este artigo é resultado de pesquisa de Iniciação Científica financiada pelo CNPq, cujo título do projeto é
“Os índios no Tribunal Episcopal: catolicismo e transgressão no Maranhão colonial”, coordenado pela Profª
Drª Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz da Universidade Federal do Maranhão.
345
Graduanda em História pela Universidade Federal do Maranhão - UFMA. E-mail: [email protected]
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segundo as leis da Igreja Católica. Tratavam desde questões dogmáticas até o
comportamento do clero e dos fieis em seus cotidianos. Para tanto, além da norma,
instituíam penas para os delitos cometidos. Dessa maneira, quem desrespeitava as
normas era processado nos tribunais eclesiásticos, cuja jurisdição era exercida pelos
bispos. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia regulamentavam o
funcionamento destes tribunais. De acordo com Pollyanna Gouveia Mendonça, “esses
auditórios eram, sem dúvida, prova de que a Igreja montava aparatos organizados,
refinados e de atuação efetiva” 346.
No que diz respeito ao funcionamento desses tribunais, Mendonça afirma que a
jurisdição era ajustada a duas situações diferentes: uma quanto à pessoa e outra quanto à
matéria. Quanto à pessoa, julgava os delitos cometidos pelos clérigos. Quanto à matéria,
julgava os comportamentos ilícitos independentemente de quem os praticava 347. Assim,
todos em terras brasílicas, estavam sujeitos a ela, inclusive o indígena, um elemento
novo e peculiar, que não estava presente na sociedade do colonizador europeu.
Os processos produzidos por estes tribunais constituem uma documentação muito
rica, e podem ser uma importante fonte de estudos. No entanto, utilizar fontes
normativas e cruzá-las com os processos exige cuidado, e como dizem Bruno Feitler e
Evergton Sales Souza, barreiras precisaram ser transpostas, e uma das principais é a
separação do prescrito e do vivido, é “atentar para as diferenças entre os textos
normatizadores e sua efetiva observação nos diferentes meios sociais”
348
. Estabelecer
diálogos entre a norma e a prática, no que diz respeito à questão dos indígenas é uma
das propostas da pesquisa que originou o presente artigo.
Estudos sobre a propagação da moral católica no Maranhão colonial são raros. Os
trabalhos tradicionais sobre a Igreja nessas terras privilegiam análises sobre as altas
hierarquias do clero e sobre as ordens religiosas aqui presentes.
346
MENDONÇA, Pollyanna Gouveia. Parochos imperfeitos: Justiça Eclesiástica e desvios do clero no
Maranhão colonial. Tese (Doutorado) – Programa de Pós Graduação em História, Universidade Federal
Fluminense, Niterói-Rio de Janeiro, 2007, p. 38.
347
Idem, p. 43.
348
FEITLER, Bruno e SOUZA, Evergton Sales de (orgs.). A Igreja no Brasil: normas e práticas durante a
vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Editora Unifesp, 2011, p. 13-14.
189
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No Maranhão setecentista, as pesquisas sobre o indígena se limitam a investigar a
catequização pelos jesuítas e à escravidão. Os índios são personagens até agora não
investigados na documentação produzida pelo Juízo Eclesiástico. Não há estudos sobre
a tentativa de imposição cultural sofrida por eles, bem como sobre a propagação da
moral católica em seu meio. Em vista disso, percebe-se a enorme importância de se
fazer tal investigação, que além de preencher uma lacuna nas pesquisas maranhenses,
pretende inserir o Maranhão num contexto mais amplo de discussões sobre a história
indígena.
O ponto de partida na bibliografia maranhense sobre o indígena são os textos de
Claude D‟Abbeville349 e Yves D‟Vreux350, nos quais é possível perceber o olhar do
colonizador sobre esse povo, ou seja, um índio romantizado, bárbaro e permeado de
maus costumes. Entretanto, ao utilizar essas obras, é preciso ter em vista que seus
autores são homens religiosos de seu tempo, possuíam discursos preconceituosos e
reformadores, viam o pecado por toda parte, assim sendo, viam os costumes indígenas
como escandalosos. Isso, porém, não diminui a importância de tais obras para a
pesquisa, visto que é importante tentar perceber o que os contemporâneos àquele
processo de expansão da moral católica pensavam e escreviam sobre o índio.
Dessa feita, este estudo pretende inserir o Maranhão num contexto mais amplo de
discussões sobre a história indígena, nas preocupações conceituais e teóricas de um
campo conhecido como “nova história indígena”, que se utiliza de diálogos com a
antropologia e seus conceitos de uma maneira mais intensa. Com essa nova postura,
como muito bem destaca Almir Diniz de Carvalho Júnior, o indígena deve ser deve ser
tomado como o sujeito histórico que é, também responsável pela constituição das
relações coloniais que compartilhavam351. John Manuel Monteiro é um dos maiores
expoentes dessa corrente. Monteiro discorreu sobre isso em sua tese “Tupis, Tapuias e
349
D‟ABBEVILLE, Claude. História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão e suas
circunvizinhanças. São Paulo: Sciliano, 2002. (Coleção Maranhão Sempre).
350
D‟EVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil: feita nos anos de 1613 a 1614. São Paulo: Sciliano, 2002.
(Coleção Maranhão Sempre).
351
CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz de. Índios cristãos: a conversão dos gentios na Amazônia
portuguesa (1653-1769). Tese (Doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo,
2005, p. 15.
190
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Historiadores: estudos de história indígena e indigenismo” 352, dentre outros trabalhos.
Estes autores atribuem um papel de autonomia enquanto desconstroem gradualmente a
ideia cristalizada pela histriografia de que esses povos se submeteram sem contestações
ao domínio do colonizador, seja esse domínio político, cultural ou religioso.
OS ÍNDIOS NA DOCUMENTAÇÃO ECLESIÁSTICA
A documentação produzida pelos Tribunais Episcopais é bem rara. Pouquíssimos
processos são localizados na Itália e em Portugal. No entanto, o acervo localizado no
Arquivo Público do Estado do Maranhão é, até o momento, o que possui o mair volume
liberado para pesquisa no mundo católico português. Foram localizados 429 processos,
entre os quais chama atenção a quantidade de processos que envolvem índios,
principalmente nos processos de desvios relacionados à sexualidade e ao matrimônio,
que foram duas grandes preocupações da Igreja pós-Tridentina.
Dentre os processos envolvendo indígenas, os Autos de Impedimento foram o
ponto de partida para analisar como os índios adaptaram o discurso moralizador católico
às suas necessidades. Essa série trata dos trâmites legais estabelecidos pelas
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia no que tange ao sacramento do
matrimônio. Todos aqueles que queriam se casar, passavam por uma investigação de
hábitos e possibilidade de realizar o matrimônio, ou seja, se eram solteiros e
desimpedidos. Eram comunicados à comunidade no domingo após a estação da missa os
casais interessados no matrimônio. Os Autos de Impedimentos são os processos
originados de queixas feitas às autoridades por qualquer pessoa que soubesse de alguma
coisa em agravo à união dos noivos. Assim diziam as Constituições
Os que pretenderem se casar, o farão a saber a seu Parocho, antes de se celebrar
o Matrimonio de presente, para os denunciar, o qual, antes que faça as
denunciações, se informará se há entre os contrahentes algum impedimento, e
estando certo que o não há, fará as denunciações em tres Domingos [...]353
Qualquer pessoa poderia ser processada, porém o recorte da pesquisa são os
indígenas, por isso apenas os processos que envolvem índios foram analisados. Muitos
foram denunciados.
352
MONTEIRO, John. Tupis, Tapuias e historiadores: Estudos de história indígena e do indigenismo. Tese
(Livre Docência). Campinas: UNICAMP, 2001.
353
CONSTIUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA (doravante CAB), Livro I, Titulo
LXII, p. 108.
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O primeiro caso, que data de 1754, é um caso que se destaca por ser um caso de
possível bigamia, que era de alçada Inquisitorial. Thereza, índia do gentio da terra, foi
impedida de casar com Jozé, preto escravo, pois tinham notícias de que a índia fora
casada no sertão, em aldeias do Bispado do Pará, e que ainda não havia certeza de que
seu marido já era falecido. Segundo o que contou D. João Marques da Silva, cônego da
Sé e denunciante, ele tinha
sahido com o impedimento de que a dita india era cazada no certão do Pará e que
inda não havia noticia que fosse fallecido seu marido, e que isto sabia pelo ouvi
dizer a hum preto por nome João escravo da viuva Ignacia da Sylva moradora
desta cidade o qual disse que dipois que a dita india impedida sahio do Certão do
Pará ficava o seu marido vivo e que athé a prezente não havia noticia tinha sido
fallecido354
Conforme o citado João, escravo de Ignacia da Silva, ele
Conhecia muito bem a india Thereza por morar na mesma aldea chamada de São
Paulo do Gentio (ilegível) do Certão dos Amazonas a qual índia era cazada com
hú indio chamado João Mirim da aldeã do Paraguari e sabe que o dito indio
marido da impedida era vivo quando esta se veyo embora para esta terra e elle
testemunha ficou hú anno [...] no sobredito certão e nesse tempo inda era vivo o
dito inidio marido da impedida e dipois que elle testemunha se veyo embora não
teve noticia se era ou não falecido 355
O processo de Thereza tem duas testemunhas, um religioso cônego da catedral e
um preto escravo. Mas a índia só foi liberada para casar porque o “Padre Missionário
das Aldeas vezinhas da em q faleceo odito Indio Consta combastante Legalidade da sua
morte por ser o dito missionario pessoa demayor exceçao‟” 356.
Todos os outros processos analisados se voltam para o mesmo motivo de
impedimento, a afinidade nascida de cópula ilícita com algum parente do noivo ou da
noiva. Sobre o impedimento por afinidade, eis o que pregam as Constituições da Bahia
Affinidade; convem a saber, que o marido pelo Matrimonio consumado contrahe
affinidade com todos os consanguineos de sua mulher até o quarto grao, &
assim, morta Ella, não póde contrahir Matrimonio com alguma sua consanguinea
dentro nos ditos graos. E da mesma maneyra a mulher contrahe affinidade com
todos os consanguineos de seu marido até o quarto grao. Tambem contrahe
aquelle que teve copula illicita perfeyta, & natural com alguma mulher, ou
354
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO MARANHÃO (doravante, APEM), Juízo Eclesiástico
(doravante JE), Autos de Impedimento (doravante AI), doc. 4539, fl. sem numeração.
355
Idem
356
Idem
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mulher com algum varaõ; & por esta causa naõ pode contrahir Matrimonio com
parente do outro357.
Dessa maneira, foram denunciados pelo erro a índia Jacinta e Ignacio Pereyra,
ambos da Vila de Santo Antônio de Alcântara, consta nos autos que
nao‟ podiam Selebrar omatrimonio, que pertendem por terem impedimento de
primeiro grão d afinidade nascido d Copulla illicita, que teve aContrahente
Jacinta com Dionizio Irmao‟ doContrahente Ignacio Pereyra dque heram
Sabedores outros Indios358
Os acusados negaram. E para defender Jacinta, depôs o mulato Vicente que
afirmou que houve uma confusão com os nomes já que na “caza há duas indias com o
nome Jacinta nam sabe cabalmente se o dito trato ilicito foi com a contrahente”
359
.
Contrariando a norma, foi “julgado o dito impedimento pornullo e o empedido,
desempedido para poder celebrar o matrimonio que pertende com a empedida”
360
,
pesou também no resultado do processo o fato de que “o dito impedimento sahio de
pessoas de pouco credito como de Indios” 361.
Estes foram apenas dois exemplos de casos envolvendo índios nesta série. Dentre
os Autos de Impedimento, foram localizados sete processos, nos quais apenas dois
foram realmente impedidos de casarem.
Segundo as Constituições Primeiras da Bahia no seu livro I e título 67 os
impedimentos não só obstaculizavam de contrair matrimônio, mas também o
anulavam depois de contraído; cometia grave pecado quem encobria ou quem
362
denunciava maliciosamente quando não havia culpa .
Afinidade também, não era o único motivo de impedimento existente, existia
ainda a condição363, crime364, disparidade de religião, força ou medo, impotência365,
rapto, entre outros.
357
CAB, liv I, tit LXVII, p. 125-126.
358
APEM, JE, AI, doc 4556, fl. sem numeração.
359
Idem
360
Idem
361
Idem
362
LEITÃO, Luana Maria dos Santos. Os índios e a Justiça Eclesiástica: as transgressões contra o
catolicismo. In: Anais da ANPUH/MA, CD-ROM, São Luís, p.4.
363
Quando um dos contraentes é cativo e o outro não sabe. (CAB, liv I, tit LXVII, p. 116)
364
Se um dos contraentes, ou os dois juntos, planejou a morte do cônjuge para poder casar. (Idem, p. 117).
365
Quando um dos contraentes não é capaz de gerar, desde que a incapacidade seja perene. (idem, p. 118).
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Se o modelo assim previa, a realidade em muito se afastava. O que se viu até
agora foram penas muito brandas para esses casos. Os processos estudados e aqui
relatados dão uma visão ampla dos índios nesses tribunais embora a pesquisa ainda
esteja em fase inicial.
Outras séries documentais também foram analisadas. Entre elas, o Livro de
Registro de Denúncias366, e os Autos e Feitos de Denúncias e Queixas367, onde a
matéria de todas as denúncias, nos casos analisados, é o concubinato. As Constituições
dizem que “o concubinato, ou amancebamento consiste em uma illicita conversação do
homem com mulher continuada por tempo consideravel”
368
, as pessoas amancebadas
viviam com infâmia, escândalo e perseverantes no pecado, e eram passíveis de
admoestações e penas. Essas penas podem ser pecuniárias, de degredo ou prisão, e
dependendo do caso até excomunhão. “Sendo ambos solteiros pagará cada um
oitocentos réis; e sendo ambos, ou algum deles casado pagará cada um mil réis”
369
.O
valor iria aumentando conforme os acusados reincidissem no erro. Até o momento, os
denunciados foram admoestados e receberam penas pecuniárias, nunhum foi degredado
ou preso.
Também foram localizados índios nos Autos e Feitos de Libelo Crime e nas
Visitas Pastorais370, que, ainda estão por serem analisados, devido o volume de
documentação a ser transcrita.
CONSIDERAÇÕES
Embora a pesquisa ainda esteja em andamento, algumas modestas conclusões podem
ser traçadas. Já é possível perceber claramente que o índio está amplamente inserido na
lógica cristã, como um elemento integrante dessa sociedade, não um ser à parte. Ainda
que com algumas permanências – como nos casos de afinidade – e inconstâncias – os
366
De acordo com Pollyanna Gouveia Mendonça, os processos do Livro de Registro de Denúncias “se
iniciavam com denúncias do promotor ou do meirinho cobrindo várias localidades do bispado. Uma média de
6 testemunhas era chamada em cada denúncia e não havia espaço para a defesa dos acusados. As causas eram
julgadas em poucos dias” (MENDONÇA, op.cit, p.85).
367
Autos que se reportam a situações de fama pública (Idem).
368
CAB, liv V, tit XXII, p. 338.
369
Idem
370
Nessas visitas, pecados públicos de clérigos e leigos eram investigados (MENDONÇA, op.cit, p.78).
Sobre o tema, ver “As Visitas Pastorais” de José Pedro Paiva.
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amancebamentos, pois não deixaram alguns hábitos inerentes à sua cultura, já se
encontram implantados nesta nova ordem imposta pelos colonizadores.
Percebem-se sujeitos históricos que já sabem o que é certo e o que é errado aos
olhos da Igreja, já tem uma noção de pecado. Porém conhecer o erro não significar não
errar. Almir Diniz de Carvalho Junior diz que para o índio, ser cristão era uma
decisão371, e isso é facilmente notado ao analisar os processos. O índio transgredia a
norma, sabia que estava errado, mas ainda assim queria contrair o matrimonio mesmo
depois de cair em pecado carnal, por exemplo. Casar seria o grau máximo de inserção
nos sacramentos e eles desejavam isso. Eles tinham noção de suas obrigações como
povo catequizado e integrantes de uma religião, pois ser cristão era ser “civilizado”,
uma escolha (ainda que forçada) de não ser marginalizado. Era visível o desejo de
pertencer a esta nova ordem372.
Esta pesquisa pretende trazer novas reflexões a respeito do indígena e muito ainda
temos para analisar.
371
CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz de. Índios cristãos: a conversão dos gentios na Amazônia
portuguesa (1653-1769). Tese (Doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo,
2005, p. 6.
372
Idem, p. 373.
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NOVAS TECNOLOGIAS NO ENSINO DE HISTÓRIA: O USO DA MÚSICA NA
SALA DE AULA
Marcelo Márcio da Silva373
Resumo:
Esta comunicação tem como objetivo apresentar quais são os apontamentos que se pode
fazer sobre a utilização da música como recurso didático. Seguindo o conceito de
“tecnologias” proposto pelo ENEM, percebe-se que ela pode ser ensinada através de
abordagens do registro da vida cotidiana, pois hoje está presente na realidade dos alunos
de várias formas. A música é uma metodologia que estimula a participação dos alunos
na aula de História, tornando-a mais dinâmica e atrativa.
Palavras-chave: História, Ensino-aprendizagem, Música.
Abstract:
This communication aims to presents what notes can be make about the use of the
music as didactic resource. Following the concept of “technologies” proposed by
ENEM, we noticed that the music can be taught through approaches of the registration
of the daily life, because today it is present in the students' reality in many ways. Being
a methodology that stimulates the students' participation in the history class, turning the
class most dynamic and attractive.
Keywords: History, Teaching-learning, Music.
O ensino de História no Brasil passou por transformações ao longo das décadas do
século XX, atendendo a variantes nos seus métodos, indo de uma história positivista e
elitista a uma história que discute os métodos pedagógicos na abordagem de seus
conteúdos. Nesse período, cabe destacar o papel que a escola dos Annales
desempenhou, desenvolvendo novas abordagens historiográficas e com elas a
necessidade de novas fontes (relatos orais, imagens, registros sonoros). O trabalho com
fontes sonoras, ultimamente, está relacionado ao uso da informática no ensino de
História, evidenciando a importância dessas fontes na construção do conhecimento
histórico para que, por meio destas, as aulas de História se tornem mais atrativas para os
373
Licenciando em História pelo Centro de Ensino Superior do Seridó da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte e bolsista de iniciação à docência – PIBID-CAPES –, coordenado pela professora Dra.
Jailma Maria de Lima.
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alunos, tentando sempre fazer uma ponte com a realidade e o contexto em que vivem, o
que faz com que estes participem dessa construção.
Podemos dialogar mais com esses registros sonoros. Entretanto, vemos que o
ensino de História conserva-se em constante transformação perante seus conteúdos e a
tentativa de dialogar com a história ensinada nas academias. Os seus métodos também
persistem, buscando melhorar a qualidade no ensino assim como valorizando a
disciplina e o seu respectivo professor por meio de um ensino atraente e motivador.
Através de novas tecnologias, no caso da música, é proposta uma metodologia que
motiva e ensina tanto os alunos como os professores da rede envolvidos, pois possibilita
a interação entre ambos. Este artigo busca fazer alguns apontamentos sobre como
podemos utilizar a música nas aulas de História: como representação do cotidiano,
como linguagem e, por último, como ludicidade.
Atualmente, no Brasil, o ensino básico na perspectiva do currículo escolar está
voltado a atender as competências e habilidades propostas pelos PCN 374. Já o ensino
médio é regido pelo PCNEM375, tendo em vista que ele “prepara” (ou deveria) para o
ENEM376. Utilizando o conceito de tecnologias indicado pelo PCNEM, podemos pensar
o conceito de cultura, por exemplo, da seguinte forma:
[...] a cultura não apenas em suas manifestações artísticas, mas nos ritos e festas,
nos hábitos alimentares, nos tratamentos das doenças, nas diferentes formas que
os vários grupos sociais, ao longo dos séculos, têm criado para se comunicar,
como a dança, o livro, o rádio, o cinema, as caravelas, os aviões, a Internet, os
tambores e a música377.
A partir dessas colocações, podemos elaborar alguns questionamentos sobre a
utilização da música nas aulas de História do ensino médio: como usar a música na sala
de aula para ensinar história e também para formar uma consciência musical? Como
construir um conhecimento histórico a partir da música (encarada como representação
do cotidiano, linguagem e ludicidade)?
374
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: História/Secretaria
de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
375
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares
Nacionais: ensino médio. Brasília: MEC/SEMTEC, 1999. p. 301.
376
377
Exame Nacional do Ensino Médio.
BRASIL, 1999, p. 301.
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A primeira consideração que temos a fazer sobre a abordagem da música na sala
de aula para a construção do conhecimento histórico pode ser esta:
A rigor, a melhor abordagem é a interdisciplinar, na medida em que uma canção,
estruturalmente, opera com séries de linguagens (música, poesia) e implica séries
informativas (sociológicas, históricas, biográficas, estéticas) que podem escapar
à área de competência de um profissional especializado378.
Mesmo sabendo que o professor de História na maioria das vezes não é
especialista na área musical e também que nem sempre a abordagem interdisciplinar é
possível379, a saída encontrada geralmente é o trabalho com a letra da canção,
priorizando uma leitura crítica sobre esses documentos sonoros. É importante
percebermos que a música no Brasil “foi um ponto de fusão importante para diversos
valores culturais, estéticos e ideológicos que formam o grande mosaico chamado
„cultura brasileira‟”380.
A música faz parte do nosso cotidiano e mantém uma íntima relação com os
espaços que frequentamos, pois hoje participamos voluntariamente ou não de um
“regime de escuta musical”381 presente em nossas vidas quase que diariamente, em que
“a música não é apenas uma combinação de notas dentro de uma escala, mas também
ruídos de passos e bocas, sons eletrônicos, ou ainda uma vestimenta e gestos do
cotidiano de determinados indivíduos que gostam de um tipo de som” 382. Em outras
palavras, significa dizer que o gosto musical está ligado ao processo que forja
identidades no momento em que cada sujeito está inserido em um determinado grupo
pelo gênero musical que ouve.
É cultivada, assim, uma identidade grupal de música:
378
NAPOLITANO, Marcos. História & Música: história cultural da música popular. 2. ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2005. p. 96.
379
NAPOLITANO, 2005. p. 96.
380
NAPOLITANO, 2005. p. 110.
381
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval M. O nordestino de Saia Rodada e Calcinha Preta ou as novas faces
do regionalismo e do machismo no Nordeste. In: QUEIROZ, André L. S. (Org.). Arte & pensamento: a
reinvenção do Nordeste. Fortaleza: Serviço Social do Comércio, 2010 apud BARHES, Roland. O óbvio e o
obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/128182554/DurvalMuniz-O-Nordestino-de-Saia-Rodada-e-Calcinha-Preta-ou-as-novas-faces-do-regionalismo-e-do-machismono-Nordeste-pdf>. Acesso em: 28 set. 2013.
382
DUARTE, Milton Joeri Fernandes. Música e construção do conhecimento histórico em aula. In: SILVA,
Marcos (Org.). História: que ensino é esse? Campinas: Papirus, 2013. p. 209.
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Nas esferas do cotidiano familiar, do lazer e da escola, a forma emotiva é
preponderante, pois ouvir música emotivamente é ouvir mais a si mesmo do que
a própria música. É utilizar-se da música para que ela desperte ou reforce algo já
latente em nós mesmos, em busca de uma identidade com o outro 383.
Temos, assim, a música como representação do cotidiano, ou seja, a partir desses
referenciais, os alunos constroem seu gosto musical (por afetividade ou identificação),
que está intimamente ligado a sua realidade musical. Vale destacar que o ouvir e
entender a música depende da percepção musical384 de cada indivíduo. Com relação ao
ensino, esse aspecto ganha maior intensidade, pois a diversidade cultural com que o
professor lida na sala de aula é enorme, não só em relação à música, mas também
quanto a aspectos culturais, econômicos, sociais e religiosos.
Nesse sentido, as particularidades da música produzem uma interação social entre
aluno e professor, por meio dessa percepção musical. Percebemos que hoje a música é
produto de uma indústria cultural385; sendo assim, cada aluno carrega consigo uma
forma de subjetivá-la de acordo com seu contexto social e cultural, ou seja, os alunos
são influenciados pela “produção e a apropriação da canção (vestimentas,
comportamentos, e dança)”386. Assim, o grande desafio do professor seria como
problematizar a “subjetividade” na sala de aula.
Há tempos, o ensino de História é rotulado de cansativo, decorativo e pouco
atraente, assim, partimos do pressuposto de que as aulas de História são efêmeras,
porque os alunos esquecem muito rápido dos assuntos (conteúdos) propostos, em
virtude de estes não fazerem parte da sua realidade. Fugindo da concepção de história
que está presente na maioria dos currículos brasileiros, uma das soluções propostas para
sair da mera aquisição de informações nas aulas de História seria:
[...] a história, ao contrário do que experimentamos nas aprendizagens escolares,
será significativa se puder estabelecer íntimas conexões com a realidade vivida.
O estudo do passado não como algo morto, senão como “vida vidada, a que
segue vivendo no presente de cada um”; a produção do saber histórico como
instrumento de leitura do mundo387.
383
DUARTE, 2013, p. 219.
384
DUARTE, 2013, p. 210.
385
NAPOLITANO, 2005, p. 27.
386
DUARTE, 2013, p. 211.
387
STEPHANOU, Maria. Instaurando maneiras de ser, conhecer e interpretar. Revista Brasileira de História,
São Paulo, v. 18, fascículo 36, p. 9, 1998.
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Assim, a música possibilita essa conexão com a realidade dos alunos (por fazer
parte do seu cotidiano), cabendo ao professor identificar a realidade em que eles estão
inseridos. Isso implica fazer um diagnóstico da turma para saber quais gêneros musicais
(rock, funk, forró, pagode etc.) os alunos costumam ouvir e, a partir daí, elaborar um
plano de curso que os contemple. Por meio desse diagnóstico, o professor poderá
compreender os “usos e apropriações”388 da música que seus alunos fazem (já que cada
gênero musical tem suas particularidades: uns são de ouvir, outros de dançar ou
possuem as duas características ao mesmo tempo), pois uns ouvem determinado gênero
somente pela letra (enquanto texto) e outros só pela canção em si (melodia, harmonia,
timbre, “batida”): “tudo isso gera o que pretendo definir como consciência musical” 389.
A partir desses apontamentos, surge uma questão: como problematizar o “regime
de escuta” dos alunos em relação à música popular?
Os sentidos enigmático e polissêmico dos signos musicais favorecem os mais
diversos tipos de escuta ou interpretações – verbalizadas ou não – de um público
ou de intelectuais envolvidos pelos valores culturais e mentais, altamente
matizados e aceitos por uma comunidade ou sociedade. A partir dessas
concepções, a execução de uma mesma peça musical pode provocar múltiplas
“escutas” (conflitantes ou não) nos decodificadores de uma mensagem [...] de
acordo com uma perspectiva sincrônica ou diacrônica do tempo histórico 390.
Por outra ótica, concebendo a música como linguagem, podemos dividi-la a
partir de dois pontos: texto e contexto. Dentro dessa perspectiva, a aprendizagem por
parte dos alunos está relacionada ao texto e contexto da música, em outras palavras, o
texto seria a letra em si, que pode ser trabalhada através dos conceitos que ela traz, e o
contexto deve ter sempre a “preocupação com a versão da música” 391, ou seja, propor
uma análise do contexto em que a música foi produzida (localizando-a no tempo e
espaço).
A letra pode ser utilizada de várias formas: “para extração de informações,
desprezando outros aspectos da formação, pois há que se levar em conta as simbologias,
388
DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano – 1: artes de fazer. Ephraim Ferreira Senes. 5. ed.
Petrópolis: Vozes, 2000. p. 40.
389
DUARTE, 2013, p. 211.
390
CONTIER, Arnaldo. Músicas no Brasil: história e interdisciplinaridade. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE
HISTÓRIA, 16., Rio de Janeiro. História em debate. Anais... Rio de Janeiro, 1991, p. 152.
391
NAPOLITANO, 2005, p. 72.
200
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as figuras de linguagem presentes na construção literária das letras” 392; como linguagem
musical393, o que significa analisar a letra da canção (os conceitos presentes nela).
Podemos citar como exemplo as músicas “Mulheres de Atenas, de Chico Buarque, no
capítulo que trata das cidades gregas; Apesar de você, do mesmo autor, sobre a recente
ditadura brasileira”394; Cálice, também de Chico Buarque, que trata da repressão na
ditadura militar no Brasil; Faraó divindade do Egito, interpretada pelo grupo Olodum,
focando na mitologia egípcia (na diversidade de deuses e também nos grandes reis),
temas que ainda são pouco destacados nas aulas de História. Evidenciamos que “a
escolha das canções constitui parte de um „corpo‟ documental que deve estar coerente
com os objetivos da pesquisa ou do curso em questão”395.
Essas letras podem ser trabalhadas aparadas nos conteúdos do livro didático,
como forma de interpretar o período destacado e desenvolver habilidades de análise de
músicas por parte dos alunos. Pertence ao professor a função de adquirir o “conteúdo
específico, através de uma pesquisa bibliográfica básica, neste caso, é condição
fundamental para uma boa seleção documental”396, ou seja, fazer uma seleção das
músicas que vai trabalhar.
Por último, apresentamos outra forma de analisar a letra como fonte documental:
Outra possibilidade, ainda mais abrangente, é a análise de documentos musicais
à luz de um eixo temático. Essa prática permite não só o desenvolvimento de
habilidades de leitura e interpretação do documento musical mas também a
compreensão de conceitos históricos subjacentes às músicas escolhidas 397.
O eixo temático faz parte do conjunto de temas, funcionando como suporte para a
orientação do planejamento e fazendo uma limitação dos conteúdos a serem
trabalhados. No Brasil, quem orienta os eixos temáticos da educação básica são os PCN
(Parâmetros Curriculares Nacionais), que são oferecidos pelo Ministério da Educação.
No entanto, os eixos temáticos são difíceis de serem trabalhados em sala de aula caso
392
ABUD, Katia Maria. Registro e representação do cotidiano: a música popular na aula de História. Cad.
Cedes, Campinas, v. 25, n. 67, p. 5, 2005.
393
ABUD, Kátia Maria; SILVA, André Chaves de Melo; ALVES, Ronaldo Cardoso. Letras de música e
aprendizagem de História. In: ABUD, Kátia Maria; SILVA, André Chaves de Melo; ALVES, Ronaldo
Cardoso. Ensino de História. São Paulo: Cengage Learning, 2010. p. 65.
394
ABUD, 2005, p. 4.
395
NAPOLITANO, 2005, p. 95.
396
NAPOLITANO, 2005, p. 95.
397
ABUD; SILVA; ALVES, 2010, p. 65.
201
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não haja uma metodologia que permita minimamente um diálogo com as fontes usadas.
Segundo os PCN do ensino médio, através das competências e habilidades, o aluno
necessita ter a capacidade de “analisar e interpretar fontes documentais de natureza
diversa”, no caso a música, que pode ser entendida também como linguagem. Esse
ensino através da linguagem musical é condicionado por duas séries: “os ligados à
transmissão do conteúdo e os relacionados à gestão das interações com os alunos, como
as questões da manutenção da disciplina e da motivação da turma” 398.
Dentro dessa perspectiva, o professor pode fazer uma análise contextual das
canções, o que sugere “traçar o mapa dos circuitos socioculturais e das recepções e
apropriações de cada música para que os alunos possam fazer uma análise satisfatória
da estrutura do ritmo e da estrutura da canção”399, atendendo a quatro etapas: criação,
produção, circulação e recepção e apropriação.
A música também pode ser utilizada na sala de aula através da ludicidade: “vale a
pena que a música, mais do que um recurso didático-pedagógico ou uma fonte, é arte e
envolve o lúdico”400. A ludicidade é entendida como uma possibilidade de desenvolver
a criatividade e os conhecimentos dos alunos, a partir da qual se “aprende brincando” e
também interagindo com outros alunos, pois o lúdico desperta o deleite. É necessário
fazer algumas observações acerca do uso da música através de uma proposta lúdica,
seguindo as necessidades de cada faixa etária. Essa metodologia é indicada tanto para os
alunos do ensino fundamental quanto para os alunos do ensino médio, porém a
utilização que este último fará será diferente da do ensino fundamental, pois os alunos
estão em “estados cognitivos” (conceito de Piaget) diferentes. Os alunos do ensino
médio estão (ou deveriam estar) no quarto estágio (das operações formais, que vai dos
12 aos 16 anos, idades variantes de acordo com a interpretação do autor), em que eles
têm a “capacidade” cognitiva para aprender, não entendendo a música na aula como
forma de brincar:
A representação agora permite à criança uma abstração total, não se limitando
mais à representação imediata e nem às relações previamente existentes. Agora a
criança é capaz de pensar logicamente, formular hipóteses e buscar soluções,
398
DUARTE, 2013, p. 220.
399
ABUD; SILVA; ALVES, 2010, p. 66 apud NAPOLITANO, Marcos. História & Música: história cultural
da música popular. 2. Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 100-102.
400
ABUD; SILVA; ALVES, 2010, p. 76.
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sem depender mais só da observação da realidade. Em outras palavras, as
estruturas cognitivas da criança alcançam seu nível mais elevado de
desenvolvimento e tornam-se aptas a aplicar o raciocínio lógico a todas as
classes de problemas401.
Isso significa dizer que para o uso da música através de uma proposta lúdica
deve-se considerar a faixa etária da turma. No entanto, essa forma de ensino pode ser
voltada também para o ensino fundamental, sendo exigidos apenas desenvoltura,
interesse, preocupação e compromisso do professor para que isso se faça possível e
executável.
A partir dos questionamentos levantados sobre o emprego da música na sala de
aula, vemos que esta constitui uma possiblidade metodológica de ensino de História,
tanto para o ensino fundamental quanto para o ensino médio. Podemos tratá-la como
representação do cotidiano, como linguagem e também através de uma proposta lúdica,
lembrando que, antes de trabalhar com essas três instâncias, o professor deve fazer um
diagnóstico da turma e averiguar qual o gosto musical dos alunos. Percebemos que as
letras podem ser trabalhadas de várias formas, abordando o texto e o contexto de sua
produção. É importante ter sempre o cuidado de fazer um levantamento musical, o que é
necessário como uma ponte com o conhecimento histórico, em especial, com relação
aos conceitos trabalhados.
A música pode também ser usada através de uma leitura crítica, despertando nos
alunos uma consciência musical. Esse aspecto pode ser inserido na aula de História por
meio de uma relação com a realidade do aluno, notando que este participa de um regime
de escuta musical que é norteado pela indústria cultural. É necessário fazer algumas
observações e ter alguns cuidados: pensar abordagens musicais que de fato estimulem a
participação dos alunos e ter cuidado com a seleção musical. Outro ponto essencial ao
professor de História é perceber que a análise contextual da música deve atender a
quatro quesitos básicos: criação, produção, circulação e recepção e apropriação e que
essa metodologia não pode ser vista como uma saída imutável para aulas normais
(entendidas através de explicação do conteúdo). Dessa forma, o trabalho com música na
aula de História é uma metodologia que complementa as aulas, levando novidades à sala
401
Disponível em: <http://penta3.ufrgs.br/midiasedu/modulo11/etapa2/construtivismo.pdf>. Acesso em: 02
out. 2013.
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de aula, estimulando a produção de conhecimento no estudante e tornando as aulas mais
participativas, por fazer uma ponte direta com a realidade dos alunos.
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AS REPRESENTAÇÕES DE BRASIL NAS CANÇÕES POPULARES DE
“BOM” E “MAU” GOSTO PRODUZIDAS AO LONGO DO SÉCULO XX
Maria Letícia Silva Ticle402
Isabela Lemos Coelho403
Maíra Maduro Leão404
Resumo:
As canções podem ser usadas como instrumentos para o ensino e a aprendizagem na
Educação Básica. A partir dos temas “As representações de Brasil criadas e difundidas
pelas novelas na década de 1990” e “A relação entre o desenvolvimentismo e os gêneros
musicais, a Bossa Nova e o Tropicalismo” foram preparados cursos de curta duração
para alunos e professores do Ensino Fundamental e Médio de duas escolas de educação
básica da rede estadual de ensino de Minas Gerais.
Palvras-chave: Canção popular brasileira. Ensino de História. Educação Básica.
Abstract:
Songs can be used as teaching and learning tools in Basic Education. The subjects
“Representations of Brazil created and diffused by soap operas during the 1990´s” and
“The relation between State´s development strategy and music genres, Bossa Nova and
Tropicalismo” were the basis to elaborate short term courses to students and teachers
from two Minas Gerais state´s public schools.
Keywords: Brazilian popular song. History teaching. Basic Education
Instituições financiadoras/ parceiras
Pró-Reitoria de Extensão da UFMG, Gerência de Extensão da Fundação Clóvis Salgado, Centro Pedagógico da UFMG, Escola
Estadual Olegário Maciel, Escola Estadual Sagrada Família II, Centro de Musicalização Infantil da Escola de Música da UFMG.
402
graduada em História pela UFMG, modalidade licenciatura, bacharelado em andamento.
[email protected] (31) 8669-2819, Orientadora: Miriam Hermeto de Sá Motta
403
graduanda em História pela UFMG, modalidade licenciatura. [email protected] (31) 94516328, Orientadora: Miriam Hermeto de Sá Motta
404
graduanda em História pela UFMG, modalidade licenciatura. [email protected] (31) 8815-6028,
Orientadora: Miriam Hermeto de Sá Motta
205
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INTRODUÇÃO
O presente trabalho diz respeito uma ação pontual de um dos projetos do Programa de
Extensão Ensino de História e Linguagens: da graduação à educação básica, práticas
de leitura documental do Departamento de História da Universidade Federal de Minas
Gerais. O Programa tem o intuito de refletir acerca das possibilidades de uso de fontes
históricas em diferentes linguagens na sala de aula do Ensino Básico – literatura,
história em quadrinhos, documentos escritos e iconográficos, cinema e canções. A
articulação entre a pesquisa e o ensino da disciplina na Educação Básica dá a
oportunidade aos alunos de graduação de vivenciarem a prática docente escolar de uma
forma conectada ao universo acadêmico. Aos alunos das escolas, por sua vez, possibilita
o contato com diferentes tipos de documentos, observando como eles servem de fonte
para a construção do discurso histórico e participando desse processo.
O projeto em questão leva o nome de Os Brasis na canção popular e este artigo
irá tratar da ação realizada em parceria com duas escolas estaduais de Belo Horizonte –
Escola Estadual Olegário Maciel e Escola Estadual Sagrada Família II 405. Em abril e
maio de 2013, diversas instituições de Belo Horizonte receberam o contato de membros
do grupo de extensão e de sua supervisora, Míriam Hermeto, para que o projeto fosse
apresentado e uma proposta de parceria fosse realizada. As duas escolas citadas acima
demonstraram grande interesse e disponibilidade em receber os alunos extensionistas. 406
A proposta era de realização de cursos de curta duração, voltados para alunos,
professores e funcionários interessados, tratando de temáticas da História do Brasil no
século XX, mais especificamente sobre as representações sociais de Brasil, tendo
canções populares nacionais como documentos históricos ou objetos de estudo.
O grupo concluiu o primeiro semestre e iniciou o segundo com encontros
regulares para a discussão de textos teóricos e elaboração de propostas gerais e
específicas para o curso. Os elementos que compõem a canção (harmonia, letra, ritmo),
405
As atividades ainda estavam sendo realizadas no período da VIII Semana de História Política da
UERJ, portanto este artigo não pretende apresentar conclusões acerca do trabalho, mas sim abordar seu
processo de concepção e realização.
406
O Centro Pedagógico da UFMG e a Fundação Clóvis Salgado também firmaram parceria com o
projeto. As atividades acontecem no formato de Grupos de Trabalho Diferenciados (GTDs) para os alunos do
2º e 3º ciclo do CP e curso de formação de professores no Palácio das Artes, por meio da Gerência de
Extensão da FCS.
206
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a maneira de proceder em sua análise, suas formas de produção e circulação nos
diferentes contextos históricos do século XX, os variados estilos e vertentes, as teorias
sobre representação social e história cultural, história e músic e o ensino de história
foram alguns dos temas discutidos nas reuniões. Os autores lidos foram Míriam
Hermeto (2012), Kátia Abud (2005), Sandra Pesavento (2003), Marcos Napolitano
(2002), Santuza Naves (2001), Luiz Tatit (2001), Roger Chartier (1991) e Michel de
Certeau (1996).
Refinou-se o tema central do curso de curta duração em torno do problema
histórico de quais são as representações sociais de Brasil na canção popular de “bom” e
de “mau” gosto. Foi definido o formato do curso para 5 sessões em cada escola, uma
vez por semana, sendo a primeira de caráter introdutório e de apresentação geral e as
demais formatadas e conduzidas por duplas de extensionistas. Os temas propostos para
as 4 sessões seguintes foram: A diversidade de gêneros e feições do samba; A censura e
o engajamento nas ditaduras brasileiras; As representações de Brasil criadas e
difundidas pelas novelas; A relação entre o desenvolvimentismo e os gêneros musicais,
a Bossa Nova e o Tropicalismo. Foram escolhidos os dois últimos para serem
esmiuçados neste artigo.
CANÇÃO E REPRESENTAÇÃO
Um dos objetivos deste projeto é ir além do “ouvir música”, mas “pensar a música”,
como proposto por Marcos Napolitano (2002). Nesse caso específico, a canção vem ser
a protagonista de todo o raciocínio e das propostas das ações do grupo de extensão 407.
Produto do século XX, a canção é uma forte referência cultural no Brasil e está presente
no dia a dia da população, inclusive dos jovens estudantes do Ensino Básico. Possuem
historicidade e incontáveis possibilidades de usos e interpretações no ensino de História,
seja como objeto de estudo ou fonte documental. As cinco dimensões da canção a serem
analisadas são as mesmas de um documento de qualquer outra natureza: material,
descritiva, explicativa, dialógica e sensível. (HERMETO, 2012)
A canção é um formato específico da música popular e pressupõe de letra
conjugada à melodia. Uma de suas características é o fato de seu registro ser bastante
407
Além das autoras deste artigo, o grupo é composto por mais cinco alunos do curso de História da UFMG,
modalidade Licenciatura: Alison Loureiro, Bruno Duarte Guimarães Silva, Bruno Vinicius de Morais, Érika
França e Raquel Neves de Faria.
207
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específico, através da gravação mecânica, tecnologia do século XX. Dessa forma, a
canção não pode ser dissociada dos fenômenos da industrialização e urbanização, sendo
uma forma de tratar essa realidade a partir desse século.
O conceito de representação no âmbito da História Cultural diz de construções
de realidades paralelas a partir do real, seja pro meio de instituições, discursos, ritos,
normas ou produtos, como é o caso da canção. (PESAVENTO, 2004) Os sentidos e
simbolismos presentes nas mais variadas formas de representação dão a elas a
impressão de realidade, na medida em que se apresentam e são encaradas como
naturais. As canções são representações riquíssimas de realidades as quais só podemos
ter a ilusão do acesso através de documentos que são preservados e se preservam ao
longo do tempo, como ela o é. Como dito anteriormente, é a gravação que dá essa
perenidade ao documento aqui tratado.
O que a canção carrega em sim é muito mais do que o que sua letra expressa, ou
até mesmo sua harmonia, arranjo, interpretação... É um conjunto de ideias e valores da
época de sua produção, de quem a compôs, de quem a entoa, de quem a produz,
distribui e recepciona. Sim, porque o público não é passivo e simples auditor da canção,
ele atribui certos valores, acrescenta noções de representação social que nem sempre
estavam previstas pelos demais indivíduos que compõem sua rede de distribuição.
Ao se trabalhar a canção como documento histórico ou objeto de estudo na sala
de aula do Ensino Básico, não se pretende reconstruir determinada realidade ou desvelar
uma verdade através da canção. Representação é construção e reconstrução,
interpretação e reinterpretação, legitimação de um discurso inserido em um campo de
forças e de poder simbólico (BOURDIEU, 1989) a partir das concepções de realidade
do produtor do documento.
Para Roger Chartier (1991), as práticas e estruturas sociais são produzidas a
partir de representações que dão sentido ao mundo, ou seja, é como se a própria
realidade não passasse de representação no fim das contas. O sentido dessa
representação é atribuído de acordo a leitura que se faz dela – em determinado tempo,
espaço, lugar social, processo histórico. Ao apresentar aos alunos canções produzidas no
passado e, algumas vezes, sobre outro passado, cruzando-as com outras fontes como
imagens e documentos de governo, lhes são atribuídos sentidos novos e que dão maior
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inteligibilidade a um tempo não vivido por eles.
AS REPRESENTAÇÕES DE BRASIL CRIADAS E DIFUNDIDAS PELAS
NOVELAS NA DÉCADA DE 1990
Partindo desse tema, a dupla responsável realizou a leitura atenta de Diversificação e Novela de
Intervenção: dos Anos 1990 em Diante, do livro O Brasil Antenado. A Sociedade das novelas,
de Esther Hamburguer. A autora faz uma discussão interessante sobre a telecomunicação no
Brasil da década de 1990, focando em alguns casos específicos da programação aberta. A
concorrência entre as emissoras é analisada sob o prisma das representações de Brasil colocadas
por cada uma delas por meio de sua programação, seja pelas novelas ou espaços jornalísticos.
Mesclando as dimensões da realidade e da ficção nas tramas, a televisão apresenta-se como
portadora de um discurso sobre o real que até então não cabia em sua grade diária. As chamadas
novelas de intervenção são como portadoras de uma missão, de um serviço a ser prestado à
população abordando questões sociais quase de forma documental. Os acontecimentos de um
país ainda em processo de redemocratização leva a política e outras referências públicas para a
tela, sem abandonar a esfera privada e seus dramas, elemento que se manéem forte nos folhetins
e programas de cunho dramático-policial.
Duas das novelas que figuram o capítulo de Hambúrguer são Pantanal (TV Manchete,
1990) e O Rei do Gado (Rede Globo, 1996). Tendo a terra (solo, chão) e o trabalho rural como
pano de fundo para as duas tramas, foi percebido que uma análise mais acurada dessas novelas
seria um bom mote para uma das sessões do curso de curta duração nas escolas estaduais.
Chegou-se ao título mais apropriado para a sessão – Como as novelas dos anos 90
representaram o passado do Brasil: os casos de “O Rei do Gado” e “Pantanal”. O problema
histórico que serviu de base para o planejamento e a condução da sessão girou em torno do
conflito entre o trabalho e a terra, e se este era um fenômeno recente no Brasil.
Após leitura das sinopses das duas novelas, de assistir às suas aberturas e audição de
suas trilhas sonoras, o formato geral do curso foi estabelecido:
Objetivos Gerais: Observar e comparar as representações da terra e do trabalhador rural no
Brasil, veiculadas por algumas canções que fazem parte da trilha sonora das novelas Pantanal e
O Rei do Gado.
209
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Objetivos específicos:
* Questionar a concepção de que as imigrações europeias em princípios do século XX foram o
início dos conflitos relacionados à terra, ao trabalho e a propriedade – breve exposição da
questão da terra no Brasil desde a chegada dos portugueses
* Abordar as representações do campo em cada novela – a natureza exuberante, a exploração da
terra e de seus recursos naturais e a idealização do campo em Pantanal; a propriedade privada e
a exploração do trabalho em O Rei do Gado; a possibilidade de enriquecimento pelo trabalho
rural no Brasil em ambas as novelas.
Estratégias didáticas:
*Pequena introdução do tema; contextualização da década de 1990, esclarecendo a relação das
tramas com a realidade (instabilidade política e econômica do país, movimentos sociais como
algo novo, no sentido de reconhecimento, não de existência);
*Passar as aberturas de cada novela;
*Falar das sinopses e da recepção das novelas pelo telespectador;
* Colocar em discussão alguns elementos presentes nas canções e nas imagens das aberturas que
remetem à questão da terra e de sua representação, a partir dos objetivos gerais e específicos
(caráter épico, exaltação da natureza, nostalgia em relação aos valores do passado, relação do
trabalhador com a terra, sentir-se deus, o verdadeiro “dono” da terra, redescobrimento da
América, luta pela preservação da terra e luta pela posse da terra);
*Tocar as músicas e questionar os itens abordados anteriormente – o que foi percebido no
sentido de como as canções representam o meio rural e a questão da terra: os intérpretes, o
arranjo, a melodia, a letra...
*Como o trabalhador é representado em cada canção - Imigração, MST, ocupação do oeste
brasileiro...
Recursos necessários: projetor, telão, caixa de som, notebook.
Canções selecionadas: O Rei do Gado – Orquestra da Terra (1996); Pantanal – Marcus Vianna
e Sagrado Coração da Terra (1990); Admirável Gado Novo – Zé Ramalho (1979); Tocando em
Frente – Almir Sater (1990)
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Para aprofundar na questão da terra, foi assistido o documentário O Pontal do
Paranapanema, de Chico Guariba (2005), que contou com a colaboração do historiador
Paulo Henrique Martinez408.
A RELAÇÃO ENTRE O DESENVOLVIMENTISMO E OS GÊNEROS
MUSICAIS, A BOSSA NOVA E O TROPICALISMO
Pensando nessa mesma linha, da canção como uma narrativa que veicula representações
sobre determinada sociedade em um contexto específico, a dupla responsável pela
quinta sessão do curso a ser ministrado elaborou uma proposta de análise de dois
importantes movimentos musicais, a Bossa Nova e o Tropicalismo. Nesse sentido,
propôs trabalhar esses dois momentos cruciais da história da música brasileira em
consonância com alguns aspectos essenciais dos respectivos contextos históricos.
Assim, ao tratar da Bossa Nova como um movimento que se originou na década
de 1950, especialmente no Rio de Janeiro, procurou-se relacionar a concepção estética e
política de seus fundadores com o contexto histórico no qual se insere. Dessa forma, ao
se pensar na conjuntura do país nos anos 50, um dos aspectos cruciais para a
compreensão da época é o desenvolvimentismo, que pode ser encarado um
direcionamento da política econômica e social do governo, além de ter se tornado uma
característica daquela sociedade em meio ao processo de crescente urbanização e
desenvolvimento. A partir dessa perspectiva, direcionamos o estudo da Bossa Nova
como um movimento estritamente ligado ao ambiente urbano modernizado, à classe
média consolidada no Brasil e ao próprio espírito do governo JK. Essa visão do país
veiculada pelos bossa-novistas aparece também na própria estética das canções, pela
contenção da melodia, da letra e da própria performance dos intérpretes, como se
percebe pelo consagrado “banquinho e violão” ,principal marca da Bossa Nova.
Já o Tropicalismo é analisado sob a ótica do contexto dos anos 60 e 70, vividos
em meio a uma ditadura militar que, ao adotar estratégias de repressão no âmbito
cultural e político, em muito influenciou a produção musical. Nesse sentido, os
expoentes do Tropicalismo buscavam uma nova forma de expressão que fosse além dos
408
O professor e historiador Paulo Henrique Martinez é Livre-Docente em História Ambiental pela
Universidade Estadual Paulista (2010), doutor em História Social (1999) e graduado em História (1988) pela
Universidade de São Paulo. Nosso agradecimento especial ao professor, que indicou rica bibliografia a
respeito do conflito fundiário no Brasil.
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moldes aceitos e consolidados no ambiente cultural no Brasil. Assim, os tropicalistas
compunham uma arte que criticava não especificamente o quadro político, mas sim os
princípios morais consolidados na sociedade, provocando um estranhamento pela
própria conduta dos artistas, ampliando o foco da arte para os modelos
comportamentais. Nesse sentido, a análise do Tropicalismo proposta pelo curso se
relaciona ao desbunde de seus expoentes, privilegiando a vertente musical do
movimento, mas com a consciência das influências de outras manifestações artísticas
para a consolidação da visão tropicalista, tais como o teatro de José Celso Martinez, o
cinema de Glauber Rocha e a arte contemporânea de Hélio Oiticica.
Assim, após o estudo dos dois movimentos e da audição de várias canções que
fossem significativas para a compreensão dos aspectos propostos, o formato geral do
curso foi estabelecido, pensando como título “Bossa Nova e Tropicalismo:
desenvolvimentismo e desbunde”. O problema histórico que norteou esse formato foi:
Como a sociedade foi representada pelos dois movimentos, a partir da conjuntura das
décadas de 50 e 60?
Objetivos gerais: Pensar a canção como uma fonte histórica e, portanto, trabalhá-la na escola
como uma obra datada e produzida por homens em um contexto específico.
Objetivos específicos: Analisar através das canções, suas performances e capas dos discos em
que foram lançadas os aspectos de desenvolvimentismo no movimento bossa-novista e de
desbunde no tropicalismo.
Estratégias didáticas:
*Condução de alguns aspectos a serem observados nos vídeos das canções;
*Vídeos das performances dos intérpretes;
*Fichas de análise dos parâmetros musicais e poéticos409 das canções selecionadas
(slides).
*Contextualização dos dois movimentos: aspectos básicos, comparando com os vídeos e
letras;
*Capas – levar os alunos a perceberem as características trabalhadas até então na
estética das capas.
409
Conceitos explorados pelo autor Marcos Napolitano no livro “História e Música”, 2002.
212
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Recursos necessários: Computador, data show, caixas de som.
Canções selecionadas: Para trabalhar o Tropicalismo, a canção escolhida foi Alegria, Alegria –
Caetano Veloso (1967). Já para a Bossa Nova, a dupla, até o momento da escrita desse trabalho,
não havia chegado a um consenso quanto a melhor canção para trabalhar o aspecto do
desenvolvimentismo, chegando a pensar em Desafinado – João Gilberto (1958/59) e canções de
Carlos Lyra.
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LIBERDADE E RESISTÊNCIA NOS PANFLETOS DO GRUPO ROSA
BRANCA
Maria Visconti Sales410
Resumo:
Rosa Branca foi um grupo de resistência não violenta que surgiu em Munique, na
Alemanha, entre os anos de 1942 e 1943. Seus membros eram estudantes universitários
e usaram dos panfletos para difundir a resistência ao regime nazista. Este trabalho busca
uma análise dos panfletos e de seus conceitos: liberdade e resistência passiva. O
primeiro é um ideal de liberdade de expressão, individual e política; o segundo é uma
forma de agir que objetiva a garantia deste ideal suprimido.
Palavras-chave: Rosa Branca; panfletos; liberdade.
Abstract: White Rose was a passive resistance group that rose in Munich, Germany, in
the years of 1942-1943. The members of this group were students from Munich
University who used the leaflets to spread the resistance against the Nazi government.
This paper analyzes the leaflets and its concepts: freedom and passive resistance. The
first one is an ideal of freedom of speech, individual and political; the second one
consists in a way of acting that guarantees the liberty which was suppressed.
Key-words: White Rose; leaflets; freedom.
Rosa Branca foi um grupo de resistência passiva que surgiu em Munique, na Alemanha
hitlerista, entre os anos de 1942 e 1943. Seus membros eram estudantes da Universidade
de Munique, sendo estes: os irmãos Sophie e Hans Scholl, Christoph Probst, Willi Graf,
Alexander Schmorell e o professor universitário Kurt Huber. O grupo contou com os
panfletos como forma de disseminar a resistência ao regime nazista, sem que seus
integrantes fossem descobertos, por isto, seus membros levavam os panfletos em longas
viagens de trem para as principais cidades da Alemanha, como Hamburgo, Berlim,
Colônia, Bonn, Frankfurt e Saarbrücken. Posteriormente, foram formadas novas células
do Rosa Branca em algumas dessas cidades, onde os panfletos eram distribuídos nas
universidades por amigos dos membros de Munique. Estas novas células ainda
1
Graduanda da Universidade Federal de Minas Gerais; Endereço eletrônico: [email protected].
Telefone: 0xx31 88658902. Endereço para correspondência: Avenida Flávio dos Santos, 292, apto 602,
Bairro Floresta, Belo Horizonte, MG, CEP: 31015-150. A pesquisa contida neste trabalho foi feita sob
supervisão da orientadora Profª Drª Heloísa Maria Murgel Starling.
214
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permaneceram ativas por um período curto de tempo mesmo depois da morte dos
fundadores do grupo.
O presente trabalho busca uma análise dos panfletos do grupo Rosa Branca, dando
enfoque maior aos principais conceitos adotados em seus escritos, sendo estes:
liberdade e resistência passiva. Enquanto o primeiro é um ideal de liberdade de
expressão, liberdade individual e liberdade política, o segundo se constitui em uma
forma de agir que objetiva a garantia deste ideal suprimido pelo Nacional Socialismo.
Para os seus membros, a resistência passiva se constituía principalmente no boicote total
aos mecanismos do Partido Nazista em todos os seus níveis, de modo que o governo de
Hitler fosse derrubado. Além disso, pretendo fazer uma discussão acerca do conceito de
culpa, que também é tratado nos panfletos do Rosa Branca.
Eles produziram seis panfletos no total411, sendo, cada um deles, de no máximo
três páginas e geralmente possuíam citações de filósofos, poetas ou até mesmo da
Bíblia. Os estudantes não possuíam nenhuma forma de financiamento e eram
cuidadosos para que as pessoas que recebiam seus panfletos também não fossem
descobertas412. Os motivos da escolha do nome “Rosa Branca” ainda permanecem
obscuros, mas acredita-se que seja uma forma de representação da pureza e inocência
frente ao mal, mais um símbolo artístico do que político. 413
Todos os membros do grupo foram encontrados pela Gestapo e assassinados por
crime de alta traição, inclusive os membros das outras células que foram criadas em
cidades vizinhas. Christoph Probst, Hans e Sophie Scholl foram assassinados em 23 de
fevereiro de 1943, enquanto Willi Graf, Alexander Schmorell e o professor Kurt Huber,
foram mortos em 13 de julho do mesmo ano.
411
Hoje é conhecido o excerto do sétimo panfleto que estava ainda sendo produzido e que não chegou a ser
distribuído. Hans Scholl rasgou o rascunho do mesmo quando foi preso pela Gestapo, em 18 de fevereiro de
1943, mas esta foi capaz de recuperar e reconstruir os pedaços do panfleto. O excerto está disponível em:
DUMBACH, Annette; NEWBORN, Jud. Sophie Scholl and the White Rose. USA: Oneworld, 2007, pp. 204205.
412
É importante lembrar que estas pessoas eram escolhidas de maneira aleatória.
413
Durante o interrogatório feito pela Gestapo, Hans Scholl afirma que o nome deriva de uma novela
espanhola ele havia lido. Existiu, de fato, um livro publicado em Berlim em 1931 pelo autor alemão B.
Traven, chamado “The White Rose”. O livro trata da exploração de uma terra indígena no México por uma
companhia de petróleo americana, supostamente baseado em uma história real, e há possibilidade de Hans e
Alex o terem lido, mas nada foi confirmado.
215
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A filósofa política Hannah Arendt é, neste momento inicial da pesquisa, minha
principal fonte de análise teórica acerca das questões da liberdade e da política no
governo Nacional Socialista. A autora trata do caráter apolítico dos regimes
totalitários414, tendo em vista que, em sua forma de análise, o sentido primeiro e único
da política é a liberdade. Ao associar diretamente liberdade com política, ela entende
que a liberdade se liga a alguma forma de ação. O Rosa Branca possui uma associação
direta a este pensamento de Hannah Arendt, principalmente por grafarem a palavra
governo sempre entre aspas ao se referir ao estado nazista e por não entenderem o
nazismo como uma forma legítima ou racional de governo – apesar de não proporem
nenhuma outra forma.
Segundo Hannah Arendt, o movimento dos regimes totalitários é baseado no fim
da liberdade, seja ela no campo público ou no campo privado, de modo que este tipo de
governo não poderia então, ser considerado político. A questão da impossibilidade da
vivência privada em um regime totalitário é perfeitamente visível se levarmos em
consideração o grande número de denúncias provenientes de vizinhos ou parentes por
conta de declarações impróprias ao Führer, por exemplo. Ou seja, nem mesmo dentro do
ambiente familiar haveria liberdade para expressar uma opinião que fosse, de alguma
forma, contrária ao regime415. Para Hannah Arendt, é somente nos regimes totalitários
que ocorre a “total eliminação da própria espontaneidade, isto é, da mais geral e
elementar manifestação da liberdade humana” 416.
A liberdade pública também é suprimida pelo governo nazista, assim como a
liberdade política, se levarmos em consideração o regime de partido único. A discussão
e o confronto de diferentes opiniões e de diferentes ideologias são totalmente excluídos
da esfera de possibilidades do Nacional Socialismo. Não havia um espaço em que fosse
permitido algum tipo de debate político; o governo se baseava na vontade do Führer e a
participação popular só existia se fosse favorável aos ideais do Partido. Como lembra
414
Não entrarei numa discussão aprofundada acerca da pertinência do conceito de “Totalitarismo”; apenas
faço referência à autora por acreditar que sua análise da política e da liberdade no âmbito do nazismo – que é
o regime em foco deste trabalho - é rica para a discussão presente.
415
O historiador Robert Gelattely faz uma análise dessas denúncias e conclui que, de todas as prisões feitas
pela Gestapo, a maioria foi originada de denúncias provenientes da própria população. Sua tese consiste em
desconstruir a ideia de que a população alemã não foi participativa no governo de Hitler, apenas passiva ou
indiferente. Ver: GELLATELY, Robert. Apoiando Hitler: consentimento e coerção na Alemanha nazista.
Rio de Janeiro: Record, 2011.
416
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 133.
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Arendt: “sem um âmbito público politicamente assegurado, falta à liberdade o espaço
concreto onde aparecer” 417. E, se a liberdade está vinculada à ação – sendo a expressão
da opinião também uma forma de ação -, é possível entender a resistência do grupo
Rosa Branca, tendo em vista a impossibilidade de declarar sua opinião contrária acerca
do regime e de propor mudanças. Para Hannah Arendt “os homens são livres –
diferentemente de possuírem o dom da liberdade – enquanto agem, nem antes, nem
depois; pois ser livre e agir são a mesma coisa” 418.
Por este motivo, o Rosa Branca demanda de maneira tão clara a liberdade de
expressão. Mais do que qualquer outro tipo de liberdade, para estes estudantes, era
fundamental que fosse possível expressar sua opinião, suas ideias e seus pensamentos,
sem o perigo de repressão ou censura. Por meio dos panfletos, o grupo demandava esta
liberdade suprimida pelo governo de Hitler e tentavam fazer seus leitores refletir acerca
do que estava acontecendo na Alemanha e principalmente, tomar uma atitude em meio a
tais acontecimentos. O Rosa Branca afirma que todas as pessoas sabiam do que estava
acontecendo - e citam diretamente o assassinato de milhões de judeus e poloneses419 -,
mas que ninguém se levantava contra o governo:
“Por que dizer a vocês todas estas coisas, já que vocês estão completamente
conscientes delas – ou, se não delas, de outros crimes igualmente graves
cometidos por essa assustadora sub-humanidade? Porque tudo isso toca em um
problema que nos envolve profundamente e força a todos nós a refletir”420
A questão da liberdade aparece de maneira mais clara no sexto panfleto de
resistência, que foi escrito pelo professor Kurt Huber e distribuído na Universidade de
Munique em 18 de fevereiro de 1943 por Hans e Sophie Scholl, quando os mesmos
foram presos pela Gestapo. Este panfleto é dirigido aos estudantes e foi escrito depois
da derrota da Alemanha em Stalingrado, em janeiro de 1943, derrota que o grupo atribui
exclusivamente a Hitler. No panfleto, os integrantes do grupo Rosa Branca afirmam que
o governo nazista eliminou toda a liberdade de expressão e de opinião e demandam que
417
Idem, Ibidem, p. 195.
418
Idem, Ibidem, p. 199.
419
No Segundo Panfleto de Resistência, por exemplo, os estudantes não discutem a questão dos judeus,
apenas se limitam a dizer que desde a invasão da Polônia, milhares foram mortos, e que, independente da
opinião pessoal de cada um acerca dos judeus, os mesmos são seres humanos e seu assassinato se constitui
em um crime.
420
Segundo Panfleto, acerca do extermínio de judeus e poloneses pelos nazistas. Disponível em:
DUMBACH, Annette; NEWBORN, Jud. Sophie Scholl and the White Rose. USA: Oneworld, 2007, pp. 190192.
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Hitler devolva a liberdade individual e a honra do povo alemão. Este panfleto faz uma
crítica à SA, à SS e à Juventude Hitlerista que abolem a liberdade intelectual por meio
de “frases vazias” e que, segundo os estudantes, tentavam cegar as pessoas por meio de
discursos e palestras que não propunham um aprendizado verdadeiro: “Em dez anos de
destruição de toda a liberdade material e intelectual, de toda a fibra moral do povo
alemão, eles demonstraram suficientemente o que eles entendem por liberdade e honra”.
421
Alguns historiadores do governo nazista comumente se deparam com a ideia –
que foi amplamente divulgada – de que não houve resistência, não existindo então, uma
distinção clara entre nazistas e alemães. Na realidade esta é uma questão muito
complexa que possui diversos pontos que devem ser analisados. Não podemos,
entretanto, aceitar a explicação simplista de que a população alemã facilmente aceitou o
regime de Hitler sem se manifestar, ou porque não sabia das atrocidades que aconteciam
ou porque todos concordavam com o ideal nazista. Esta linha de raciocínio nos leva a
colocar uma força extrema em um governo que, por mais opressivo que tenha sido,
permaneceu no poder porque a maioria da população permitiu. Ao mesmo tempo, isto
não significa dizer que a população alemã era nazista ou que não houve resistência.
Hitler sofreu diversas tentativas de assassinato durante seu período no governo e
existiram outros grupos como o Rosa Branca que se levantaram contra o Nacional
Socialismo. Segundo Arendt: “as instituições políticas – não importa quão bem ou mal
sejam projetadas, dependem, para sua existência permanente, de homens em ação, e sua
conservação é obtida pelos mesmos meios que as trouxeram à existência” 422.
Desta forma, relativizo a aceitação do regime nazista pela população. Tendo a
concordar com as ideias do historiador Peter Hoffman, especializado em resistência no
período nazista. Segundo este autor, é de certa forma compreensível a chegada de Hitler
ao poder em 1933 sem muitas formas de oposição, contudo, a ausência de resistência
durante o resto de seu governo é que deve ser contestada. Hoffman afirma que, neste
período inicial, a população não se manifestou primeiramente por não terem nenhuma
identificação política com a antiga forma de governo existente, a República de Weimar.
421
Sexto Panfleto de Resistência, p. 202. As traduções dos excertos dos panfletos foram feitas por mim, do
inglês para o português. Disponível em: DUMBACH, Annette; NEWBORN, Jud. Sophie Scholl and the
White Rose. USA: Oneworld, 2007, pp. 201-3.
422
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 200.
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A experiência democrática não conquistou a simpatia da população, que provavelmente
também não aceitaria um regime comunista por associarem comunismo à desordem e
guerra civil. O autor também coloca que o surgimento de um regime totalitário era algo
completamente novo, de modo que a população não compreendia exatamente o que
estava acontecendo:
“O problema foi, então, não necessariamente a falta de vontade de resistir, mas,
na realidade, a falta de compreensão da natureza do Nazismo. Incerteza e perda
dos valores básicos, acrescidos de ignorância, levaram a uma abstenção da
compreensão e desamparo em meio ao aparecimento de um leviatã totalitário que
não se embasava em nenhum ditame humano ou de lei”. 423
Ian Kershaw acrescenta a ideia de que um regime autoritário não era mal visto por
todas as pessoas e Hitler, em seus discursos, prometia emprego e melhorias econômicas,
o que era o que a população mais precisava naquele momento pós-crise de 29.
Acredito que houve uma grande indiferença e conivência da população, o que não
significa que o ideal nazista era compartilhado por todos, apesar de uma grande parcela
da população também ter sido bastante colaborativa e ativa no sentido de contribuir com
a Gestapo por meio de denúncias. Neste tipo de estudo histórico, é necessário um
esforço maior de compreensão, de reflexão e de análise, para não cair em generalizações
e resposta simplistas. Muitas pessoas tinham medo de se opor ao regime de alguma
forma, devido à formação do Estado Policial (na realidade, Estado da SS). Todavia, o
terror, como demonstra Robert Gellately424, não pode ser usado como justificativa para
explicar a ascensão do Terceiro Reich e tampouco, seu apoio pelos alemães. Por outro
lado, é claro que muitas outras pessoas se opuseram ao nazismo desde o começo, mas
devemos entender que a resistência não foi tão grande assim. A maioria da população
acreditava e aceitava o governo do Führer425.
423
HOFFMAN, Peter. The History of the German resistance, 1933-1945. 3rd English ed. Canada: McGillQueen‟s University Press, 2001, p. 8.
424
GELLATELY, Robert. Apoiando Hitler: consentimento e coerção na Alemanha nazista. Rio de Janeiro:
Record, 2011.
425
Acredito que é necessária uma reflexão sobre o sentido da palavra “resistência” em um governo totalitário.
Alguns autores afirmam que atos de discordância – como não fazer o cumprimento de “Heil Hitler”, ou de
não comparecer aos comícios e desfiles – não podem ser considerados atos de resistência por não serem
atitudes contrárias ao governo, ou ao governante, declaradas, ainda que anônimas. Outros autores afirmam
que atos de resistência seriam apenas aqueles atos que culminavam em uma atitude efetiva para mudar a
situação, ou seja, atos que declaradamente propunham a derrubada do governo – como os conspiradores do
assassinato de Hitler. Certos autores acreditam que a população, de maneira geral, não resistiu, ou que
resistiu pouco e que poderia ter resistido mais, enquanto outros tentam defender que a Alemanha não era
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Hannah Arendt chega a tratar um pouco da resistência alemã em seu livro
Eichmann em Jerusalém. Sua visão vai de encontro com a tratada até agora: “na
realidade, a situação era tão simples quanto desesperadora: a esmagadora maioria do
povo alemão acreditava em Hitler [...] Contra essa sólida maioria, ficava um número
indeterminado de indivíduos isolados, completamente conscientes da catástrofe nacional
e moral”. 426
Para a filósofa, o Rosa Branca foi o único tipo de resistência – deixando de lado
os “conspiradores”, aqueles que planejaram o assassinato de Hitler – que sabia
distinguir o certo do errado, que nunca tiveram nenhuma “crise de consciência”, que
não se calaram e principalmente, que tomaram uma atitude. No entanto, ela considera
que o Rosa Branca se constituía um elemento isolado entre a população, pois, os que
não concordavam com o governo, geralmente não tomavam nenhuma medida “prática”
e conservavam seu silêncio.
A “crise de consciência” é trabalhada por Arendt de forma mais profunda em seu
livro Responsabilidade e Julgamento. Discutindo as questões morais, Hannah Arendt
demonstra que não é possível tratar de algo como culpa coletiva de toda a população
alemã “desde Lutero a Hitler”
427
, principalmente porque, ao generalizar a culpa, ela se
torna de ninguém. O regime nazista introduziu na sociedade um novo conjunto de
valores e concomitantemente, um corpo jurídico ligado a esses novos valores. Ela
afirma que diante do horror, de uma situação de exceção, houve um colapso quase
universal de julgamento pessoal:
“o que acontece à faculdade humana de julgamento quando confrontada com
ocorrências que significam o colapso de todos os padrões costumeiros, e assim,
não possuem precedentes, no sentido em que não são previstas nas regras gerais,
nem mesmo como exceções a essas regras?” 428.
Mediante a estas reflexões, Arendt demonstra que os “não participantes”
permaneceram com o mesmo sistema de valores - ou seja, com o mesmo julgamento de
certo e errado – que eles possuíam antes de Hitler, de modo que não assassinavam
nazista e que é preciso relativizar as formas de resistência levando em conta que se trata de um regime
totalitário.
426
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999, pp. 114-5.
427
ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 83.
428
Idem, ibidem, p. 89.
220
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porque se recusavam a viver com um assassino – eles mesmos. Desta forma, a conduta
moral não está relacionada à obediência a nenhuma lei externa, o que, segundo Kant,
diferencia moralidade de legalidade. Ao tratar do imperativo categórico, Kant
demonstra que, se não quero contradizer a mim mesmo, devo agir de uma tal maneira
que “a máxima de meu ato pode se tornar uma lei universal”429. Por isso é melhor, como
demonstra Sócrates, estar em desacordo com os outros do que estar em desacordo
consigo mesmo, e isto também vale para a noção de que é melhor sofrer o mal do que
cometê-lo, pois “se faço o mal, sou condenado a viver junto com um malfeitor numa
intimidade insuportável; nunca posso me livrar dele”
430
. Neste sentido, os alemães da
época nazista que não eram responsáveis – como os integrantes do Rosa Branca -, não
passaram por uma crise moral ou de consciência porque o mal, para eles, não era uma
tentação; eles apenas preferiam morrer a ter que viver com um criminoso. Eles “nunca
duvidaram que os crimes permaneceram sendo crimes mesmo se legalizados pelo
governo”431.
Com o julgamento de Eichmann, a questão da culpabilidade entrou em cena de
forma forte. Afinal, neste tipo de julgamento todos esperavam, como afirma Arendt, um
sádico ou, um louco, quando na verdade, o que foi visto era um homem comum, que
cometeu crimes porque, em sua mente, estava apenas cumprindo seu dever. Por ser
apenas um “dente na engrenagem” de um regime totalitário, levou-se em conta “a
parcela específica de culpa daqueles que não pertenciam a nenhuma das categorias
criminosas, mas que ainda assim desempenharam seu papel no regime, ou daqueles que
apenas silenciaram e toleraram a situação, quando estavam numa posição em que
podiam reclamar” 432.
A questão da culpa do povo alemão também é abordada pelo Rosa Branca. No
segundo panfleto, por exemplo, o grupo fala da apatia do povo alemão, que se
encontrava em um sono profundo e que não enxergava as atrocidades que aconteciam.
Eles afirmam que todas as pessoas sabiam das mortes e de todos os crimes graves
cometidos pelo Nacional Socialismo, mas que não refletiam sobre o assunto: apenas
429
Idem, ibidem, p. 133.
430
Idem, ibidem, pp. 154-5.
431
Idem, ibidem, p. 142.
432
Idem, ibidem, p. 122-3.
221
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aceitavam e tiravam a ideia de suas mentes, para não serem obrigados a se preocupar em
tomar alguma atitude. Consideram todos os alemães culpados, pois foram eles que
permitiram o governo fazer o que fez, mas, ao mesmo tempo, ponderam que ainda havia
tempo para acabar com o regime nazista, pois todos conheciam quem eram os
verdadeiros inimigos. No terceiro panfleto, afirmam que a cada dia que o povo alemão
não se levantava e permitia o “mal” prevalecer, a culpa dos mesmos também crescia.
Hannah Arendt faz uma reflexão acerca dos conceitos de culpa e de
responsabilidade coletiva, apontando a clara diferença entre os mesmos. Para a filósofa,
a culpa é um sentimento pessoal ligado, principalmente, à moralidade, enquanto a
responsabilidade coletiva está inserida no campo político, dentro de uma comunidade.
Neste sentido, é tão errado sentir culpa por algo que não fizemos de fato, como não
sentir culpa por algo que fizemos. Só é possível dizer em um sentido metafórico que
sentimos culpa pelo pecado de nossos pais, da humanidade ou de nossos antepassados.
Porém, podemos sentir responsabilidade por algo que não fizemos:
“Diria que duas condições tem de estar presentes para a responsabilidade
coletiva: devo ser considerado responsável por algo que não fiz, e a razão para a
minha responsabilidade deve ser o fato de eu pertencer a um grupo (um
coletivo), o que nenhum ato voluntário meu pode dissolver [...] Esse tipo de
responsabilidade, na minha opinião, é sempre política, quer apareça na forma
mais antiga em que toda uma comunidade assume a responsabilidade por
qualquer ato de qualquer de seus membros, quer no caso de uma comunidade ser
considerada responsável pelo que foi feito em seu nome [...] Todo governo
assume a responsabilidade pelos atos e malfeitorias de seus predecessores, e toda
nação pelos atos e malfeitorias do passado”433.
Desta forma vivemos em uma comunidade e vivemos com nós mesmos. O
princípio de que é melhor sofrer o mal do que cometê-lo, não é válido para a política.
Para esta, a realidade seria: “o importante no mundo é que não haja nenhum mal, sofrer
o mal e fazer o mal são igualmente ruins. Não importa quem o sofra; o nosso dever é
impedi-lo”434. Ou seja, é o nosso dever político, enquanto comunidade, de impedir o
mal; quando não o impedimos, somos responsáveis, não culpados, pois a culpa é
relacionada à nossa moralidade, que é individual apenas. E a culpa só pode ser sentida
se de fato, tivermos cometido o mal.
433
Idem, ibidem, pp. 216-7.
434
Idem, ibidem, p. 221.
222
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Algumas formas de resistência – como a do Rosa Branca – foram proibidas já nos
primeiros dias em que Hitler assumiu a chancelaria, suprimindo a liberdade individual e
de expressão. Já em 4 de fevereiro de 1933, foi emitido um decreto emergencial que,
entre outras coisas, proibia a distribuição de qualquer artigo impresso, fosse ele um
jornal, um pôster ou um panfleto, com o perigo de prisão imediata dos autores do artigo
e de qualquer pessoa que soubesse deste tipo de atividade ilegal e não a denunciasse.
Este decreto também proibia reuniões ao ar livre que pudessem “colocar em perigo a
segurança pública”.
Peter Hoffman apresenta dados que constam que, entre 1933 e 1945, cerca de 3
milhões de alemães foram presos em algum tipo de campo de concentração ou em
prisões tradicionais por motivos políticos, dos quais 800.000 foram presos por resistir
ativamente ao regime. Neste mesmo período, 10.000 alemães foram mortos por
apresentarem alguma forma de resistência.
O terceiro panfleto do Rosa Branca trata da resistência passiva de forma mais
explícita, sendo considerada como a única forma de resistência possível mediante as
circunstâncias. O termo “resistência passiva” – também entendido como resistência
pacífica ou resistência não violenta - remete ao ideal de satyagraha (palavra em
sânscrito) formulado por Gandhi durante a resistência na Índia nos anos 30. A
resistência passiva proposta pelo Rosa Branca se constituía basicamente na sabotagem a
todo e qualquer mecanismo relacionado ao Nacional Socialismo, principalmente, na luta
contra o Partido. Neste panfleto são dados exemplos de como essa resistência poderia
ser feita: sabotagem a reuniões e assembleias do Partido; sabotagem no ramo intelectual
e técnico de modo a não perpetuar mais a guerra; sabotagem a jornais e revistas
produzidos pelo Partido, etc. Segundo os estudantes, não apenas era direito dos alemães
acabarem com o governo nazista, mas também era seu dever moral. O governo de Hitler
é associado a uma “ditadura do mal” e, apesar de não proporem nenhuma outra forma
de governo – por considerarem todas as formas como utópicas -, o Rosa Branca afirma:
“Todo ser humano tem o direito a um estado justo, um estado que garanta tanto
a liberdade do indivíduo, como o bem de todos. Porque, de acordo com a
vontade de Deus, os homens devem ser livres e independentes, enquanto
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cumprem seu dever natural de viver e trabalhar conjuntamente com seus
companheiros (...)”. 435
Este pequeno grupo de estudantes apareceu invocando conceitos como o de
liberdade e honra, e chamando o povo alemão para a destruição do regime opressivo de
Hitler. Através dos panfletos, disseminaram o que acreditavam, propondo, antes de
tudo, a reflexão. Suas proposições estavam relacionadas ao debate, à liberdade de
possuir suas próprias opiniões, de fazer suas próprias escolhas, e de poder se expressar.
Acredito que o estudo de grupos como o Rosa Branca permite uma visão diferente da
mais recorrente: a de que a sociedade alemã deixou o nazismo acontecer sem resistir.
435
Terceiro Panfleto, p. 193. Disponível em: DUMBACH, Annette; NEWBORN, Jud. Sophie Scholl and the
White Rose. USA: Oneworld, 2007, pp. 193-5.
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RETRATO DA SOCIEDADE RURAL INGLESA E EDUCAÇÃO FEMININA
NOS ROMANCES DE JANE AUSTEN
Mariana Aires Alves Veloso
Resumo:
O presente artigo tem como objetivo articular a partir do romance Orgulho de
Preconceito da autora Jane Austen, aspectos que circundam em especial o universo do
papel feminino, a sociedade rural inglesa, as relações entre classes. Possibilitando
análises sobre a percepção do casamento como meio de ascensão social, enriquecimento
ou empobrecimento, aceitação ou rejeição social. Tais análises são essencialmente
importantes para deduzir considerações a respeito de vários aspectos da vida social do
século XVIII e início do XIX.
Palavras – chave: Inglaterra rural; relações intra classe; feminino.
Abstract:
This article aims to articulate from the novel Pride Prejudice by Jane Austen, especially
aspects that surround the world of female role, the English rural society, relations
between classes. Enabling analyzes of perception of marriage as a means of social
advancement, enrichment or impoverishment, social acceptance or rejection. Such
analyzes are critically important to deduce considerations regarding various aspects of
the social life of the eighteenth and early nineteenth centuries.
Keywords: rural England; intra-class; female.
A Inglaterra vem sendo considerada, bem como a França, palco de profundas transformações
econômicas, políticas, sociais e culturais, a partir de eventos como a Revolução Industrial e a
Revolução Francesa. De forma comum, porém em momentos diferenciados, a aristocracia
resistiu em aceitar a transferência da direção política à burguesia, o que só foi ocorrer em finais
do século XIX.
Na Inglaterra, as mudanças econômicas e sociais ocorreram de forma mais
acentuada e rápida, com os cercamentos dos campos para a criação de ovelhas e
obtenção de lã, o melhoramento dos campos, a implantação da maquinaria nas fábricas,
a extinção prematura do campesinato e formação do proletariado rural, a relação campo
e cidade começa a sofrer bruscas mudanças, sendo que alguns destes processos
atingiram a sociedade como um todo. Com essas mudanças, é necessário mencionar o

Graduanda de História na Universidade Federal Fluminense - Polo Universitário de Campos dos
Goytacazes. Bolsa de pesquisa financiada pela FAPERJ, desde março/2012. Orientadora: Dra. Débora ElJaick. E-mail: [email protected].
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enfraquecimento dos laços paternalistas, o declínio da legitimidade do direito
costumeiro, decorrente da hegemonia liberal, o crescimento econômico e político do
comércio e dos comerciantes, a ascensão das chamadas middle classes, ou seja, da
burguesia comercial e industrial que passa a ser, em conjunto com segmentos dos
assalariados como artesãos e criados domésticos – grupo mais numeroso entre os
assalariados – principais segmentos leitores e consumidores do romance moderno que
emergiu no século XVIII.436
Dentre os consumidores estavam as mulheres, que de modo geral possuíam mais
tempo para a recreação ainda que pertencentes às classes inferiores. A leitura era
estimulada, porém existia o perigo dos romances na corrupção dos costumes. Neste
contexto político, econômico e social, a autora Jane Austen resulta desse processo de
alfabetização e leitura, sobretudo, entre o segmento feminino do público leitor.
Nascida em 1775 em Steventon, Hampshire, em uma família pertencente a baixa
aristocracia, Jane Austen e sua irmã Cassandra eram filhas únicas do reverendo George
Austen. Ela e a irmã estudaram em um internato em Reading, e foram instruídas em
casa, graças à biblioteca do reverendo Austen. Nem Jane, nem sua irmã casaram-se, e
isso possibilitou a inserção de forma mais assídua na carreira de escritora, que poderia
ter sido abandonada com o casamento.
Não há dúvidas que as experiências de vida levaram Jane Austen a sua melhor
percepção histórica do contexto que estava inserida e que seria alvo de pesquisas
posteriormente.
Na sua obra Orgulho e preconceito437, é bem explícito as relações sociais intra
classes, as rivalidades entre aristocracia e burguesia que apesar de não estarem
claramente perceptíveis, também cabe ao historiador, investigar e localizar os pequenos
detalhes, (como bem fez Carlo Ginzburg, quando reconstitui as experiências de leitura
do moleiro Menocchio como uma forma de acesso a aspectos da cultura popular no
norte da Itália no século XVI e Robert Darnton, que partindo de documentos
inicialmente sem respostas, procurou ter acesso a signos e significados que revelassem
436
WATT, Ian. A ascensão do romance, Estudos sobre Defoe, Richardson, Fielding. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990. p. 44.
437
AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. Tradução de Alexandre Barbosa de Souza; prefácio e notas de
Vivien Jones; introdução de Tony Tanner. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.
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como as pessoas de outro tempo e sociedade pensavam aspectos de seu próprio mundo).
(CHALHOUB, 1990: 16). Chalhoub utilizou esses dois autores como princípio teórico e
metodológico para confirmar a necessidade na busca pelos vestígios presentes nos
documentos, que muitas vezes ficam à margem dos textos oficiais, como demonstra a
citação abaixo:
Não, os fatos nunca estiveram lá, de tocaia, prontos para tomar de assalto as
páginas dos historiadores; foi preciso investigar seus rastros – os documentos – e
construí-los a partir dos interesses específicos de cada autor e da imaginação
controlada característica da disciplina histórica. 438
Assim como na obra de Sidney Chalhoub, onde a literatura se apresenta como
fonte privilegiada, pretendemos utilizá-la para encontrar os rastros da realidade social,
cujos significados não estão plenamente evidentes na sociedade. O romance Orgulho e
Preconceito, se concentra na trajetória e ações da personagem Elizabeth Bennet, cujos
pais pertenciam à chamada aristocracia fundiária. Lizzie, como era chamada, possuía
três irmãs mais novas, todas ainda solteiras. A Senhora Bennet, se preocupava
excessivamente com o bem-estar futuro das filhas.
Se eu puder ver uma das minhas filhas casada e feliz morando em Nerthefield,
disse a senhora Bennet ao marido, e todas as outras igualmente bem casadas, não
quero mais nada na vida. (AUSTEN, 2011: 110)
Além de retratar essa camada social, o romance apresenta através do personagem
Mr. Darcy, de Mr. Bingley e sua irmã Ms. Bingley, entre outros, a chamada alta
aristocracia. Austen retrata clara e densamente a formação e consolidação dessa classe
no campo, amplamente caracterizada por hábitos e costumes particulares.
O Romance se inicia a partir da relação entre a Senhora Bennet e suas filhas,
principalmente Jane Bennet, que por ser considerada a mais bela, estaria reservada ao
casamento mais promissor. Nesse contexto, acontece a chegada do Mr. Bingley,
detentor de 4 ou 5 mil libras por ano, que atrai a atenção e o olhar da Senhora Bennet.
É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro, de posse de
boa fortuna, deve estar atrás de uma esposa. Por mais desconhecidos que sejam
os sentimentos e as opiniões desse homem no momento em que chega a uma
nova vizinhança, tal verdade está tão bem entranhada na mente das famílias da
região que ele é considerado, imediatamente e por direito, propriedade de uma
ou outra de suas filhas. (AUSTEN, 2011: 103).
438
CHALHOUB, Sidney. “Introdução: Zadig e a história.” In: Visões da liberdade. Uma história das últimas
décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das letras, 1990. p. 16.
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Porque, além da renda Mr. Bingley, tinha também a aparência e a elegância, que
eram bem vindas.
O senhor Bingley tinha boa aparência e modos cavalhereiscos; semblante
agradável, comportamento tranquilo e sem afetação. Suas irmãs eram belas
mulheres, de ar decidido. O cunhado, o senhor Hurst, era um cavalheiro discreto;
mas o amigo, senhor Darcy, logo chamou a atenção no ambiente por seu porte
distinto, alto e bonito; e o que corria entre todos ali, cinco minutos após sua
chegada, era que dispunha de uma renda de dez mil libras por ano. (AUSTEN,
2011: 111)
Para Austen, determinadas características iam definindo o perfil daquela elite
agrária, que se destacava, mediante determinadas peculiaridades. Estabelecido o contato
entre a família Bennet, a família Bingley e os Darcy, foram então surgindo laços.
A imaginação de uma dama é muito rápida; salta da admiração para o amor, e
num instante do amor para o casamento. Sabia que diria isso. (AUSTEN, 2011:
131).
Laços, estes, que para a família Bennet se concretizariam em casamento entre
Jane Bennet e o Senhor Bingley. Isso era um problema para a irmã de Bingley e para o
Mr. Darcy, que julgavam não somente a senhorita Jane Bennet, mas toda a sua família,
uns “selvagens”.
Para além destes conflitos amorosos, se perpassam diversos conflitos que eram
específicos para caracterização dos costumes que permeavam aquela sociedade. Como
por exemplo, o papel da religiosidade naquela sociedade, como diz Thompson, a gentry
representava o Estado e todas as questões passavam por ela. No romance a família
Bennet, possuía aquela propriedade em que residiam até que o Sr. Bennet morresse,
porque a partir de sua morte, a tal propriedade seria repassada para um parente homem
mais próximo, no caso o Sr. Collins. Existe todo um conflito nessa questão, pois a
Senhora Bennet temerosa em perder sua propriedade vê a necessidade de casar uma de
suas filhas com Sr. Collins, que era reverendo e, portanto, tinha sua propriedade em
Netherfield, por consequência disso.
Numa conversa do Sr. Collins com Lady Catherine (Tia de Mr. Darcy), que
representava a gentry naquela sociedade, Lady Catherine afirma:
Senhor Collins, o senhor deve se casar. Um clérigo deve se casar. – Escolha
bem, uma dama em minha honra; e, para a sua própria, deixe que ela seja um
tipo de pessoa ativa, útil, não uma criada de luxo, mas alguém capaz de usar bem
uma pequena renda. (AUSTEN, 2011: 219).
228
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Essa fala representa o aconselhamento por parte da Lady Catherine e destacando a
importância dos processos de distinção. No transcorrer do romance, Sr. Collins contrai
matrimônio com uma amiga de Elizabeth Bennet, que se casa mesmo sem estar
apaixonada, porém acredita nisso, como a solução para a possível solteirice.
No desenvolver do romance, as relações conflituosas acabam se desenvolvendo
para sentimentos amorosos incubados, que se desenvolvem à medida que se estabelece a
proximidade. Contudo, ao final do romance Elizabeth Bennet e Mr. Darcy se casam.
Percebemos que a tese do romance como uma forma de proporcionar uma
orientação para o sucesso dentro daquela sociedade se confirma como uma forma de
explicar o porquê dos romances terem um final feliz, já que a própria vida da autora foi
fardada a solteirice. Tanto no romance Orgulho e preconceito como no outro romance
que será analisado posteriormente Razão e Sensibilidade, Jane Austen preza pelo
equilíbrio das emoções para o sucesso.
Toda sua análise do romance Orgulho e Preconceito é pautada nas relações
sociais de gênero intra classe conflituosas presentes no romance. Existem certas regras
que a mulher aristocrática precisa cumprir para se adequar a classe e automaticamente
se distinguir das demais mulheres pertencentes ou não a esta classe.
A vestimenta é um dos signos que fica evidente em vários momentos do romance.
Como por exemplo:
Não se aflija, minha cara prima, com seus trajes, Lady Catherine jamais exigiria
elegância no vestir da nossa parte, isso cabe a ela e à filha. Eu a aconselharia apenas a
usar suas melhores roupas, a ocasião não requer nada além disso. Lady Catherine não
pensará pior de você por se vestir com simplicidade. Ela preza pela distinção de classe.
(AUSTEN, 2011: 282). (Grifos feitos pelo autor).
Essa conversa se passa em Rosings onde a anfitriã era Lady Catherine, e se trata
de um diálogo entre Mr. Collins (reverendo) e a protagonista, Elizabeth Bennet. Lady
Catherine pertence a gentry e se posiciona como detentora e conhecedora dos costumes,
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e assim era tratada por todos. Neste diálogo, fica evidente como a distinção de classe se
mostra presente com o signo da vestimenta, proposto por Pierre Bourdieu439
Também é de fundamental importância que uma mulher tenha domínio em
diversas áreas como música, canto, desenho, línguas, para que seu “valor” seja
consolidado.
Uma mulher deve ter amplo conhecimento da música, do canto, do desenho e das
línguas modernas para merecer tal qualificação; e, além de tudo isso, deve
possuir certo quê em seu comportamento, seu modo de andar, seu tom de voz,
sua entonação e suas expressões, ou o adjetivo só valerá pela metade. (AUSTEN,
2011: 144).
Essa fala se refere à personagem Charlotte Lucas (amiga de Elizabeth Bennet) e
retoma uma questão fundamentalmente importante, pois existia um pavor na solteirice e
o casamento representava uma forma da mulher se manter estável emocional e
economicamente, utilizando o dote, como exemplo:
Sem nunca haver sonhado muito alto com esposo e matrimônio, casar-se sempre
fora seu objetivo; era a única saída honrada para mulheres bem-educadas de
poucos recursos e, embora a probabilidade de felicidade fosse incerta, haveria de
ser a forma mais agradável de proteção contra a necessidade. (AUSTEN, 2011:
238).
A etiqueta atingia, portanto, um patamar essencial dentro da sociedade, pois
delimitava a fronteira entre o ser civilizado e o selvagem, questões essas que vinham
acompanhadas de prestígio, poder econômico, realeza.
A aristocracia se diferencia pelo seu bom comportamento, consideravelmente
associado à boa educação, por seus costumes finos e conversas impessoais. Algumas
questões são fundamentais, como o nome, a reputação que a família carrega, de um
aspecto tanto social quanto econômico.
O senhor Bingley tinha boa aparência e modos cavalhereiscos; semblante
agradável, comportamento tranquilo e sem afetação. Suas irmãs eram belas
mulheres, de ar decidido. O cunhado, o senhor Hurst, era um cavalheiro discreto;
mas o amigo, senhor Darcy, logo chamou a atenção no ambiente por seu porte
distinto, alto e bonito de nobre; e o que corria entre todos ali, cinco minutos após
sua chegada, era que dispunha de uma renda de dez mil libras por ano.
(AUSTEN, 2011: 111). (Grifos do autor).
439
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz, 4ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2001. 322p.
__________. A economia das trocas simbólicas. Trad. Sérgio Miceli, Silvia de Almeida Prado, Sonia Miceli
e Wilson Campos Vieira. 5ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2001.361p.
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Jane Austen utiliza adjetivos durante o transcorrer do livro para caracterizar tanto
os membros da gentry, quanto aqueles que pertenciam à baixa aristocracia. Na citação
acima, os elementos sublinhados se referem à forma como a gentry se portava e se
distinguia:
Tenho uma consideração excessiva por Jane Bennet, ela é realmente um doce de
menina, e desejo de todo coração que encontre uma boa posição na vida. Mas
com um pai e uma mãe assim, e com essas relações tão baixas, receio que não
haja nenhuma chance de isso acontecer. (AUSTEN, 2011: 141)
Essa passagem do romance retrata um pensamento da mulher aristocrática
representada pela Senhora Hurst, onde fica evidente como a aristocracia se refere à
família como sendo fundamentalmente importante para que Jane Bennet “encontre uma
boa posição na vida”. O trecho encontra-se destacado por aspas, pois é ainda mais
evidente, como para a mulher, uma das formas de ascensão social mais precisa é através
dos laços matrimoniais, observado como exemplo a personagem citada anteriormente,
Jane Bennet.
Porém, é perceptível durante todo o percorrer do romance que existe uma
distinção clara dentro dessa aristocracia. De um lado, a família Bennet, pertencente à
classe aristocrática agrária, mas podemos considerá-los pertencentes à baixa
aristocracia, e de outro lado, os Bingley e os Darcy, que pertencem à alta aristocracia.
Essa distinção como Bourdieu menciona, é resultado de elementos culturais e
econômicos.
Em um diálogo de Lady Catherine de Bourgh com Elizabeth Bennet, percebe-se
como a cultura era por ela reconhecida como um fator propulsor desse processo de
distinção.
Suas irmãs tocam e cantam? [Lady Catherine pergunta a Elizabeth]. Uma delas,
sim.
Por que vocês todas não aprenderam? [Novamente Lady Catherine pergunta a
Elizabeth]. – Devem ter estudado. Todas as senhoritas Webb tocam e cantam, e
o pai delas não tem a renda do seu. (AUSTEN, 2011: 285)
Neste diálogo entre Lady Catherine que é considerada a “patriarca” daquela
sociedade tradicional (pré industrial) e Elizabeth Bennet, pode-se perceber que a cultura
em dados momentos ultrapassa o propulsor econômico. Tendo em vista, que existem
discussões acerca da gênese do poder econômico, ou seja, o fator cultural possui certa
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predominância nos processos de distinção. Processos, estes, que se perpetuam com o
tempo nas sociedades ocidentais, de formas e intensidades diferentes.
Para Norbert Elias440, essa ideia da distinção acontece até um dado momento, pois
à medida que se dissemina a civilização, os contrastes em conduta entre os grupos
superior e inferior vão sendo reduzidos.
Esta é uma diversão encantadora para os jovens, senhor Darcy! – Não há nada
como a dança, afinal. – Considero um dos principais refinamentos das
sociedades educadas. Certamente, senhor – e tem a vantagem de estar também
em voga entre as sociedades menos educadas do mundo. – Todo selvagem sabe
dançar. (AUSTEN, 2011: 129)
Neste trecho, percebemos que a dança, considerada um elemento importante das
sociedades refinadas, deixa de ser caracterizada dessa forma, tendo em vista, a sua
“popularização”.
Num ato de impulso guiado por uma preocupação com a irmã adoentada,
Elizabeth Bennet, deixa-se ser guiada por suas emoções e com isso seu comportamento
é julgado pela aristocracia feminina representada na fala da Senhorita Bingley.
Caminhar três ou quatro milhas, até cinco, ou o que seja, com os pés enfiados na
lama, e sozinha, totalmente só! O que ela queria com isso? Parece revelar um
tipo abominável e arrogante de independência, uma indiferença provinciana com
o decoro. (AUSTEN, 2011: 140)
A mulher, além de seguir com todas as exigências impostas pela sociedade,
também não lhe era conveniente demonstrar algum tipo de independência, tanto no
modo de agir, quanto no modo de pensar. Pois esse tipo de comportamento, assim como
mencionado no trecho acima, seria considerado selvagem.
Elias associa a noção de civil, ser civilizado, ao autocontrole. Ou seja, é
necessário se autocontrolar com relação as suas emoções e paixões, pois isso levaria ao
ser civilizado. Podemos destacar dois momentos que se sobressaem durante o romance.
Nessa primeira citação, Elizabeth Bennet e Mr. Darcy, estabelecem um diálogo sobre
impulsos e autocontrole de suas emoções, onde Elizabeth questiona Darcy: “A falta de
440
ELIAS, Norbert. “Sociogênese do conceito de civilization e Kultur”. In: O processo civilizador. vol 1
Uma história dos costumes. RJ: Jorge Zahar,1994.
______________. “Do controle social ao autocontrole”. In: O processo civilizador. vol 2 Formação do
Estado e civilização. RJ: Jorge Zahar,1994.
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civilidade não é a própria essência do amor?” (AUSTEN, 2011: 260). Quando o ser
humano se deixa guiar deliberadamente pelo amor, ele deixa de ser civil.
E, num segundo momento, onde Darcy explica o porquê de ter se intrometido na
relação entre Bingley e Jane Bennet.
Mas não terei escrúpulos em afirmar que a serenidade da expressão e dos ares de
sua irmã era tal que dava mais agudo observador a convicção de que, por mais
que seu gênio fosse amável, seu coração não era fácil de tocar. – Que eu desejava
acreditar na indiferença dela é um fato certo – mas ouso dizer que minhas
investigações e decisões não são geralmente influenciadas por meus medos e
esperanças. (AUSTEN, 2011: 322)
Darcy, nesse momento indaga sobre o fato de Jane não demonstrar “sentimento”
para com Bingley. É nesse sentido que Elias afirma que, desde a tenra idade, a criança
já crescia condicionada a esse autocontrole das tensões e paixões. Pois a exposição das
paixões e emoções não era mais considerado civil. Darcy ao final da citação menciona
que “minhas investigações e decisões não são geralmente influenciadas por meus medos
e esperanças”, ou seja, ser guiado por emoções poderia ser motivo de erro.
Partindo da análise do personagem Mr. Darcy, pode-se introduzir a ideia de que
ele estava muito preso a racionalidade, que está de forma muito convicta relacionada a
filosofia empirista que era muito vulgarizada e popular no século XVIII e na primeira
metade do século XIX, sendo ensinada nas escolas e em manuais de filosofia.
Podemos entender como os romances da autora Jane Austen foram de total
influência para homens e mulheres do século XVIII e XIX, na Inglaterra. Partindo como
referência a leitura que Robert Darnton faz a partir dos textos do Rousseau441 e sua
influência no contexto histórico, ou seja, como esses leitores eram influenciados por
esta literatura, por esta nova forma perceber o mundo. Segundo Darnton:
A retórica de Rousseau abria um novo canal de comunicação entre dois seres
solitários, o escritor e o leitor, e reformulava seus papéis. Rousseau seria JeanJacques, cidadão de Genebra e profeta da virtude. O leitor seria um jovem
provinciano, um cavalheiro rural, uma mulher reprimida pelas convenções da
sociedade, um artesão excluído do refinamento – não importava, desde que ele
ou ela pudesse amar a virtude e entender a linguagem do coração. (DARNTON,
1986: 297)
441
DARNTON, Robert. “Os leitores respondem a Rousseau: A fabricação da sensibilidade romântica.” In: O
grande massacre dos gatos. Rio de Janeiro. Graal, 1986.
233
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Da mesma forma que Rousseau, na concepção de Darnton influenciava os
leitores, a partir de suas obras, é compreensível como Jane Austen influenciou e
principalmente, educou as pessoas a se portarem de forma que fosse possível serem
aceitas naquela sociedade tradicional inglesa. Através dos signos da linguagem, nota-se
essa influência, querendo ultrapassar os limites da leitura. A passagem a seguir retrata
um pensamento que perpassa a cabeça de Elizabeth Bennet:
Em vez de olhá-las como uma forasteira, podia desfrutá-las como dona,
[Elizabeth referindo-se a mansão Rosings] e receber meu tio e minha tia como
minhas visitas. – Mas não, recompôs-se, - isso nunca: eu não poderia manter
relações com meu tio e minha tia: não teria nem permissão de convidá-los.
(AUSTEN, 2011: 374).
Essa passagem retrata duas possibilidades para Elizabeth e consequentemente
retoma o autocontrole, do teórico Norbert Elias, o limite entre o racional e as emoções.
A influência das obras de Jane Austen se procederam de forma concreta, tendo como
principal motivador o público feminino, que era impulsionado pela desejo de casar-se e
pelo terrível medo da solteirice. A solteirice acarretava desconfortos tanto sociais,
quanto econômicos. Pois o dote era a garantia que a mulher detinha para que não
passasse por dificuldades econômicas, já que não era um hábito daquela sociedade a
inserção da mulher no mercado de trabalho. Não somente as mulheres, mas os homens
também eram atingidos no romance, em especial aqueles que sua renda provinha do
comércio. Historicamente, existiam embates com relação à ascensão da burguesia. A
aristocracia se via ameaçada, pois a inserção da burguesia ia arruinar o equilíbrio da
sociedade, ideia sobre a qual Thompson442 desenvolve sua tese a partir das relações
entre a gentry e a plebe. À medida que a gentry representava o Estado, exercia
influência em todos os níveis sociais. A ideia proposta por Thompson era que o
paternalismo era gerado de forma recíproca, a partir da relação de dependência que se
engendrava entre a gentry e a plebe. Inclusive, com a inserção do trabalho livre e a
ascensão do comércio mercantil, os laços de independência acentuaram-se causando
uma séria preocupação à gentry, devido ao desequilíbrio social que estava por se
proceder e que naturalmente, fugia ao seu controle.
442
THOMPSON, Edward. “Patrícios e Plebeus”. In: Costumes em Comum. Estudos sobre a cultura
popular tradicional. São Paulo, Companhia das letras, 1988.
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A compreensão desse retrato característico da sociedade rural inglesa é
essencialmente importante para perceber como se reproduzem até hoje nas sociedades
ocidentais, os costumes e processos de distinção perpetuados pelos resquícios da
aristocracia. A Inglaterra representa um marco na história das sociedades ocidentais, por
seus intensos conflitos internos ou externos, inclusive por suas transformações sociais,
políticas, culturais e administrativas que transpassaram todo o século XVI ao XIX.
Todo seu contexto político-social influenciou a Europa e as Américas, e buscar a
compreensão de sua lógica estrutural é, de fato, pertinente para a análise da formação do
processo civilizacional no Brasil, por exemplo. Não somente a Inglaterra, mas a França
também dinamizou a Europa e as Américas ao seu padrão civilizacional. O Brasil é
resultado desse processo de civilização, sendo, contudo, relevante compreender as
dinâmicas sociais, políticas, históricas e culturais na Inglaterra, para perceber como
essas estruturas foram engendradas no nosso país.
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ESCRITAS DA HISTÓRIA E CONSTRUÇÃO HISTORIOGRÁFICA: JOSÉ
HONÓRIO RODRIGUES NO ESPAÇO DA PRODUÇÃO INTELECTUAL DOS
ANOS 1950
Mariana Rodrigues Tavares
“No que se refere à história, inclusive à história do Brasil, em seus diferentes
setores, foi certamente decisiva e continua sê-lo, sobre as novas gerações, a ação
de alguns daqueles mestres: de um Jean Gagé, por exemplo, e de um Fernand
Braudel em São Paulo; de um Henri Hausser e de um Eugène Albertini, na hoje
extinta Universidade do Distrito Federal. O que puderam realizar até aqui, no
sentido de sugerir novos tipos de pesquisa e suscitar problemas novos, é apenas
sensível, por ora, em certos tipos de trabalho – cursos especiais, seminários, teses
de concurso -, que pela sua mesma natureza hão de fugir ao alcance de um
público numeroso. Não parece excessivo acreditar, entretanto, que neles já se
encontra o gérmen de um desenvolvimento novo e promissor dos estudos
históricos no Brasil.” (Sérgio Buarque de Holanda) 443
O texto em epígrafe intitulado O pensamento histórico no Brasil nos últimos 50 anos foi
escrito pelo intelectual Sérgio Buarque de Holanda e publicado no Correio da Manhã
em junho de 1951. A utilização desse fragmento de Sérgio Buarque de Holanda como
introdução deste texto tem a função de evidenciar de que maneira a produção de
balanços historiográficos parece ter seduzido os intelectuais nos anos 1950. Além desse
escrito de Sérgio Buarque de Holanda, cabe citar ainda os balanços produzidos por
Fernando de Azevedo intitulado As ciências no Brasil, o de Nelson Werneck Sodré,
cujo título era O que se deve ler para conhecer o Brasil e o trabalho organizado por
Rubem Borba de Moraes e Willian Berrien chamado Manual Bibliográfico de estudos
brasileiros, sem contar, é claro, os livros de José Honório Rodrigues, meu objeto de
estudo, intitulados Teoria da História do Brasil (1949) e A pesquisa histórica no Brasil
(1952).
Para além dessas produções, os anos 1950 guardavam a novidade da mudança
respaldada a partir desse momento na produção das Universidades. Indubitavelmente a

Graduanda em História pela UFF e bolsista Pibic/CNPq com o projeto Escritas da História e construção
historiográfica: José Honório Rodrigues no espaço da produção intelectual dos anos 1950 sob a orientação
da professora Giselle Martins Venancio. Email: [email protected].
443
HOLANDA, Sérgio Buarque. O pensamento histórico no Brasil dos últimos cinquenta anos (1900-1950).
Correio da Manhã. Edição Comemorativa dos 50 anos do jornal, 15 de junho de 1951.
236
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principal discussão da época era a necessidade da configuração de um balanço
historiográfico e a delimitação de fronteiras entre o considerado “antigo” e “novo” na
historiografia brasileira. As regras do “jogo” historiográfico estavam mudando e com
elas a própria regulação do campo444. O que antes pertencia a órbita dos Institutos
Históricos no sentido de legitimar a produção das versões da História do Brasil sofria
uma ruptura nos anos 1950 e 1960 passando às Universidades, recentemente criadas no
Brasil. O caso mais emblemático e já analisado é o da Faculdade Nacional de Filosofia
(FNFi).
Conforme argumenta a historiadora Marieta de Moraes Ferreira, para analisar o
ensino de história na Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) da Universidade do Brasil
(UB) implica no acompanhamento da experiência desenvolvida durante o tempo de
existência da própria universidade, local onde o ensino ocorreu entre os anos de 19391964/65445. Nesse período de criação das universidades correspondente aos anos 1930 e
posteriormente de circulação das primeiras produções, traduziu-se efetivamente na
mudança de paradigmas acerca dos estudos científicos e da própria constituição da
História enquanto uma ciência tipicamente acadêmica.
Juntamente com a redefinição da História e com o processo de requalificação dos
cânones que procurarei inserir meu objeto de estudo. O propósito desse trabalho é
analisar o espaço intelectual de José Honório Rodrigues no campo historiográfico dos
anos 1950. Nesse ínterim e aproveitando o processo de redefinição dos cânones,
começarei pelas avaliações e diagnósticos de José Honório Rodrigues sobre a produção
intelectual brasileira. O maior exemplo é, sem margem de dúvidas, a retomada da figura
intelectual de Capistrano de Abreu.
VENERANDO O MESTRE – JOSÉ HONÓRIO “REENCONTRA”
CAPISTRANO DE ABREU
José Honório Rodrigues foi o organizador, prefaciador e anotador das edições de
trabalhos de Capistrano de Abreu posteriores a 1954, com a exceção das obras
444
Para maiores esclarecimentos ver: BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia
clínica do campo científico. São Paulo: Ed. Da UNESP, 2004.
445
Ver: FERREIRA, Marieta de Moraes. O ensino da história na Faculdade Nacional de Filosofia da
Universidade do Brasil. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.19, n.2, abr.-jun. 2012,
p.611-636
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Caminhos Antigos e Povoamentos do Brasil de 1960, das últimas publicações da
Sociedade Capistrano de Abreu (SCA), a 2ª edição da 3ª edição dos Ensaios e Estudos
dos Capítulos de História Colonial, ambas de 1969. Mas ao que parece as relações entre
José Honório e Capistrano de Abreu não datam apenas desse período de reedições. Ao
que se sabe a retomada de Capistrano por José Honório Rodrigues aconteceu no
momento em que este atuou como pesquisador dedicado à história da Colonização
holandesa no nordeste brasileiro. Por volta dos anos 1940, José Honório 446 assumiu o
cargo de bibliotecário no Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) além de ter publicado
diversos artigos na Revista do IAA a respeito da trajetória da economia açucareira.
Além de todo esse percurso é preciso contar o prêmio que recebeu na Academia
Brasileira de Letras pelo trabalho Civilização holandesa no Brasil no ano de 1940.
Com relação a Sociedade Capistrano de Abreu surgida em 1927, ano da morte do
próprio Capistrano e com a finalidade de preservar a memória do intelectual 447, pode-se
afirmar que nessa instituição José Honório Rodrigues ingressou em 1939 por meio de
uma publicação na Revista do Livro, texto este que nas palavras de Ítala Byanca fora “o
primeiro encontro de José Honório Rodrigues com Capistrano de Abreu.”448
No cerne da retomada de Capistrano de Abreu como historiador, José Honório
Rodrigues prestava homenagens ao intelectual considerado “mestre” por caracterizá-lo
um exímio pesquisador. A pesquisa e o trabalho com fontes históricas eram
fundamentais para José Honório e segundo suas concepções garantiriam a expressão
mais notória do trabalho de um verdadeiro historiador. Nas palavras de Honório
Rodrigues, Capistrano inaugurava:
É especialmente com Capistrano de Abreu que se inicia a historiografia nova,
expressão do Brasil novo, pois ao escrever Os caminhos antigos e o povoamento
do Brasil (1899), tema colonial ainda, ele rejeita a ênfase sobre as origens
europeias e as relações europeias. Seu tema é integralmente nacional, pois
convidava os historiadores brasileiros a não centralizar o seu interesse nas
comunidades do litoral, mas no interior, no próprio Brasil arcaico, é verdade,
mas nas origens autônomas do Brasil novo: as minas, as bandeiras, os caminhos.
446
Para maiores detalhes ver: IGLÉSIAS, Francisco. José Honório Rodrigues e a Historiografia brasileira.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.1, 1988, p.55-78.
447
SILVA, Ítala Byanca Morais da. Les morts vont vite: a Sociedade Capistrano de Abreu e a construção da
memória de seu patrono na historiografia brasileira (1927-1969). Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2008.
448
Ver: SILVA, p.184.
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A rejeição colonial está implícita no próprio tema colonial. (José Honório
Rodrigues)449
Mas o resgate da memória e do trabalho de Capistrano não parou por aí. Em 1953,
ano de centenário de nascimento de Capistrano, a intenção da Sociedade que levava seu
nome e a de José Honório Rodrigues era a publicação das cartas do velho historiador.
Em reportagem do Diário de Notícias de 29 de março de 1953, a intenção da reprodução
das correspondências de Capistrano era evidente:
Obras e Cartas de Capistrano de Abreu
A obra de Capistrano de Abreu será novamente editada. O Instituto Nacional do
Livro, utilizando-se de uma verba de Cr$ 300 mil, destinada à edição das obras
do grande escritor brasileiro, lançará no mercado a sua correspondência.
Dado o tom sarcástico de certas cartas de Capistrano, é bem possível que não
sejam elas editadas, sobretudo porque atingem personalidades ainda vivas,
informa-se oficialmente. A grande parte de sua correspondência será, porém,
divulgada.
A tarefa de coligir os documentos foi executada pelo Sr. José Honório
Rodrigues, que nela trabalhou durante dois anos.
A parte restante das Obras será reeditada pela Livraria Briguier, que possui os
direitos autorais. Constitui-se ela, entre outros, dos seguintes livros:
“Descobrimento do Brasil”, “Estudos e Ensaios”, “História Colonial”.
O Instituto Nacional do Livro dispõe de uma verba global de Cr$4 milhões para
garantir os editores no lançamento dos livros, adquirindo um mínimo que será
posteriormente distribuído entre as bibliotecas públicas do país.
Dessa verba serão retirados os recursos para garantir a edição das Obras
Completas de Capistrano de Abreu.” 450 (grifos meus)
Mas a publicação das cartas de Capistrano de Abreu encontrou algumas
dificuldades. Segundo Ítala Byanca em estudo aqui referenciado, o impedimento se deu
em razão de um veto interno da Sociedade Capistrano de Abreu para as publicações de
Capistrano por José Honório Rodrigues, este último se apresentando como “guardião da
memória” do primeiro451. O propósito deste artigo ao narrar a atuação de José Honório
449
RODRIGUES, José Honório. Teoria da História do Brasil (Introdução Metodológica). 5 ed. São Paulo: Ed.
Nacional, 1978, p.34. Apud. SILVA, Ítala Byanca Morais da. Les morts vont vite: a Sociedade Capistrano de
Abreu e a construção da memória de seu patrono na historiografia brasileira (1927-1969). Rio de Janeiro:
UFRJ/IFCS, 2008, p. 190.
450
Para maiores detalhes ver: Diário de Notícias, 29 de março de 1953, suplemento literário.
451
Ver: Byanca, 2008, p.208. Segundo Byanca, o veto aconteceu pela Sociedade Capistrano porque esta
possuía as cartas do intelectual cearense. Ao contrário do que afirmam alguns pesquisadores que consideram
José Honório como o “guardião da memória” de Capistrano, o que Ítala conclui em sua dissertação é a
existência de uma dependência entre José Honório Rodrigues e a Sociedade.
239
VIII Semana de História Política
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através da recuperação da memória de Capistrano de Abreu tem profundas relações com
o projeto historiográfico de Honório Rodrigues. José Honório, além de admirar
Capistrano de Abreu pelo trabalho com as fontes e principalmente pelo seu empenho em
divulgá-las,
afirmava
existir
historiadores
que
pouco
contribuíram
para
o
desenvolvimento da pesquisa, no sentido que definia como conquista a reprodução de
documentos para o uso dos historiadores em geral. Munido desse objetivo, José Honório
Rodrigues seria um historiador empenhado em difundir as fontes para os historiadores e
é o que se pode verificar através da série Documentos Históricos da Biblioteca Nacional
e sua atuação como administrador do Arquivo Nacional.
OS DOCUMENTOS CONTAM A HISTÓRIA – JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES
E A PRÁTICA ARQUÍVISTICA
A Série Documentos Históricos da Biblioteca Nacional foi criada em 1928 pelo diretor
Mário Behring que esteve à frente da instituição entre os anos de 1924 e 1932. Durante
os oito anos de gestão de Mario Behring a série contou com dezenove volumes
publicados. Para Behring por meio desta série, “começam a ser publicados os mais
antigos manuscritos que neste estabelecimento existem (...) constantes de volumosos
códices que raríssimas pessoas tem até aqui consultado”.452
Na gestão seguinte a de Mario Behring, coube a Rodolfo Garcia a direção da
Biblioteca Nacional e a respectiva série atingiu a marca de 70 volumes publicados. Mas
a fase áurea dessa coleção viria mais tarde entre os anos de 1946 e 1956 sob a
administração de José Honório Rodrigues como chefe da seção de Obras Raras e
Publicações da Biblioteca Nacional. Coordenada por José Honório Rodrigues a série
atingiu o número de 110 volumes publicados, após um período de inatividade. Em cada
volume eram publicados cerca de 300 páginas de documentos. No entanto mais do que
o ressurgimento de uma série de fontes documentais, a Documentos Históricos de José
Honório Rodrigues representou um traço característico da “era” de Honório Rodrigues à
frente das Instituições de guarda de acervos e de seu plano de recuperar uma dada forma
de escrever a História que em sua concepção se compunha pela incansável interpretação
de fontes.
452
BEHRING, Mario. Apud. ANDRADE, Rosane Maria Nunes. A edição de documentos históricos do
acervo da Biblioteca Nacional. XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Recife, PE, 2 a
6 de setembro de 2011, pp. 1-12.
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Ao assumir a direção de uma das seções da Biblioteca Nacional, logo após a sua
saída dos quadros de funcionários do Instituto Nacional do Livro, o primeiro passo de
José Honório Rodrigues foi catalogar a documentação existente na Instituição a fim de
possibilitar ao pesquisador meios para a escrita da História. Uma das justificativas
oferecidas por José Honório para a necessidade de resgatar os documentos e
principalmente organizá-los,
É a falta de catálogos e, portanto, o não conhecimento completo do acervo, da
Biblioteca que explica a escolha arbitrária dos códices divulgados, sem respeito
ao assunto e à data, e as constantes variações cronológicas e frequentes
mudanças da matéria dos volumes já publicados. (...)
A organização de um plano de publicações de documentos históricos depende,
portanto, da catalogação e do conhecimento do acervo. Este seria o único
caminho certo em relação a escolha dos textos. Todavia, pelo fato de não
conhecermos todos os documentos e, portanto, de não podermos justificar a
nossa escolha, não se desencaminhará a publicação. Esta, durante mais algum
tempo não será ordenada sistemática, cronológica, mas procurará atender à esta
exigência agora que de novo se cataloga e se conhecem milhares de peças, e à
segunda norma de uma edição de documentos históricos – que é a de reproduzilos autenticamente.” (RODRIGUES, 1949)
Série Documentos Históricos – Pernambuco e outras Capitanias do Norte –
Cartas e Ordens (1717-1727). Vol. LXXXV, 1949
Em paralelo ao trabalho na Biblioteca Nacional, José Honório Rodrigues lecionou
no Instituto Rio Branco para a formação de funcionários no Itamaraty entre os anos de
1946 a 1956, assim como permaneceu na seção de pesquisas do mesmo instituto, entre
1949 e 1950, trabalhando no arquivo do Ministério das Relações Exteriores. Nesse
Instituto, José Honório além de movimentar uma enorme gama de funcionários, foi
responsável por mapear a documentação do Visconde do Rio Branco, para citar um
exemplo.
No entanto o cargo mais importante que ocupou na administração pública foi de
diretor do Arquivo Nacional, de 1958 a 1964. Já em 1959, publicava o livro intitulado
“A Situação do Arquivo Nacional” em que dizia,
Ao assumir a direção do Arquivo Nacional, aos 29 de agosto de 1958, não pude
reprimir minha desolação diante do espetáculo deprimente de desorganização e
abandono que revelava a velha instituição.
E continua afirmando sobre a referida obra:
A presente exposição, baseada na experiência de um ano e na leitura de todos os
relatórios desde 1844, procura estudar, com a maior objetividade, os aspectos
fundamentais do problema e encaminhar as soluções para que o Arquivo
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Nacional seja um arsenal da Administração e possa assegurar ao povo de seus
direitos e o acesso legal ao conhecimento e à informação.
Mas além das preocupações com o acesso a informação, a grande questão para
Honório Rodrigues residia também na organização dos fundos, nas seções e nas
coleções do Arquivo Nacional. Nas suas palavras:
Como o Arquivo Nacional não possui um registro geral dos fundos; como nunca
se procedeu à elaboração de inventários, mesmo preliminares ou provisórios,
como nunca se fizeram guias gerais (...) só se pode ter uma ideia muito
provisória do acervo geral. (RODRIGUES, 1959:33)
Conforme demonstra a estudiosa Mariana Simões453, a intenção de José Honório
Rodrigues era oferecer subsídios para a melhoria da formação dos profissionais de
arquivo e, ao mesmo tempo, promover a valorização de edições e publicações que
auxiliassem no trabalho dos arquivos e na formação dos profissionais. Todas essas
questões levaram José Honório Rodrigues a inaugurar no Arquivo Nacional a série
Publicações Técnicas lançando 27 números no total.
A estrutura narrativa aqui apresentava procura analisar de que maneira José
Honório Rodrigues nos anos 1950 foi um historiador que ocupava todas as instâncias de
legitimação do campo historiográfico, espaço social este passível de mudança como o
eram naquele momento. A prática historiográfica de José Honório era a do historiador
polígrafo, aquele que para Honório só seria um verdadeiro profissional através das
fontes e dos documentos históricos. Para além dos ambientes de arquivo e da
valorização do trabalho documental, José Honório Rodrigues também não deixou de
venerar os mestres da historiografia como aqui já afirmado. Nas palavras de Honório
“Varnhagen, Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia454 formavam a trindade bendita da
historiografia brasileira.”(RODRIGUES, 1970: 155)455. Seus métodos e formas de
trabalho deveriam ser recuperados e valorizados pelas gerações dedicadas aos estudos
históricos. E foi essa a maior contribuição de José Honório a frente dos Institutos e da
453
SIMÕES, Mariana. José Honório Rodrigues, a Turma de Publicações e as Publicações Técnicas do
Arquivo Nacional. XVII Simpósio Nacional de História, Natal, RN, 22 a 26 de julho de 2013.
454
Um fato curioso a respeito da retomada de Rodolfo Garcia por José Honório Rodrigues se deve a enorme
expressividade do primeiro na Sociedade Capistrano de Abreu. José Honório Rodrigues, como visto, além de
um admirador do trabalho de Capistrano, foi o responsável pela publicação de suas correspondências. Para
maiores esclarecimentos ver: SILVA, Ítala Byanca Morais da. Les morts vont vite: a Sociedade Capistrano
de Abreu e a construção da memória de seu patrono na historiografia brasileira (1927-1969). Rio de
Janeiro: UFRJ/IFCS, 2008, dissertação de mestrado.
455
Para maiores detalhes ver: RODRIGUES, José Honório. Rodolfo Garcia. In: História e Historiografia.
Petrópolis, Editora Vozes, 1970, pp. 155-163.
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Série Documentos Históricos. Seu plano compreendia mais do que a recuperação de
fontes históricas, mas sim, o resgate de uma tradição historiográfica que estava ficando
relegada a segundo plano em tempos de mudança como o eram nos anos 1950. A
legitimidade da História estava mudando de curso, mas para José Honório nossos
primeiros mestres jamais deveriam ser esquecidos.
No que diz respeito a José Honório Rodrigues atualmente, não é demais supor que
em tempos de centenário como o são o ano de 2013, Honório Rodrigues tem sido cada
vez mais reapropriado pela historiografia. Podemos verificar isso pela elaboração de
teses com a de André Freixo intitulada A arquitetura do novo: ciência e história da
História do Brasil em José Honório Rodrigues456 defendida em 2012 na UFRJ e o
resgate intenso e efetivo do grupo paraibano personalizado na figura de José Octávio de
A. Mello e os “honorianos” do nordeste.
456
FREIXO, André de Lemos. A arquitetura do novo: ciência e história da História do Brasil em José
Honório Rodrigues. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGH, 2012.
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HISTORIOGRAFIA E POLÍTICA NO INSTITUTO HISTÓRICO E
GEOGRÁFICO DE MINAS GERAIS
Mariana Vargens Silva457
Resumo:
Por meio da análise dos trabalhos apresentados nas primeiras reuniões do Instituto
Histórico e Geográfico de Minas Gerais, nos propomos a identificar os elementos
característicos da relação entre a escrita da história e os usos políticos do passado no
início do século XX. Tais discursos nos permitem compreender como os intelectuais da
época viam na produção historiográfica a oportunidade de destacar o estado a que
pertenciam na grande história do Brasil, construindo para isso uma tradição republicana.
Palavras-chave: Primeira República, Historiografia Brasileira, Minas Gerais.
Abstract:
Through the analysis of the papers presented during the first meeting of the Instituto
Histórico e Geográfico de Minas Gerais, we propose to identify the characteristic
elements of the relationship between the writing of history and the political uses of the
past in the early twentieth century. Such discourses allow us to understand how the
intellectuals of the time, saw the historical production the opportunity to highlight the
state to which they belonged in the great history of Brazil, building for this a republican
tradition.
Keywords: First Republic, Brazilian Historiography, Minas Gerais.
INTRODUÇÃO
Ângela de Castro Gomes, em seu A República, a História e o IHGB (2009), ressalta o
crescente interesse dos historiadores pela revisão do período que compõe a Primeira
República (1889-1930). Consagrada pejorativamente como “República Velha” pelos
intelectuais a serviço do Estado Novo, essa fase é agora revisitada como “um dos
momentos mais ricos para o debate de ideias políticas e culturais no país” 458. Uma das
principais críticas do “pós-1930”, de acordo com a autora, é o excesso no federalismo,
desviando-se do caminho centralizador apontado pela monarquia, o que seria agravado
pela falha na construção de um campo simbólico para o Brasil.
457
Bolsista do Programa de Iniciação Científica Voluntária do Departamento de História da UFMG (NAPq FAFICH), orientada pela Profa. Dra. Eliana de Freitas Dutra. Endereço: [email protected]. Rua
dos Guajajaras, 1268, apto.: 3003, Barro Preto, Belo Horizonte, Minas Gerais, CEP: 30180-101. Tel. (31)
88723836.
458
GOMES, Ângela de Castro. A República, a História e o IHGB, 2009, p. 21.
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Dentro da dinâmica historiográfica apontada por Ângela Gomes, é ainda mais
recente o interesse por tomar como objeto de estudo os institutos históricos estaduais.
Essas associações intelectuais de caráter marcadamente político tinham por finalidade,
justamente, a construção de um campo simbólico e o uso da história como ferramenta
de compreensão da sociedade - com esta demanda, tais associações se espalharam pelo
território nacional após a Proclamação da República459.
A criação do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais (IHGMG) em
1907 foi considerada tardia por seus fundadores460, que perceberam a necessidade de se
integrar naquela corrente que ganhava força a nível nacional. Acompanhando, ainda que
superficialmente, os discursos nas associações congêneres, percebemos que a ideia
federalista de valorizar e individualizar as unidades que compunham o Estado é
recorrente. Entretanto, é fundamental considerar o “horizonte de expectativa” desses
intelectuais, que em sua maioria não tinham por objetivo o afastamento dos estados a
que pertenciam do conjunto da federação, mas buscavam exatamente o contrário:
integrar-se, e da melhor maneira possível. O constante diálogo dessas instituições com o
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) reforça o interesse no sentido de
manter a unidade territorial e simbólica da nação.
Acreditamos que a construção da imagem de Tiradentes é um bom exemplo desse
esforço. O alferes, tomado como símbolo da luta pela República, não é transformado em
herói mineiro, mas em herói nacional, contando para isso com o trabalho em conjunto
do IHGB e dos membros do IHGMG, como sugere Claudia Callari461. Do mesmo
modo, a comemoração do centenário do movimento pernambucano de 1817 foi
realizada pelo Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano em diálogo com o
459
Apenas para citar alguns exemplos, tivemos naquele momento a criação de institutos históricos na Bahia,
em 1894; em São Paulo, 1895; Santa Catarina, 1896; Rio Grande do Norte, 1902; Paraíba, 1905; e em Minas
Gerais, 1907.
460
LIMA, Augusto de. “Discurso”. Ata da sessão de fundação do Instituto Histórico e Geográfico de Minas
Gerais, publicada na Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte, ano/ volume 14, p. 6-7, 1909.
461
CALLARI, Claudia Regina, “Os Institutos Históricos: do patronato de D. Pedro II à construção do
Tiradentes”. Revista Brasileira de História (USP), São Paulo, v. 21, n. 40, p. 59-83, 2001.
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IHGB – movimento que, inclusive, disputa com a Inconfidência Mineira o lugar de
representação da memória nacional republicana, de acordo com Mariana Ribeiro 462.
Não podemos ignorar a ideia de que optamos por trabalhar com discursos, sejam
eles pronunciados ou impressos. José Murilo de Carvalho463 chama a atenção para
questões cruciais ao lidarmos com a história intelectual no Brasil, oferecendo-nos
“chaves de leitura” através dos recursos de argumentação utilizados, ou seja, da retórica,
o que implica em identificar os procedimentos para a construção do argumento de cada
autor. Boa parte dos intelectuais que compõem o corpo do IHGMG nas duas primeiras
décadas é egressa do curso de ciências jurídicas da Faculdade de Direito de São Paulo,
bacharéis que herdaram a tradição dos manuais de retórica do século XIX. Levar em
consideração àquele que fala, o leitor (ou ouvinte) a quem o texto se destina, a
linguagem e construção do próprio texto – tendo em vista que as palavras não valem
tanto pelo que dizem quanto pelo modo e motivação em nome dos quais foram ditas,
são questões que buscaremos desenvolver.
Desse modo, o principal objetivo do presente trabalho é analisar quais foram os
elementos destacados na história de Minas Gerais pelos primeiros historiadores do
Instituto Histórico Mineiro - se assim podemos chamar os membros daquele grupo de
intelectuais - na tentativa de construir uma tradição republicana para o estado que o
posicionasse destacadamente na então presente história do Brasil. Traremos para o
nosso auxílio o conceito de tradições imaginadas, desenvolvido por Eric Hobsbawm,
que ressalta a importância do discurso histórico para a criação de tradições. Buscamos
com isso destacar os investimentos realizados naquele momento em dois sentidos
principais, em primeiro lugar, o de reforçar a coesão interna entre a elite política mineira
e em segundo, o da expectativa que os intelectuais e políticos nutriam de poderem
participar mais ativamente da política nacional, ou seja, os discursos são criados na
tentativa de convencimento da própria elite mineira e de seus correspondentes nos
demais estados da federação.
462
RIBEIRO, Mariana dos Santos.Construindo Histórias e Memórias: O IHGB e o IAGP em meio às
celebrações do centenário do movimento pernambucano de 1817. 298 f. Tese (Doutorado). Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de História, Rio de Janeiro, 2011.
463
CARVALHO, José Murilo de. “História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura”. Revista
Topoi (UFRJ), Rio de Janeiro, n.1, p. 123-152, jan/ dez, 2000.
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Adotamos de maneira flexível a ideia de tradições imaginadas, favorecendo o
aspecto do conceito que demonstra que nem toda tradição imaginada se fundamenta em
elementos inventados, podendo sim estabelecer uma memória seletiva e, por vezes,
exagerada sobre o passado, mas que visa construir um discurso coerente e que possa ser
aceito entre os pares. Assim, concebemos que as tradições imaginadas utilizam a
“história como legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal”
464
, sendo
aquelas que “estabelecem ou simbolizam a coesão social (...); aquelas que estabelecem
ou legitimam instituições, status ou relações de autoridade, e aquelas cujo propósito
principal é a socialização, a inculcação, de ideias”465.
A RETÓRICA REPUBLICANA NOS PRIMEIROS ANOS DO IHGMG
Claudia Viscardi aponta que as disputas internas comprometeram a ação de Minas
Gerais no cenário nacional até o início do século XX, quando o desenvolvimento
econômico aliado à sua maior coesão política “propiciaram ao estado condições de
reivindicar maior participação nos rumos do novo regime”. Mesmo em âmbito nacional,
“a hegemonia paulista sobre a República começou a ser contestada somente quando
essas unidades federadas agregaram internamente parte de suas foças, tornando possível
uma articulação alternativa ao controle paulista sobre o regime”. 466 Temos motivos para
pensar que a criação do Instituto Histórico Mineiro, ainda que se possa relativizar sua
efetiva atuação nos primeiros anos de existência, foi um esforço a mais da elite
intelectual para a efetivação dessa dinâmica política apontada pela autora e, mais do que
isso, que este era um movimento que se dava a nível nacional, no qual algumas
associações foram mais bem sucedidas que outras, importando-nos a participação do
estado de Minas Gerais nesse movimento.
Dentro do Instituto Histórico Mineiro, personagens como Augusto de Lima,
Nelson de Senna, João Pinheiro, Diogo de Vasconcellos, Antonio Olyntho dos Santos
Pires e Teixeira Duarte, fizeram da história uma ferramenta para a compreensão da
sociedade. A escrita sobre o passado era tida como uma “obra patriótica” de importância
464
HOBSBAWM, E. J; RANGER, T. O. A Invenção das tradições. 4ª ed. Trad. Celina Cardim Cavalcanti.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006, p. 21.
465
HOBSBAWM, E. J; RANGER, T. O, 2006, p. 17.
466
VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. “Federalismo oligárquico com sotaque mineiro”. Revista do Arquivo
Público Mineiro, Belo Horizonte, vol. 1, jan./jun. de 2006, p. 102-104.
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prática para a política, especialmente porque oferecia “exemplos vivamente suggestivos
que os estadistas não podiam deixar de aproveitar”467.
Na perspectiva do historiador português Fernando Catroga, o dinamismo histórico
do início do século XX é “cada vez mais apresentado como um processo no qual o
conhecimento do passado era premissa fundamental para se entender o presente e se
transformar o futuro”468. A ideia de utilizar a história como ferramenta de compreensão
da sociedade dentro dessa relação específica com o tempo surge como recurso
argumentativo nos discursos que iniciam as atividades do Instituto Histórico Mineiro.
Assim, para os intelectuais do período, o estudo do passado era visto como um meio,
através do qual seria possível “induzir leis que regulem o presente para que o futuro seja
melhor que ambos”469. Para citar apenas mais um exemplo, de acordo com Pedro Lessa,
não há quem duvide de que “o olhar que se embebe no passado vê mais claramente o
presente e chega a vislumbrar o futuro”470.
O futuro melhor para Minas Gerais era tido como a maior participação na vida
política da jovem República. Com esse fim, perceberam a necessidade de se construir
um discurso que ao mesmo tempo proporcionasse alguma coesão interna e pudesse
demonstrar que o passado do estado era a parte mais significativa do passado
republicano brasileiro, sendo a terra mineira a verdadeira guardiã da legitimidade do
regime vigente após a Proclamação. Na construção desse discurso definiram seu objeto
de estudo prioritário – a história de Minas Gerais – destacando dois episódios centrais: o
início do povoamento das terras que dariam origem ao estado e a Inconfidência Mineira,
e assim procuraram demonstrar a longa trajetória de insatisfação em relação ao regime
monárquico que teria marcado a história do estado.
Já nos discursos que se propuseram a fundar uma nova perspectiva em relação à
escrita da história em Minas, proferidos no momento de criação do Instituto Mineiro, é
possível destacar, ainda de maneira conflitiva, a eleição desses episódios. Para Augusto
467
LESSA, Pedro. “Discurso”. Ata da sessão de fundação do Instituto Histórico e Geográfico de Minas
Gerais. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte, ano/ volume 14, 1909, p. 8.
468
CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001, p. 19.
469
SILVA, João Pinheiro. “Discurso”. Ata da sessão de inauguração do Instituto Histórico e Geográfico de
Minas Gerais. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte, ano/ volume 14, 1909, p. 224.
470
LESSA, Pedro, 1909, p. 8.
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de Lima, que discursa na sessão de fundação (17 de junho de 1907) do Instituto
Histórico Mineiro,
já era tempo de Minas fundar seu areópago historico, quando quasi todos os
outros Estados da União já o fizeram. Não é demais recordar que Minas foi o
fóco mais intenso da formação da nossa nacionalidade, sendo a precursora dos
eventos mais notaveis da nossa evolução politico-social. As luctas dos
Emboabas, os motins dos Sertões, a erupção formidável de Felippe dos Santos, a
tragedia sanguinolenta dos Conjurados, formam outros tantos marcos crescentes
do caracter cívico mineiro, atravez da historia política. 471
Max Fleiuss, Secretário Perpétuo do IHGB é o convidado de honra da solenidade
de instalação da associação (que ocorre em 15 de agosto de 1907). Ao finalizar seu
discurso, ressalta o evento da história de Minas Gerais que considerava como o mais
importante: a chegada dos bandeirantes paulistas, que para o historiador “oferecem
margem para fecundas pesquisas”, e devem ser vistas como “invasões beneméritas”, por
terem como consequência a descoberta das riquezas da pátria. Ainda que nos demais
discursos proferidos naquela data o episódio da Inconfidência mereça menção, a ideia
de Fleiuss se repete de modo particular nos discursos de Vasconcellos e João Pinheiro.
Vasconcellos, religioso convicto e antigo monarquista472, chama a atenção para a
tradição conservadora e católica que os paulistas teriam legado ao estado. O povo
mineiro possuía uma “origem privilegiada”, pois era descendente de “generoso sangue
paulista”473. João Pinheiro por sua vez, líder do movimento republicano no estado, 474
sugere que se busque “nas reclamações dirigidas ao governo d‟el-Rei, nas respostas de
ultramar, nos roteiros, nas informações dos governadores sobre os descobrimentos
felizes, como sobre as fundas desilusões dos garimpeiros sem riqueza, nas narrações das
próprias lutas ensanguentadas” os documentos referentes ao surgimento da “estremecida
terra mineira”475.
O legado dos paulistas de acordo com João Pinheiro é o de luta, persistência e
força moral. A partir desses posicionamentos podemos perceber que a tradição política
471
LIMA, Augusto de, 1909, p. 6-7.
472
SILVA, Rodrigo Machado da. A experiência do passado: a escrita da história como discurso da
civilização. 110 f. Monografia de conclusão de curso - Universidade Federal de Ouro Preto, Graduação em
História, Mariana, 2010.
473
VASCONCELLOS, Diogo de, 1909, p. 219.
474
BARBOSA, Francisco de Assis. “João Pinheiro e seu ideal republicano”. In. João Pinheiro: documentário
sobre a sua vida. Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, 1966, p. 13-22.
475
SILVA, João Pinheiro da,1909, p. 225.
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dos sócios emerge definindo as perspectivas em relação ao passado imperial.
Vasconcellos e João Pinheiro que travaram um conflito direto quando a capital do
estado foi transferida476, agora se viam na necessidade de reunir esforços em prol do
mesmo objetivo, que era a construção do futuro republicano de Minas Gerais. É
importante ressaltar que apesar dos posicionamentos diferentes, ambos buscam destacar
neste episódio um lugar para a história do estado, seja ligada positivamente a São Paulo
– grande potência política e econômica na época -, seja enquanto a que mais lutou
contra a administração portuguesa. Esta última será a postura mais recorrente entre os
membros do Instituto Histórico, que no início de suas atividades prezavam pela defesa
do regime republicano.
No decorrer das primeiras décadas do IHGMG, alguns membros serão mais
radicais do que outros na defesa da memória republicana. Teixeira Duarte, por exemplo,
profere em 1913 um discurso na associação em que destaca um episódio diferente, mas
contribuindo para o mesmo argumento477. Ao tratar sobre a Sedição de Vila Rica, o
historiador não deixa de ressaltar as dificuldades na relação entre a província e a
metrópole portuguesa. Os motivos do levante de 1720 seriam os altos impostos, sem
nenhum benefício que os compensasse, e a lei de criação de Casas de Fundição (1719),
que, em linhas gerais, proibia a circulação do ouro em pó. Da descrição da “revolução”
de Vila Rica, surge como personagem principal a imagem de Felipe dos Santos.
Teixeira Duarte reproduz uma carta de Assumar ao rei, na qual o Conde descreve Felipe
dos Santos como “o mais diabólico homem que se pode imaginar, o agente por que o
povo se movia, e que fez cousas inauditas no motis”478.
Mediante algumas ressalvas, Teixeira Duarte compara a Sedição de Vila Rica com
a Conjuração Mineira, e consequentemente Felipe dos Santos a Tiradentes, afirmando
haver nos dois momentos elementos muito semelhantes. E mesmo na guerra entre
emboabas e paulistas já seria possível perceber “o espírito de independencia do povo
mineiro, que apenas acabava de nascer para a vida, nascendo tambem para a luta e para
476
SILVA, Rodrigo Machado da. “Imprensa, proclamação da República e a nova ordem política em Minas
Gerais”. Revista Tempo, Espaço e Linguagem (UEPG), Paraná, vol. 3, n. 3, 2012, p. 107-131.
477
Publicado em DUARTE, A. Teixeira. “Sedição de Villa Rica”. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo
Horizonte, ano/ volume 18, p. 575-587, 1913.
478
DUARTE, A. Teixeira, 1913, p. 579.
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as reivindicações”479. Teixeira Duarte finaliza sua fala recordando a passagem da ópera
Tiradentes (1895) de Augusto de Lima, em que este insere Felipe dos Santos como
inspirador do “proto-martyr” da República, ou seja, de Tiradentes.
Lúcio dos Santos, que acreditamos que seja o historiador que mais se dedicou ao
estudo da Inconfidência Mineira, uma vez que os estudos que deram origem à sua obra
principal se estenderam de 1911, data de sua primeira monografia sobre o tema, até
1922, momento em que apresenta o resultado de sua pesquisa no I Congresso
Internacional de História da América, organizado pelo IHGB. Para Lúcio dos Santos “a
História da Capitania nos põe à vista o povo das Minas sempre pronto à revolta” e não
falta à história do estado “heróis que, em meio à servidão, sonharam com a liberdade e
por ela se sacrificaram”480.
O historiador afirma que por motivos políticos o tema da Inconfidência ficou
muito tempo esquecido, pois nem D. Pedro I, nem seu filho e herdeiro do trono, nutriam
grande simpatia pela figura de Tiradentes. Contra as primeiras interpretações sobre o
evento, que concebiam o movimento como elitista, desorganizado e fadado ao fracasso,
Lúcio dos Santos procura mostrar que “a Inconfidência Mineira foi um movimento
perfeitamente definido, uma tentativa suficientemente caracterizada (...)” 481, na sua
obra, busca mostrar que a “idéia do levante, acalentada, apoiada ou alimentada (...)
pelos poetas, não partiu deles. Ela nasceu em um grupo de homens menos idealistas,
mais práticos”
482
. Apesar disso, “a sua viabilidade completa é bastante discutível,
porque o Brasil, naquela época, não era terreno preparado para a implantação da
República. (...) Em 1789, não estava o povo brasileiro suficientemente preparado para
as instituições republicanas”, uma vez que não possuía “instrução necessária, (...)
capacidade administrativa, (...) e nível social e político”, este, aliás, ainda naquele
momento “não havemos suficientemente atingido” 483.
E Lúcio dos Santos conclui:
479
DUARTE, A. Teixeira, 1913, p. 584.
480
SANTOS, Lúcio José dos. A Inconfidência Mineira. Papel de Tiradentes na Inconfidência Mineira.
Publicações do Sesquicentenário da Independência do Brasil. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 2ª ed. 1972,
p. 485; 25.
481
SANTOS, Lúcio José dos, 1972, p. 473.
482
SANTOS, Lúcio José dos, 1972, p. 473.
483
SANTOS, Lúcio José dos, 1972, p. 488.
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Através da Monarquia, com passo mais seguro, pudemos caminhar para a
República, cem anos depois que a sonharam os Inconfidentes. Essas
considerações não diminuem a glória desses paladinos. Eles empreenderam
salvar a Pátria, tentaram obter a liberdade, sacrificaram-se por um ideal
nobilíssimo, sofreram cruel suplício: é quanto basta para a sua glória e para o
nosso reconhecimento. 484
Antonio Olyntho dos Santos Pires, talvez o mais entusiasta dentre os membros do
Instituto Mineiro na defesa de uma tradição republicana em Minas Gerais, localiza na
chegada dos bandeirantes paulistas ao local que daria origem à capitania de Minas
Gerais os conflitos com a metrópole portuguesa e o surgimento da ideia republicana no
estado. A distância do litoral, agravada pelos perigos da viagem, fez com que a
população sentisse apenas o “influxo das autoridades da metrópole”, pagando altos
impostos sem receber em troca nenhum benefício “e d‟ahi o espírito de revolta que esta
população manifestou desde os primeiros tempos”. Antonio Olyntho reforça que foi dali
que partiram as primeiras vozes reclamando pela libertação da colônia e acrescenta que
menos de um século após o início do povoamento “os homens mais adeantados e
illustres da época (...) planejavam a organização de uma República independente,
desligada da metrópole portugueza, regendo-se e governando-se pelos princípios de
democracia”. E concluí: “a aspiração republicana nasceu, pois, em Minas Geraes, com a
fixação dos primeiros bandeirantes que povoaram o seu sólo”485.
Antonio Olyntho cita com orgulho a carta de um amigo do Conde de Assumar, em
que o autor afirma que em Minas “a terra parece que evapora tumultos, a água exhala
motins (...)”. De acordo com o historiador,
Na capital, antiga Villa Rica, que hombreava por sua população, riqueza, luxo e
adeantamento com as melhores cidades da Colônia, tornava-se, dia-a-dia, mais
intensa a corrente pela emancipação política e administrativa da Capitania, quiçá,
de todo o Brasil. Depois de longa evolução, essas idéas se corporizaram, em fins
do século XVIII, na memorável Conjuração Mineira, que (...) reuniu sob o
mesmo pállio os melhores espíritos da Capitania e teve o seu expoente máximo
no ínclito Tiradentes, o martyr immolado á Liberdade pela tyrannia da
Metropole”. 486
Ao introduzir o episódio da Conjuração, Antonio Olyntho lembra aos seus
expectadores que os organizadores do movimento tinham em mente não apenas a
484
SANTOS, Lúcio José dos, 1972, p. 489.
485
PIRES, Antonio Olyntho dos Santos. “A idéa republicana em Minas Geraes; sua evolução; organização
definitiva do Partido Republicano”. Revista do Arquivo Público Mineiro, vol. 21, n. 1, p. 13-18, jan/ mar,
1927.
486
PIRES, Antonio Olyntho dos Santos, 1927, p. 20-22.
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emancipação da colônia, mas também o estabelecimento de um governo autônomo sob
a forma republicana. Mas o movimento, como se sabe, não foi bem sucedido, o que para
o historiador não marca o fim das lutas no estado por melhores condições
administrativas. “Fracassada esta tentativa, não se extinguiu, porém, em Minas, o
espírito liberal que a aviventava, de modo que os legionários da campanha da
Independência do Brasil encontraram ali o terreno perfeitamente apropriado ao cultivo e
desenvolvimento da idéa”487.
Sem poder negar a participação de personagens nascidos no estado na política
monárquica, Antonio Olyntho declara de forma vaga que os mineiros apoiaram o
governo até que o Imperador começou a atentar contra a Constituição e a liberdade
individual, mas, uma vez que isso aconteceu, demonstraram sua desaprovação a tal
conduta. Após a Abdicação, a aspiração republicana estaria consolidada, pois esta só
não havia sido proclamada até então, “atentas as condições especialíssimas em que se
collocaram os espíritos dirigentes da opinião nacional”. 488
A pesar de toda a agitação republicana, o autor confessa que o Partido
Republicano de Minas Gerais só teve sua organização definitiva em 1888. Antes disso,
“grupos partidários se formavam aqui, alli, em toda a parte; mas eram coesos e fortes,
apesar de dispersos”489. Para demonstrar essa “força” e “coesão” o autor cita a atividade
dos dois principais jornais republicanos do estado, um do norte, o Jequitinhonha, e o
outro do sul, O Colombo, este último dirigido por Lúcio de Mendonça. O historiador se
apoia largamente nos artigos d‟O Colombo para justificar seu posicionamento,
recordando toda a efervescência da imprensa no movimento republicano de fins do
século XIX.
Mesmo para Vasconcellos, antigo militante monarquista, que posterga a um futuro
inalcançável um estudo mais detido sobre o episódio da Inconfidência, afirmou que
“sem embargo (...) o certo é que a Inconfidência constitui o fato culminante de nossa
história, foi o movimento de transição entre duas épocas, e não há negar que, sem o
487
PIRES, Antonio Olyntho dos Santos, 1927, p. 22.
488
PIRES, Antonio Olyntho dos Santos, 1927, p. 22.
489
PIRES, Antonio Olyntho dos Santos, 1927, p. 24.
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Alferes, ou antes sem o seu sacrifício, nada ficaria de útil e grande nesse doloroso
episódio”490.
Os recursos argumentativos utilizados pelos autores podem ser questionados, mas
o que nos interessa aqui é refletir a respeito de como eles se esforçaram para construir a
ideia de uma antecedência republicana para o estado, recorrendo, ainda que
comparativamente, à repetição de dois episódios: o início do povoamento pelos
bandeirantes, e à Inconfidência.
FUNDAMENTOS DA TRADIÇÃO REPUBLICANA
Para Hobsbawm, na construção de tradições imaginadas “sempre que possível, tenta-se
estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado” 491. Retomamos aqui a
ideia de que a seleção de um passado apropriado abandona, por vezes, elementos de
contradição, e até exagera em certos aspectos, na busca de um efeito de real que
sustente seu discurso. Para encerrar este trabalho faremos um rápido levantamento em
obras mais recentes sobre o republicanismo em Minas, com a finalidade de perceber até
que ponto os elementos utilizados para a fundamentação dessa tradição que tentou ser
criada pelo IHGMG, especialmente por Antonio Olyntho, constituem – ou não – uma
interpretação plausível. Em outras palavras, buscaremos identificar se a construção
dessa memória se ampara em elementos históricos, ou se são apenas extrapolações
retóricas vazias de conteúdo.
Sérgio Buarque de Holanda alega que o movimento republicano foi mais forte em
São Paulo do que em nenhuma outra província, tanto por questões numéricas, quanto
por capacidade de organização – opinião que parece consensual entre os estudiosos. Em
Minas, a tradição liberal atraia a atenção para a propaganda contra a monarquia, fazendo
com que o movimento republicano ganhasse rapidamente inúmeros adeptos. “Ao
contrário do que sucedia em São Paulo, porém, nunca se mostrou ali bastante coeso,
pois os agrupamentos, dispersos (...) tinham poucas oportunidades de comunicar-se
entre si”492. A despeito de certa volatilidade em relação às convicções revolucionárias, o
490
VASCONCELLOS, Diogo de. História Média de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 4ª ed. 1974, p.
330.
491
HOBSBAWM, E. J; RANGER, T. O, 2006, p. 9.
492
HOLANDA, Sérgio Buarque de (Org.). “O Brasil monárquico: do Império à República”. In: Historia
geral da civilização brasileira. 3ª ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968, vol. 7, t. 2, pt. 5, p. 266.
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autor aponta que na véspera da queda do Império se estimava que o estado possuísse
30% de votantes republicanos dentro da província, o que se torna expressivo quando
consideramos que era, de acordo com Holanda, a mais populosa da nação.
Claudia Viscardi, em trabalhos mais recentes e sistemáticos, recorda que
“segundo os estudiosos do tema, o movimento republicano em Minas Gerais foi tardio e
pouco dinâmico”, uma vez que seu primeiro jornal surgiu apenas em 1879
(“Tiradentes”, de Ouro Preto), a construção de um partido se deu às vésperas da
Proclamação (1888) e a proliferação de clubes se limitou aos centros urbanos das
regiões economicamente mais prósperas. Entretanto, a historiadora afirma que “embora
as pesquisas tenham apontado para o caráter frágil do republicanismo mineiro, a adesão
ao novo regime foi rápida e significativa” 493. Isso não significa, contudo, que não houve
conflito dentro do Partido Republicano Mineiro (PRM), no qual a autora aponta “árduas
disputas de caráter pessoal, regional e ideológico pelo poder”. Estas disputas são
localizadas pela autora até a segunda década republicana, pois após a eleição de
Rodrigues Alves, que marcaria o início de um novo modelo sucessório, é colocado um
fim no predomínio da aliança entre a oligarquia paulista e os militares 494.
Concluímos então que a tradição imaginada republicana que se pretendeu criar
para Minas Gerais por seu Instituto Histórico foi bastante enfática ao destacar o caráter
de luta contra a metrópole portuguesa, ainda que relacionando esta luta mais ou menos
ao desenvolvimento do republicanismo – o que varia de um autor para outro. A ênfase
nos recursos argumentativos pode ter tido como consequência certo exagero, o que não
significa a invenção de elementos e a incoerência. Os membros do IHGMG recorreram
ao discurso histórico como fonte de legitimação e “naturalização” da memória que
defendiam.
493
VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. “Elites políticas mineiras na Primeira República brasileira: um
levantamento prosopográfico”. Anais das Primeiras Jornadas de História Regional Comparada. Porto
Alegre: 2000, p. 4.
494
VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. “Federalismo oligárquico com sotaque mineiro”. Revista Eletrônica
do Arquivo Público Mineiro, vol. 1, n. 1, p. 102-103, jan/ jun, 2006.
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EDUCAÇÃO PATRIMONIAL NA FRONTEIRA OESTE DO BRASIL.
Mayara Laura Silva de Arruda 495
Orientadora: Rachel Tegon de Pinho
Resumo
Cáceres, cidade localizada ao sudoeste de Mato Grosso, teve seu conjunto arquitetônico
e paisagístico tombado pelo IPHAN em 2012, além de outros três tombamentos em
âmbito estadual e municipal realizados anteriormente. Porém, apesar destes
tombamentos, constata-se no município a ausência de políticas pública para preservação
patrimonial. A par deste déficit o Projeto PIBID Subprojeto/História – UNEMAT
voltou-se para a elaboração de materiais paradidáticos a fim de conscientizar os alunos
da educação básica quanto à importância da preservação do patrimônio cultural.
Palavras-chave: Cáceres - Educação – Patrimônio
Abstract:
Caceres, a city southwest of Mato Grosso, had its architectural and landscape listed by
IPHAN in 2012, plus three other overturning at the state and municipal previously
performed. However, despite these overturning, it is observed in the absence of
municipal public policies for heritage preservation. Given this deficit PIBID Project
Activity / History - UNEMAT turned to the development of didactic materials in order
to educate the students of basic education about the importance of preserving cultural
heritage.
Keywords: Cáceres – Education - Heritage
De Colônia à República, o território que constitui a Fronteira Oeste sempre fora de
suma importância para o desenrolar e consolidar da História do Brasil; seja em cume
cultural, econômico ou político.
O oeste, em virtude a seus solos férteis propícios à criação de gado e produção
agrícola, sua posição hidrográfica privilegiada com alto índice de navegação fluvial ou
pela descoberta do ouro em alguns de seus afluentes, despertara na coroa Portuguesa a
necessidade de implantação de medidas que protegessem esse território, principalmente
do domínio Espanhol. Portugal escolhia minunciosamente os governantes para a
Capitania de Mato Grosso. Almejava um homem com largo tirocínio e experimentado
495
Graduanda em História pela Universidade do Estado de Mato Grosso. Bolsista PIBID [email protected].
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servidor do reino, capaz de sustentar as conquistas territoriais dos bandeirantes com
diplomacia e boa administração.
Suprindo a tais requisitos estava Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres;
Conselheiro do Rei, quarto Capitão General e Governador da Capitania de Mato
Grosso; que em prol de erigir e consolidar uma povoação civilizada capaz de defender a
capitania e seus limites fronteiriços designa Antônio Pinto Do Rego Carvalho, para aos
seis dias do mês de outubro de mil setecentos e setenta e oito, fundar a margem oriental
do Rio Paraguai, sete léguas ao norte da foz do Jauru e na confluência dos rios Sepotuba
e Cabaçal, Villa Maria do Paraguay.
Embora a povoação tivesse sido fundada com o nome de vila, não passava de uma
aldeia. Somente em vinte e oito de maio de mil oitocentos e cinquenta e nove, que
através de uma lei municipal, Villa Maria do Paraguai é de fato elevada a condição de
Vila. Graças ao desenvolvimento da pecuária, a indústria extrativa e a facilidade de
navegação fluvial, que em vinte e cinco de junho de mil oitocentos e setenta e quatro,
Villa Maria do Paraguay é elevada à categoria de cidade com o nome de São Luiz de
Cáceres. Nome que ao mesmo tempo prestava homenagem ao Santo Padroeiro “São
Luiz de França”, e a seu o ilustre fundador “Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e
Cáceres”.
Com o passar dos anos, a população restringiu-se a utilizar apenas Cáceres para
nomear a cidade. O município, localizado ao sudoeste de Mato Grosso é um dos mais
antigos do estado com duzentos e trinta e cinco anos. Considerado a Princesinha do Rio
Paraguai, é privilegiado com fauna e flora exuberantes, tendo como pilares de sua
economia a agricultura e a pecuária. A cidade retrata em sua arquitetura as diferentes
fases vivenciadas desde a colonização até a atualidade. Algumas de suas edificações
encontram-se em perfeito estado de conservação mantendo vivo os traçados seja da
tipologia colonial; dos estilos neoclássico, eclético ou art decó; ou da inspiração
neogótica. Em decorrência a esses atributos, Cáceres foi contemplada com quatro
tombamentos, em cunho arquitetônico, paisagístico e monumental.
O primeiro tombamento aconteceu em mil novecentos e oitenta e oito. O Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN tomba o Marco Do Jauru.
Monumento lavrado em mármore e secionado em duas partes, uma a cargo da coroa
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portuguesa e outra a cargo da coroa espanhola, foi implantado à margem do Rio Jauru
em mim setecentos e cinquenta e quatro, sendo símbolo do Tratado de Madrid.
Atualmente esta localizado na Praça Barão do Rio Branco.
O segundo tombamento ocorreu em mil novecentos e noventa e seis, na
administração de Antônio Fontes. São tombadas em âmbito estadual e municipal,
quarenta e oito edificações.
O terceiro tombamento é realizado em dois mil e dois. O Centro Histórico de
Cáceres é tombado em âmbito municipal e estadual.
O quarto e ultimo tombamento efetuado até então, aconteceu em dois mil e doze.
O conjunto Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico da cidade de Cáceres tornou-se
patrimônio cultural brasileiro por meio da portaria n° 85 publicada no Diário Oficial da
União, pelo Ministério da Cultura. Esta aprovação foi realizada pelo Conselho
Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Apesar destes tombamentos, constata-se no município a ausência de políticas
públicas para a preservação patrimonial. A cidade sofre com o descaso de seus
administradores, que parecem ignorar a importância da cidade junto ao patrimônio
cultural brasileiro. Alguns dos casarões tombados estão deteriorando em pleno centro da
cidade, e nada é feito para impedir. Falta nos cidadãos conscientização a cerca da
importância e do dever que cada um deve ter em prol de preservar um patrimônio que
não se restringe mais apenas a cidade, mas ao país.
A par deste déficit e com um imenso desejo de mudança, o Projeto PIBID
Subprojeto/História da Universidade do Estado de Mato Grosso voltou-se para a
elaboração de materiais paradidáticos a fim de esclarecer aos alunos da educação básica,
a importância da preservação do patrimônio cultural.
Uma das estratégias utilizadas pelo projeto é a prática de conscientização. Através
de cartazes, folders, materiais áudio visuais, são passado aos alunos alguns conceitos
básicos a cerca do que é Patrimônio, o que é Tombamento. Trabalha-se com as
seguintes afirmações:
O que é Patrimônio? Em seu significado mais primitivo a palavra “patrimônio”
tem origem atrelada ao termo grego pater que significa “pai” ou “paterno”. Desta forma
258
VIII Semana de História Política
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o conceito de patrimônio se relaciona com tudo aquilo que é deixado pela figura do pai
e transmitido para seus filhos. Com o passar do tempo, essa noção de repasse acabou
sendo estendida a um conjunto de bens materiais que estão intimamente relacionados
com a identidade, a cultura ou o passado de uma coletividade.
O que é Patrimônio Cultural? Constitui o patrimônio cultural, o conjunto dos
bens materiais e imateriais cuja conservação seja de interesse público. Quer por sua
vinculação a fatos memoráveis da história, quer por seu excepcional valor arqueológico
ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.
Patrimônio Material: O patrimônio material é composto por um conjunto de
bens culturais classificados segundo sua natureza. Seja ela: arqueológica, paisagística e
etnográfica, histórica, belas artes e das artes aplicadas. O patrimônio material esta
dividido em bens móveis e bens imóveis.

São bens móveis: coleções arqueológicas, acervos museológicos, documentais,
bibliográficos, arquivísticos, videográficos, fotográficos e cinematográficos.

São bens imóveis: núcleos urbanos, sítios arqueológicos e paisagísticos e bens
individuais.
Patrimônio Imaterial: Os bens culturais de natureza imaterial dizem respeito
àquelas práticas e domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e
modos de fazer, celebrações, formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas
e nos lugares (como mercados, feiras e santuários que abrigam práticas culturais
coletivas).
O que é Tombamento? O tombamento é um ato administrativo realizado pelo
Poder Público no âmbito federal, estadual ou municipal. O objetivo é preservar bens de
valor histórico, cultural, arquitetônico, ambiental e também de valor afetivo para a
população, impedindo a destruição e/ou descaracterização dos mesmos. Pode ser
aplicada aos bens móveis e imóveis em prol da preservação da memória coletiva.
Após a concepção a cerca do que é tombamento, são passados aos alunos as
características dos tombamentos realizados em Cáceres, como mencionado no texto
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anteriormente. Seguindo com a caracterização, apresenta-se as características dos estilos
arquitetônicos encontrados na cidade da seguinte forma:
Tipologia Colonial: No Brasil, chamamos de colonial as construções em que há o
emprego de materiais e recursos do próprio ambiente e onde as técnicas construtivas são
evidenciadas. Em cáceres as construções coloniais possivelmente datam do século XIX,
com a utilização de taipa e adobe. Construções sérias e simples, em que predominam os
cheios (paredes) sobre os vazios (portas e janelas). Os batentes das portas e janelas são
de madeira larga e possuem função estrutural; dando sustentação ao imóvel. A
cobertura, normalmente de telhado em duas águas com telhas cerâmicas, formam vários
tipos de beirais, escoando a água da chuva para a rua ou para os fundos do terreno. As
casas são construídas no alinhamento do lote e coladas uma as outras.
Estilo Neoclássico: Movimento ou estilo inspirado nas velhas ordens clássicas
das arquiteturas dos povos gregos e romanos. No Brasil foi introduzido principalmente
pela missão artística francesa trazida por D. João VI, em 1816. Caracterizou-se como o
estilo do período monárquico brasileiro. Trata-se de um estilo sóbrio, tendo como
elementos formais o arco pleno, colunas e pilastras, a platibanda com balaústres,
frontões triangulares, frisos e cimalhas nas fachadas. Estilo arquitetônico introduzido na
cidade de Cáceres no final do século XIX, período este marcado pela reabertura da
navegação no rio Paraguai após o fim da guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai
em 1870, foi uma das marcas deixadas na cidade por uma elite local emergente do pósguerra. Estabelecimentos de grandes Casas Comerciais, voltadas para a importação e
exportação de gêneros variados além da pecuária.
Estilo Eclético: Estilo do final do século XIX e primeiras décadas do século XX o
termo arquitetura eclética é usado em referência aos estilos surgidos que exibiam
combinações de elementos que podiam vir da arquitetura clássica, medieval,
renascentista, barroca e neoclássica, caracterizando-se pelo excesso decorativo nas
edificações. Além do uso e mistura de estilos estéticos históricos, a arquitetura eclética
se aproveitou dos novos avanços da engenharia do século XIX. De maneira geral se
caracterizou pela simetria, busca de grandiosidade, rigorosa hierarquização dos espaços
internos e riqueza decorativa; Construções com janelas três folhas; Recuo entre a casa e
a calçada, muitas vezes preenchido com jardim passando a impressão de “palacete”; Os
pilares dos muros se assemelhavam com troncos de árvores; Dupla função das casas
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visando a moradia e o comércio. Introduzido em Cáceres na mesma época que o estilo
Neoclássico, tendo as mesmas características desse período. Geralmente estas
construções reuniam duplas funções: moradia e comércio.
Estilo Art Decó: O nome origina-se da Exposition Internazionale dês Arts
Decoratifs et Industriels Modernes (Exposição Internacional de Artes Decorativas e
Industriais Modernas) acontecida em Paris, em 1925. Em arquitetura, caracteriza-se
pelo uso na decoração de linhas retas na horizontal e vertical, em zigue-zague, na forma
de zigurates. É um estilo bastante simplificado em termos decorativos, apresentando o
uso de formas geométricas, filetes nas platibandas e a curva em evidencia no estilo de
escrita Art Decó. Foi introduzido em Cáceres entre 1940 e 1950 num contexto distinto
do início do século XX, com a decadência das grandes Casas Comerciais motivada por
diversos fatores dentre os quais se destaca a utilização de outras vias de comunicação
facultada pela construção da ferrovia Noroeste do Brasil ligando Corumbá à Bauru.
Estilo Neogótico: Neogótico é um estilo de arquitetura revivalista originado em
meados do século XVIII na Inglaterra. No século XIX, estilos neogóticos procuraram
reavivar as formas góticas medievais, em contraste com os estilos clássicos dominantes
na época. O neogótico popularizou-se no Brasil perto do final do reinado de D. Pedro II,
especialmente a partir da década de 1880. Caracterizando-se pelo verticalismo dos
edifícios em substituição do horizontalismo romântico; paredes mais leves e finas,
predominância de janelas; torres ornadas por rosáceas; utilização do arco de volta
quebrada; nas torres os telhados são em formas de pirâmides; consolidação dos arcos
feitos por abóbadas de arcos cruzados ou de ogivas. Na cidade de Cáceres é possível
contemplar uma edificação de inspiração neogótica, a Catedral de São Luiz. A
construção da mesma compreende vários contextos, dentre os quais destaca-se a
proposta de construir réplicas da Notre Dame de Paris em Cuiabá e em Cáceres,
indicando o prestígio econômico e político da cidade neste momento.
Buscando uma conscientização mais eficaz, o Projeto PIBID Subprojeto História,
dedica-se também a elaboração de jogos. Para exibir os conceitos de Patrimônio e
Tombamento juntamente com as características dos estilos arquitetônicos, foram
produzidos em especial três jogos. O primeiro foi o Quem Sou Eu. Consiste em umas
plaquinhas confeccionadas em papel paraná e adesivo, nas quais estão escritas os
conceitos de patrimônio e tombamento, enfatizando os tombamentos realizados em
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Cáceres, juntamente com as características dos estilos arquitetônicos presentes na
cidade. A medida que as plaquinhas vão sendo lidas pelo professor, o aluno deve
adivinhar do que esta se tratando. É um jogo extremamente dinâmico e divertido! O
segundo jogo, é um quebra cabeça com as fotos de alguns casarões da cidade. O intuito
do mesmo é inteirar os alunos a cerca da especificidade de cada edificação, quanto ao
seu estilo arquitetônico e temporalidade em que foi construída. É interessante observar a
aceitabilidade do aluno com esse material. Buscamos por imagens que lhes são
familiares na tentativa de coloca-los como participantes da história do município,
considerando que a imagem do jogo é acessível a qualquer um, a qualquer momento. O
terceiro e ultimo jogo que aborda essa perspectiva, é um dominó. Nele é trabalhado as
mesmas intenções do quebra cabeça e o resultado é extremamente semelhante, com o
respaldo que o dominó pode ser trabalhado com alunos de maior idade.
Através dessas práticas, o Projeto PIBID Subprojeto História tem como objetivo preparar os
alunos para serem cidadãos capazes de disseminar todo o conteúdo adquirido seja em meio aos
cartazes, folders, jogos ou recursos áudio visuais, a seu meio familiar e social. Acredita-se que
se conscientizados desde pequenos, serão cidadãos e até mesmo futuros administradores
melhores, inteirados da importância do Patrimônio Cultural e aptos a, preserva-lo
eficientemente.
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“SOB O CÉU E SOBRE O SOLO” DO SÉCULO XXI: O ATIVISMO LÚDICO
DA EXTREMA-DIREITA EM CAPTAIN SCARLET (2005-2009)
Natália Abreu Damasceno 496
Resumo:
Este artigo investiga o modelo de ativismo proposto pela série radiofônica Captain
Scarlet, veiculada virtualmente por um dos mais antigos movimentos skinhead
neonazistas em atividade, o Blood and Honour (B&H), na 28 Radio (www.28radio.net)
entre os anos de 2005 e 2009. Através da análise dos 18 episódios disponíveis online e
do seu confrotamento com outras fontes percebemos que a série é um importante
instrumento propagandístico que demarca uma nova pedagogia da extrema-direita na
busca pelas mentes do século XXI.
Abstract:
This article investigates the activism proposed by the radio series Captain Scarlet,
available on the web at a Blood and Honour (B&H) – one of the oldest active nazi skin
movements – website, 28 Radio (www.28radio.net), between 2005 and 2009. Through
the analysis of the 18 episodes available online and through its confrontation with other
sources we perceived the series as an important tool of propaganda, which outlines a
new far right pedagogy towards reaching the minds of the 21st century.
A apenas alguns cliques de distância do Google, qualquer internauta pode encontrar o
Captain Scarlet (CS). Gravados e disponibilizados online desde o fim de 2005 num dos
sites do mais antigo movimento neonazista em atividade, o Blood and Honour (B&H),
os episódios do super-herói radiofônico da raça branca divertem, informam e doutrinam
jovens de diversas partes do mundo. Seja ouvindo-os online ou fazendo download no
formato MP3, na página da 28 radio (na seqüência numérica das letras alfabéticas 2=B,
8=H e 28 = Blood and Honour), o ouvinte tem acesso a mensagens racistas,
homofóbicas, xenófobas, antisemitas e anti-democráticas.
Fruto da fusão da subcultura skinhead com idéias fascistas, a organização B&H
foi fundada na Inglaterra em 1987 pelo inglês Ian Stuart Donaldson (1957-1993), ex-
496
Graduada em História pela Universidade Federal de Sergipe (UFS); Membro do Grupo de Estudos do
Tempo Presente (GET); Orientador: Prof. Dr. Dilton Cândido dos Santos Maynard; E-mail:
[email protected]; Telefone: (79)8854-4809; Endereço: R. Euclides Paes Mendonça, 270. Ed. Plaza de
Madri. Apto. 1102. Bairro 13 de Julho. CEP: 49020-260
263
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vocalista da banda de RAC497 Skrewdriver. Originalmente criado para ser uma
organização de apoio ao cenário musical racista e anti-comunista, o grupo notabiliza-se
por uma forte tônica de entretenimento em suas práticas e por propostas de ativismo
diferenciadas. É buscando explorar tal peculiaridade, que analisamos a série Captain
Sacarlet como um produto das estratégias propagandísticas e pedagógicas do
movimento e como elemento difusor de um modo de ser neonazista no século XXI.
O uso de humor irônico e sarcástico, além de uma vasta bateria de músicas
White Power498, confere à paródia Captain Scarlet um apelo juvenil. As diversas formas
de tratar de um mesmo assunto e advogar pela mesma causa nos permite pensá-lo como
um esforço em adaptar conteúdos escritos (encontrados online em forma de revistas,
manuais e textos) a um formato mais sedutor, de mais fácil digestão entre os jovens. Tal
possibilidade se torna factível se observarmos CS não como um caso isolado, mas como
parte de uma mobilização da extrema-direita em busca de discursos mais acessíveis e
recursos pedagógicos mais lúdicos e condizentes com sua época e seu público alvo 499.
Ainda, a investida traz a lume de forma elucidativa diretrizes para
compreendermos a natureza da atuação de grupos como o B&H. Trata-se da difusão de
uma cultura do ódio ou da atuação política complementar aos partidos fascistas?
Visando entender o que organizações como esta representam no mundo contemporâneo,
examinemos, atentos para o contexto de sua produção, um de seus elementos da sua
pedagogia do ódio.
O BLOOD AND HONOUR E A EXTREMA-DIREITA: A LUTA PELAS
ALMAS DO SÉCULO XXI
A consolidação de economias globalizadas, a difusão da rede mundial de computadores
e a crescente fluidez das comunicações reservam dicotomias dignas de reflexão. Na
497
Rock Against Comunism. Gênero musical cujas letras de protesto e melodias agressivas criticam grupos
políticos, étnicos e religiosos. Sobre isto ver: MARSHAL, George. Espírito de 69: A bíblia do skinhead. São
Paulo: Trama Editorial, 1993.
498
São conhecidas como White Power, as bandas, cujas letras exaltem a supremacia da raça branca.
499
A título de exemplo, observemos o caso do BNP (British National Party), que além de possuir um manual
chamado Activist’s and Organizer’s Handbook, lança mão de investidas mais lúdicas como acampamentos
familiares anuais que reúnem desde skinheads a políticos do partido num fim de semana de jogos,
feiras,cerimônias e discursos, noticiados pela mídia em 2009. Sobre isto ver: Angel-faced racist aged 12: Girl
burns golly at BNP fun day. Disponível em <http://www.newsoftheworld.co.uk/news/465772/Angel-facedracist-aged-12-Girl-burns-golly-at-BNP-fun-day.html>. Acesso em 26/01/2011.
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primeira década do século XXI, vemos fortalecerem-se, em paralelo à noção de
multiculturalismo, fenômenos como o tribalismo urbano, a xenofobia e os racismos
locais. Para Franco Ferrarotti a contradição reside no fato de que
Em uma era na qual as ocasiões para a comunicação intercultural estão se
multiplicando e
quando se deve reconhecer sobriamente que não mais
existem emigrantes e imigrantes,
mas somos todos simplesmente migrantes, a
intolerância cresce e o ódio racial aumenta500.
Nesse contexto, os fascismos, cujo colapso foi sugerido a muitos com a vitória
dos Aliados e as mortes de Hitler e Mussolini na II Guerra Mundial 501, despertaram de
um estágio de latência para assumir formas mais concretas. Porém, esse quadro não se
esboçou repentinamente. A partir da década de 1980, em vários países da Europa, o
mundo presenciou uma sucessão de ataques a imigrantes e minorias em geral, e o
crescimento tímido, mas insistente, de partidos da extrema-direita, que prenunciaram o
processo.
Nessa perspectiva, desde as últimas décadas, o debate sobre neofascismos e
extrema-direita é freqüentemente requentado pelas notícias da mídia. Seja sobre as
vitórias eleitorais do austríaco Jörg Haider em 2000 e 2004, o surgimento de
movimentos políticos como o norte-americano Tea Party em 2009, ou sobre a polêmica
sucessora de Jean Marie Le-Pen, sua filha, Marine Le Pen, na Frente Nacional francesa
dois anos depois, a temática constantemente gira em torno da intolerância e do
ressurgimento de idéias ultra-conservadoras502.
Nesse contexto de vitórias da democracia, o sucesso de golpes políticos torna-se
improvável. Diante disto, a extrema-direita aposta no uso das próprias vias democráticas
para ascender ao poder, e é dada a largada pela conquista da opinião pública. Para que
consigam espaço “sob o céu e sobre o solo” do século XXI, é necessário reinventar as
500
FERRAROTTI, Franco. The temptation to forget: racism, anti-semitism, neo-nazismo. Greenwood Press:
Westport, Connecticut, USA, 1994, p. 51. (tradução nossa).
501
PAXTON, Robert O. A Anatomia do Fascismo. Trad. Patrícia Zimbres e Paula Zimbres. São Paulo: Paz
eTerra, 2007.
502
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. “Revoluções Conservadoras, terror e fundamentalismo: regressões
do indivíduo na modernidade”. In.: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. (Org.). O Século Sombrio: uma
História Geral do Século XX. Rio de Janeiro: Campus, 2004.
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práticas e discursos fascistas503. Assim, o que observamos são tentativas de
organizações da extrema-direita de adaptarem suas estratégias propagandísticas às
demandas sociais, visando uma maior inserção na opinião pública. Para tanto, os pontos
de tensão da sociedade contemporânea são identificados e explorados ao passo que o
radicalismo é maquiado com a promessa de mudança.
O Blood and Honour faz parte desse processo. Orgulhosos de serem
independentes de um partido político específico, desde o rompimento de Ian Stuart com
o National Front em 1987, os integrantes de suas mais de 30 células espalhadas pelo
mundo são instruídos a filiarem-se a seus partidos locais, os mesmos que publicamente
negam qualquer relação com o neonazismo504.
A filiação a partidos de “livre” escolha (contanto que sejam da extrema-direita) e
a falta de um discurso coeso e concreto, por exemplo, nos revela, por outro lado, que o
B&H não representa uma ameaça eleitoral direta à democracia mundial. Como
percebemos em seus sites, revistas, imagens, artigos e manuais, suas formas de ativismo
beiram à despolitização, mesmo que essa não seja a intenção. Desta forma, a
organização não possui um plano político concreto, apenas idéias, princípios e
concepções que alicerçam uma utopia de sociedade e orientam suas práticas.
Encontrando seu ponto culminante em produções como Captain Scarlet, a
propaganda do grupo preocupa-se mais em fomentar uma cultura do ódio e vender um
estilo de vida que promover um debate fundamentado em ideais políticos e lançar
propostas concretas de atuação. O próprio conceito de ativismo é redimensionado e
deslocado de intuitos eleitorais. O que é tido como militância ideal entre os membros,
consiste basicamente em seguir modelos de comportamento e postura fazendo o uso de
senhas de identidade, ou seja, ouvindo a música White Power e freqüentando os shows,
as marchas e os memoriais505. Além disso, precisam assinar a revista do movimento,
503
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. “Os fascismos”. In: FILHO, Daniel Aarão Reis; FERREIRA, Jorge;
ZENHA, Celeste. O século XX: o tempo das crises, Revoluções, fascismos e guerras. Vol II. 3ª Ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
504
SALAS, Antonio. Diário de um skinhead: um infiltrado no movimento neonazista. Trad. Magda Lopes.
São Paulo: Planeta, 2006.
505
MOYANO, Antonio Luiz. Neonazis: la secucción de la svástica. Madri: Nowtilus, 2004.
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ouvir à rádio, deixar mensagens intolerantes nos fóruns e, eventualmente, agredir
inimigos, como gays, judeus, imigrantes, negros ou muçulmanos 506.
Vale ressaltar que é preciso ponderar rupturas e continuidades entre o
neonazismo do Blood and Honour e os regimes fascistas históricos para melhor
entendê-lo. O próprio fato de a propaganda extrapolar os moldes mais ortodoxos
ultrapassando os limites da palavra falada e escrita, é um sinal de clara apropriação de
estratégias nazistas. Franco Ferrarotti nos atenta para a ampla profusão, por parte do
nazismo, de “símbolos, uniformes, bandeiras, canções, comícios e toda uma liturgia que
explorava completamente os recursos da oralidade da massa.”
507
. Assim, iniciativas
como Captain Scarlet não são necessariamente algo novo, mas sim, renovado que faz
parte das adaptações que integram o processo de ressurgimento dos fascismos. Da
mesma forma, a superficialidade do debate político segue o padrão do fascismo da
primeira metade do século XX, pois não há interesse na “consistência da doutrina,
favorecendo ao invés disso, pura ação e sacrifício total pela causa.” 508.
Nesse sentido, analisando a construção dos episódios da série Captain Scarlet, o
conteúdo de sua programação, a sua zombeteira pedagogia do ódio e a sua importância
como instrumento informativo, nos é possível entendê-la como uma inusitada, porém
eficaz estratégia de doutrinação.
MÚSICA, HUMOR E INTOLERÂNCIA: CAPTAIN SCARLET VERSUS A
DESAGREGAÇÃO DA RAÇA ARIANA
Hospedada no link www.28radio.net, facilmente acessado através de uma das maiores
páginas do movimento, a Blood and Honour Kingdom of Great Britain & Northern
Ireland (www.bloodandhonourworldwide.co.uk), a série conta com 18 episódios
disponibilizados. A datação dos mesmos é um desafio ao pesquisador, já que não é
anunciada no site ou no próprio programa. Porém, um exaustivo processo de pesquisa
nas revistas do movimento509 e em alguns fóruns, nos possibilitou delimitar ao menos o
506
HAMMER, Max. Field Manual. s/l, 2000.
507
FERRAROTTI, Franco. The temptation to forget: racism, anti-semitism, neo-nazismo. Greenwood
Press:Westport, Connecticut, USA, 1994, p. 20. (tradução nossa)
508
Idem.
509
BLOOD and Honour Magazine. Disponíveis em
<http://www.bloodandhonourworldwide.co.uk/home1.html>. Acesso em 07/12/2011.
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espaço de tempo de cinco anos entre o primeiro e o último capítulo da série. Gravado no
sudeste da Inglaterra (segundo menciona o locutor) e criado para ser um programa
mensal, Captain Scarlet, ao que parece, teve alguns problemas com investigações
policiais e com hackers anti-fascistas que roubaram senhas e hackearam sites. Isto,
decerto, prejudicou a série, cujo último episódio disponível não é anunciado como o
final do programa.
A proposta da série radiofônica é construir um meio interativo, dinâmico e bem
humorado de divulgar as bandas do gênero musical White Power (WP). Faz-se
propaganda dos shows e eventos realizados pelas divisões do grupo, anunciam-se lojas
virtuais de CDs, DVDs, roupas e adereços skinhead neonazis e recomendam-se sites do
movimento ou de neofascistas simpatizantes. Assim, cada episódio intercala uma
bateria de músicas WP de diversos estilos (Oi!, RAC, heavy metal, pop, rock, country
etc.), alguns sketches humorísticos do personagem Captain Scarlet, com notícias e
comentários do mesmo.
Assim como no próprio movimento Blood and Honour, a música em CS é a
grande protagonista. Não só por ocupar mais da metade do tempo dos episódios, mas
por ser celebrada ao longo de todo o programa como a mais legítima forma de ativismo.
Na série, a música é o ponto de partida para as demais atividades do grupo: as letras são
os manifestos, os líderes são os artistas, a sonoridade é o que os agita e a estética é o que
os define. Fiel às origens do movimento, o super-herói satírico exalta a subcultura
skinhead, mas não se restringe aos seus ritmos, buscando conectar ouvintes de todo o
mundo ocidental, numa tentativa de “desterritorialidade”, através de dois elos básicos: a
música e a intolerância.
O repertório tocado inclui pedidos dos ouvintes, bandas mais clássicas e
consagradas do movimento, como a Skrewdriver, artistas amadores e iniciantes, e
grupos musicais mais ativos e escalados para tocar nos diversos eventos neonazi como
Brutal Attack, Section 88 e Avalon. Ao longo da série podem ser ouvidas bandas de
países diversos como Itália, Espanha, Alemanha, Estados Unidos e Reino Unido, dos
mais variados estilos dentro do rock, pop, country e metal.
Essa busca por um público variado para expandir as fronteiras do programa é
comentada pelo próprio CS em entrevista de 2007 para o número 37 da revista Blood
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and Honour. Quando perguntado sobre a importância de fazer com que a rádio seja um
serviço mundial, o locutor responde:
Se nós nos importarmos apenas com as nossas próprias terras, nós
permaneceremos separados e fracos, no final das contas. Isso é o que o ZOG
[Governo de Ocupação Sionista] quer, ele quer que nós todos permaneçamos
isolados nos nossos próprios países para apanhar-nos um a um. Blood and
Honour é um movimento mundial, nosso fundador Ian Stuart logo assim
percebeu e é isso que todos nós devemos abraçar. América para os americanos,
Rússia para os russos, França para os franceses, Itália para os italianos e
Inglaterra para os ingleses etc. Juntos nós conseguimos, divididos somos
derrotados. 510
Assim, percebemos a existência da dicotomia nacionalismo-universalidade.
Lutar cada qual pela sua nação dentro do próprio território preservando a
homogeneidade dos povos? Ou devem se unir todas as nações brancas para combater o
perigo da extinção da raça ariana? Captain Scarlet e o mártir Ian Stuart propõem os dois
como meta para o Blood and Honour.
Por isso, entende-se que mesmo que em conflito com os nacionalismos que
fermentam o neonazismo, deve-se acima de tudo garantir a sua sobrevivência ao
rastreamento das forças da democracia. Mas, ao mesmo tempo, este projeto de
universalidade é problemático e suscita rivalidades e desagregação interna. Até aqui, o
perigo da desunião e da discordância entre “irmãos arianos” parece o mais temido vilão
contra o qual se insurge o herói radiofônico. A música, na visão do super-herói,
seguidor à risca dos passos de Donaldson, pode ser uma arma eficiente em garantir a
coesão e sanar as discordâncias.
Por outro lado, após a morte do líder Ian Stuart a articulação entre as muitas
células do Blood and Honour ficou comprometida. A ausência de figuras carismáticas e
unânimes, em torno das quais se organiza o modelo fascista de sociedade e suas
antíteses, implica na mutilação das principais referências que carrega o seu simbolismo.
Pois, não só os princípios de sangue e solo orientam todos os valores fascistas, mas
510
“CAPTAIN SCARLET”. In: Blood and Honour Magazine. nº 37. s/l, 2007. Disponível em
<http://www.bloodandhonourworldwide.co.uk/magazine/issue37/issue37p22.html>. Acesso em 07/12/2011
(tradução nossa.)
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também o próprio líder libertador e messiânico conduz o movimento e canaliza as
obrigações éticas em sua figura511.
É nesse contexto que figuras agregadoras e de forte poder de magnetismo, como
Captain Scarlet, ganham grande importância. O apelo juvenil, o humor impetuoso
contra os “não-brancos”, os gays, judeus, ciganos e todos considerados inimigos, o uso
de personagens engraçados como Biff, o demônio branco, convidam uma juventude
despolitizada e acrítica a lutar por uma causa sem precisar ler, ir a reuniões de partido
ou falar diretamente de política. Tudo o que os ouvintes do programa precisam fazer
para serem ativistas do nacional-socialismo é comprar camisas, assinar a revista do
movimento, ir aos shows, comprar os CDs e DVDs e freqüentar os fóruns e os sites.
Assim se constitui o ativismo lúdico de Captain Scarlet.
Para seduzir e “arrastar essa acne juvenil do desencanto e da frustração”
512
,
elementos familiares são explorados no programa. O próprio nome da série remete a um
lugar comum. Captain Scarlet é o nome de um super-herói de uma série britânica de TV
produzida em plena Guerra Fria, no fim dos anos de 1960, chamada Captain Scarlet
and the Mysterons. Criada por Gerry Anderson, o mesmo de Thunderbirds, a série de 32
episódios é uma ficção-científica de personagens marionetes que se passa no ano de
2068513. O contexto é de guerra entre a Terra e os alienígenas de Marte, os Mysterons.
Para combater esses inimigos, os terráqueos contam com a Spectrum, uma organização
de segurança que dispõe de alta tecnologia. Comandada pelo Colonel White, a Spectrum
possui um agente indestrutível, o Captain Scarlet.
O programa foi transmitido em vários países e reprisado inúmeras vezes na
televisão britânica, virando uma referência nostálgica para jovens de diversas gerações.
Mas que relação essa trama teria com o imaginário neonazista? A analogia é simples.
Para começo de conversa, a palavra inglesa alien, é usada para designar imigrantes. O
restante, deixemos que o próprio herói subvertido nos responda:
511
FERRAROTTI, Franco. The temptation to forget: racism, anti-semitism, neo-nazismo. Greenwood Press:
Westport, Connecticut, USA, 1994.
512
MOYANO, Antonio Luiz. Neonazis: la secucción de la svástica. Madri: Nowtilus, 2004, p. 26.
513
BBC – Cult – Captain Scarlet. Disponível em < http://www.bbc.co.uk/cult/anderson/scarlet/> Acesso
em19/05/2011.
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Captain Scarlet está tentando defender seu planeta de uma invasão de
alienígenas. Os aliens não só querem tomar conta de seu mundo, como também
querem destruir o caráter essencial da vida, eles querem clonar tudo, mudar tudo
e finalmente controlar tudo até que o homem não tenha mais liberdade. Então,
como os imigrantes de hoje, esses aliens estão tentando mudar nossos países,
tentando destruir nossa cultura, nossa herança e nossos valores. Se eles
conseguirem, nós seremos um povo extinto e eu não posso sentar e deixar isso
acontecer. Então, como o Captain Scarlet, eu farei tudo que posso para salvar
nossa raça do esquecimento. Incidentalmente, o seu chefe era o Colonel White e
o seu principal inimigo era o Captain Black […]514
A criação de uma atmosfera de perigo e a delimitação de inimigos geradores de
um mal ameaçador à sobrevivência, que é percebida na fala acima, constitui estratégia
comum a vários grupos e partidos da extrema-direita. O caos iminente alerta e mobilizaos para a ação. Nesse sentido, como já pontuado por Teixeira da Silva515, nos fascismos
não há lugar para o diferente e essa repulsa a esse outro conveniente está presente em
grande parte dos discursos e práticas do B&H.
Mesmo na desumanização dos inimigos a discussão de situações do cotidiano é
fundamental516. Encontramos quadros como Howling Wolf, no qual são anunciados os
shows que estão por vir, noticiados como pequenas vitórias do movimento e o Muslim
Moan Off, no qual são comentadas jocosamente notícias referentes a imigrantes
muçulmanos na Inglaterra, muitas vezes com um sotaque árabe caricatural. Outra figura
merecedora de destaque é Biff, um demônio de voz distorcida que zela pela raça ariana e
extermina seus inimigos. Explorado de maneira cada vez mais freqüente dentro dos
episódios, parece ser personagem gerador de rápida identificação entre os ouvintes.
O SUPER-HERÓI DO CONSENSO
Assim como o estereótipo de super-herói, o Captain Scarlet neonazista se constrói
como personagem adorado pelos seus pares, e odiado pelos seus inimigos. Algumas
mensagens em fóruns e alguns e-mails lidos e comentados pelo próprio CS no ar,
mostram como o programa o transformou em um ídolo interno. Na entrevista para a
edição 37 da revista Blood and Honour, o locutor é referido como eleito inimigo
514
CAPTAIN SCARLET. In: Blood and Honour Magazine. nº 37. s/l, 2007. Disponível em
<http://www.bloodandhonourworldwide.co.uk/magazine/issue37/issue37p22.html>. Acesso em 07/12/2011.
(tradução nossa)
515
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. “Os fascismos”. In: FILHO, Daniel Aarão Reis; FERREIRA, Jorge;
ZENHA, Celeste. O século XX: o tempo das crises, Revoluções, fascismos e guerras. Vol II. 3ª Ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
516
SALAS, Antonio. Diário de um skinhead: um infiltrado no movimento neonazista. Trad. Magda Lopes.
São Paulo: Planeta, 2006.
271
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número um pelos anti-fascistas. Desta maneira, mesmo que a sua figura não tenha tido
grandes repercussões fora do movimento ou de seus detratores, a sua audiência
crescente entre um público diverso o revela como um instrumento pedagógico bem
sucedido e benquisto entre os ouvintes.
Em um registro disponibilizado pelo Wikileaks de mensagens privadas de um
fórum do B&H, hackeado do site www.bloodandhonour.org em 2009, uma mulher
chamada Nicole conta que sua filha pequena Charlie é uma grande fã do Captain
Scarlet. Acrescenta que, apesar dos palavrões, ela acha as lições raciais transmitidas
pelo programa importantes para a educação de sua filha. “É realmente hilário ouví-la
falar sobre a escória negra, paki517 e pedófila etc.” 518, relata.
Alguns episódios transmitem breves entrevistas com espectadores aleatórios dos
shows. Além de instruir sobre como conseguir informações e ingressos, há, em grande
parte das entrevistas, o esforço tendencioso de mostrar aos ouvintes a segurança, a
diversão e importância de comparecer a tais eventos. Mas, alguns depoimentos de
ativistas denunciam, mesmo que em um tom otimista, a evasão de alguns membros e
algumas dificuldades de articulação.
Há vários rostos ausentes que costumavam estar presentes... presentes na
irmandade. Mas agora eu acredito, de fato, que a irmandade está menor que
costumava ser, mas está mais forte que costumava ser. E o que é forte sobrevive,
como dizia Ian. E eu acredito que o Blood and Honour será maior e melhor que
nunca com ou sem Ian Stuart. Ian é um mártir. Ian forjou esse movimento. Ian
vive para sempre nos nossos corações. 519
Não somente o discurso emocionado sobre o líder nos chama atenção na fala
acima de um ativista do movimento. Mas, o modo como Ian Stuart é evocado ao falar
da evasão nos confirma a sua posição de elemento de coesão do grupo mesmo depois de
morto, e as perdas da organização após a sua morte. À maneira do Mein Kampf (1925),
as dores e as palavras dos líderes e ideólogos devem ser difundidas e compartilhadas.
No caso de Ian Stuart, um projeto de Führer repaginado, seus manifestos eram músicas
517
Abreviação pejorativa inglesa para paquistanês, utilizada de forma generalizada para indianos,
paquistanesese habitantes de regiões próximas.
518
BLOOD and Honour international Neo-Nazi network messages and passwords, Mar 2009. Disponível em
<http://mirror.wikileaks.info/wiki/Blood_and_Honour_international_NeoNazi_network_messages_and_pass
words,_Mar_2009/>. Acesso em 19/05/2011.
519
“CAPTAIN SCARLET (CS)”. In: 28 Radio. e. 4, 18min54s. Disponível em <www.28radio.net>. Acesso
em 20/05/2011. (tradução nossa)
272
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de melodias pegajosas e letras agressivas. Sua postura de skinhead neonazi, as
declarações nas entrevistas e os depoimentos de conhecidos se encarregaram de
construir o mito. Sendo a sua influência verdadeira ou não, sua figura é ainda
importante elemento de coesão no grupo, fazendo com que anos após sua morte, ainda
seja elemento central de produções como o Captain Scarlet.
Através da diversidade e da riqueza de elementos que compõem as
programações dos episódios de Captain Scarlet, é possível analisar alguns dos
principais traços que caracterizam os grupos declaradamente neonazistas. Longe de
esgotar as reflexões que a série incita, este artigo buscou investigar como o uso do
humor, a informalidade da linguagem empregada e a apropriação de conhecimentos
prévios dos ouvintes fazem do programa uma criativa e eficiente estratégia de
doutrinação. Abandonando o costumeiro tom ranzinza, apocalíptico ou impositivo da
extrema-direita, Captain Scarlet se passa por entretenimento.
Assim, observamos como dentro do processo generalizado de ressurgimento dos
fascismos as estratégias de sedução são constantemente renovadas. Buscando adaptarse, seja às leis de um país ou aos interesses de um público alvo, investidas criativas são
lançadas de diversos pontos. O importante é ganhar espaço e adequar velhos
pensamentos a um novo mundo. Assim segue a corrida da extrema-direita pelas mentes
do século XXI.
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A MARINHA DE GUERRA NA AMAZÔNIA REPUBLICANA: A ATUAÇÃO
DOS NAVIOS E AS QUESTÕES DE SEGURANÇA NACIONAL, CONTROLE E
VIGILÂNCIA NO INÍCIO DO SÉCULO XX (1900-1910).520
Pablo Nunes Pereira521
SEGURANÇA NACIONAL NA AMAZÔNIA REPUBLICANA
Pode-se entender Segurança Nacional, controle e vigilância a partir de uma série de
prismas, entretanto, a perspectiva da Primeira República era, evidentemente,
diferenciada. Por esse motivo, é necessário observar aspectos como: o controle de
entrada e saída de pessoas pelos navios para o estrangeiro; atuação de consulados,
embaixadas e vice-consulados; quantidade e tipo de navios militares que compunham a
Flotilha do Amazonas; discussões no Congresso Nacional, Câmara Federal e Senado;
compreender a estrutura das instituições que cooperação com o controle da região e
perceber quais os papéis (civis e militares) desempenhados pela Marinha à época, dentre
outros.
PRINCIPAIS FONTES UTILIZADAS ATÉ O MOMENTO
Como documentação direta, analiso Registros de Bordo da Canhoneira Guarany
(oriundos do Arquivo Nacional –AN - e da Biblioteca Nacional - BN) e Arsenal de
Marinha do Pará (oriundo do Arquivo Público do Estado do Pará – APEP) e, de forma
indireta, Diários Oficiais da Câmara, Congresso Nacional e Senado, documentação de
Segurança Pública do Estado do Pará (oriundo do APEP) e tenho perspectiva de
encontrar outros.
Denomino documentação direta aquela referente aos próprios órgãos e
instituições da Marinha, capitanias e portos; por documentação indireta, me refiro à
ofícios ao Chefe de Polícia do Pará, por exemplo, de procedência ou destino do
Comando da Flotilha do Amazonas, Comando da Escola de Aprendizes Marinheiros,
520
- Parte do projeto de pesquisa intitulado “Registros de bordo: relações sociais, impressões, controle e
vigilância da Amazônia a partir dos navios da Marinha de Guerra no alvorecer republicano (1889-1910).”,
coordenado pelo Prof. Dr. William Gaia Farias. Pesquisa em andamento.
521
- Graduando em Licenciatura e Bacharelado em História pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e
bolsista de iniciação científica (PIBIC/ CNPq)
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Comando da Canhoneira Fluvial Acre, Comando da Canhoneira Guarany, The Amazon
Steam Navigation Co Ltd, Guarda Moria da Alfândega do Pará, Comando da Capitania
dos Portos do Pará, além de solicitação de passaportes, prisões de marinheiros,
informações sobre trânsito de vapores nacionais e estrangeiros etc.
SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA
Até então, encontrei diversos documentos da Chefatura de Polícia do Estado do Pará
que revelam questões importantes no tocante à Marinha e Segurança Nacional. Devido à
diversos pedidos de passaportes para viagens ao estrangeiro ao Chefe de Polícia 522, é
possível perceber que o controle de entrada e saída de brasileiros e estrangeiros por
navios era feito, em grande parte, pela esfera estadual, e não federal. A expedição de
passaportes ficava à cargo da mesma Chefatura (com validade de 30 dias, entretanto) 523.
Há prisões de marinheiros por desordens e outros crimes, em que o Chefe de
Polícia informava o Comandante da Flotilha do Amazonas ou este pedia informações
sobre determinados marinheiros presos. É padrão, entretanto, que tais “infratores” eram
escoltados ao Comando da Flotilha para serem submetidos à Conselhos que avaliariam
os possíveis crimes524.
Outro ponto importante é a vasta citação de vapores na documentação. Não é
possível determinar ao certo os tipos (civis, militares, mercantes etc), mas não raro os
navios militares são distintos por sua classe (ex: Canhoneira Guarany). São citados os
vapores: Rio Branco, Mauce, Teffé, Perseverança, Campos Sales, Hilary, Ecclesia,
Ansihn, Ceará (paquete), Parnahyba, Jurupary, Maria (rebocador), Tocantins (lancha),
Maranhão (paquete), União, Sobral, Rio Mar, Ambrosi, Maguary, Goyaz e João Coelho.
É possível perceber, ainda, a presença de companhias de transporte e navegação
dialogando com o Chefe de Polícia seja para a retirada do “depósito do Aurá” de
pólvora, seja para outras solicitações. Encontrei as empresas: Cortez, Coelho & Co;
Miranda, Solva & Co; The Amazon Steam Navigation Company Limited.
522
- APEP, Pasta: Segurança Pública, Fundo: Chefatura de Polícia, notações 013 e 014.
523
- Idem.
524
- Idem, notações 008B, 013, 014, 015.
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DIÁRIOS OFICIAIS DA CÂMARA, CONGRESSO E SENADO525
Os Diários Oficiais oferecem suporte importante, uma vez que são o aporte legal e a
base das discussões que versarão sobre a Segurança Nacional e os rumos da própria
Marinha.
Num primeiro contato, é possível traçar a quantidade de navios de guerra
operando no país, especialmente, na Flotilha do Amazonas, como é possível observar
em mensagem presidencial de Campos Sales, no dia 4 de Maio de 1900:
“Prosseguem com assiduidade os trabalhos de reparação, de que ainda carecem
alguns navios, e até o fim do anno corrente, com os que já se acham promptos,
teremos em condições de entrar em serviço: - no porto desta Capital, 20 navios,
além dos três de instrucção e de três torpedeiras; - na flotilha do Amazonas,
cinco; - na do Rio Grande do Sul, dous; - na de Matto Grosso, três; - na do Alto
Uruguay, dous.” (Pág. 32)526
Outro dado significativo é a proposição do quadro de pessoal da Marinha para o
ano de 1901, proposta pelo mesmo Campos Sales à Câmara e aprovada a priori
(analisei até o momento apenas o mês de Maio):
“Projecto do Governo
Art. 1.º A força naval do anno de 1901 constará:
§ 1.º Dos officiaes da armada e classes anexas, conforme os respectivos
quadros.
§ 2.º De 180, no máximo, aspirantes a guardas-marinha.
§ 3.º De 4.000 praças do Corpo de Marinheiros Nacionaes, inclusive 300
praças para as companhias de foguistas e 100 para a companhia do Estado de
Matto-Grosso.
§ 4.º De 700 foguistas contractados de conformidade com o regulamento
promulgado para os foguistas extranumerários.
§ 5.º De 1.500 aprendizes marinheiros.
§ 6.º De 450 praças do Corpo de Infantaria de Marinha.
§ 7.º Em tempo de guerra, do dobro do pessoal dos §§ 3º, 4º, 5º e 6º.
Art. 2.º As praças e ex-praças, que se engajarem por mais de três anos e em
seguida por dous, pelo menos, terão direito, em cada engajamento, ao valor,
recebido em dinheiro, das peças de fardamento gratuitamente distribuídas aos
recrutas.
525
- Disponíveis em http://imagem.camara.gov.br/pesquisa_diario_basica.asp
526
- http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=D&Datain=4/5/1900
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Art. 3.º Revogam-se as disposições em contrario.” (Pág. 179)527
REGISTROS DE BORDO
Esse tipo de documentação permite um olhar à partir do próprio navio e de seus
tripulantes. É evidente, entretanto, que seu registrador (um oficial responsável pela
embarcação) irá ressaltar aspectos que lhe chamarem atenção e suprimir outros, uma
vez que tal fonte não consiste em algo pessoal, mas “oficial”, no sentido de funcionar
como um livro de registros.
Em especial, essa fonte é o grande ponto do projeto de pesquisa a qual este plano
de trabalho pertence e trabalhamos com os registros da Canhoneira Guarany,
embarcação que fazia parte da Flotilha do Amazonas.
Com o registro de bordo, é possível tirar algumas considerações prévias: a
localização exata ou aproximada do navio (bem como o clima), o serviço da tripulação,
informações sobre militares que desembarcaram licenciados, prisões de marinheiros e
foguistas, informações sobre doentes (em alguns momentos, cita-se “o marinheiro...
encontra-se na enfermaria), embarcações próximas e outros registros de cotidiano
(obras, outros profissionais à bordo, o posto e o nome do oficial que escreve etc):
“Bordo da Canhoneira Guarany em Belem, 16:17 de Janeiro de 1900;
Tempo chuvoso e o navio em faina para mudar de amarração. Deu-se o rancho à
guarnição. Continuam trabalhando à bordo os operários do Arsenal. Regressou a
praça que se acha em terra com licença. O navio se acha amarrado em frente à
officina de construção do Arsenal
S.M.N.
A. Britto Ferreira
2º Tenente”528
A perspectiva é que, à partir dos Registros, cruzando-se com notas em Jornais,
Ocorrências e Ofícios Policiais, seja possível traçar um pouco do cotidiano dos
marinheiros, bem como, a aplicação do pensamento de Segurança Nacional que se inicia
527
- http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=D&Datain=29/5/1900
528
- Arquivo Nacional, Coleção Marinha, Notação IVM 2353.
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no Ministério, no Poder Legislativo Federal e nos Comandos Militares e termina nos
portos, embarcações e nas pessoas que, diariamente, teriam o dever de “zelar” pela
Segurança Nacional nos rios da Amazônia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um dos objetivos pertinentes ao projeto é ter um quadro geral do que foi a Marinha de
Guerra na Amazônia no período em questão. A documentação até aqui exposta já
permite questionar as esferas de atuação e vigilância da Amazônia, delinear
embarcações militares da Flotilha (como a Canhoneira Guarany), bem como o quadro
de pessoal da Marinha. Tais informações são relevantes para, em longa escala (pelo
menos nos anos do plano de trabalho), observar a evolução do pensamento militar
brasileiro e (pretendemos) as mudanças no próprio pessoal da Marinha (formação,
aplicação da lei, distribuição de funções etc).
O projeto de pesquisa ainda galga seus primeiros passos, mas já apresenta como
principal conquista a abertura de um universo complexo e ainda pouco explorado que é
a História da Marinha na Primeira República através do cotidiano dos marinheiros e das
embarcações onde, relembrando “Dada por finda nossa derrota, temos cumprido nossa
missão”529, podemos ampliar os horizontes da História Militar Brasileira.
529
- Trecho do Hino da Marinha do Brasil
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‘TRUTH WELL TOLD: O PAPEL DA AGÊNCIA PUBLICITÁRIA McCANNERICKSON NA AMERICANIZAÇÃO DO BRASIL NO SEGUNDO GOVERNO
VARGAS (1951-1954)
Patrícia Sunah de Negreiros Lopes530
Orientadora: Laura Moutinho Nery
Resumo:
O presente trabalho consiste em analisar a atuação da agência de publicidade McCannErickson, no que tange a sua contribuição para o processo de americanização do Brasil.
Conjugando de forma interdisciplinar e crítica as diferentes abordagens teóricas da
História, Sociologia e Antropologia sobre o referido processo, ressaltamos os aspectos
referentes às suas estratégias de persuasão e seus resultados a longo prazo, no intuito de
modificar hábitos e comportamentos dos consumidores brasileiros.
Palavras-chave: publicidade, McCann-Erickson, americanização, Segundo Governo
Vargas.
Abstract:
The aim of the present work is to analyze the performance of the north-american
advertising agency McCann-Erickson, regarding their contribution to the process of
Americanization of Brazil. Combining in an interdisciplinary and critical view the
different theoretical approaches to History, Sociology and Anthropology on the above
process, we emphasize aspects related to their persuasion strategies and their long-term
results, in order o change habits and behaviors of Brazilian consumers.
Keywords: advertising, McCann-Erickson, Americanization, Second Vargas Government.
INTRODUÇÃO
Truth well told. Verdade bem dita, bem contada. Essa frase ainda funciona como lema
criativo de uma das principais agências publicitárias do mundo: a McCann-Erickson.
Criada no ano de 1930, em Nova York, Estados Unidos, a partir da fusão de duas outras
agências – HK McCann Company e a Erickson Company531 – a McCann chega ao
530
Título acadêmico: licenciada em História; Vinculação: Universidade do Estado do Rio de
Janeiro;
Orientadora: Laura Moutinho Nery; Email: patrí[email protected]; Telefones: (021) 86855908 ou (021) 2229-8771; Endereço: Rua Pedro de Carvalho 120, apt.105 BLA- Méier- Rio de
Janeiro – RJ
CEP: 20725-232.
531
Ver mais em: http://mccann.com/about/story/. Acesso em março de 2013. Vale ressaltar, em particular, a
importância da HK McCann Company, em função de ter sido criada dentro da empresa petrolífera Standard
Oil, de propriedade de Nelson Rockfeller.
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Brasil em 1935, em pleno Carnaval. Hoje é uma empresa multinacional, com sedes em
praticamente todos os continentes, referência inconteste no mercado publicitário. Mas
afinal, em que consiste a “verdade bem dita” da McCann-Erickson?
A resposta é simples: uma verdade bem dita, bem contada, transforma mentiras
em verdades, benditos em “malditos”, o bonito em “belíssimo”, desejo em consumo e
consumo em lucro. Não será esse um dos objetivos maiores do capitalismo? A
publicidade é e sempre foi uma mola mestra do modelo capitalista, seja entre sociedades
plenamente industrializadas, como no caso norte-americano, seja em sociedades em vias
de, como no caso brasileiro no início da década de 1950. A McCann-Erickson, assim
como as demais agências, soube muito bem como se valer disso, ainda mais se
pensarmos a atuação dessa agência relacionada ao processo de americanização do
Brasil.
Manter países sob a órbita da influência norte-americana, expressa nos mais
diversos níveis – americanizar - já foi assunto para políticas externas ora privilegiando o
hard power, como nos tempos de Theodore Roosevelt, ora privilegiando o soft
power532, já na era Franklin Delano Roosevelt. No caso brasileiro, durante a década de
1940, a chamada “política de boa vizinhança”, arquitetada em grande parte pela agência
oficial de Nelson Rockfeller, Office of the Coordinator of Inter-American Affairs
(OCIAA), funcionou como um dos maiores exemplos de soft power, delineando-se
como a célula estrutural da americanização do Brasil para o enfrentamento da ameaça
nazifascista. Entre os balagandans de Carmem Miranda e a ginga de Zé Carioca, em
maior ou menor grau, tal qual afirmam Gerson Moura e Antonio Pedro Tota 533, ao fim
da Segunda Guerra o Brasil já estava “americanizado” e a ameaça do nazi-fascismo
devidamente banida do continente. Mas a americanização para por aí?
Diante de um novo contexto, o da Guerra Fria, e a característica disputa
ideológica entre os modelos capitalista e comunista, capitaneados respectivamente por
Estados Unidos e União Soviética, o processo de americanização – em particular o do
Brasil – avança, mas agora em outras bases. O objetivo passa a ser afastar a influência
532
Sobre os conceitos de hard power e soft power,ver: NYE, Joseph. Soft Power: The Means to Sucess in
World Politics.New York: Public Affairs, 2004.
533
Respectivamente em: MOURA, Gerson. Tio Sam chega ao Brasil: a penetração cultural norteamericana. São Paulo: Brasiliense, 1985. Tudo é História; TOTA, Antônio Pedro. O imperialismo sedutor.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
280
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comunista e também nacionalista, vale ressaltar, reforçando o ideário capitalista que já
se confundia com o modelo norte-americano de desenvolvimento. Isso será feito não
mais por políticas e ações estatais do governo americano, mas sim pelo caminho
indireto da penetração econômica, via empresas, que ao venderem seus produtos
vendem também novos hábitos, novos comportamentos, novas formas de consumo.
Nesse sentido, a atuação das agências publicitárias norte-americanas – que,
inclusive, detinham o monopólio das teorias, técnicas e práticas do “fazer” publicitário em parceria com suas empresas-clientes conterrâneas, foi de fundamental importância
para a consolidação dessa nova fase da americanização do Brasil. Isso porque,
juntamente com o estímulo publicitário ao consumo de determinados produtos, em sua
maioria de marcas americanas, estavam embutidos uma série de cargas de valores
culturais e de criação (e manipulação) de um imaginário social particularmente ligados
ao american way of life e ao ideal progressivista que tão bem o caracteriza: rapidez,
eficiência e praticidade ilimitados. Como se vê, o “modo de ser americano” foi – e é –
um grande negócio.
Um grande negócio que, por sua vez, encontrava, ao mesmo tempo, um meio
ótimo e um meio inóspito para se desenvolver. O meio ótimo era representado por todo
o processo de industrialização, consequente urbanização e contínuo desenvolvimento de
uma classe média urbana pelo qual vinha passando o Brasil, em particular durante o
Segundo Governo Vargas534. Ainda que não totalmente consolidado, o cenário reúne
condições que são vitais à manutenção e expansão do mercado publicitário, em qualquer
sociedade. Já o meio inóspito expressava-se na divisão da sociedade brasileira – entre
classes políticas e populares – entre “nacionalistas” e “entreguistas”, fator esse que
poderia atravancar os projetos econômico-expansionistas do Estados Unidos em relação
ao Brasil.
Assim, a McCann-Erickson fez da sua “verdade bem contada” uma prática, e
suas estratégias de produção e organização estiveram ligadas ao momento histórico,
político e cultural que o Brasil atravessava, particularmente, na conturbada primeira
metade da década de 50, merecendo destaque por ter sido uma das duas maiores
534
Merece destaque no período a indústria petrolífera, sintetizada na criação da Petrobrás, em 1953.
281
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agências atuantes no país535. Que difícil momento para atuar. Que grande oportunidade
para crescer.
QUEM É A MCCANN-ERICKSON?
A data do dia 1º de fevereiro de 1935 marca o início das atividades do escritório da
McCann-Erickson no Brasil, particularmente no Rio de Janeiro. Inicialmente, o
escritório era composto apenas por Armando de Moraes Sarmento, principal nome da
história da McCann no Brasil536, e um office-boy, e cuidava da conta da Standard Oil
Company of Brazil – posteriormente denominada Esso Brasileira de Petróleo. Em 1950,
Armando de Moraes Sarmento, à época gerente-geral da McCann para o Brasil, já havia
conseguido transformar a McCann-Erickson brasileira na maior agência do país, com
quatro escritórios regionais – Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte
– além do instituto de pesquisa Marplan e de uma segunda agência, a Multi-Propaganda.
Foi pelas mãos de Sarmento que a McCann brasileira conquistou, já na década de
1940, de forma pioneira dentro da organização, algumas contas que nem mesmo a
matriz, em Nova York, tinha conquistado. Estamos falando, nada menos, das contas da
General Motors, Goodyear, Nestlé, Anderson Clayton, American Home (Kolynos),
Colgate-Palmolive e Coca-Cola.
Os produtos-alvo da publicidade da McCann, como podemos notar, eram de tipo
variado, de gêneros alimentícios a pneus de carro. No entanto, vale ressaltar o quanto –
e como - eles ficaram marcados na memória afetiva de muitos brasileiros, que por vezes
associavam o nome da marca ao produto genérico. Essa dinâmica ocorria de forma mais
enfática no contexto do pós-Segunda Guerra, principalmente em princípios dos anos 50,
como é o caso das marca Frigidaire, de geladeiras produzidas pela General Motors, e
da marca Flit, de inseticida fabricado pela Esso. Assim, é pertinente o depoimento do
publicitário David Monteiro, oriundo da própria McCann, ao afirmar que:
“Frigidaire, por exemplo, passou a ser sinônimo de refrigerador elétrico. Era
nome genérico. Como as geladeiras eram, naquela época, as caixas onde eram
guardadas as pedras de gelo, quando se falava em refrigerador elétrico todos
pensavam em Frigidaire. Isso também ocorreu com Flit, produto lançado pela
535
Disputava o primeiro lugar com a McCann-Erickson a J.W.Thompson, em termos de poder no mercado
brasileiro.
536
Outros dois grandes nomes da McCann-Erickson no Brasil foram Altino João de Barros e Emil Fahrat.
282
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McCann-Erickson no campo dos inseticidas. Flit tornou-se sinônimo de
inseticida. Tal fato ocorreu com muitos produtos.”537
Merece destaque, também, a produção para o rádio feita pela McCann Erickson,
ao longo das décadas de 1940 e 1950, na qual a agência não se dedicava, apenas, a criar
e executar os comerciais. A McCann ficava responsável pela elaboração integral do
programa radiofônico, que sempre era realizado no interior da própria agência, em
diálogo e com participação direta de seus respectivos patrocinadores. Assim, nasceram
os populares Um milhão de melodias, patrocinado pela Coca-Cola, Rádio Almanaque
Kolynos, além de novelas e do antológico Repórter Esso.
Seja como pioneiro, seja como testemunha, o fato é que o Repórter Esso foi o
mais importante programa de notícias da história da imprensa brasileira, transitando
entre o rádio e a televisão, entre as décadas de 40 e 60. A produção relacionava a
necessidade de levar informação ao ouvinte/telespectador e, ao mesmo tempo, durante
os intervalos, embutir publicidade.
Vale ressaltar que, para cada região do país, a forma de vender e elaborar a
publicidade desses produtos era distinta, constituindo uma espécie de marketing
especializado que, independente do público-alvo, buscava sempre transmitir a ideia de
credibilidade, associada ao noticiário.
Diante disso, nota-se que, ao mesmo tempo em que o público mantinha-se
informado quatro vezes ao dia - rigorosamente às 8horas, 12h55, 20h25 e 22h30, fora as
edições extraordinárias- era, também, apresentado ao “maravilhoso” mundo do
american way of life, através dos produtos das marcas americanas - todos clientes da
McCann-Erickson. Tudo pleno de intenções que iam muito além da simples informação
ou da simples veiculação de publicidade.
O CONTEXTO HISTÓRICO E A PRESENÇA DAS AGÊNCIAS
PUBLICITÁRIAS NO BRASIL
As agências publicitárias norte-americanas chegaram ao Brasil de forma gradual, nas
primeiras décadas do século XX, muitas vezes “camufladas” no interior das empresas,
como se fosse mais um setor delas, como no caso Bayer. Estas ficaram conhecidas
537
David Monteiro, citado por REIS, Fernando. São Paulo e Rio: uma longa caminhada. In: História da
Propaganda no Brasil.São Paulo: T.A.Queiroz, 1990, p. 323.
283
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como house agency, literalmente, agência da casa. No entanto, é a partir da década de
1930 que a presença dessas agências começa a ganhar corpo de forma mais
significativa, encontrando no estímulo à industrialização e urbanização, bem como na
disseminação de novos meios de comunicação, como o rádio, novos e necessários
caminhos para a sua expansão.
Ressalte-se, ainda, que as agências norte-americanas exportavam o know-how
técnico sobre como fazer propaganda para todo o mundo e a presença delas no território
brasileiro só veio a contribuir para uma maior profissionalização da atividade. Menos
amadorismo e improvisos, mais pragmatismo e resultados. Essa nova tônica provocará
profundas mudanças na organização e atuação das agências no Brasil.
Os ecos dessas mudanças já são evidentes em fins da década de 1940, com o
crescimento do associativismo expressado na criação da Associação Brasileira de
Propaganda (ABP), que cuidaria da disciplinarização ética e da auto-regulamentação na
produção de propagandas, bem como criação da Associação Brasileira de Agências de
Publicidade (ABAP), totalmente baseada no padrão da American Associaion of
Advertising Agencies (AAA), que fixaria as normas-padrão de seus funcionamentos no
Brasil. Note-se que a auto-regulamentação era fundamental para garantir a margem de
independência necessária à atuação das mesmas.
Chegada a década de 1950 e com ela a introdução de mais um estratégico e
importantíssimo veículo de mídia – a televisão – a urgência pela formação de
profissionais devidamente capacitados criou a demanda pela criação de um curso
superior de formação em publicidade. Foi em 27 de outubro de 1951 que ele foi
finalmente criado: era fundada a Escola de Propaganda do Museu de Arte de São Paulo.
Era o sinal de maturidade de uma profissão.
A maturidade da profissão ganha, na primeira metade da década de 1950, uma
dimensão de atuação até então nunca vista, à medida que, por vezes, extrapolava os
limites das agências e tangenciava, ainda que de forma indireta, o cenário político, de
crise, instabilidade e divisão política, que marcava o Brasil do Segundo Governo
Vargas. Vejamos o porquê.
O Brasil vivia a necessidade de manter ativo o seu processo de industrialização,
associado à perpetuação da ideia, criada ainda na Segunda Guerra Mundial, de que os
284
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Estados Unidos iriam investir na industrialização brasileira. Da parte norte-americana,
contudo, as pretensões eram outras: a prioridade passa a ser reerguer as economias
europeia e japonesa, fazendo delas a vitrine maior do sucesso do modelo capitalista.
Como se vê, a prioridade não era o Brasil, que já estava devidamente americanizado e
não representava mais uma ameaça aos interesses americanos. Contudo, engana-se
quem pensa ser totalmente verdadeira essa afirmativa.
Isso porque, embora a política externa norte-americana não fosse mais a mesma,
havia um novo conjunto de interesses em jogo, em relação ao Brasil, que seriam:
fomentar o anticomunismo, conquistar a simpatia aos interesses norte-americanos e,
principalmente no caso brasileiro, desestabilizar governos nacionalistas e/ou
reformistas. A maneira como esses objetivos eram colocados é que era o diferencial
daquele momento: deixava-se claro aos vizinhos brasileiros (e latino-americanos em
geral) que estes já não podiam contar com o amplo financiamento de outrora aos seus
respectivos processos de industrialização mas, por outro lado, tampouco poderiam
“ousar” criar barreiras à penetração econômica norte-americana, via empresas que, por
sua vez representavam (como sempre) os interesses nacionais dos Estados Unidos.
Essa (nova) política externa norte-americana torna-se um prato cheio tanto para
o revigorar do processo de americanização do Brasil como para a contribuição ao clima
de instabilidade e crise que tanto marca o Segundo Governo Vargas, principalmente no
que diz respeito aos negócios do petróleo brasileiro.
MCCANN-ERICKSON E OS NEGÓCIOS DO PETRÓLEO NO BRASIL
Em 1957, o Congresso Nacional instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito
(CPI), a fim de investigar os trustes de empresas norte-americanas, em particular as
petrolíferas Esso e Shell, no que diz respeito ao seu poder sobre a imprensa nacional. A
ação do Congresso inspira-se no exemplo da criação, nos Estados Unidos, da Federal
Trade Comission, elaborada em 1951, que ficou encarregada de investigar o controle
exercido sobre a imprensa norte-americana, por parte das grandes empresas.
O fato, ocorrido em fins da década de 1950, relaciona-se e, ao mesmo tempo,
expõe uma questão crucial para o Brasil, principalmente durante o segundo governo
Vargas: a questão do petróleo ou, mais especificamente, a disputa sobre quem deveria
explorá-lo no Brasil.
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A questão do petróleo ganhou contornos delicados quando, em 1953, Getúlio
Vargas pretendia aprovar no Congresso a Lei 2004, conhecida como a “Lei da
Petrobrás”. Ela dispunha sobre a política nacional do petróleo, garantindo o monopólio
estatal sobre o mesmo, no que diz respeito à exploração, produção, refino e transporte
do petróleo no Brasil. Para tal fim, a lei incluía a criação de uma empresa estatal para a
exploração (Petrobrás) e a definição das atribuições do Conselho Nacional do Petróleo
(CNP).
A movimentação em torno da aprovação da lei transcendeu os limites do
Congresso, chegando à imprensa e, por conseguinte, à movimentação da opinião
pública. A mídia impressa, em particular os jornais, ficou polarizada entre os chamados
“nacionalistas”- que, a favor do governo, defendiam a exploração do petróleo feita pelo
capital nacional/estatal- e os “entreguistas”- a favor da abertura da exploração ao capital
estrangeiro. Uma consequência trágica da verdadeira batalha em que se transformou a
campanha, foi o suicídio de Vargas. Na carta testamento, Vargas denuncia a existência
de um golpe contra as “instituições e o povo brasileiro”, fabricado por essas empresas e
com colaboração da imprensa.
Devemos levar em conta, porém, que, de acordo com o artigo 160 da Constituição
Federal de 1946, era vedada aos estrangeiros a propriedade de empresas jornalísticas,
nem mesmo como acionistas. A mesma regulação, contudo, não valia para as agências
de publicidade. Sendo assim, foi justamente através da publicidade que essas empresas
fizeram o seu lobby contra a criação da Petrobrás e pela garantia dos seus interesses em
controlar a exploração do petróleo brasileiro.
Denúncias de investimento de cifras milionárias em propaganda, a denúncia de
antigos funcionários que revelavam os planos da Esso para conduzir a opinião pública e
a mudança de comportamentos do povo brasileiro, bem como a retirada de seus
anúncios de determinados jornais538, caso esses se posicionassem a favor do governo 539,
538
Participaram da campanha anti-nacionalista de exploração do petróleo, recebendo verbas da Esso, os
jornais: O Correio da Manhã, Diário da Noite, O Globo, Tribuna da Imprensa, O Dia, Jornal do Brasil e
Lutta Democrática, todos do Rio de Janeiro. Em São Paulo, O Estado de São Paulo, A Gazeta, Folha da
Manhã, Folha da Tarde, Diário de São Paulo, Diário da Noite, O Dia, A Hora e Diário Popular.
539
Vale ressaltar que, já nos anos 1950, os jornais contavam, fundamentalmente, com a verba dos anúncios
das grandes empresas para manter o seu funcionamento. Ou seja, ainda que somente os brasileiros pudessem
ser donos dos jornais, estes dependiam do investimento em propaganda feito pelas grandes empresas estrangeiras e norte-americanas, na sua maioria.
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investigados são alguns fatos, constatados pela CPI, que atestam a veracidade da
investida da Esso sobre a questão nacional do petróleo.
Ora, a agência publicitária responsável pela propaganda da Esso era justamente a
McCann. Tanto que:
“No Brasil, a Comissão realizou os trabalhos comprovando a ligação da
McCann-Erickson com a Esso desde 1935, e a distribuição de verbas destinadas,
de forma praticamente exclusiva, aos veículos que se posicionaram a favor da
multinacional e contra a nacionalização da exploração do petróleo. A Esso
Standard do Brasil era a principal cliente da agência, despendendo US$25
milhões ao ano para a publicidade em jornais, revistas e estações de rádio. Ao
depor na CPI, o presidente da McCann, Armando de Moraes Sarmento, admitiu
que “o Repórter Esso no rádio e, hoje, na televisão são os veículos básicos para a
propaganda da Esso””540
Ainda sobre o envolvimento da McCann, acrescenta-se:
“Chamados a depor perante a Comissão Parlamentar de Inquérito, viram-se os
dois personagens atrapalhados a explicar a distribuição da publicidade da Esso,
dirigida apenas aos órgãos de imprensa contrários ao monopólio estatal do
petróleo, suborno e corrupção que, gaguejantes e confusos, acabaram por
confessar.”541
É nesse sentido que a McCann-Erickson, responsável pela propaganda dos
produtos Esso e pelos intervalos comerciais do Repórter, cooperou no fornecimento de
“armas” para uma disputa entre os interesses nacionais versus os interesses norteamericanos refletidos em suas empresas petrolíferas, dentro do contexto da Guerra Fria.
Note-se que as ações de propaganda iam muito além do simples apelo comercial
e de estímulo às vendas, ganhando fortes matizes políticas e ideológicas.
USOS DO IMAGINÁRIO: MOVENDO CULTURAS
Agora de posse do conhecimento sobre o que foi a McCann-Erickson e como ela atuou
em relação ao contexto do Segundo Governo Vargas, vale ressaltar que mecanismos
essas agências operam para promover o avanço dessa nova fase da americanização do
Brasil. Americanização que, no caso, é sinônimo de “influência que exerce a cultura, os
valores e os modos de vida [norte-] americanos sobre pessoas pertencentes a outras
culturas”542.
540
KLÖCKNER, Luciano. O repórter Esso: a síntese radiofônica mundial que fez história. Porto Alegre:
EDIPUC, 2008, p.69.
541
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p.407.
542
NIÑO, Antonio. La americanización de España. Madrid: Catarata, 2012, p.16.
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Mas o fato ao qual os historiadores talvez não tenham dado a devida atenção, e os
próprios publicitários deliberadamente ignoram, é o de que o fazer publicitário não trata
tão somente de vendas de produtos. Com eles, vendem-se ideias, cultura e todo um
aparato imaginário, habilmente ministrados pelas agências e seus profissionais, que
criam o poder mobilizador que exerce um modelo exitoso - no caso, o modelo norteamericano. O olhar histórico sobre o imaginário consiste, essencialmente, em tratar das
imagens verbais, visuais e mentais produzidas por uma determinada sociedade, em
determinado contexto. Relaciona-se diretamente à construção do simbólico, uma vez
que este se dá quando objetos, linguagens ou representações são confrontados com
determinada realidade, produzindo uma série de sistemas simbólicos.
O imaginário serve para “reforçar a dominação efetiva pela apropriação dos
símbolos e garantir a obediência pela conjugação das relações de sentido e poderio.”
543
A questão da ideologia, portanto, também permeia o debate sobre o imaginário, à
medida em que ela auxilia “na organização e na construção de representações já
existentes, para atingir determinados objetivos ou reforçar determinados interesses.”
544
Deve ser caracterizado, portanto, como meio fornecedor de materiais úteis à
possibilidade de se produzir interfaces entre os setores da vida social, econômica,
cultural e etc. Assim, as noções de imaginário e de representações, também, por vezes
se tocam e até mesmo se confundem.
Diante disso, vale ressaltar que as leituras da americanização do Brasil, em seus
primórdios, eram marcadas por fortes matizes de uma leitura marxista desse processo,
mesmo em se tratando de aspectos culturais, a julgar pelos trabalhos da Escola de
Frankfurt na análise desse processo. No entanto, a julgar pelo que já apresentamos até
aqui, optamos por privilegiar uma abordagem mais pluralista e interdisciplinar, com
base nos preceitos da Nova História Cultural, História do Imaginário, além do franco
diálogo com a Antropologia e a Sociologia.
Essas novas abordagens não negam a preeminência norte-americana no campo das
chamadas “indústrias culturais”. Apenas ressaltam que o avanço da cultura norte543
BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. In:Anthropos-Homem. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da
Moeda, 1985, p.299.
544
BARROS, José D‟Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens. Petrópolis: Vozes, 2009,
p.86.
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americana não se dá através de uma recepção passiva por parte das demais culturas. Não
há, necessariamente, dominantes e dominados, algozes e vítimas. O que ocorre é um
processo de “codificação/ decodificação”, descrito por Stuart Hall 545, no qual o receptor
do discurso é considerado sujeito ativo. Dessa forma, embora o emissor (produtor)
codifique seu texto (mensagem) de uma forma particular, o receptor irá decodifica-lo de
uma maneira levemente diferente – configurando o que Stuart Hall chama de “margem
de entendimento”.
Em outras palavras, a partir da mediação das agências de publicidade, não existe
“american way” que não precise interagir constantemente com o “south american
way”, fazendo-lhe concessões e adaptações devidas. Afinal, vender “pra ioiô e pra iaiá”
o que trazia no seu “tabuleiro”, tal qual cantara Carmem Miranda, era o objetivo final da
“pregoeira” propaganda. As referências culturais, portanto, são móveis e adaptáveis.
Até porque é no período pós-Segunda Guerra Mundial que começa a ser
delineada, ainda que de forma lenta, a noção formulada por Nestor Garcia Canclini546 de
que o consumo, entendido como produto da globalização, gera um novo tipo de
cidadão, cujo status e participação nesse mundo moderno são determinados pela
quantidade de bens que ele pode adquirir.
Em realidade, tal qual Renato Ortiz afirma, na “modernidade-mundo” criou-se
uma ética do consumo que não obedeceria apenas aos imperativos das necessidades
econômicas:
“Com o advento da sociedade urbano-industrial, a noção de pessoa já não mais
se encontra centrada na tradição.(...) No mundo em que o mercado torna-se uma
das principais forças reguladoras, a tradição torna-se insuficiente para orientar a
conduta. Uma dessas instâncias é a publicidade, pois cumpre o papel de elaborar
o desejo do consumidor atomizado, conferindo-lhe uma certa estabilidade
social.”547
Nesse sentido, a publicidade se torna um elemento essencial na segurança e
auto-realização dos indivíduos:
545
Ver mais em: HALL, Stuart. Enconding and Decoding in the television discourse.Birmingham: Centre for
Contemporary Studies, 1973.
546
Ver mais em: GARCIA CANCLINI, Nestor. Consumidores y ciudadanos: conflitos multiculturales de la
globalización.. México: Grijalbo, 1995.
547
ORTIZ, Renato. Mundialização e Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
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“A publicidade adquire assim um valor compensatório e pedagógico. Ela é o
modelo de referência. Por isso os publicitários da década de 20 e 30 se
consideram como “apóstolos da modernidade”. Eles procuram guiar os
indivíduos, ensinando-lhes, por meio dos produtos, como se comportar.”548
CONCLUSÕES
Chegado o fim do Segundo Governo Vargas, a publicidade atinge, enfim, a sua
“maioridade”. Através da formação de profissionais capacitados e do crescimento – e
fortalecimento dos movimentos associativistas – seja entre os profissionais, seja entre as
agências – a atividade publicitária se profissionaliza enquanto parte da atividade
econômica, comercial, política e - por que não? – social do país. Fez girar a roda do
desenvolvimento ao “tornar público” novos e variados produtos, que carregavam
consigo toda uma série de valores simbólicos, traços culturais e interesses que iam
muito além do potente combustível ou do refrescante refrigerante. A McCann-Erickson
é uma parte (considerável) disso.
Ainda assim, fica a pergunta: por que essas estratégias das agências foram tão
eficientes, a ponto da atividade publicitária crescer como até então não se tinha visto no
Brasil?
Uma boa razão a ser apontada seria a de que as estratégias das agências de
publicidade se sobrepõem às ideologias. Expliquemos melhor: mesmo em meio a um
contexto internacional de Guerra Fria, no qual predominam as consequentes disputas
ideológicas entre os modelos capitalista e comunista, com a adicional disputa por poder
político, no caso do Brasil durante o segundo governo Vargas, entre os defensores dos
modelos nacionalista e entreguista de desenvolvimento, a publicidade emerge e se
consolida como uma atividade que, embora servindo fielmente ao modelo capitalista,
não está, na prática, preocupada em defendê-lo, utilizando-se de argumentos
necessariamente políticos.
A ela interessa o lucro, que deriva do consumo. E para que haja consumo, faz-se
necessário ora mudar, ora manter determinados comportamentos – nunca pela via da
imposição, mas sim pela via da sedução, o que faz com que o público-alvo pense estar
adotando determinadas práticas sem, necessariamente, perceber que- e o quão- estão
548
Idem, p. 120.
290
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sendo influenciado para isso. Assim, mais que tomar a defesa do sistema capitalista
versus o sistema comunista pela via do argumento político e ideológico – como fazia,
com muito mais intensidade, durante a Segunda Guerra Mundial a Política da Boa
Vizinhança, para combater a ameaça nazista - a publicidade, no início dos anos 50,
explora a manutenção de um ciclo contínuo que envolve a associação entre consumo e
comportamento.
É nesse sentido que podemos afirmar que o papel das agências, em particular o
da McCann-Erickson, dada a sua extensa margem e poder de atuação, faz uma
contribuição muito mais eficaz porque produz efeitos imediatos: o consumo, mola
mestra do sistema capitalista, a partir da geração de necessidades, induz a adoção de
determinados comportamentos.
O good will549 do consumidor para comprar os “enlatados” produzidos pelas
empresas americanas – do alimento à cozinha modulada – torna-se uma maneira
acintosamente eficiente de fazer prevalecer os interesses norte-americanos, no Brasil
nacionalista do Segundo Governo Vargas. Ao mesmo tempo em que o brasileiro de
classe média poderia defender a criação da Petrobrás, poderia render-se ao prazer de
dirigir um carro fabricado pela General Motors, com os maravilhosos e duráveis pneus
Goodyear, junto às vantagens, em eficiência e economia, de abastecê-lo com a gasolina
Esso. A eficiência, praticidade, comodidade, a rapidez na execução de uma tarefa,
corporificados nos produtos veiculados pela McCann-Erickson, estão na ordem do dia
de um país em transição.
Trata-se de um Brasil predominantemente rural, tão bem retratado pelos filmes
do diretor brasileiro Amácio Mazzaropi, mas que, ao mesmo tempo, busca trilhar seu
caminho rumo às avenidas dos grandes centros urbanos, entre os arranha-céus e
magazines. Um Brasil que lê jornais e revistas e ainda continua ouvindo rádio, mas que
já almeja ter acesso à televisão – ou ser, ao menos, um “televizinho”. Enfim, um Brasil
que almeja um certo status e, mais do que isso, busca tornar o vida cotidiana mais
prática, funcional e, principalmente mais “confortável”.
549
A expressão designa a boa vontade do consumidor em adquirir determinado produto, por sua vez
estimulada pela persuasão publicitária.
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Vale notar, por fim, que essa contribuição, enquanto base de funcionamento das
agências, não se constrói com a imposição de uma cultura sobre a outra, mas sim
através da manipulação de símbolos associados a valores– que são, sim, de ordem
cultural.
Afinal, não se pode negar o lado “maldito” de uma verdade bem dita.
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O MORTO, A MORTE E O TRABALHO DE LUTO: FORTALEZA - CE E A
MUDANÇA DE SENSIBILIDADE ENTRE OS ANOS DE 1920 E 1940.
Pedro Holanda Filho*
Resumo:
O presente trabalho parte da percepção que as mudanças ocorridas na cidade de
Fortaleza-CE e no seu cotidiano, entre os anos de 1920 e 1940, acarretaram em novas
formas de convivência e ritualização dos atos fúnebres. Utilizando testamentos, jornais
da época, inventários e memorialistas, objetiva-se situar as mudanças de atitude diante
da morte, verificando a hipótese que o advento de um projeto de modernidade ocasiona,
além de mudança no âmbito técnico, modificações nas práticas fúnebres.
Palavras-Chave: Morte – Sensibilidade – Modernidade.
Abstract:
It starts from the perception that the changes in the city of Fortaleza and its daily,
between the 20‟s and 40‟s, resulted in new forms of coexistence and ritualized funeral
acts. Using wills, newspapers from that time, inventories and memoirists, the objective
is to situate the changing attitudes towards death, verifying the hypothesis that the
advent of a project of modernity brings, besides the change in technical area, changes in
burial practices.
Keywords: Death - Sensitivity - Modernity.
INTRODUÇÃO
Esse estudo tem por objetivo situar as mudanças de atitude diante da morte, em um
recorte temporal e espacial definido, ou seja: Fortaleza – CE entre os anos de 1920 e
1940; verificando a hipótese que o advento de um projeto de modernidade 550 acarreta,
não só mudanças urbanísticas, modificações de costumes, mentalidades, mas também
das práticas fúnebres. Entende-se que as “ideias claras”551, das quais Philippe Ariès552
*
Acadêmico do curso de História da Universidade Federal do Ceará; bolsista do Programa de Educação
Tutorial (PET-HISTÓRIA-MEC/SESu). Membro do Grupo de Estudo e Pesquisa História e Documento:
Reflexões sobre História e Documento – GEPHD. [email protected]. (85)96061821. R. Waldery
Uchôa, 140. Benfica. Fortaleza-Ce. CEP: 60020-110.
550
Para Marshall Bermam, “Ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradição. É sentir-se fortalecido
pelas imensas organizações burocráticas que detêm o poder de controlar e frequentemente destruir
comunidades, valores, vidas; e ainda sentir-se compelido a enfrentar essas forças, a lutar para mudar o seu
mundo transformando-o em nosso mundo. É ser ao mesmo tempo revolucionário e conservador: aberto a
novas possibilidades” (BERMAM, 1986. p. 07)
551
Ariès chama “ideias claras” as doutrinas religiosas, filosofias morais e políticas, efeitos psicológicos dos
progressos científicos e técnicos e dos sistemas socioeconômicos. (Ariès, 2003 .p. 305).
293
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confere maior importância – enquanto Michel Vovelle atribui maior peso aos costumes
– notadamente os processos científicos e técnicos, sob o julgo da modernidade,
modificam os costumes, incluindo os fúnebres.
A morte, biologicamente falando, é a parada das funções vitais; o corpo não
viverá para sempre, suas funções vitais cessarão e a vida acabará aí, mas a morte não,
ela está apenas começando; conforme a historiadora Cláudia Rodrigues “a morte é
identificada como passagem de uma forma de vida social a uma outra, de modo que ela
não é o fim da existência, mas o começo de uma nova vida. É considerada como a
„suprema iniciação‟”.553
Entendendo que o termo moderno tem, em conformidade com Antonio Paulo
Rezende (1993), “significado de novo, recente, de algo que não tem ligações aparentes
com o passado, criando uma efetiva oposição entre o moderno e antigo, entre o novo e o
velho.”554 E, ainda de acordo com o autor citado,
“a modernidade e todas as suas possíveis derivações têm sua materialidade que
atinge o cotidiano da sociedade e modifica as relações sociais. As sua
repercussões, a sua penetração nos múltiplos espaços do fazer político, social,
econômico dizem muito das relações de poder existente. Efetivamente, é um
processo contraditório, cria conflitos, destrói valores, inventa concepções de
mundo e de vida.”
Portanto, para Rezende (1993), a modernidade é algo paradoxal e permeia as
concepções de vida. Para Marshall Bermam o que dá origem à sensibilidade moderna é
“essa atmosfera – de agitação e turbulência, aturdimento psíquico e embriaguez,
expansão das possibilidades de experiência e destruição das barreiras morais e dos
compromissos pessoais, auto-expansão e autodesordem, fantasmas na rua e na alma”555.
Os principais suportes documentais analisados no presente trabalho são
testamentos, jornais da época, inventários e escritos de historiadores, memorialistas e
intelectuais do período ou que escreveram sobre os referidos anos. Analisar os
testamentos, que são documentos engessados, cheios de fórmulas, é atentar para as
552
ARIÈS, Philippe. O homem diante da Morte. Vol. II. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.
553
RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos mortos na sociedade dos vivos: Tradições e transformações fúnebres
no Rio de Janeiro. – Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Cultura, Diversão de Editoração, 1997.
554
REZENDE, Antonio Paulo. A modernidade e o modernismo – significados. Série História do Nordeste.
Recife. Vol 01. N° 14. p. 7-24. 1993
555
BERMAM, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo.
Editora Schwarcz Ltda. 986
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sensibilidades dos seus “autores”; sensibilidade com a morte, esta que chega para todos;
nota-se também a preocupação não só dos vivos para com os mortos, mas, ainda em
vida e “gozando das faculdades mentais”, daqueles que irão para o Além-mundo, com
os que ficarão em vida. Analisar os testamentos é perceber as sensibilidades através dos
seus desejos, que ganha ares de sacralidade, pois expressão a “última vontade”.
Os inventários, assim como os testamentos, são cheios de fórmulas e técnicas. É a
parcela jurídica da partilha de bens, da qual, quando existe, designa o testamento.
Dizem respeito, sobretudo, a cultura material.
Os testamentos são produzidos quando a morte é de certa forma anunciada, seja
por doenças ou idade avançada. Os testamentos são partes integrantes da ritualização da
morte, eles são uma extensão desse ritual, que não se encerra no sepultamento, já que há
o trabalho de luto, por um determinado tempo, missas, sufrágios. Os ritos tem uma
função simbólica e para a historiadora Cláudia Rodrigues (1997), uma das funções é a
de representar a passagem para o “outro mundo”, que
Somente é reconhecida como acontecia após a realização das cerimônias
fúnebres, ou quando o princípio da existência da pessoa tiver sido ritualmente
conduzido à sua nova morada, no Além-túmulo, e lá for aceita pela comunidade
dos mortos. Com efeito, para o homem religioso, a passagem da vida à existência
post-mortem nunca é instantânea, é um trajeto, um percurso de provas e
incertezas, cujo término se dá ao fim a celebração dos ritos funerários.
(RODRIGUES, 1997, p. 149).
Os periódicos apresentam múltiplas possibilidades de abordagens temáticas. Aqui,
foram analisados os jornais O Nordeste, Correio do Ceará, ambos fundados para
defender interesses religiosos da Diocese e Arquidiocese, respectivamente, de Fortaleza.
Buscavam difundir valores, modos de vida e defender os postulados católicos. O
Nordeste foi fundado em 1922 e circulou por 45 anos, enquanto Correio do Ceará foi
fundado em 1915 e fechado em 1937. Circularam durante os anos dos quais se debruça
essa pesquisa e com um objetivo muito claro: defender os valores cristãos em
detrimento aos novos valões que estavam surgindo.
Ressalta-se ainda a importância dos escritos de historiadores, memorialistas e
intelectuais do período ou que escreviam sobre os ditos anos. Entre esses, destaca-se
Eduardo Campos e João Nogueira. Tais autores ajudam a perceber as práticas fúnebres,
a morte e o morrer, ou o cotidiano fortalezense como um todo, uma vez que, em
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consonância Robert Darton (2006), estas crônicas tem a possibilidade de “mostrar como
uma visão urbana pode estar carregada de emoções, valores e visão de mundo” 556
A CIDADE DE FORTALEZA DOS IDOS TEMPOS
É pertinente discorrer sobre a cidade de Fortaleza do início do século XX, pois este
trabalho parte da hipótese que a cidade de Fortaleza passa por transformações que vão
em direção à modernidade como defende o historiador Sebastião Ponte, em Fortaleza
Belle Époque, com o desejo de remodelação557. Esse é um período que ocorrem
transformações nos contextos político, social, econômico e cultural, havendo um
crescimento urbano e populacional, e mudanças de comportamento dos citadinos. É
nessa conjuntura que surge novos (modernos) valores nessa sociedade fortalezense,
incluindo a forma de lidar com a morte.
As transformações na capital cearense iniciam desde meados do século XIX, com
a iluminação pública que deixa de ser à base de azeite de peixe e passando a ser à base
de gás carbônico, o telégrafo, o serviço telefônico, e no início do XX, com a chegada do
automóvel, a melhoria do transporte, destacando-se o bonde que deixa de ter o sistema
de tração animal para o elétrico, além do abastecimento de água e esgoto.
Há também marcas trazidas por essa modernidade que não são vistas com bons
olhos. A cidade, a essa época, tem um crescimento populacional, o que ocasiona a
criação de periferias, o aumento de pessoas desempregadas e o aumento da
criminalidade. Ao passo que muitas dessas inovações técnicas materializam-se, há
também a discussão sobre uma moralidade pública e de costumes, enfim, do tradicional,
comprometidas por essas inovações, nem sempre desejadas.
Um artigo do jornal Correio do Ceará elucida bem esse embate entre essa
modernidade que está surgindo com a preocupação dos valores morais. Diz o artigo do
ano de 1930 discorrendo sobre o melhoramento do tráfico urbano que
Indiscutivelmente essas companhias de auto-omnibus em Fortaleza vieram
melhorar o trafego urbano da cidade... Força a reconhecer, emtando, que de
algumas falhas este serviço de transportes se resente. Vieram-nos á mente estas
556
DARTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. 5. Ed.
Rio de Janeiro: Graal, 2006. p. 143.
557
PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque: reformas urbanas e controle social (1860 – 1930).
Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1999.
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considerações devido ao fato de alguns condutores de omnibus fumarem
enquanto trabalham. [...] Simplesmente porque a fumaça incomoda aos
passageiros e a cinza suja-lhes a roupa quando não lhe irrita os olho. (Correio do
Ceará, 18/10/1930. p. 05.)
A própria edição do jornal reconhece que há um melhoramento do transporte
coletivo, preocupa-se com as posturas e hábitos dos citadinos. Essa preocupação
também torna-se visível em outros artigos, alertando sobre o perigo do álcool ou dos
relacionamentos modernos. No jornal O Nordeste, chama atenção para o seu discurso na
defesa da disciplina e subordinação à hierarquia católica, além enfatizar os perigos da
modernidade, colocando em risco a moral cristã, referindo-se a castidade, modos de
vestir e violência.
É notório como todas essas transformações, que a cidade de Fortaleza passa,
sejam no âmbito técnico ou nos costumes, caminham em conformidade com
características basilares da modernidade defendida pelo historiador José Arimateia
Oliveira, quais sejam a ruptura, o progresso e a aceleração558. Há um melhoramento dos
serviços prestados na capital cearense, que provocam uma “aceleração”, como o bonde
e o melhoramento e alargamento das vias ou a inserção do automóvel no cotidiano dos
fortalezenses em defesa do progresso.
Se por um lado há as inovações inevitáveis e tão desejadas no âmbito técnico e
progresso tecnológico, por outro lado, quando se ameaça os comportamentos da
população, consideráveis estáveis, no que se refere à moral e os bons costumes, há um
combate a essa modernidade, visto através dos discursos dos jornais da época.
João Nogueira559, na obra Fortaleza Velha560, cuja primeira edição é lançada em
1954, escreve com enlevo memorialístico, ilustrando de maneira convincente sobre as
décadas iniciais do século XX, seus costumes, diversões e espírito da cidade. Nogueira
558
OLIVEIRA, José de Arimatéia Vitoriano de. Tempo moderno conforme narrativa ou a memória, a
crônica, a história, o cotidiano: Fortaleza nas décadas iniciais do século XX / Fortaleza, 2010.
559
Nasceu e morreu em Fortaleza. Otacílio Colares, outro cronista fortalezense, refere-se a João Nogueira
como, “no máximo, um cronista circunstancial, que, ao longo de muitos anos, preenchia seus lazeres de
engenheiro civil com o de escrever [...] sobre o que, da sua infância até a maturidade, foi vendo, amando,
anotando, na proporção em que os tempos, por sua vez, foram mudando, modificando-se a mentalidade das
gerações e, como consequência, a feição de sua cidade amada.” (Otacílio Colares, prefácio da 2° edição de
“Fortaleza Velha”, 1981). Seu amor pela capital cearense lhe rendeu o apelido jovial de “o noivo da cidade”
(GIRÃO apud OLIVEIRA, 2010: 16)
560
NOGUEIRA, João. Fortaleza Velha. Fortaleza: EDIÇÕES UFC, 1981, 2° ed.
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demonstra um cotidiano urbano que passa pela experiência de ruptura com a tradição e
de luto em relação ao passado.
A obra citada perpassa, através das memórias de seu autor, por vários lugares da
Fortaleza em fins do século XIX e início do XX, como o passeio público, ruas, praças e
ressaltando obras que modificavam os costumes e mentalidades da época, como a
iluminação pública, também um símbolo da modernidade que chegava a cidade nesse
período.
João Nogueira escreve em defensa de um passado que ele idealiza e sua escrita se
debruça ao calor do momento, quando percebe modificações dos costumes dos quais
defende. Eduardo Campos, que tem suas produções memorialísticas escritas em outra
temporalidade, percebe as mudanças de outra forma, vistas com bons olhos.
Eduardo Campos561, cuja obra tem uma característica fundamentalmente diferente
da obra de João Nogueira: sua temporalidade de escrita é outra. Enquanto Nogueira
escreve no calor do momento, Campos escreve sobre suas memórias de infância. Na sua
obra O inventário do quotidiano – Breve memória da cidade de Fortaleza (1996)562, a
exemplo do que ocorre na obra de Nogueira, retratando a cidade de Fortaleza em seu
aspecto físico, seus bairros e suas ruas, tenta criar um mapa da cidade por meio das suas
memórias. Ainda ressalta os costumes, modos de vestir e comportamentos de seus
habitantes.
Ressalta, assim como Nogueira, obras públicas e inovações técnicas que
modificam os costumes e mentalidades da época, sintomas da eminente modernidade,
como a construção do aeroporto, o aumento do número de bonde, a inserção de ônibus gerando uma nova forma de locomoção, mais rápida e eficaz; fogões a gás, telefone e
tomadas de corrente elétrica.
É bastante interessante como o historiador José Arimateia (2010), legitima o uso
das crônicas como fontes, entendendo-as como “cartões-postais” da cidade ou mesmo
561
Eduardo Campos, outro cronista de vasta produção memorialística, nasceu em Pacatuba – CE, no ano de
1923, mudando-se pra Fortaleza ainda muito criança. Foi diretor do jornal “Correio do Ceará” entre os anos
de 1940 e 1960, sendo também radialista da rádio “Ceará Rádio Clube”, Presidente do Instituto do Ceará e da
Academia Cearense de Letras.
562
CAMPOS, Eduardo. O inventário do quotidiano – breve memória da cidade de Fortaleza. Fortaleza,
Edições Fundação Cultural de Fortaleza. 1996.
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como lugares de memória563, visto que estas tem a função de administrar o passado no
presente. Assim, o passado é lugar de outra cidade e as crônicas são os “cartões-postais”
dessa cidade (OLIVERIA, 2010).
A partir das crônicas históricas podem-se vislumbrar as nuanças do cotidiano
fortalezense. Discutir as formas de representação da cidade através dos memorialistas
“permite abordar as representações sociais e a experiência de cidade do seu grupo
social”564. Em consonância com OLIVEIRA (2010), sobre tais crônicas históricas:
“Não seriam todas e quaisquer crônicas que se incluiriam nesse afã de
rememoração/memorização da cidade. Nesse ponto, especificamos que as
crônicas que se prezam a tal intento devem se fazer acompanhar, sobremaneira,
de aspectos que as deixariam com as características mesmo de similitude (ou
verossimilhança, se preferimos) com a história, merecendo assim tais crônicas a
pomposa dignificação de „crônicas históricas‟” (OLIVEIRA, 2010, p. 11).
Embora tais crônicas não operem com o método historiográfico, os memorialistas
escrevem em um momento que eles próprios constatam uma ruptura, notadamente nos
costumes, registrando sobre o que está se transformando ou mesmo próximo de
desaparecer. Essa é a importância dos cronistas, pois, através deles, pode-se discutir
sobre as transformações do dia-a-dia fortalezense, incluindo as práticas de enterramento.
A PREOCUPAÇÃO COM A MORTE E A QUEBRA DO SILÊNCIO
Para começar a pontuar as mudanças de sensibilidade perante a morte, se faz necessário
analisar os testamentos. Primeiro, deve-se ter a noção que é apenas uma parcela da
população que produz tal documento, por costume ou mesmo porque não se tem bens
para designar a partilha. Em seguida, é interessante notar que era costume o tabelião,
que também recai a “autoria” do documento ir até a residência do testamenteiro, junto
com as testemunhas. É necessário lembrar que a morte não fazia parte da pauta
cotidiana, sendo lembrada quando, de alguma forma, é anunciada, como já citado, seja
pela doença ou idade avançada. O testamento é a quebra do silêncio que é estabelecido
perante a morte. Segundo Philippe Ariès,
seríamos muito apressados se disséssemos que, numa sociedade de felicidade e
bem-estar, não havia mais lugar para o sofrimento, a tristeza e a morte. Seria
563
No sentido dado por Pierre Nora em Entre memória e história: A problemática dos lugares. IN: Projeto
História, n° 10, São Paulo, PUC-SP. 1993.
564
MONTEIRO, Charles. A cidade em textos e imagens na obra de Érico Veríssimo. In: Imagens na história.
São Paulo: Editora Hucitec, 2008. p. 278 - 292
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tomar o efeito pela causa. É interessante observar que essa evolução está ligada
aos progressos do sentimento familial e ao quase monopólio afetivo da família
em nosso mundo. [...] Esta não mais tolerou o golpe que desferia a um ser amado
e a ela própria, tornando a morte mais presente, mais certa, proibindo toda
simulação e qualquer ilusão. (ARIÈS, 2003. p. 235).
A família tem um papel central em toda ritualização da morte e os testamentos são
parte integrante dessa ritualização, sendo a preocupação daqueles que veem anunciada a
“última hora” para com aqueles que ficarão em vida, portanto, as decisões diante da
morte são compartilhadas entre a família e o moribundo. Como Michel Vovelle já
acenava, os ritos e lugares fúnebres se organizam em torno da Família e do Estado, pois,
de um lado está a preocupação com o pós morte, o trabalho de luto e do outro os
deveres jurídicos, como a partilha de bens.565
Deve-se chamar atenção também para o fato de que no momento da escrita do
testamento, que são obviamente produzidos dias, meses e até anos antes da morte, esta é
anunciada. Os testamenteiros quem sempre deixar claro que , assim como o de
Francisca Guedes P. Alconforado, que foi produzindo em 1923, um ano antes de sua
morte, está “gozando de suas inteiras faculdades mentais”, “juízo” e “entendimento”,
sempre atestada pelo tabelião e testemunhas presentes. Também fazem parte das
fórmulas dos testamentos declarar que “foi dito que de sua livre e espontanea vontade e
sem constrangimento de especie alguma faz este seu testamento e disposição de ultima
vontade”
A religiosidade tem um papel fundante para os testadores. Percebe-se, ainda nos
primeiros anos do século XX, que se faz referência à religião estabelecida, sempre
declarando a sua fé. Por que é tão importante declarar a fé sob a qual se viveu e
pretende morrer? Para confirmar que se viveu sob os costumes e preceitos da religião?
O que significa morrer sob a fé da sua religião? Isso tudo evidencia a preocupação com
o pós morte, que também é expressado nos testamentos, designando recursos e
afirmando o desejo de missas e “suffragios”, além de um enterro sem pompa alguma,
“conforme o uso e costume” e como cita Joanna de Castro Barbosa, em seu testamento
feito em 1916, “somente com a decencia compativel com o seu modesto modo de vida.”
565
VOVELLE, Michel. Imagens e imaginário na história: fantasmas e certezas nas mentalidades desde a
idade média até o século XX. São Paulo: Ática, 1997.
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Michel Vovelle, acena para o esforço humano em conviver com os mistérios do
além-mundo e amenizar o trabalho de luto. Discorrendo sobre o imaginário cristão do
pós-morte, Vovelle pondera sobre a constituição, a busca do terceiro local (purgatório)
através de imagens cemiteriais. Ainda demonstra a existência de outros locais além do
purgatório, para onde se vai após a morte, como por exemplo, o limbo. Ele pondera que
estes são locais da esperança pela salvação, para aqueles que, julgados por Deus, ainda
não são merecedores da morada eterna. Ainda sobre o purgatório, pensa ser “mais do
que um local: é um percurso subterrâneo no qual penetram, por uma porta fortificada,
almas ansiosas em oração”566.
João Nogueira imprime um tom nostálgico na obra supracitada e faz um contraste
entre os enterramentos e demais práticas fúnebres em diferentes épocas. Lembra que os
locais de sepultamento eram nas igrejas, depois no cemitério São Casimiro e por fim,
com o fechamento deste por vários motivos já demonstrados pelo historiador Henrique
Sérgio Batista567, no cemitério São João Batista. Ressalta as procissões em torno dos
falecidos no caminho para as suas últimas moradas, passando antes, claro, pela igreja da
Sé. Todo o ritual, com sua cadência ritmada pelas contas do rosário, anunciava rezas e
penitências, choros e silêncios, gestos de respeito e contrição diante da morte. Cláudia
Rodrigues (1997) afirma que
Da agonia à morte, e desde à sepultura, a solidão e o silêncio estavam ausentes;
deste a administração dos últimos sacramentos até o sepultamento, a presença de
parentes, amigos, fiéis afiliados às irmandades e do clero era buscada como fonte
de oração pelas almas dos mortos; tudo acrescido dos instantes dobres dos sinos
das igrejas por onde passasse o cortejo do viático e, depois, o fúnebre.
(RODRIGUES, 1997 .p. 166).
Uma áurea de solenidade tomava as práticas fúnebres. João Nogueira ressalta essa
solenidade em toda a sua escrita. Para ele, não só em relação às práticas fúnebres, mas
todos os aspectos da vida cotidiana são afetados por esses novos hábitos, tidos como
modernos.
566
VOVELLE, Michel. As almas do purgatório ou o trabalho de luto. Tradução Aline Meyer e Roberto
Cattani. São Paulo – Editora UNESP, 2010.
567
BATISTA, Henrique Sérgio de Araújo. Assim na Morte como na vida: Arte e Sociedade no Cemitério São
João Batista (1866 – 1915). Fortaleza. Museu do Ceará/Secretaria da Cultura e Desporto, 2002.
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UMA MUDANÇA DE SENSIBILIDADE
As representações denunciam práticas, evidenciando uma sensibilidade coletiva perante
tais aspectos que traz a tona sentimentos, temores e desejos, revelados por atos, ritos e
imagens.
Em contraste, Nogueira, voltando em torno de cinquenta anos em que debruça a
sua escrita, afirma que já nos anos de 1920 e 1940, os sepultamentos não tinham uma
participação tão numerosa, nem tão divulgados e solenes: “atualmente a sacramentação
in articulo mortis se faz tão silenciosamente que a comunidade dos fiéis já não toma
parte, com suas orações e votos, neste passo doloroso.” (NOGUEIRA, 1981, p. 80).
Portanto, o trabalho de luto modifica-se em relação às décadas anteriores, ficando cada
vez mais solitária e íntima. Pois, ainda segundo Nogueira: “Outrora não era assim.
Misturava-se o Sacramento a quem estivesse in extemis, comum cerimonial caído em
desuso, há cerca de cinquenta anos.” (NOGUEIRA, 1981, 80). Já para Eduardo
Campos, “ir a enterro, fazia parte da etiqueta do nojo.” (CAMPOS, 1996, p. 60).
João Nogueira evidencia uma mudança nas práticas fúnebres; Eduardo Campos
resume o sentimento que tais práticas tomaram nos anos de 1930, concretizando as
mudanças denunciadas por Nogueira.
Nos testamentos veem-se as mudanças na sua estrutura, passando de uma
preocupação com salvação eterna para dar maior ênfase à partilha de bens, não fazendo
mais referências tão claras a fé e a religião estabelecida. Não é mais uma constante que
aparecem nos testamentos essas referências tão claras como pedidos de missas, orações
e sufrágios.
Nos inventários, quando acompanhados dos testamentos, vê-se o quanto é
destinado para tais pedidos, definindo a quantia a ser desprendida para essas
solicitações. Não fazer menção a salvação eterna, mas continuar com alguns costumes
do documento, demonstrando que são práticas corriqueiras, simplesmente lembrar sobre
as esmolas, missas, sufrágios e orações, não demonstra preocupação com o pós morte,
mas apenas uma prestação de contas com os que ficaram em vida.
Há uma “aceleração” no cotidiano dos fortalezenses, ocasionada por essa
modernização. As práticas fúnebres não escapam dessas mudanças. Percebe-se as
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mudanças de atitude diante da morte e do morrer com o advento da modernidade e que,
suas marcas, como o melhoramento do tráfego urbano também representa um perigo aos
citadinos, provocando acidentes e até mortes, como noticia O Nordeste568, ou seja, essa
modernidade acarreta em novas formas de morrer, além de novas formas de convívio e
ritualização com a morte.
568
O nordeste, 03/10/1928.p. 01
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OS QUATORZE MESES QUE ABALARAM A SELEÇÃO NACIONAL: JOÃO
SALDANHA, TREINADOR DO BRASIL
Raphael Barroso Graciano*
O jornalista José Trajano uma vez comentou “Em véspera de Copa do Mundo, o técnico
da seleção brasileira e tão importante que o presidente da Republica”1. O que torna o
técnico a pessoa mais visada pela mídia brasileira é sua importância para os brasileiros.
De todos os brasileiros é ele que tem o papel fundamental na escolha dos jogadores que
deverão fazer parte da seleção brasileira de futebol, e com isso representa a nação no
maior evento futebolístico do mundo (a Copa do Mundo de futebol). Portanto, o técnico
de futebol além de se responsável de criar e treinar o símbolo nacional, ele acaba se
tornando parte desse símbolo nacional.
A responsabilidade inerente ao cargo vem junto com a popularidade, e junto com
essa popularidade vem as críticas e as pressões. Para isso, o técnico da seleção brasileira
tem que ter uma opinião acima das outras opiniões, pois e impossível atende as
demandas de interesses de todos.
A convocação dos jogadores da seleção brasileira de futebol na Copa de 1966
ocorreu através de um esquema que favorecia os interesses políticos dos clubes, dos
militares e dos cartolas. O que resultou numa formação caótica e impediu a criação de
um time padrão. Para que não se repetisse o quadro caótico observado antes da Copa de
1966, a formação da seleção para a Copa de 1970, exigiu a escolha de um técnico que,
além de escolher os jogadores que iriam forma aquela seleção, barrou os jogadores que
não eram necessários para que não atrapalhassem o objetivo final que era a conquista do
título.
Entre os anos 1967 e fevereiro de 1969 o responsável pela convocação de
jogadores era a Cosena (Comissão Selecionadora Nacional) que foi o resultado de uma
nova aliança entre o empresário Paulo Machado de Carvalho (o “Marechal da Vitória”)
e o João Havelange presidente da CBD.2 Após o fracasso da seleção na Inglaterra em
1966, muitos relacionaram a derrota da seleção à ausência de Paulo Machado. Também
voltou para a seleção brasileira o técnico vencedor da Copa de 1962, Aymoré Moreira.
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No entanto a Cosena não conseguiu impedir os diversos interesses e criar um time
padrão, com isso a aliança foi desfeita por João Havelange em fevereiro de 1969.
Por não escolher um novo técnico, logo após o fim da Cosena, os jornais criaram
especulações em torno de vários possíveis nomes. Entre eles estavam os nomes dos
técnicos Antoninho Fernandes, Yustrich e Mario Zagallo. Todos esses já haviam
representado á seleções estaduais, que representaram a seleção brasileira em alguns
amistosos. Porém, o nome que mais aparecia como um possível novo técnico era: João
Alves Jobim Saldanha.
Numa das charges do Jornal do Sports, foi desenhado Saldanha segurando dois
leões pelos braços. Esse desenho associava Saldanha a um técnico com a capacidade de
se impor diante os diversos interesses. Logo abaixo Nelson Rodrigues colunista do
Jornal dos Sports, escreveu em uma das suas colunas a seguinte declaração:
“Coincidem com as necessidades atuais do nosso futebol todos podem estar
indecisos, menos ele. Nos sabemos que João não tem medo dos problemas. Pelo
contrario ele gosta da luta tem a vocação da luta
Já a coragem, nesta hora, é um capital fabulas o “mas não seria bastante, mas
nele estão unidas a coragem e a inteligência a audácia e a lucidez o Méier e o
entusiasmo”.
Ah, o nosso João conhece o campo de dentro e de fora. Ninguém terá mais
vivencia de forma um time, a serviço do Brasil, vocês sabem tão bem como eu.
O velho João é um Tarturim que enfrentam leões de verdade, repito: não esta
interessada em tigres de tapete e sim em leões de juba incandescente.
Sabermos que um técnico não pode ser apenas um técnico apenas um tático. Tem
de ser um líder. E Saldanha o é Líder capaz de ventar fogo e de incendiar de
coragem qualquer time.”3
João Saldanha foi escolhido por Havelange para ser o novo técnico da seleção
brasileira. Mas nem todos os jornais apoiaram a decisão dessa escolha. O Jornal O
Globo ,foi fiel a Paulo Machado, considerou que Havelange, que pediu desculpas a
Paulo Machado em 1966, repetiria essas mesmas desculpas em 1969 quando, segundo
eles, a seleção brasileira não conseguisse se classificar nas eliminatórias de 1969. Esse
mesmo Jornal, também criticou Havelange por dar um cargo tão importante a alguém
que não tinha diploma profissional de educação física e que seria “protegido pelo
cazudo universitário de Aldemildo Chirol”4.
Essas criticas também ocorreram porque Saldanha não era um técnico dentro de
um padrão comum. Uma de suas características era a não valorização do treino físico e a
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disciplina, até em alguns momentos ele mostrava que valorizava a malandragem
brasileira. Em vez de exigir disciplina Saldanha preferia dialogar com os atletas. Seus
métodos deram certo quando ele comandou o time do Botafogo em 1957, e foi campeão
brasileiro naquele ano.
Sua fama de bom conhecedor de futebol também foi formada através de seus
empregos como cronista de colunas de esportes e comentarista de jogos futebolísticos. E
aumentou por sua característica de não esconder o que pensa, “João sem Medo” era seu
apelido. Na final entre Botafogo e Bangu do campeonato carioca de 1967, Saldanha
ficou sabendo que existia suspeitas de que o goleiro Manga do time do Botafogo tinha
sido “comprado” ou ameaçado de morte pelo Vice presidente do Bangu, Castor
Andrade. E mesmo com a vitória do Botafogo de goleada em cima do Bangu, ele
denunciou Castor Andrade de bicheiro num programa ao vivo de televisão.
Junto com esse jeito imprevisível ele era também comunista declarado. E mesmo
com tudo isso Havelange escolheu Saldanha porque a necessidade de montar um time
formando pelos melhores jogadores brasileiros da época se mostrou maior que o risco
de, no futuro, sofrer pressões dos militares pelo comportamento de Saldanha. A escolha
de Saldanha só foi possível porque em 1969 ainda não havia um controle do regime
sobre a CBD, pois os militares não tentavam associar a imagem do regime militar com a
imagem da seleção.
João Saldanha formou um time com os melhores jogadores da época que ele
apelidou de “feras”, venceu varias partidas seguidas, além de conseguir a classificação
da seleção nas eliminatórias da Copa de 1969 de maneira fácil. Renovando as
esperanças da população em ganhar a Copa de 1970 e colocando a seleção brasileiras
como umas das favoritas para ganhar a Copa do Mundo.
A GRANDE QUEDA: CAMPANHA PARA DEMISSÃO DE JOÃO SALDANHA.
A queda de Saldanha ocorreu a pouco tempo do início da Copa do Mundo no México,
más não foi por causa de derrotas da seleção brasileira em amistosos, e sim por causa de
uma intervenção militar. Segundo o historiador Carlos Sarmento, o fato de Saldanha ser
comunista e constantemente usar de suas viagens ao exterior para denunciar a ditadura
no Brasil, incomodava o regime militar. Saldanha também fazia criticas na imprensa e
denunciava as torturas e desaparecidos no Brasil.5
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Outro fato que incomodava a ditadura, e que foi responsável pela sua queda, foi o
fato dele impedir as intervenções dos militares na seleção, afim de associarem
a
imagem do regime militar com a seleção. Sarmento da como exemplo, um caso que
ocorreu na partida contra o Paraguai.
“Na última partida, disputada em umpouco auspicioso 31 de agosto. O
selecionado confirmou sua presença na Copa do Mundo do México ao derrotar o
Paraguai por 1a 0. O público recordista (183 mil pagantes) que lotava o
Maracanã aplaudiu o espetáculo e foi poupado de ver a ríspida discussão mantida
entre o técnico e o general Elói Menezes, membro do CND, que queria
aproveitar a celebração para pedir apoio popular ao presidente Costa e Silva, que
havia sofrido um acidente vascular cerebral”. 6
Este caso ocorreu ainda no governo do ditador Costa e Silva, com a chegada ao
poder do ditador Emilio Garrastazu Médici, a pressão sobre Saldanha aumentou.
Médici representava os militares de linha-dura e com sua chegada ao poder, houve
um aumento da repressão, mas também houve um aumento no meios de propagada
política do regime. A seleção brasileira de futebol, com isso, passou a ser vista como
um aparelho ideológico de propaganda do regime. Se antes, só existia tentativas de
intervenções políticas individuais, após a entrada de Médici no poder, as tentativas de
intervenção passou a ser de todo regime. Para que isso ocorresse, o técnico que barrava
as tentativas de intervenções militares (ou seja João Saldanha) deveria se derrubado.
Por se um técnico bastaste popular e que passava credibilidade e confiança na
conquista da Copa, o esquema para derrubar Saldanha se baseou na criação de
polêmicas a fim de diminuir sua credibilidade até que fosse possível demiti-lo sem
causar uma revolta popular.
O historiador Carlos Fico destacou que o SNI era
desconhecido pelo povo, o que prejudicou muitas pessoas através de demissões sem que
elas soubessem que foram afetadas pelo sistema do SNI. Neste mesmo sentido foi
montado o esquema para derrubar Saldanha, para que a população não associasse a sua
demissão com os interesses políticos.7 Para isso utilizaram a imprensa jornalística como
criadora de polemicas
Primeiramente o que afetou a credibilidade de Saldanha foi a perda de dois
jogadores importantes da seleção, Tostão e Toninho. O primeiro foi eleito artilheiro nas
eliminatórias de 1969 e ganhou muita confiança graças ao apoio de Saldanha. Sendo um
dos jogadores que se destacou na Copa de 1966, Tostão era reserva de Pelé. Contundo
na seleção formada por Saldanha ele ganhou destaque e passou a jogar ao lado de Pelé
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como titular, potencializando o ataque. A perda de Tostão foi por causa de uma
contusão no olho por causa decorrente de uma bolada, que fez com que ele parasse de
jogar por meses e virasse duvida para Copa do México. Já o corte do Toninho foi por
causa de uma sinusite, sob o pretexto de que ele não conseguiriam jogar no México em
função da altitude. Este motivo depois foi desmentido, pois a sinusite nada atrapalharia
o desempenho de Toninho.8
Outra polemica que ocorreu foi uma tentativa de associar a imagem do próprio
ditador Médici com um torcedor comum da seleção brasileira, umas das formas que
Médici encontrou para se tornar popular. Em junho 1966, momentos antes da Copa do
Mundo na Inglaterra, foi realizado uma reunião entre os jogadores e o ditador Castelo
Branco em que ele desejou sorte aos jogadores na campanha de 1966, entretanto no
momento que ele cumprimentou cada jogador ele se resumiu a perguntar qual cidade a
cidade e estado em que cada jogador tinha nascido. Ficou visível para a imprensa e a
população que o Presidente Castelo Branco não se importava e não entedia nada de
futebol.9 Médici já era o contrário, buscava sempre que o possível dialogar sobre futebol
na imprensa esportiva.
Esta aproximação de Médici com a imprensa esportiva foi de fachada. Médici
gostava de assistir os jogos futebolísticos nos estádios ouvindo um radinho de pilha,
isso mostra que ele gostava de ser visto assistindo futebol. O próprio Saldanha duvidava
de que o rádio de Médici estivesse mesmo ligado e provocava dizendo que “era só para
enganar os torcedores.”10 Os comentários que Médici fazia na imprensa também gerava
dúvida se ele realmente gostava de futebol, pois mostrava que ele não sabia muito do
assunto, bem diferente da imagem de um torcedor fanático que ele queria passar para a
população. Numa entrevista a Armando Nogueira realizada em Fevereiro de 1970,
Médici declarou:
“Não sei que o senhor concorda‟- comentou o Presidente- „mas acho que que a
Romênia está muito bem estruturado. Nos jogos que vi pela televisão, gostei
muito da maneira de jogar na equipe romena. Sente-se que o time deles estão
quase pronto para a Copa do Mundo. E uma equipe muito serio”11
A Romênia nunca foi considerada pela imprensa esportiva da época, como umas
das possíveis vencedoras da Copa de 1970. Na Copa do Mundo de 1970, ela não passou
nem da fase de grupos. João Máximo, editor do Correio da Manhã, também percebeu
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que Médici tinha pouco conhecimento de futebol e em Março comentou sobre a
entrevista de Médici e sua falta de conhecimento sobre futebol.
“A entrevista revela por um lado , o quanto pode ser autentico o interesse de um
Chefe de Estado pelo esporte mais popular do País e, por outro, o quanto, Sua
Excelência está fora da realidade técnica e tática do futebol moderno.” 12
A imagem de um torcedor de futebol foi planejada quando Médici chegou ao
poder, para isso Médici se aproximou das questões que envolviam a formação da
seleção.
De todos os comentários de Médici sobre a seleção brasileira e sobre futebol, o
que mais ficou conhecido e que gerou um conflito com o técnico Saldanha, foi a não
convocação de Dario (o Dada Maravilha) um atacante oportunista que Médici opinava
claramente que queria que estivesse na seleção brasileira. Em Março em uma entrevista
para um programa de tevê, Saldanha informado pelo repórter de que o Presidente
Médici sugeriu o nome de Dario para ser convocado, Saldanha declarou:
“O Brasil tem 80, 90 milhões de torcedores e gente que gostar de futebol.
É um direito que todos têm.
Aliás, eu e o presidente, ou o presidente e eu temos muitas coisas em comum
Somos gaúchos. Somos gremistas. Gostamos de futebol.
E nem eu escalo ministério, nem o presidente escala time, então ta vendo que nós
nos entendemos muito bem”13
Saldanha seguiu à risca sua filosofia de não misturar interesse político e futebol,
por isso entrou em conflito com os interesses não somente de Médici e sim de todo o
regime militar de criar uma imagem de um presidente que gostava de futebol. Más a
questão da queda de Saldanha não pode ser resumido somente pela não convocação de
Dario.
O pedido de Médici para a convocação de Dario sempre foi um teste que servia
para testar a obediência do técnico. Ao mesmo tempo passava a imagem para o público
que o presidente tinha influência sobre a escolha dos jogadores para seleção. Como se a
formação da seleção, tivesse sido feita em parte pelo presidente. Então o regime em si
não se importava se Dario iria jogar ou não. A prova disso foi que ele foi convocado
pelo técnico que substituiu Saldanha, Mario Zagallo. Más jogou somente os jogos
amistosos realizados antes da Copa do Mundo no México.
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Depois deste conflito entre Médici e Saldanha, a imprensa associou a imagem de
Saldanha a algo perigoso para a nação. A imprensa se aliou ao regime pela queda de
Saldanha, porque o apoio a Saldanha ao treinador não era unânime. Durante sua
passagem pela seleção Saldanha criou inimigos, um deles foi o próprio Armando
Nogueira, que tinha entrevistado o ditador Médici. Nogueira era um colunista famoso
do Jornal do Brasil na época, na chegada de Saldanha na seleção o apoiava
incondicionalmente mas depois passou a ser um grande crítico dos seus métodos.
Outro critico de Saldanha foi o técnico Yustrich, que queria o cargo de técnico da
seleção brasileira antes de Havelange escolher Saldanha para o cargo. Saldanha e
Yustrich já tinham uma relação de rivalidade, antes de Saldanha assumir o cargo de
técnico da seleção. A diferença entre os dois estava na opinião do estilo ideal que a
seleção deveria adotar. Saldanha formou uma seleção valorizando o jeito brasileiro de
jogar futebol, o chamando “futebol arte”, que valorizava o drible inesperado e os toques
de efeito. Esse mesmo estilo de jogo, no qual a seleção tinha se consagrado bicampeã
mundial ganhando facilmente as Copa de 1958 e 1962. Más os que consideravam que o
futebol moderno era igual ao estilo europeu de jogar futebol (ou seja uma formação
mais defensiva valorizando as jogadas coletivas em vez das jogadas individuais) viram
na derrota da seleção brasileira e a vitória da seleção inglesa na Copa de 1966, a
necessidade da seleção brasileira de adotar o estilo europeu. Yustrich era um defensor
desta opinião, e com isso ele sempre criticou Saldanha enquanto formava a seleção.
A rivalidade entre os dois também era pessoal. Em Março de 1970 Yustrich deu
uma entrevista na revista O Cruzeiro14 e acusou Saldanha de receber o cargo somente
porque estava associado com os políticos, pois não tinha diploma para exerce a
profissão. A polemica em si não foi pelo fato que a acusação de Yustrich teve algum
cabimento e sim pela agressividade com que Yustrich criticou Saldanha .
João Saldanha revidou, indo armado procurar Yustrich na sede do Flamengo, que
tinha acabado de contratá-lo como técnico do time. E com base nas três testemunhas(O
porteiro, o cozinheiro e o goleiro Adão.) que viram Saldanha armado procurando
Yustrich, os jornais repercutiram a polemica. Saldanha foi defendido por alguns
jogadores da seleção e o Supervisor da seleção Adolphon Milmam (mais conhecido
pelo seu apelido Russo). O próprio Saldanha comentou no jornal folha, que era tudo
mentira e que “tinha sido apenas um visita”15, más a mentira em si era do próprio
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Saldanha que realmente tinha indo procurar armado o técnico Yustrich. Ele estava
cansado das diversas críticas sem cabimento de Yustrich, e foi armado não para mata-lo
ou machuca-lo e sim com o objetivo de dar um susto nele.
O jeito imprevisível e corajoso de Saldanha foi bastaste elogiado pela imprensa
quando recebeu o cargo de técnico da seleção em 1969. Em 1970 passou a ser bastante
criticado pela imprensa e a polêmica contra Yustrich colocou Saldanha como uma
pessoa perigosa, capaz de matar.
Outra polemica que foi bastaste aumentada pela mídia foi a especulação de um
possível corte de Pelé. O início desta polemica se deu por causa de um comentário não
confirmado de Saldanha sobre Pelé, onde segundo o técnico Pelé “estava com problema
de visão”, um comentário irônico sobre o mal desempenho do jogador naquele período.
De fato Pelé não estava passando por uma boa fase naquele momento e seu desempenho
estava sendo criticado não somente por Saldanha mais por grande parte da imprensa
esportiva. O que ocorreu foi que a imprensa elevou o nível da crítica, declarando que
provavelmente Saldanha cortaria Pelé da seleção brasileira. Ou seja, além da imagem de
Saldanha ser associada com uma pessoa perigosa com a polemica com Yustrich, a
imagem dele também foi associada como uma pessoa egoísta que não se importava com
a opinião popular e era capaz de barrar o jogador que era símbolo nacional.
A declaração oficial da demissão de João Saldanha do cargo de técnico da seleção
brasileira, ocorreu no dia 17 de Março. E a seleção que não representava o regime, foi
modificada. Eduardo Galeano definiu a relação entre ditaduras militares da América do
sul, futebol e povo com os seguintes comentários: “O futebol é a pátria, o poder é o
futebol: Eu sou a pátria, diziam essas ditadura militares” e “o futebol é o povo, o poder
é o futebol: Eu sou o povo diziam essa ditaduras militares” 16. Ou seja, Galeano definiu
que o futebol era visto como uma representação do povo com o regime que eram um só.
Com isso a modificação que a ditadura deu para a seleção brasileira, foi muito mais na
filosofia e imagem do que na escolha dos seus jogadores. Os métodos de João Saldanha
que era trabalhado na seleção brasileira, não valorizava a disciplina, filosofia essencial
que os militares queriam passar ao povo.
O regime também demitiu Saldanha porque ele era comunista, e os méritos de um
herói ou um símbolo nacional que Saldanha ganharia com a conquista da Copa do
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Mundo de 1970, daria a Saldanha mais poder para criticar a ditadura na mídia nacional
e internacional. Também seria a prova que a ordem e o progresso, que os militares
exigia da população, não era a única forma que resultaria nas melhorias da população
brasileira. Com isso Mario Jorge Lobo Zagallo foi escolhido para substitui Saldanha,
não somente porque tinha um perfil de um técnico mais disciplinador e sim para apagar
a filosofia de Saldanha que a disciplina não era essencial para a vitória. A forma de
garantir que Zagallo faria isso, foi a entrada de militares na comissão técnica, que
valorizava essa disciplina
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A demissão de João Saldanha se deu por motivos políticos, através de uma campanha de
ataques sobre sua credibilidade. A imprevisibilidade que os militares sentiam em
relação a Saldanha, foi trabalhada através da criação de polemicas, nenhuma delas
realmente provada, mais todas elas destacando o lado imprevisível de Saldanha como
uma coisa ruim.
Graças a Saldanha foi possível forma uma seleção com os melhores jogadores da
época, que depois foi disciplinado por Mario Zagallo e resultou não somente no
tricampeonato mundial da seleção, más da seleção brasileira que até hoje e considerada
por muitos analista como a melhor equipe de todos os tempos. Não é possível e nem
dever de um historiador especular se Saldanha não fosse demitido a seleção brasileira
ganharia o tricampeonato. Más esse trabalho trouxe a história de uma de tantas outras
pessoas que foram afetada por causa da ditadura militar. Pois, embora Saldanha não
tenha sofrido com a tortura física, que era comum na época, foi afetado com a tortura de
sua imagem.
Saldanha também deve ser lembrado não somente como o técnico que formou a
seleção brasileira que ganhou a Copa de 1970. Tem que ser lembrado como uma pessoa
que não abandonou sua filosofia e barrou, com isso, a entrada dos interesses políticos
sobre a seleção brasileira.
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A MILITÂNCIA COMUNISTA NA FREGUESIA RURAL DE JACAREPAGUÁ
- RJ: O CASO DO MÉDICO NEGRO JACINTO LUCIANO MOREIRA E OS
CONFLITOS DE TERRA NO SERTÃO CARIOCA (1935-1962)569
Renato de Souza Dória570
Leonardo Soares dos Santos571
Resumo:
Analisamos a trajetória de um militante comunista que atuou na freguesia rural de
Jacarepaguá durante meados do século XX. Região conhecida na época como Sertão
Carioca, foi palco de inúmeros conflitos pela posse da terra. Ao avaliar a contribuição
de indivíduos que atuaram mediando as lutas pela terra naquela região rural do então
Distrito Federal, destacamos os meios pelos quais os militantes se valeram para dar
sustentação e visibilidade à luta de trabalhadores rurais daquela região.
Palavras-chave: militantes comunistas; luta pela terra; Sertão Carioca.
Abstract:
We analyze how was the political performance of a communist party activist in
Jacarepaguá, a rural zone of republican Rio de Janeiro in the middles of 20th century.
Region also known as Sertão Carioca, there has happened a lot of land conflicts that
time. The evaluation of what was the contribution of individuals who took place at those
land conflicts makes clearer the tactics used by those people to sustain and make visible
the struggle for land of rural workers from that region.
TRAJETÓRIA DE VIDA, CONTEXTO HISTÓRICO E ALGUMAS PALAVRAS
TEÓRICO-METODOLÓGICAS
Apenas três fontes dispusemos para traçar a trajetória de vida profissional e pessoal de
Jacinto Luciano Moreira até o ano de sua filiação ao Partido Comunista Brasileiro
569
Este trabalho é resultado de pesquisa financiada pela FAPERJ intitulada Militantes comunistas e luta pela
terra: os casos do Sertão Carioca e de Campos dos Goytacazes (1945-1964), da qual participei como
bolsista entre agosto de 2012 e junho de 2013.
570
Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense e militante-pesquisador do
Instituto Histórico da Baixada de Jacarepaguá. Contato: [email protected]; tel.:21.9666-6405; end.:
Rua Licânia, 481/101 - Rio de Janeiro-RJ; cep:22765-560.
571
Doutor em História, professor da PUCG/UFF, orientador da pesquisa Militantes comunistas e luta pela
terra: os casos do Sertão Carioca e de Campos dos Goytacazes (1945-1964)e co-autor deste texto.
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(PCB): um pequeno trecho de efeméride;572 um “santinho” eleitoral do pleito municipal
de 1947;573 e uma reportagem publicada no início de 1947 em periódico do PCB.574 Ao
cruzarmos as informações, percebemos que o conteúdo descrito é quase idêntico, o que
nos levaria a deduzir certa confiabilidade nestas fontes. Porém, algumas posturas
metodológicas são necessárias, quando a fonte é um relato biográfico: primeiro, deve-se
considerar a propensão deste tipo de relato em organizar a vida da personagem de forma
teleológica, pautada por um “desenvolvimento necessário”; segundo, ao ter a chance de
ser “o ideólogo da própria vida”, o indivíduo (auto) biografado seleciona “certos
acontecimentos significativos” e estabelece entre estes “conexões para lhe dar
coerência”;575 por último, é preciso considerar as “coações” e “censuras” a que se
submete qualquer tipo de “apresentação pública”, enquanto “oficialização de uma
representação privada” da própria vida, como é o caso das fontes mencionadas.576 Ora,
neste caso, as “coações e censuras” correspondem, em parte, na sua condição de homem
negro e pobre nascido em fins do século XIX, da situação de ilegalidade do PCB e a
relação deste com os diversos sujeitos e grupos durante o período coberto por este
trabalho.
Observações feitas e não obstante as dificuldades, veremos o contexto histórico,
institucional, social e político em que viveu Jacinto, relacionando sua atuação ao
“conjunto de relações objetivas que uniram o agente considerado...ao conjunto dos
outros agentes envolvidos no mesmo campo” 577. Assim, acreditamos poder delinear um
quadro aproximado da realidade daquela época, lançando luz sobre “processos
organizativos de um período sobre o qual se sabe muito pouco” e, assim, recuperar
algumas experiências e os “modos de agir de trabalhadores” que cruzaram a trajetória
de uma vida.578 Com isso, buscamos dar relevo ao papel das mediações, de como
572
http://www.wsc.jor.br/jacarepagua/Efem%E9rides.htm. Acessado em 26/02/2013.
573
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). Fundo: DPS. Série: Panfletos. Notação: 907.
574
Tribuna Popular, 10/01/1947, p.3,“Figura extremamente querida de Jacarepaguá é um dos candidatos da
chapa popular”.
575
BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Marieta de M; AMADO, Janaína (orgs.).
Usos e abusos da História Oral. Tradução: Luiz Alberto Monjardim, Maria Lúcia Leão Veloso de
Magalhães, Glória Rodriguez e Maria Carlotta C. Gomez, 5ª edição. Rio de Janeiro: FGV, 2002, p.184-185
576
Idem, p.189.
577
Idem, p.190.
578
SILVA, Bráulio Rodrigues da; MEDEIROS, Leonilde Sérvulo de (org., apres., notas). Memórias da luta
pela terra na Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Mauad X; Seropédica, RJ: EDUR, 2008, p.11.
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colaboraram para dar sustentação e voz às lutas de moradores e trabalhadores de uma
região.579
JACINTO LUCIANO MOREIRA E A COLÔNIA DE PSICOPATA-HOMENS DE
JACAREPAGUÁ: AS TRAJETÓRIAS DE UM TRABALHADOR E DE UMA
INSTITUIÇÃO
Jacinto L. Moreira, negro, nasceu em 06/07/1898 e logo cedo foi morar na cidade de
Belo Horizonte (MG). Em 1923, no Rio de Janeiro, começou a trabalhar na área de
assistência à saúde mental no serviço de lavoura, na Ilha do Governador. Depois, passou
a trabalhar como guarda de sanatório na Colônia de Jacarepaguá e anos depois,
conciliando trabalho e estudo, em 1941 já se encontrava médico e pai de quatro
filhos.580 A seguir caracterizaremos o ambiente institucional onde Jacinto L. Moreira
trabalhou nas primeiras décadas do século XX do Rio de Janeiro, para dar relevo ao
papel de trabalhadores da saúde pública enquanto mediadores de diversas lutas sociais
que se travaram naquela região rural do Rio de Janeiro.
As colônias de assistência à saúde mental surgiram entre fins do século XIX e
início do XX e estiveram associadas as teorias vigentes que atribuía como causa da
insanidade “os excessos da vida urbana” tendo a prática de isolamento dos enfermos
como a “medida terapêutica” capaz de reabilitar socialmente estes indivíduos. 581 Foi
neste contexto que surgiram no Rio de Janeiro duas colônias agrícolas destinadas ao
tratamento de “alienados indigentes”, porém capazes de se entregarem a exploração
agrícola582: as de São Bento e Conde de Mesquita. Certamente, foi numa destas duas
colônias que Jacinto L. Moreira trabalhou como auxiliar de lavoura. Muitos médicos do
período criticavam os “hospícios já obsoletos e inchados do início do século XX” e
propunham outras medidas terapêuticas baseada na “máxima liberdade proporcionada
pelo trabalho ao ar livre e pelo tratamento heterofamiliar, concedendo casas para alguns
de seus empregados” a fim de que os mesmos proporcionassem aos pacientes a
579
WOLF, Eric. Guerras camponesas do século XX. Tradução: Iolanda Toledo, 1ª edição, São Paulo: Global,
1984, p.12-13.
580
APERJ, op.cit.
581
VENANCIO, Ana Teresa A. “Da Colônia agrícola ao hospital-colônia: configurações para a assistência
psiquiátrica no Brasil na primeira metade do século XX”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de
Janeiro, vol.18, supl.1, p.35-52, dez. 2011, p.36.
582
Idem, p.38.
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oportunidade de contato com pessoas “normais e sadias” através do convívio
familiar.583Rodrigues Caldas e Juliano Moreira, dois renomados médicos da época e
defensores destas propostas, viabilizaram através do Ministro da Justiça a
desapropriação da fazenda do Engenho Novo da Taquara, localizada num subúrbio rural
da cidade do Rio de Janeiro, para implantar uma Colônia com a proposta de
praxisterapia agrícola combinada com assistência heterofamiliar, a partir da desativação
das duas colônias da Ilha do Governador. Assim surgia a Colônia de PsicopatasHomens de Jacarepaguá, em 1924. Levando em cota que em 1941 Jacinto estava casado
e já possuía quatro filhos quando trabalhava na Colônia de Jacarepaguá, tendo entrado
nesta instituição em 1923, sua trajetória parece coincidir com a proposta das unidades
estatais de assistência à saúde mental da primeira metade do século XX, baseadas na
praxiterapia agrícola e no tratamento heterofamiliar dos enfermos internados.
Analisando as décadas de 1930-40 a partir do estudo de caso da Colônia de
Psicopatas-Homens de Jacarepaguá, renomeada em 1935 Colônia Juliano Moreira,
Venâncio identifica um contexto de ampliação da capacidade física e assistencial da
saúde pública por todo país, inclusive, a política assistencial psiquiátrica. 584 Novas
instalações e estruturas sociais também foram construídas ao longo da década de 1940 e
50, em acordo com o tratamento heterofamiliar: construção de novas residências para
funcionários e seus familiares, centro desportivo, oficinas, cinema, estação de rádio,
escola para filhos dos servidores, uma cooperativa de consumo, um posto de
puericultura, “o Curso de Educação de Adultos, o Clube Atlético da CJM, um centro de
estudos psiquiátricos (CeBEP)” e uma entidade social que atuava em prol da população
ali instalada: funcionários, moradores e pacientes. 585
Assim, este aspecto de “núcleo urbano” fora “alavancado” devido às propostas
assistenciais de “tratamentos mais socializantes” pautados na terapia heterofamiliar e
implementados na CJM ao longo das décadas de 1930, 40 e 50, período em que a
instituição reproduziu um ambiente social que pode diluir “os sentidos de isolamento e
583
POTENGY, Gisélia F.; HOPPE, Sigrid. “A idealização do passado em uma instituição total”. Trabalho
apresentado na XVII Conferencia Internacional de Historia Oral: Los retos de la historia em el siglo XXI.
Diversidades, desigualdades y la construcción de identidades. Buenos Aires, 2012, p.2.
584
VENANCIO, op.cit, p.49.
585
CASSÍLIA, Janis Alessandra; VENANCIO, Ana Teresa A. “História da política assistencial à doença
mental (1941-1956): O caso da Colônia Juliano Moreira no Rio de Janeiro”. Trabalho apresentado no XXIV
Simpósio Nacional de História da Associação Nacional de História – ANPUH. São Leopoldo, 2007, p.6.
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internamento próprios de lugares asilares”.586 Considerando que em 1947, em
reportagem publicada no jornal Tribuna Popular, Jacinto era apresentado médico da
Colônia Juliano Moreira e candidato a vereador pelo PCB pleiteando para a região:
“terra para os trabalhadores agrícolas”, “uma estrada ligando Jacarepaguá à Grajaú”,
“linha de ônibus de Jacarepaguá ao centro da cidade” e diversas linhas de bonde locais,
além de hospital, pronto-socorro, escolas, mercados abastecedores,587 percebemos que
Jacarepaguá por volta de meados do século XX era uma região que já possuía diversas
frentes de lutas e reivindicações para melhoria das condições de vida da população
trabalhadora. E que, além disso, figuras como Jacinto L. Moreira se destacavam como
mediador destas lutas e reivindicações.
A ATUAÇÃO DO PCB NAS LUTAS SOCIAIS DO SERTÃO CARIOCA: JACINTO
LUCIANO MOREIRA, “O FILHO DO POVO” DE JACAREPAGUÁ
O PCB atuava consideravelmente na região de Jacarepaguá e no Sertão Carioca, antiga
zona rural do Rio de Janeiro, como um todo por meio de três formas: organizações,
congressos e militantes. Eram dois os principais tipos de organização política na década
de 40, 50 e 60: as cooperativas, bem mais antigas, que em sua maioria datavam da
década de 30588 e, principalmente, as Ligas Camponesas e Associações de Lavradores,
surgidas a partir da década de 194-50, e eram patrocinadas pelo PCB.
Dentre as primeiras podemos destacar a Cooperativa Agrícola de Bangu, a
Cooperativa dos Agricultores de Campo Grande, a Cooperativa dos Policultores de
Santa Cruz e a Cooperativa de Agricultores e Criadores de Jacarepaguá. Algumas delas
estavam envolvidas nas discussões dos problemas dos pequenos lavradores, como a
Cooperativa de Agricultores de Jacarepaguá, que organizava reuniões com lavradores
da Fazenda Curicica para a discussão em torno da questão da propriedade daquelas
terras.589 Outra forma de organização eram as Ligas Camponesas. Sua criação
significava para o PCB a implementação de uma estratégia nacional de intervenção no
campo. No DF, a primeira a ser constituída foi a Liga Camponesa do Sertão Carioca
586
Idem, p.8.
587
Tribuna Popular, op.cit.
588
DISTRTITO FEDERAL. Relatório do Ministério da Agricultura. Rio de Janeiro, 1933. p. 257.
589
Anais da Câmara dos Vereadores do Distrito Federal, 19/03/1947. p. 195.
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(LCDF) em meados de 1946.590 De modo a facilitar a participação de lavradores de
diferentes localidades nas discussões da LCDF, criaram-se Ligas subsidiárias em cada
localidade: as Ligas Camponesas de Jacarepaguá e Vargem Grande surgiram dessa
forma.
Mas a década de 50, logo em seu início, testemunharia o surgimento das
Associações de Lavradores, que seriam até a década de 60, a principal forma associativa
dos lavradores do Sertão Carioca. Depois do desaparecimento das Ligas em 1947, a
primeira organização desse tipo criada foi a Associação de Lavradores da Fazenda
Coqueiros (ALFC) em 1951. Entre as suas principais lideranças estavam Heitor da
Rocha Faria (advogado da organização) e Lyndolpho Silva (futuro fundador da
ULTAB), todos militantes do PCB. A ALFC seria a principal responsável pela
realização do I Congresso dos Lavradores do Distrito Federal, que, segundo a imprensa
comunista, teria despertado o “maior interesse” entre os lavradores, além de deputados,
vereadores e outras personalidades, inclusive, segundo o Imprensa Popular, o objetivo
de “dezenas de camponeses do Sertão Carioca” era simplesmente, “na base do debate”,
discutir “as questões que mais avulta[va]m aos camponeses”, como concessão de
crédito aos pequenos lavradores e a posse da terra.591 Os participantes ao final do
evento, com o intuito de estabelecer uma frente comum de luta entre os lavradores
cariocas, fundariam a Associação dos Lavradores do Sertão Carioca.
Ao mesmo tempo em que aumentava a frequência das ações de protestos dos
lavradores, tinha-se o aumento do número de suas organizações. Em novembro de 1956,
já faziam companhia às organizações acima mencionadas a Associação Rural de
Jacarépaguá, a Associação de Lavradores de Guaratiba, a Associação de Lavradores e
Posseiros de Piaí (Sepetiba), a Associação de Lavradores de Campo Grande e a
Associação de Lavradores de Mato Alto. Há que se destacar, portanto, o processo de
gênese dessas associações: quase todas surgem em localidades envolvidas em conflitos
e disputas de terras. A linguagem e a identidade enunciadas por meio das ações de tais
entidades eram forjadas em estrita oposição à figura do “grileiro”. Com a
regulamentação da sindicalização no campo promovida pelo governo de João Goulart
em 1963, as Associações de Lavradores buscaram se converter em Sindicatos
590
APERJ. Fundo DPS. Série Dossiês: “Boletim Reservado n°106 (14/06/51)”.
591
Imprensa Popular, 01/07/53, p. 3.
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reconhecidos pelo Ministério do Trabalho, ou seja, em organizações respaldadas pelo
reconhecimento oficial.592 Iniciada a “onda da sindicalização rural”, a idéia era criar um
sindicato para cada uma das categorias de trabalhadores rurais presentes no Sertão
Carioca, como “posseiros”, “arrendatários”, e até mesmo “assalariados” e “pequenos
proprietários”. Em dezembro de 1963, a Associação Rural de Jacarepaguá convidava
“posseiros” e “arrendatários” da Guanabara para “a grande assembléia”, num domingo,
“às 17 horas”, com vistas à criação de um Sindicato dos respectivos grupos. “Nos
seguintes domingos” (01 e 08 de dezembro), pretendia-se criar os sindicatos de
“assalariados” e “pequenos proprietários”.593 O Golpe de 1964 pôs fim a essas
pretensões.
Em relação ao papel dos militantes falaremos com mais detalhes do médico
Jacinto mais adiante. As notas que se seguem se referem aos militantes em geral. No
caso do Sertão Carioca, há poucas informações sobre a forma como se davam os
primeiros contatos de militantes comunistas com os pequenos lavradores. O que se tem
são indícios que nos levam a acreditar que os espaços tradicionais de sociabilidade da
região tinham importante papel no contato entre eles. Lyndolpho Silva, destacada
liderança sindical e que começou sua militância no Sertão Carioca junto aos “posseiros”
da fazenda Coqueiros, destaca a importância dos bares como espaços de sociabilidade
para a arregimentação de lavradores e Pedro Coutinho Filho, um dos militantes do PCB
mais atuantes na região, parecia ter um conhecimento razoável desse tipo de técnica: a
polícia política afirmava, por exemplo, que para “melhor difundir a doutrina
comunista”, ele tinha sido “encarregado, em abril de 1947, de instalar aparelhos de
calda de cana e bancas de jornais nas proximidades de quartéis e fábricas”. 594 No final
de 1943, alguns agentes da polícia política do DF diziam ter tomado conhecimento
sobre “reuniões suspeitas” que ocorriam no Club Jacarepaguá, localizado no Largo do
Pechincha.595 Em outro clube, o presidente do Nova Estrella, localizado também em
Jacarepaguá, teria no final da década de 40 “a pretexto de bailes e festas” reunido
592
Esse fenômeno também se dá com as Associações de lavradores do Estado do Rio, ver GRYNSPZAN,
Mário. “Ação política e atores sociais: posseiros, grileiros e a luta pela terra”, in: Dados, v. 33, nº 2, 1990. p.
123.
593
APERJ. Fundo DOPS. Série Comunismo: “Associação Rural de Jacarepaguá”, Dossiê nº 24. fl. 2.
594
APERJ. Fundo DOPS – Série Informações: “memorando nº 69/62”.
595
APERJ. Fundo DOPS. Série Comunismo – Dossiê nº 7. Coincidentemente, poucos anos depois, a Liga
Camponesa do Distrito Federal, ligada ao PCB, teria sua sede estabelecida neste mesmo local.
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“elementos do extinto Partido Comunista”, os quais também vendiam jornais
comunistas como Voz Operária e A Cidade “à vontade” na Praça Barão da Taquara
(atual Praça Seca). Era comum, na década de 60, que eventos promovidos pela
Associação Rural de Jacarepaguá fossem realizados na sede do Jacarepaguá Tênis
Clube, como foi o caso da Conferência organizada por lavradores do bairro, “apoiados
por todo o povo”, para discutir “todos os seus problemas”.
O contato também podia se dar via célula, pequena unidade organizativa, de
âmbito bem restrito que o PCB estabelecia em fábricas, bairros e ruas. Tal fato é
bastante elucidativo se compararmos este tipo de organização com os Comitês
Populares ou Democráticos de bairros, pois a célula parece ser uma unidade
organizacional com inserção limitada a sujeitos com afinidades políticas. Havia muitas
delas no Sertão Carioca, principalmente em Campo Grande e Jacarepaguá, como no
caso de Jacinto L. Moreira.
A célula 23 de outubro do PCB, reunia um grupo de funcionários da Colônia
Juliano Moreira e tinha como secretário político o médico Jacinto L. Moreira. A atuação
efetiva de Jacinto no PCB iniciou em 1945 quando ele ingressa neste Partido. 596 A
descrição de sua trajetória é de um homem que apesar das adversidades conseguiu ter
uma inserção profissional de considerável importância: homem negro, filho de
operários, começou a vida como operário ainda menino e ao conseguir emprego no
serviço público federal, buscou conciliar trabalho e a vida familiar com estudos
noturnos até se formar médico. Esta trajetória é amplamente explorada em seu „santinho
eleitoral‟ e na reportagem já mencionada. Sendo textos que narram a vida de Jacinto
antes de sua entrada no PCB, busca pontilhá-la com tons de simpatia por este Partido,
pois teria contribuído com o Socorro Vermelho e “acompanhado com entusiasmo” o
levante de 1935 da ANL, possuindo, assim, certa inclinação por uma atividade militante
e atitude abnegada em relação ao povo trabalhador e à causas „humanitárias‟.
Na relação com a população da região onde mora, estes textos citam Jacinto
como uma pessoa humilde, atenciosa e de “coração bom de homem do povo”, que
mesmo sendo médico, nas horas vagas pedalava de bicicleta para atender
“carinhosamente os moradores pobres de Jacarepaguá”, que reconhecem naquele doutor
596
APERJ. Fundo: DPS. Série: Panfletos. Notação: 907 e Tribuna Popular, op.cit.
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um verdadeiro “componente da família operária e camponesa”, pois não se dirige a estes
para “explorá-los ou enganá-los”.597 Assim, sendo textos que possuem o objetivo de
apresentar publicamente Jacinto, um candidato do PCB ao Conselho Municipal da
cidade do Rio de Janeiro para as eleições de inicio de 1947, é preciso analisar
criticamente as fontes e identificar as intenções em delinear um perfil de militante das
causas populares. Entretanto, se metodologicamente é importante questionar a
intencionalidade de textos que apresentam perfis públicos, no caso de Jacinto verificase, de fato, seu conhecimento e presença como apoio-militante das lutas e
reivindicações de segmentos espoliados daquele Sertão Carioca.
Garantindo defender o programa mínimo do PCB no parlamento caso eleito,
Jacinto enumera uma serie de medidas que visam amenizar a luta cotidiana de famílias
de lavradores, pescadores e operários do Sertão Carioca: “facilitação de terra aos
trabalhadores agrícolas”; “um mercado de varejo para servir aos consumidores locais”;
“um grande mercado de abastecimento, onde lavradores da zona ofereçam seus produtos
a quitandeiros e demais revendedores” eliminando a figura do intermediário, pois “até o
Recreio dos Bandeirantes, ao longo de 30 quilômetros de estradas, há terras ocupadas
por pequenos lavradores, chacareiros em sua maioria”; escolas para filhos de pescadores
da Barra da Tijuca; ampliação de linhas de bonde locais; construção de um Hospital
Geral e Pronto-Socorro; etc.598 Retórica de oportunismo eleitoreiro ou não, verdade é
que Jacinto acompanhava pelo menos desde inicio de 1946 os principais problemas
enfrentados por aqueles lavradores do Sertão Carioca. Em abril daquele ano, Jacinto L.
Moreira, Pedro Coutinho Filho e outros teriam participado de uma “grande assembleia
dos lavradores locais” realizada na avenida Cândido Benício, 2336, cuja discussão
principal era o “caso das terras devolutas e o direito de posse dos pequenos produtores
espoliados”599
Em outra reportagem do mesmo ano, Pedro Coutinho Filho, presidente do
Centro Democrático e Progressista de Jacarepaguá, comentando sobre os “camponeses
que vêm lutando organizadamente há muito tempo”, reforça, a seu ver, a importância
deste grupo utilizar as eleições como recurso tático para alcançar outras “muitas e mais
597
Idem.
598
Idem.
599
A Noite, 13/04/1946, p.10. “Uma grande reunião de lavradores em Jacarepaguá”.
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significativas” conquistas. Para isso, continua P. Coutinho, é preciso que os camponeses
sufraguem nas urnas durante as eleições de janeiro de 1947 o nome de Jacinto L.
Moreira, pois ele, “ao lado dos demais candidatos da Chapa Popular, formando a
maioria no Conselho Municipal, tratarão imediatamente do problema da terra”, do
crédito agrícola “àqueles que de fato trabalham a terra” e “demais problemas ligados
diretamente à lavoura”.600
Além disso, havia o costume do PCB, naquele período, organizar festas
eleitorais e comícios de apoio a candidaturas de vereadores, senadores e deputados, com
o propósito de aproximar os candidatos do partido ao parlamento de suas bases sociais
de apoio eleitoral: neste caso, operários, lavradores, posseiros, pescadores, sitiantes e
chacareiros. Destas festas, Jacinto também tomou parte, como o “Reveillon” em
homenagem aos candidatos da chapa popular, comícios e festas eleitorais do PCB em
diversas localidades: Vila Valqueire, Madureira, Praça Seca, etc. 601 No pleito eleitoral
de janeiro de 1947, Jacinto L. Moreira não obteve votos suficientes para ingressar no
Conselho Municipal, porém isto não o levou a desistir de continuar atuando em
organizações e movimentos sociais. No início do ano seguinte, Jacinto, atuando como
Presidente da Cooperativa de Consumo dos Servidores da Colônia Juliano Moreira,
convocava reunião geral ordinária para tratar de assuntos ligados aquela organização. 602
Mais tarde, já em meados de 1952, Jacinto aparecia mais uma vez atuando em um
movimento social de sua categoria profissional, a dos médicos, reconhecendo o uso
“indiscriminado e universal da arma bacteriológica” e apelando “para que essa arma”
fosse “proibida pelos governos de todos os povos”. 603 Jacinto Luciano Moreira faleceu
dez anos depois, no ano de 1962 após quase 20 anos de atuação nas lutas sociais que
atingiram a preocupação de homens de seu tempo.
600
Tribuna Popular, 29/12/1946, p.4. “Apoiam os camponeses aos candidatos da Chapa Popular”.
601
Tribuna Popular, 25/12/1946, p.7; Tribuna Popular, 10/01/1947, capa.
602
Diário de Notícias, 27/01/1948, 1ª seção, p.7. Nota da Cooperativa de Consumo dos Servidores da
Colônia J. Moreira.
603
Imprensa Popular, 14/05/1952, capa. “Médicos do Distrito Federal Protestam Contra o Emprêgo da Arma
Microbiana”
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CONCLUSÃO
A partir do exposto acima, não é difícil concluir que ao mesmo tempo em que atuava
participando de assembleias e reuniões, conhecendo e apoiando as lutas e reivindicações
de lavradores, pescadores e demais categorias de trabalhadores „espoliados‟ do Sertão
Carioca, Jacinto L. Moreira buscava se legitimar enquanto mediador e porta-voz no
Conselho Municipal do DF daqueles setores da antiga zona rural da cidade do Rio de
Janeiro, tentando formar naquela região sua base social de sustentação eleitoral para o
pleito municipal de 1947. Estas considerações tanto mais se confirmam se levarmos em
conta as localidades, raio de atuação de Jacinto e suas comissões e subcomissões prócandidatura, instituídos desde fins de 1945: Praça Seca, Taquara e Tanque, todas estas
localidades de Jacarepaguá.604
Jacinto L. Moreira teve sua trajetória de vida representada publicamente pelo
PCB a partir de um perfil que tivesse força para atrair o conjunto dos espoliados daquela
região, ou seja, os lavradores, posseiros, pescadores, pequenos proprietários e operários.
Apresentado enquanto um “verdadeiro filho do povo” àqueles grupos, Jacinto
possivelmente partilhou de experiências de vida adversas e típicas daqueles segmentos,
desde a sua infância de menino negro e pobre até a vida adulta, quando buscava
conciliar trabalho, vida familiar e estudos. E talvez por força da disputa eleitoral a que
se submeteu, fora importante ter construído este perfil público que em muito
correspondeu a sua trajetória de vida. No que se refere a sua trajetória profissional,
pudemos perceber que o período em que Jacinto L. Moreira trabalhou na área de
assistência aos doentes mentais da saúde pública do DF, marcando por momentos de
expansão estrutural e diversificação de atividades, ele passou por sucessivos
enquadramentos profissionais, passando de auxiliar de lavoura à médico da Colônia
Juliano Moreira, em Jacarepaguá. Enquanto militante, Jacinto atuou em várias formas e
níveis de inserção: no nível social, se organizou com funcionários no seu local de
trabalho na cooperativa de consumo da CJM, e a nível político, na célula 23 de outubro;
na sua categoria profissional atuou no movimento dos médicos do DF; e no local de
moradia colaborou apoiando e buscando mediar as lutas sociais e reivindicações dos
moradores e trabalhadores da lavoura daquele Sertão carioca.
604
Tribuna Popular, 19/12/1945, capa. “Comitês Pró-Candidaturas da Chapa Popular”.
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O "PROBLEMA AFRICANO" DA SOCIEDADE DE GEOGRAFIA DE
LISBOA: DOMINAÇÃO E "CIVILIZAÇÃO DA RAÇA AFRICANA"
Rodolfo Souza Tavares605
Resumo:
A comunicação tem por objetivo pensar a inserção da Sociedade de Geografia de
Lisboa, instituição de caráter privado, fundada em 1875, nos projetos coloniais
portugueses para com seus domínios em África. A partir do primeiro volume dos
boletins da Sociedade (1876 – 1878) é possível apreender a preocupação no
melhoramento na administração portuguesa, expansão do comércio e indústria e, por
fim, da "civilização” e “progresso” da “raça africana". O tratamento ao “problema
africano” debatido internamente possibilita estudos sobre políticas coloniais.
Palavras-chave: Sociedade de Geografia de Lisboa; projeto colonial português; África
Abstract:
The communication intends to think the insertion of Geographical Society of Lisbon,
private institution, founded in 1875, in Portuguese colonial projects to its domains in
Africa. From the first volume of Society bulletins (1876-1878) it's possible to apprehend
the concernment in the improvement of Portuguese administration, commerce and
industry expansion and, lastly, “civilization” and “progress” of “African race”. The
treatment to the “African problem” debated internally enables studies about colonial
policies.
Keywords: Geographical Society of Lisbon; Portuguese colonial project; Africa
OS OLHOS DO IMPÉRIO VOLTADOS PARA A ÁFRICA
Quando os olhos do império português voltam-se para a África? Valentim Alexandre
argumenta que o reconhecimento da independência do Brasil em 1825 contribuiu para a
elaboração de um projeto colonial voltado para a África com mais foco do que em
relação aos períodos posteriores de domínio português no ultramar, uma vez que o
objetivo seria recompensar a perda do peso econômico do Brasil ao império português.
Em 16 de fevereiro de 1836, o marquês Sá da Bandeira apresenta às Cortes a proposta
de abolição da exportação de escravos, aprovada em decreto no mês de dezembro do
605
Graduando em História na Universidade Federal Fluminense. Bolsista PIBIC/UFF no projeto “Viajantes
portugueses na África do último quartel do século XIX: possibilidades e análises do projeto colonial
português”. Orientador: Prof. Dr. Alexsander Lemos de Almeida Gebara. E-mail:
[email protected]
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mesmo ano. Ainda em dezembro de 1836 foi aprovada uma reforma administrativa que
previa a criação de um Conselho do Governo atuante nas decisões dos governadoresgerais ultramarinos. Em janeiro de 1839, procura-se extinguir o emprego dos
“carregadores” em Angola. Pouco destas medidas chegam a ser efetivamente
concretizadas devido às pressões internas em Angola e Moçambique na resistência ao
fim do tráfico de escravos e extinção do trabalho forçado, por exemplo. A tentativa de
consolidação do projeto colonial é levada a cabo quando Sá da Bandeira assume o cargo
de presidente do Conselho Ultramarino na década de 1850, momento de preocupação
quanto a uma ocupação portuguesa mais intensa em vista da expansão dos demais
impérios europeus.
Entretanto, é na década de 1870 que o projeto de ocupação mais efetiva se torna
crucial para fomentar a necessidade de Portugal de se firmar nos territórios africanos
devido às expansões imperiais que levam ao financiamento de viagens empreendidas
por Serpa Pinto, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens ao interior do continente
africano - para além, portanto, da costa. O apoio vem do ministro das Colônias Andrade
Corvo e da Sociedade de Geografia de Lisboa, instituição de caráter privado, fundada
em 1875. A política externa portuguesa estava alinhada ao pensamento europeu de
“civilização” da África que deveria ser atingido por meio da transposição do
protecionismo comercial nas colônias e estabelecimento das fronteiras em África. A
ocupação, segundo Andrade Corvo, não poderia ser militar e deveria ser acompanhada
de uma legislação prévia que extinguisse os empregos opressivos da mão-de-obra
africana. Os “direitos históricos” de Portugal sobre seus domínios em África eram
resgatados neste último quartel do século XIX por meio de discursos proferidos no
interior da Sociedade de Geografia de Lisboa que encontrava ressonância nas medidas
que compõem o projeto colonial português.
Segundo Maria Emília Madeira dos Santos é no período compreendido entre
1876 e 1885 que “triunfa na Europa a ideologia colonial”606, momento de intensificação
do financiamento e envio de expedições de caráter exploratório ao interior do continente
africano a fim de consolidar o domínio sobre os territórios. Os meios para tal fim seriam
606
SANTOS, Maria Emilia Madeira dos. “Portugal e o movimento geográfico europeu. Expedição
portuguesa ao interior da África Austral em 1877”. In: Viagens de exploração terrestre dos portugueses em
África. Lisboa: Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1988. p. 267.
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a busca por matérias-primas, consumidores, a “civilização” dos povos africanos e a
efetivação do poder político. O ano de 1876 é marcado pela Conferência de Bruxelas,
onde Leopoldo II da Bélgica junto da Inglaterra, França, Alemanha, Áustria-Hungria e
Rússia decidem executar os seus projetos coloniais ao explorar o interior da África
quando das expedições científicas e do combate à escravidão. Portugal não é convocado
a participar da conferência devido às acusações de falta de comprometimento quanto à
extinção do tráfico escravista e falta de interesse na geografia africana. A atuação e
incentivo da Sociedade de Geografia de Lisboa nos movimentos de exploração foi dar
conhecimento à sociedade portuguesa e ao governo acerca da urgência de expedições
portuguesas que pudessem acompanhar os demais impérios europeus no estudo e
exploração da geografia africana e resgatar o respaldo dos portugueses no novo cenário
internacional que se desenrolava. Adentrar o interior do continente africano seria, aos
olhos do império português, explorar a hidrografia – mais precisamente as bacias do
Cuanza e do Cuango e a relação deste último com o rio Zaire, cuja origem ainda não
estava identificada - numa expedição científica aprovada em abril de 1877, fato que
possibilitou o convite direcionado a Portugal a participar de nova conferência em
Bruxelas pela Associação Internacional Africana criada durante a Conferência de
Bruxelas em 1876.
É a partir deste contexto de expansão empreendida por parte dos impérios
europeus e de ampliação de elementos que integram o discurso “civilizatório” e de
dominação para com os africanos que é possível fazer uma análise do projeto colonial
português a partir dos discursos contidos nos boletins da Sociedade de Geografia de
Lisboa e a sua própria fundação em 1875. Ainda nesta pesquisa levantam-se demais
possibilidades do projeto que podem estar incutidos e/ou incluídos nos discursos e ações
dos atores que o empreenderam e executaram a expansão imperial portuguesa em fins
do século XIX.
A GEOGRAFIA DO “PROBLEMA AFRICANO”
Faz-se necessário compreender, inicialmente, o que pode ser chamado de expansão do
império português a partir dos territórios em África de administração portuguesa e as
expansões empreendidas pelos demais impérios europeus. Isabel de Castro Henriques
examina, para o caso de Angola, que os portugueses encontravam-se na costa ou nos
chamados presídios que se configuram como “instalações de carácter militar e
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comercial, espécies de ilhas destinadas a assegurarem a autoridade portuguesa em
território efetivamente controlado pelas autoridades africanas” 607. O comércio pode ser
apontado como a principal ferramenta que possibilitou a ocupação portuguesa no
interior, vista como abertura pelos portugueses, com o apoio da implantação de
presídios, que tinha por função a proteção militar das atividades comerciais nesses
territórios que se encontravam sob o controle dos africanos. A primeira cidade de
administração portuguesa, São Paulo da Assunção de Luanda, é fundada em 1576,
porém é somente Luanda, considerada a terceira cidade portuguesa na África
Subsaariana, que se torna uma cidade em destaque no território de Angola devido à
presença do porto que viabilizava as atividades comerciais efetuadas no interior e o
comércio de escravos, além do próprio tráfico em período posterior. Por serem os
comerciantes aqueles que mais adentravam o interior com o objetivo de obtenção das
mercadorias a serem comercializadas na cidade, a proteção desta categoria nos
territórios de administração africana torna-se crucial aos colonos e aos militares
portugueses, o que leva à criação de distritos em Angola no século XIX. Dos cinco
primeiros distritos criados em 1864 – Ambriz, Benguela, Luanda, Moçâmedes e
Golungo Alto – é apenas Golungo Alto o que se localiza mais ao interior de Angola e é
percebido por Isabel de Castro Henriques como parte do processo de transição de
controle militar ao civil e de “controle indireto” dos portugueses nesses territórios.
O comércio, até 1845, era estimulado majoritariamente por africanos: 94% dos
comerciantes não eram europeus, como bem aponta Isabel de Castro Henriques.
Entretanto, o último quartel do século XIX significa uma reconfiguração social e
comercial quando os comerciantes brancos aumentam em dez vezes sua presença
tornando-se “fortes rivais dos chefes africanos e dos comerciantes luso-africanos, que
durante muito tempo gozaram de uma situação privilegiada no interior de África” 608.
Este fator alinha-se a um momento de “influência europeia mais direta”609 conforme
analisa Beatrix Heintze em seu estudo sobre os carregadores na África CentroOcidental. No mesmo estudo de Heintze, os estereótipos da África “virgem” e
607
HENRIQUES, Isabel de Castro. Percursos de modernidade em Angola. Dinâmicas comerciais e
transformações sociais no século XIX. Lisboa: Instituto da Cooperação Portuguesa, 1997.
608
HEINTZE, Beatrix. Pioneiros Africanos. Caravanas de carregadores na África Centro-Ocidental (entre
1850 e 1890). Luanda: Editorial Nzila, 2004. p. 31.
609
Ibidem. p. 31.
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“primitiva” e dos africanos como seres em “estágio inferior nos degraus da evolução
humana” povoam o imaginário dos portugueses no século XIX e chamam a atenção
daqueles que se interessam em explorá-la ao ponto de “branco era = civilizado,
culturalmente superior e racional, e negro era = não civilizado, primitivo e
descontroladamente emocional”610. A “civilização” dos africanos, instituída nas
“missões civilizadoras” na Conferência de Bruxelas de 1876, aparece como uma
constante no primeiro volume dos boletins da Sociedade de Geografia de Lisboa,
conforme aponta Miguel Jerónimo que os ideiais de civilização estavam “ancorados não
apenas nos “direitos históricos” mas também a evidência dos gestos jurídicos
civilizadores” 611.
Levar a “civilização” ao continente africano aparece, então, intrinsecamente
associado aos chamados “direitos históricos” portugueses de exploração que vinham a
alimentar a base de argumentos dos discursos internos da Sociedade de Geografia de
Lisboa. As expansões portuguesas do século XV tornaram-se o principal fator apontado
por seus membros quando do tratamento do interior do continente africano, tendo em
vista a ameaça das expansões empreendidas pelas potências europeias perante a sólida
ideia de “pioneirismo português”, pois que as fronteiras do interior não se encontravam
bem delimitadas. Há ainda que se destacar que o problema da civilização e do progresso
se apresentam como “modelos universais” para os evolucionistas sociais, como bem
aborda Lilia Moritz Schwarcz quando do estudo sobre a introdução do conceito de raça,
uma vez que a humanidade passa por estágios evolutivos durante o seu progresso 612 e os
africanos, no caso, estavam longe da civilização pretendida pelos portugueses. O
mapeamento da geografia do “problema africano” apresentava-se, portanto, para além
do desconhecimento da geografia do continente africano: comércio, administração,
fronteiras e “civilização” dos africanos integram os principais elementos de
preocupação nos discursos das reuniões da Sociedade de Geografia de Lisboa e dos
documentos produzidos e reproduzidos por seus membros e que constam no primeiro
volume dos boletins datados entre 1876 e 1878.
610
Ibidem. p. 32.
611
JERÓNIMO, Miguel Bandeira. Livros Brancos, Almas Negras – A Missão Civilizadora do Colonialismo
Português (c.1870-1930). Imprensa de Ciências Sociais, 2010.
612
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, Instituições e Questão racial no Brasil
1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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A SOCIEDADE DE GEOGRAFIA DE LISBOA
A fundação da Sociedade de Geografia de Lisboa em 1875 veio resgatar os estudos
científicos de geografia que foram largamente diminuídos quando do fechamento da
Sociedade Real Marítima no início do século XIX, como aponta Maria Emília Madeira
dos Santos. Ainda, a instituição “empenhou-se em divulgar estas ideias entre o público e
em apresentar ao governo planos para as pôr em prática no sector da exploração
geográfica e científica em geral”613. Para atingir tais objetivos de divulgação, a
Sociedade reunia-se com certa periodicidade, tendo todas as reuniões registradas em ata,
inclusive as extraordinárias e de solenidade, e as remetia nos boletins junto dos
catálogos de mapas e livros, documentos de estudos sobre a África e correspondências.
Dividia-se em seções, as quais são apresentadas em listas nos boletins, e todos os seus
membros também estão registrados nos mesmos. No primeiro boletim, datado em
dezembro de 1876, encontra-se uma consulta redigida pela Comissão Central
Permanente de Geografia ao rei de Portugal em 28 de junho de 1876 na qual se tem um
alerta acerca dos trabalhos realizados pelas sociedades científicas das demais nações
europeias no sentido de promover expedições rumo ao interior do continente africano a
fim de atender aos propósitos de conhecimento da geografia, impulsionamento da
economia e “civilização” os povos em África:
Um vasto problema geográfico, ao mesmo tempo altamente econômico e
civilizador, está prendendo a atenção das primeiras sociedades geográficas,
assim como a dos governos das primeiras nações da Europa. Trata-se de penetrar
no centro de um continente até aqui impenetrável, o continente africano, que
tudo faz crer não resistirá hoje ao poder da investigação de ousados viajantes, à
influência da indústria e do capital de que dispõem na atualidade em tão larga
escala os povos mais adiantados e coloniais 614
A partir desse trecho, é possível pensar a preocupação dos membros da
Sociedade em adentrar o interior da África, tendo em vista os trabalhos das demais
instituições europeias e, ainda, a ideia dos europeus como os “mais adiantados”. A
interiorização do continente pelos europeus se daria de forma clara: pelos viajantes,
indústria e capital, que encerram por si só a ideia de progresso. Um progresso
irresistível, pois que toda a humanidade deveria conhecer tal estágio evolutivo. A
613
SANTOS, Maria Emilia Madeira dos. “Portugal e o movimento geográfico europeu. Expedição
portuguesa ao interior da África Austral em 1877”. In: Viagens de exploração terrestre dos portugueses em
África. Lisboa: Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1988. p. 271.
614
“Expedição portuguesa à África Central”. Boletim nº1 da Sociedade de Geografia de Lisboa (1876).
Transcrito de acordo com o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (2009).
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organização desta Sociedade em seções expressa, para além dos interesses nos estudos
da geografia, ao que servia a ideologia colonial: as seções comercial e econômica,
etnologia e viagens, política e estatística podem ser citadas para fins de demonstração
do alinhamento da estrutura interna da instituição aos propósitos do projeto colonial
português em fins do século XIX. Seriam precisos estudos sobre a conjuntura
comercial, política e econômica que se apresentavam à época por meio dos relatos de
viagem financiados pelo governo com total apoio da Sociedade. Em carta da direção
central da Sociedade ao rei de Portugal em 16 de outubro de 1876, procura-se enfatizar
sempre a suposta prioridade que Portugal deveria ter em relação às demais nações
europeias no movimento de interiorização do continente africano, devido aos
movimentos de expansão marítima dos séculos XV e XVI, e a ameaça que essas outras
nações – Inglaterra, França, Alemanha e Itália, citadas no documento – representa a
Portugal quando da ocupação de territórios em África já conhecidos pelos portugueses.
Nesse sentido, a Sociedade de Geografia de Lisboa tenta, por meio desta carta,
incentivar o empreendimento da Coroa Portuguesa em financiar as expedições de
caráter científico-exploratórias rumo ao chamado “sertão africano” ao mesmo tempo em
que se coloca como uma instituição que busca a legitimidade de tal pedido num
discurso de benefício à nação e de patriotismo:
Que pertencendo natural e legitimamente ao governo de Vossa Majestade, pelas
condições gerais do país, e no estado atual do problema africano – estado de
internacionalidade política e econômica – o fazer entrar a nação portuguesa com
uma ação imediata, efetiva e enérgica no movimento de estudo, de exploração
geográfica e de tentativa de ocupação do interior da África, além de não se achar
a Sociedade de Geografia, simples sociedade particular, nascida há pouco, nas
condições de por si somente acudir neste ponto ao que é incontestavelmente
urgente necessidade e interesse nacional, se requeresse do patriotismo e
inteligência do governo de Vossa Majestade, que houvesse por bem promover e
iniciar a organização de uma expedição científica, devidamente dotada, ao sertão
africano.615
O problema africano apresentado como estado de internacionalidade política e
econômica demonstra, em parte, o pensamento dos membros desta instituição que viam
nas expedições científicas um meio para que o governo pudesse empreender uma maior
ocupação portuguesa do interior do continente, pois que demais impérios europeus já
haviam adotado medidas semelhantes para outras regiões em África que poderiam se
chocar nas fronteiras dos domínios portugueses – o que configura, então, o interesse
615
“Expedição portuguesa à África Central”. Boletim nº1 da Sociedade de Geografia de Lisboa (1876).
Transcrito de acordo com o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (2009).
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nacional em explorar e ocupar o interior da África. Os discursos proferidos nas
reuniões da Sociedade dão mais visibilidade aos motivos que levam o governo
português a financiar expedições de cunho científico ao interior do continente africano
como o de Serpa Pinto, Hermengildo Capelo e Roberto Ivens em 1877, numa resposta
evidente aos pedidos do ano anterior acerca do envio de uma expedição que garantisse a
imagem de soberania portuguesa na África ainda ativa. Há outro fator ocorrido que
agitaria a Sociedade em outubro de 1876: a exclusão de convite a Portugal na
Conferência de Bruxelas616. Em sessão registrada na data de 28 de outubro de 1876, os
membros da Sociedade reúnem-se para discutir e emitir propostas em resposta à
exclusão de Portugal na conferência tais como a reunião de documentos - a serem
traduzidos para o inglês, alemão e francês e encaminhadas às sociedades científicas
europeias – que comprovem o pioneirismo português nos movimentos de expansão e
estudos geográficos da África nos períodos anteriores, como os relatos de viagem e
biografia dos viajantes portugueses e todo o material cartográfico, geográfico e
científico produzido a partir deles617; e, de uma ação junto do governo em questões
relativas ao reconhecimento dos territórios portugueses em África, a organização de
uma expedição científica e de “exploração” à bacia hidrográfica do Zaire, a solidez do
projeto colonial, o sistema de colonização – ocupação militar ou de feitorias – e, por
fim, na aquisição materiais produzidos a partir das viagens à África, como mapas e
livros. Importa notar que a partir destas duas propostas na sessão de 28 de outubro de
1876 que há uma preocupação em demonstrar às demais nações europeias um suposto
direito de ocupação dos portugueses na África e em estar junto ao governo na
elaboração do projeto colonial português, dando, assim, significação e funcionalidade à
instituição quando atribui o papel da Sociedade em “conciliar os nossos interesses como
colonizadores com os interesses da civilização africana618.
O papel efetivo da instituição frente ao “problema africano” passava, portanto,
pela definição concreta das ações que seriam tomadas a compor o projeto colonial
baseado nos discursos de progresso e civilização do continente africano, expansão do
616
Boletim nº2 da Sociedade de Geografia de Lisboa (1877).
617
“Sessão em 28 de outubro de 1876”. Boletim nº1 da Sociedade de Geografia de Lisboa (1876). Transcrito
de acordo com o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (2009).
618
“Sessão em 28 de outubro de 1876”. Boletim nº1 da Sociedade de Geografia de Lisboa (1876). Transcrito
de acordo com o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (2009).
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comércio e indústria e respeito aos “direitos históricos” dos portugueses. A expedição
de Serpa Pinto, Capelo e Ivens para o estudo da bacia hidrográfica do Zaire e dos rios
Cuango, Cubango e Zambeze, tendo como ponto de partida Luanda – apontada com a
principal cidade de administração portuguesa em África devido às intensas atividades
comerciais e à presença do porto -, pode ser pensada como uma das medidas aprovadas
pelo Parlamento português que visam demonstrar a preocupação com as linhas de
fronteira em África, os incentivos nos estudos da geografia e ciências afins e demarcar a
ocupação portuguesa frente as demais expedições europeias na África Central. Do
mesmo modo, a criação do curso colonial português, aprovado em ata na sessão de 18
de dezembro de 1878 e que havia sido submetido como proposta em janeiro de 1878 por
Teixeira de Vasconcellos, sócio ordinário da Sociedade de Geografia de Lisboa. Os
debates em torno de tal proposta deram-se por quase todo o ano de 1878 e centrava-se
no que era entendido como as ferramentas de dominação dos povos africanos e
asiáticos: língua, história e geografia das regiões de administração portuguesa no
ultramar. Para que as “raças conquistadoras” pudessem dominar as “raças dominadas”
no continente africano, termos esses empregados pelos membros da instituição, o
conhecimento das línguas africanas tornar-se-ia crucial para o melhoramento da
administração portuguesa e para a “civilização” dos africanos619.
A dominação, inclusive, emerge em diversos discursos nas sessões como uma
prática natural aos povos “mais adiantados” perante os africanos. Importa notar que uma
das ferramentas pensadas para a efetiva dominação das chamadas “raças superiores”
sobre as ditas “raças inferiores” seria, para além da ampliação do comércio e da
indústria, a língua. Francisco Adolpho Coelho, sócio correspondente, remeteu proposta
na sessão de 18 de março de 1878 no sentido de acrescentar ao projeto do instituto
colonial o estudo de línguas africanas com “riqueza de vocábulos”, que substituiriam as
outras línguas africanas “menos importantes”, e, por sua vez, dariam lugar à língua
portuguesa de forma natural no tempo. É preciso atentar quanto a esta proposição no
interior da Sociedade de Geografia de Lisboa para a análise do projeto colonial
português, uma vez traçadas as questões política e econômica, porque os debates se
centraram também sobre o aspecto linguístico por ser ele o que urge no imediato contato
com os africanos e também na administração portuguesa sobre seus domínios. Nos
619
“Sessão em 7 de janeiro de 1878”. Boletim nº4 da Sociedade de Geografia de Lisboa (1878).
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dizeres de Adolpho Coelho, “a língua era um grande passo para a civilização” do que
ele mencionava como “raça africana” e, a partir desta proposta, compreende-se o
interesse pelas línguas no conjunto do “problema africano” como base da “civilização”
pretendida dentro do projeto colonial português.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: POSSIBILIDADES E VIAS ANALÍTICAS
É possível, portanto, dizer que os boletins da Sociedade de Geografia de Lisboa
possibilitam o estudo do projeto colonial português frente ao “problema africano”,
tendo em vista que esta instituição apoiou as expedições científicas ao interior da
África, nos quais os discursos presentes nas atas das reuniões, correspondências
pessoais e interinstitucionais e documentos produzidos por seus membros são aqueles
que permitem ao pesquisador da história da África compreender parte do processo de
expansão do império português em fins do século XIX. A ênfase aos discursos de
“progresso”, desenvolvimento do comércio e indústria, dominação e “civilização” dos
africanos e a busca pelos “direitos históricos” dos portugueses na exploração do
continente africano, contida nos boletins podem apontar as vias analíticas do projeto
colonial para com os territórios africanos. É preciso, ainda, se ater à organização dos
trabalhos internos da instituição e às decisões tomadas em reuniões, registradas em atas,
que visavam a realização de tal projeto colonial para melhor compreensão e crítica do
conjunto do processo. A inserção da Sociedade de Geografia de Lisboa enquanto uma
instituição que apoiou junto ao governo medidas de expansão imperial alinhadas à
ideologia colonial característica do último quartel do século XIX possibilita a
abrangência dos estudos da história da África quando do acesso às fontes dos viajantes
portugueses e dos discursos internos das reuniões que permitem ao historiador analisar
o pensamento nos círculos intelectuais e científicos em torno da África que legitimaram
a ocupação, administração e colonização portuguesa.
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OS FILMES NO ENSINO DE HISTÓRIA
Ronillo Azevedo dos Santos
Resumo:
Este trabalho problematiza a formação da consciência histórica na sala de aula através
do uso de filmes com temáticas históricas. Assim, a pesquisa procura fazer uma análise
sobre a utilização da mídia cinematográfica como representação e fonte que contribui
para a formação/difusão de saberes históricos responsáveis pela formação do
pensamento. Para a análise e discussão, baseamo-nos em autores como Jörn Rüsen,
Roger Chartier, Maria Auxiliadora Schmidt e nas atividades desenvolvidas desde 2012
no PIBID de História do CERES/UFRN.
Palavras-chave: Consciência histórica, Filmes.
Abstract:
The work problematizes the formation of the historical conscience in the classroom
through the use of films with historical themes. So this the research intents to do an
analysis about the use of the cinematographic media as a representation and source that
contributes with the formation/diffusion of historical knowledge responsible for the
formation of the thought. For the analysis and discussion we based on authors as Jörn
Rüsen, Roger Chartier, Maria Auxiliadora Schmidt and in the activities developed since
2012 by the PIBID of History of CERES/UFRN.
Keywords: Historical conscience, Films.
As discussões acerca do ensino de História vêm ganhando espaço atualmente devido a
novas temáticas e problemas no que diz respeito à constituição do saber histórico em
sala de aula. Algumas práticas vêm tomando forma novamente e outras sendo geradas,
enriquecendo a maneira pela qual se difunde o ensino. Como exemplos, podemos citar a
interdisciplinaridade, a formação dos professores, a inserção de novas tecnologias, o
desprendimento das práticas tradicionais, a formação de uma historiografia que não seja
apenas de relatos escritos, mas uma que se possa ver e ouvir, dentre vários outros
atributos. Porém, iremos nos deter neste artigo em formas que já foram utilizadas a

Licenciando em História pelo Centro de Ensino Superior do Seridó da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte e Bolsista de Iniciação à Docência – PIBID-CAPES –, coordenado pela professora Dra. Jailma
Maria de Lima. [email protected]
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priori, em um passado não muito distante, promovendo o ensino de História através das
formas de ver e ouvir, dos ramos do audiovisual, especificamente do cinema.
O cinema vem ganhando espaço como fonte histórica a partir da inserção de novas
temáticas, com paradigmas rompidos desde a Escola dos Annales. A linguagem
cinematográfica toma seu lugar em meio aos debates historiográficos, como esclarece o
historiador Rafael Rosa Hagemeyer:
A princípio considerar o cinema como fonte da história foi uma obrigação da
qual se fugiu durante muito tempo, mesmo depois do paradigma aberto pela
Escola dos Annales, que considerava todo e qualquer registro humano como
fonte potencial de produção do conhecimento histórico 620.
Os debates metodológicos sobre esse tipo de recurso cinematográfico
intensificam-se a partir da década de 1960, com o historiador Marc Ferro, quando ele
propõe o estudo do documentário e do filme de ficção como fonte para o historiador 621.
Partindo desse pressuposto, o filme pode também ser trabalhado como uma
representação, considerando o conceito formulado por Chartier, o qual salienta que as
representações podem trazer um sentido de entendimento para determinada época,
mostrando como uma realidade social é construída622.
Nesse sentido, o cinema tem sido cada vez mais utilizado nas práticas que
remetem ao ensino de História, principalmente por possibilitar, no formato de recurso, a
formação de uma consciência histórica no educando. Sobre essa prática metodológica, a
professora Katia Maria Abud esclarece que, “entre todos os meios de comunicação, tem
sido o cinema o que mais tem despertado o interesse dos professores por sua utilização
em sala de aula”623.
DISCUTINDO O FILME COMO FONTE HISTÓRICA
É de fundamental importância o uso de fontes no ensino de História, proporcionando ao
aluno o contato direto com o documento. No entanto, o uso dessa vertente não estava
voltado, anteriormente, para a análise, em que o aluno se projetaria sobre a fonte, mas
620
HEGEMEYER, Rafael Rosa. História e Audiovisual. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. p. 10.
621
HAGEMEYER apud Marc Ferro 1992, p 86.
622
CHARTIER, Roger. História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa/Rio de Janeiro:
Difel/Bertrand Brasil, 1990. p. 17.
623
ABUD, K. M. The construction of a Didactic of History: some ideas about the utilization of movie on
teaching. História, São Paulo, v. 22, n. 1, p. 1, 2003.
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sim utilizado como mera ilustração de um passado já adormecido, confirmando de
forma direta que a História se remete somente ao estudo do passado. Porém, alguns
historiadores como Thompson desmistificam isso, pois entendem a História como o
estudo da experiência humana no tempo624.
O historiador Marc Ferro faz uma importante análise acerca da discussão do filme
como fonte histórica. Ele é enfático ao ratificar que o cinema deve ser considerado uma
fonte para o historiador, porém este tem que ter cuidado com os métodos de análise
desse documento, mostrando que o cinema trata-se de uma nova forma de ver o mundo,
desde a sua criação no século XX. Logo, pode-se observar para o historiador uma nova
forma de ver a História625. Dessa forma, o uso do cinema como fonte histórica na sala
de aula não deve ser feito como simples deleite das imagens, mas também para a
problematização do conteúdo do filme, considerando-o como fonte, e não como
ilustração de outra fonte. Ele é encarado, desde a inserção de novos temas pela Escola
dos Annales, como possuidor de uma problemática historiográfica própria. Assim,
segundo Ferro,
Os historiadores já recolocaram em seu legítimo lugar as fontes de origem
popular, primeiro as escritas depois as não escritas: o folclore e as artes de
tradições populares. Resta agora estudar o filme, associá-lo ao mundo que o
produz. Qual é hipótese? Que o filme, imagem ou não da realidade, documento
ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é história. E qual o postulado? Que
aquilo que não aconteceu (e por que aquilo não aconteceu?), as crença, as
intenções, o imaginário do homem são tão História quanto a História 626.
O que podemos observar é que as fontes são frutos de algum processo ocorrido,
logo, devem ser analisadas como evidências e também como outras vertentes. As fontes
não falam por si só, elas possuem determinadas características ocultas. Sendo Pedras
brutas a serem lapidadas e extraídas as fontes tem seu significado ocasionado na sala de
aula. por um intenso estudo sobre o pensamento histórico.
Pensando, então, o filme como documento, o professor de História deve estar
atento aos PCN de História, que enfatizam claramente o que é considerado como fonte
documental para aplicabilidade na sala de aula.
624
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de
Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. p. 23.
625
FERRO, Marc. Cinema e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p86.
626
Ibidem, p 10.
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Assim, os documentos são entendidos como obras humanas que registram, de
modo fragmentado, pequenas parcelas das complexas relações coletivas. São
interpretados, então, como exemplos de modo de viver, de visões de mundo, de
possibilidades construtivas [...]. São cartas, livros, relatórios, diários, pinturas,
esculturas, fotografias, filmes, músicas, mitos, lendas, falas, espaços, construções
arquitetônicas ou paisagísticas627.
Portanto, o filme como documento histórico deve ser analisado com um olhar
crítico pelos alunos, pois essas fontes remetem a temas do passado, sobre a convivência
de determinados grupos, extraindo desse tipo de documentos saberes históricos que não
estão claramente em evidência no documento, acompanhados das instruções dos
professores, que laçam possíveis indagações e problemáticas que farão o aluno
investigar e ir além do que se vê e ouve.
FAZENDO UM DIÁLOGO ENTRE CINEMA E REPRESENTAÇÃO
Sabe-se notadamente que o cinema é um importante meio de comunicação em massa,
uma arte que tem sua origem no século XX e que está presente nos dias de hoje em
todos os lugares do planeta. Assim, o cineasta pode colocar a seu critério vários de seus
ideais sociais na produção de um filme, os seus conceitos de artes, falar sobre a
literatura de uma época, ou da que ele é fruto. Nesse gênero, englobam-se várias
vertentes, incluindo a música e a manipulação de imagens, formando assim o que o
cineasta deseja passar para o público que o assiste.
Adotando esse pensamento, o cinema pode ser considerado uma prática
representativa social que delimita um ponto no espaço e no tempo, que ilustra um
passado escrito, mas que também o desconstrói, formando, na maioria das vezes, uma
ficcionalidade. Nesse sentido, ao se analisar o cinema como discurso de representação,
pode-se afirmar que, quando o filme é produzido, ele traz consigo características sociais
que evidenciam formas e representações de um determinado lugar social onde essa
realidade é construída, segundo Chartier628. Isso significa que o cinema é parte
preponderante na reprodução do imaginário social, sendo possível, através dele, a
compreensão dos medos e das esperanças de uma época, como observa Michele Lagny.
Partindo desse contexto, o filme é considerado conservador, pois ele procura enfatizar
627
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: história e geografia. Secretaria de Educação Fundamental.
Rio de Janeiro: DP&A, 2000. p 79-81.
628
CHARTIER, 1990, p 16.
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imagens didáticas de fácil compreensão. Entretanto, o trabalho do historiador não
consiste somente em considerar o filme como objeto de análise, mas também em
perceber nele as representatividades, não o levando em consideração enquanto apenas
voltado para o deleite, mas, além disso, para suas cenas, para a mensagem que o
produtor deseja passar ou mesmo construir nas pessoas. Assistir a um filme por assistir,
sem tirar conclusões ou formar uma consciência crítica, é o que o público leigo costuma
fazer.
Assim, ao estabelecer um diálogo entre filme e ensino, o professor deve romper
as barreiras que consideram o filme somente como uma representatividade de uma
época, como simples ilustração, fazendo com que haja problematizações sobre questões
que permeiam a produção fílmica de determinado tempo. Hegemeyer elenca os códigos
que estão presentes nessa produção:
Os de enquadramento, montagem, iluminação etc.;
Os códigos narrativos, de sequência, focalização, marcas de enunciação, função
dos protagonistas, temporalidade;
Representações sociais e enunciados ideológicos 629.
Portanto, as imagens cinematográficas procuram realizar uma objetivação
representativa de quem as produz. Essa objetivação, segundo Alves, faz com que o
grupo mostre essas imagens com as quais representam suas opiniões acerca de
conceitos, situações, fatos e pessoas630.
O USO DO FILME COMO FORMADOR DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA
O uso de filmes nas aulas de História vem sendo polemizado nos últimos anos, pois se
acredita que esse tipo de linguagem induz o professor a um comodismo, e não a fazer o
uso dessa linguagem como de fato deveria. Porém, o uso dessa vertente, como mostrado
anteriormente, traz à tona várias possibilidades para o desenvolvimento do trabalho do
professor nos dias atuais, apesar de o cinema ser uma “nova” linguagem centenária 631,
como expõe Napolitano. Assim, a aplicabilidade desse tipo de mídia no ensino de
629
HAGEMEYER, 2012, p 10.
630
ALVES, Ronaldo Cardoso. Representações Sociais e a Construção da Consciência Histórica. São Paulo,
2006, p 31.
631
NAPOLITANO, Marcos. Como usar o cinema na sala de aula.. São Paulo: Contexto, 2012, p 11.
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História ganha também uma forma não menos importante que as anteriores, sendo ela a
formação de uma consciência histórica nos alunos.
Partindo das considerações feitas por Maria Auxiliadora Schmidt, abordadas em
seu texto “A formação da consciência histórica em alunos e professores, e o cotidiano
em sala de aula”632, discute-se o conceito de consciência histórica considerando também
o conceito de didática da história, realizando indagações que remetam à utilidade e aos
verdadeiros objetivos do ensino de História.
Para Rüsen (1987), um dos princípios constitutivos da Didática da História é o
de ordem teórica, ou seja, diz respeito às orientações e discussões sobre as
condições, finalidades e objetivos do ensino de História e envolve questões como
“para que serve ensinar a história?”, “por que trabalhar história na escola?” e
“que significado tem a história para alunos e professores?” 633.
Conforme Thompson, isso pode ser considerado como a experiência humana no
tempo634, logo, o campo da didática da história vê-se em constante crescimento. Assim,
levando-se em conta o conceito já estipulado pelo referido autor e as novas
possibilidades de se trabalhar o ensino de História em sala de aula, pode-se formar uma
consciência crítica a partir do ensino da disciplina.
A formação da consciência histórica surge a partir do interesse que os indivíduos
têm de se orientar no tempo. Assim Rüsen argumenta: “Se entende por consciência
histórica a soma das operações mentais com as quais os homens interpretam sua
experiência da evolução temporal de seu mundo e de si mesmos de forma tal que
possam orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo”635.
Dialogando com o filme, este apresenta a proposta que remete à formação da
consciência histórica, quando ela é pensada de uma maneira que faça referência ao
passado, como uma experiência humana no tempo, a fim de tornar inteligível o presente.
632
SCHMIDT, Maria Auxiliadora. A f ormação do professor de História e o cotidiano da Sala
de Aula. BITTENCOURT, C. (org). O saber hist órico em sala de aula. 12ª ed. São Paulo:
cont exto, 2013, p 54-66.
633
RÜSEN, J. The didactics of history in West Germany: towards a new self-awareness of historical studies.
History and Theory, Middletown, v. 26, n. 3, 1987.
634
THOMPSON, E.P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de
Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. Apud SCHMIDT, Maria Auxiliadora. A formação do
prof essor de História e o cotidiano da Sala de Aula. BITTENCOURT, C. (org). O saber
histórico em sala de aula. 12ª ed. São Paulo: cont exto, 2013,p 299.
635
RÜSEN, J. Razão histórica: teoria da história; os fundamentos da ciência histórica. Brasília, DF: UNB,
2001, p 57.
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Desse modo, como salienta Schmidt, o indivíduo, considerando as experiências
passadas a partir de uma análise da mídia cinematográfica, pode formar a consciência
histórica com uma visão prática: “A consciência histórica tem uma „função prática‟ de
dar identidade aos sujeitos e fornecer à realidade em que eles vivem uma dimensão
temporal, uma orientação que pode guiar a ação, intencionalmente, por meio da
mediação da memória histórica636”.
Nesse sentido, o vídeo mostra-se um mediador entre práticas encontradas no
cotidiano de outras sociedades, realizando assim uma aproximação na qual os próprios
alunos se insiram e se sintam sujeitos históricos, participantes de todo o processo.
Assim, essa nova possibilidade que o filme tem de recriação da história o torna
suscetível à formação do pensamento histórico, da consciência crítica. Pode-se
considerar que o filme será uma importante ferramenta, visto que a consciência histórica
se fundamenta na vida prática, a qual é retratada pelo filme. Esse tipo de documento e
representação que se encontra amplamente acessível nos dias atuais pode fazer com que
os alunos criem pressupostos para a sua vida prática, conseguindo uma orientação no
tempo.
Desse modo, o filme fará com que o indivíduo possa criar o seu ideal de
identidade, tornar o seu presente prático e inteligível, fornecendo uma dimensão
temporal da qual ele faz parte. Será possível também mostrar que esse indivíduo faz
história, mesmo que uma história silenciada, realizando assim uma renovação dos
conteúdos para professores e alunos, desprendendo-se da História. Segundo Schimdt:
Assim, busca-se recuperar a vivência pessoal e coletiva de alunos e professores e
vê-los como participantes da realidade histórica, a qual deve ser analisada e
retrabalhada, com o objetivo de convertê-la em conhecimento histórico, em
autoconhecimento, uma vez que, desta maneira, os sujeitos podem inserir-se, a
partir de um pertencimento, numa ordem de vivências múltiplas e contrapostas
na unidade e diversidade do real637.
O uso dessa nova linguagem no ensino de História faz-se necessário, tendo em
vista todos os atributos que esta possui para a difusão do saber histórico, podendo ser
remetida como fonte documental, representação, formadora de consciência. Todos esses
aspectos são um recurso-chave ao qual o professor tem acesso fácil, melhorando assim
636
SCHMIDT, 2013, p 301.
637
Ibidem, p, 299-300.
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as relações de ensino/aprendizagem no espaço da sala de aula e em seu trabalho como
professor.
DIALOGANDO COM A PRÁTICA
As considerações a seguir remetem ao estudo apresentado anteriormente, em suas
relações práticas. Partem de uma pesquisa realizada na Escola Monsenhor Walfredo
Gurgel, localizada na cidade de Caicó-RN, desde 2012, em uma turma de 8º ano,
intermediada
por um grupo de bolsistas do Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação à Docência (PIBID) de História do CERES/UFRN.
A referida intervenção se deu por meio do uso do filme problematizado, cujo
escolhido foi “Gonzaga de Pai pra filho”, que trata da trajetória de um nordestino
tentando ganhar a vida no sudeste do país. A opção pelo referido filme ocorreu de forma
estratégica, tendo em vista a grande produção bibliográfica sobre Luiz Gonzaga. Desse
modo, os alunos poderiam comparar o que era exposto para eles no filme com a
historiografia formada desse indivíduo.
Essa parte da ação pretendia que os alunos observassem o filme como uma
representação da figura do nordestino no recorte temporal da época, sendo possível
perceber que o personagem é fortemente marcado por estereótipos. Essa representação
mostra-se uma prática comum que servia para homogeneizar os indivíduos do Nordeste
do Brasil.
No decorrer de nossas intervenções, tratamos outras formas de se trabalhar com
esse gênero cinematográfico, como, por exemplo, utilizá-lo como fonte histórica, em
que problematizamos a formação de um discurso histórico dos alunos, de como lidar
com uma fonte, extraindo dela as concepções que permeavam aspectos da sociedade,
fazendo-os ir além do que estava sendo transmitido no filme.
Outro ponto que pretendíamos alcançar com o uso dessa metodologia era a
formação de uma consciência histórica nos alunos, em que o filme passa a ser uma
forma de ver o passado diferente da forma textual ou com imagens congeladas,
apresentando a imagem com som e movimento. Assim, a intenção de formação dessa
consciência histórica estava voltada para a vida prática dos alunos, fazendo-os
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compreender a história não somente como um estudo do passado, mas também como a
experiência do homem no tempo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do exposto, percebemos que o cinema pode ser trabalhado em sala de aula,
visto que essa ferramenta metodológica vem ganhando espaço nos meios educacionais,
principalmente no âmbito do ensino de História. Essa ferramenta traz uma nova forma
de abordar os conteúdos didáticos, ao mesmo tempo que dinamiza as aulas e possibilita
aos educandos a formação de uma consciência crítica voltada para a aprendizagem dos
saberes históricos.
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A VISÃO DO ASTRO. UMA ANÁLISE SOBRE OS CARAMURUS NAS
PÁGINAS DO ASTRO DE MINAS
Rumennig Douglas Weitzel Teodoro638
Resumo:
O presente artigo tem como objetivo analisar como procederam as informações que
faziam menção ao grupo caramuru através de alguns acontecimentos que marcaram a
província de Minas Gerais durante o período regencial. A compreensão acerca de
conflitos como a Sedição de Ouro Preto e, mais especificadamente a Insurreição de
Carrancas, são acontecimentos chaves para o entendimento do grupo caramuruano
mineiro639. Para tanto, nos atemos às páginas do periódico mineiro, são-joanense, “O
Astro de Minas” a fim de perceber como ocorreu a transmutação da imagem deste grupo
pelas páginas de um jornal moderado.
Palavras-Chave: Caramuru, Revolta de Carrancas, Sedição de Ouro Preto.
Abstract: This article aims to analyze the information that made mention of the group
Caramuru through some events that marked the province of Minas Gerais during the
Regency period. The understanding of conflict as the Sedition Ouro Preto and more
specifically the Revolt of Carrancas, events are key to understanding the group
caramuruano mineiro. For that, we turn to the pages of the journal mineiro, sãojoanense, “O Astro Minas” in order to develop as was the transmutation of the image of
this group through the pages of a newspaper moderate.
Keywords: Caramuru, Revolt of Carrancas, Sedition of Ouro Preto.
O SANGUE É DERRAMADO EM CARRANCAS. A EFÍGIE
HISTORIOGRÁFICA SOBRE O ACONTECIMENTO.
O mês de maio de 1833 foi marcado por um levante escravo que aconteceu na região da
Freguesia de Carrancas, precisamente nas fazendas Campo Alegre e Bela Cruz de
propriedade da família Junqueira. Os cativos empunharam alguns dos seus instrumentos
de trabalho e começaram um grande massacre. Todo esse tom que envolveu o levante o
638
Graduando em história pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
639
O entendimento afim da utilização de tal termo está ligado com a acepção do fato de que, o artigo
problematiza a atuação do grupo caramuru em Minas Gerais. De fato quando analisamos essas identidades
políticas, percebemos que muitas características são mantidas pelo grupos de diferentes partes da nação, mas
isso não obstem que eles tenha as influênicas regioanais.
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caracterizou como a “maior rebelião escrava que ocorreu nas Minas Gerais”
640
no
período regencial. Marcos Ferreira Andrade analisa dois pontos importantes no qual a
revolta está inserida. Para ele:
“no plano da história, representa um marco das insurreições escravas na
Província de Minas Gerais; no plano da memória dos contemporâneos, um
massacre que muitos, se pudessem, apagariam da memória. Já para os escravos,
representou uma tentativa desesperada e arriscada na busca da liberdade, com
consequências também funestas para muitos deles” 641.
Os pretos assassinaram “Gabriel Francisco de Andrade Junqueira, Juiz de Paz do
Curato de São Tomé da Serra das Letras”
642
e filho do deputado geral da província,
Gabriel Francisco Junqueira. Os escravos tinham a liderança do cativo Ventura Mina e
deixaram a fazenda Campo Alegre dirigindo-se para a fazenda Bela Cruz. Ao chegarem,
contaram os acontecimentos a outros escravos e, por fim, os convocaram para fazer o
mesmo com os brancos residentes da Bela Cruz.
Os negros seguindo Ventura Mina e Joaquim Mina, outro cativo da fazenda Bela
Cruz, invadiram a casa grande. Colocando-se contra José Francisco Junqueira e sua
esposa Emiliana Francisca, essa que por sua vez recorrerá ao refúgio de um quarto que,
entretanto não ofereceu a segurança necessária. Antônio Retireiro havia trago um
machado da senzala e o dera a Manoel das Vacas, que trabalhava para arrombar a porta.
Assim que conseguiram, Antônio Retireiro, portando uma arma de fogo, disparou na
face de seu senhor, e “sua mulher, filha e netta, os quais forão todos massacrados com
inaudicta crueldade dentro daquele quarto a olho de maxado” 643.
Um cerco foi armado em torno dos revoltosos, o resultado contou com a morte
de Ventura Mina, João Inácio, Firmino, Matias e Antonio Cigano, os demais foram
capturados e julgados. Os dias finais apontavam que a:
“Revolta de Carrancas, que envolveu 36 escravos das Fazendas Campo Alegre e
Bela Cruz, no dia 13 de maio de 1833, e teve como desfecho a morte de nove
membros da família Junqueira, aparece processada como crime de insurreição
escrava, segundo o artigo 107 do Código Criminal; 17 escravos foram
640
ANDRADE, Marcos Ferreira. Negros rebeldes nas Minas Gerais: a revolta dos escravos de Carrancas
(1833). Disponível em: http://www.acervos.ufsj.edu.br/site/fontes_civeis/revolta_carrancas.pdf Capturado: às
15hrs e 45 min. do dia 06 de agosto de 2013. (sd).
641
ANDRADE, Marcos Ferreira. Rebeldia e resistência: As revoltas escravas na Província de Minas Gerais
(1831-1840). Dissertação de Mestrado: UFMG, 1996 pág.: 175.
642
ANDRADE, Marcos Ferreira. Op. Cit.(b). pág.: 176.
643
Id. Ibid. apud AMRSJ. Processo Crime de Insurreição (1833). cx. 04. f. 118V.
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condenados à pena de morte, por enforcamento, seis a açoites e ferros, dois a dez
anos de galés e outros seis, absolvidos”. 644
Com a inquirição das testemunhas, Francisco Silvério Teixeira foi considerado o
principal suspeito. Tido como caramuru, o branco Silvério foi acusado pela maioria dos
depoentes com o principal livre culpado pela rebelião. Os cativos ouviram de Ventura
que Francisco Silvério “era a causa disso dizendo que no Ouro Preto haviam muitas
pessoas voltadas com a boca para cá afim de matarem todos os brancos e ficarem os
negros forros‟”.645 Sob esse compêndio, as acusação feita a um branco, cujos aportes o
apontam como caramuru, traçam ainda mais uma singular linha com os acontecimentos
providos na capital da província mineira, em especial a Sedição de Ouro Preto, ocorrida
no dia 22 de Março de 1833 que fora considerada um movimento efetuado por pessoas
deste grupo.
Propomos analisar esses eventos através das páginas do periódico são-joanense, o
Astro de Minas. A escolha do jornal está relacionada aos elementos que ele empunhava
e ao ideário social que estava envolvida a cidade. Trata-se de um periódico de
importância singular para região. Além disso, o Astro de Minas carrega com si,
elementos da formação cultural de São João Del Rei.
O Astro foi o primeiro jornal da região. Ao mesmo tempo em que o pioneirismo
estava presente, outras características percutiam em relação ao jornal e evidenciava seu
forte vinculo com a sociedade local. “O „Astro de Minas‟, no entanto, acumulou
também, como queria seu mentor, a função de livraria, comercializando livros e demais
tipos de publicação” 646. O Astro de Minas que era publicado nas terças, quintas e sábados e
sua chegada a região “representou uma grande abertura para a consolidação da prática da
imprensa em São João del-Rei”647.
644
VELLASCO, Ivan de Andrade. A cultura da violência: os crimes na Comarca do Rio das Mortes - Minas
Gerais Século XIX. Tempo [online]. 2005, vol.9, n.18, pp. 171-195. ISSN 1413-7704 Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-77042005000100008&script=sci_arttext. Capturado: às 16hrs e
37 min. do dia 07 de agosto de 2013
645
ANDRADE, s.d. op. cit. p: 15.
646
REZENDE, Guilherme Jorge. Base de Dados mostra História da Imprensa de São João del-Rey. In: 6º
Encontro Nacional da Rede Alfredo de Carvalho, 2008, Niterói. Anais do 6º Encontro Nacional da Rede
Alfredo de Carvalho. Disponível em: http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/6o-encontro-20081/Base%20de%20Dados%20mostra%20Historia%20da%20Imprensa%20de%20Sao%20Joao.pdf capturado
às 15hrs e 34 min. do dia 07 de agosto de 2013.
647
MOTTA, 2000. op. cit. p: 130
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Por fim, coube a São João Del Rei acolher o governo fugido de Ouro Preto, que
foi ameaçado por uma Sedição, associada aos caramurus. Além disso, a proximidade
geográfica entre São João Del Rei e Carrancas, aliada ao fato de ser uma região com
intenso tráfego de pessoas que circulavam dentro e fora da província faz com que a
escolha de São João Del Rei não seja obsoleta ou abstrata.
CARRANCAS E O ASTRO. OS ACONTECIMENTOS DA INSURREIÇÃO
NEGRA PELAS PÁGINAS DO ORBE MINEIRO
No dia 27 de agosto de 1833, a edição 903 do Astro de Minas, expunha um ponto de
vista sobre a atuação dos caramurus dentro da província de Minas Gerais. Adotava um
discurso sobre o acontecimento do dia 22 de março relativo à Sedição de Ouro Preto, o
qual trata como resultado de um governo traidor, que fora liderado por Manoel Soares
do Couto. Publicava que os povos estavam sendo persuadido pelo Visconde de Caeté,
Senador do Império, a prestarem obediência ao governo sedicioso 648. Por conseguinte, o
jornal preocupou-se em expor um discurso proferido pelo Visconde de Caeté:
“Qual é a razão porque eles, depois da expulsão do Presidente, e vice-presidente
(com razão, ou sem ela porque eu não sou juiz dos seus atos) não marcharam
seus fins, e sim aclamarão a Constituição, e o Sr. D. Pedro II, a Regência atual, e
sustentando assim a forma do governo estabelecido, e declarando-se só contra o
Presidente, e o Vice-Presidente?” 649.
O discurso do senador é veemente. Através dele conseguimos postular que sua
objeção está relacionada ao governo da província. O Visconde de Caeté deixa claro que,
mesmo com os atos tomados pela sedição – e nesse caso, exime-se de julgar as atitudes
tomadas pelos sediciosos, dizendo não ser o juiz dos atos deles – aconteceu uma
obediência a Constituição e ao governo presente. Contudo, essa parte da alocução
recebe uma nota crítica do redator, com o seguinte trecho:
“Ora é muito querer iludir! Quem ignora os manejos, que os influentes na
Sedição de 22 de Março puseram em prática para ilaquear a boa fé dos Mineiros
a fim de ir avante o plano da restauração? Se os sediciosos, como diz o Sr.
Visconde, sustentarão o Governo atual, para que o desobedeceram sempre até
que obrigados pela fome cederam o campo? É desta forma que se respeita a
Constituição? Acaso ela autoriza hum tal procedimento?”650
648
Astro de Minas. Edição 903. 27 de agosto de 1833.
649
Id. Ibid.
650
Id. Ibid.
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Notoriamente a ideia do autor é ponderar a tal ambiguidade no discurso do
Senador na qual ele julga existir, questionando se a forma como foi adotada a premissa
da Sedição, confere com as linhas da Constituição. A fala do Senador ganhará um tom
final ao questionar a atuação caramuru e o “partido da ordem”. Para o Visconde o
partido tem representações em toda a nação. Porém isso não implica em que saibamos
do fim verdadeiro desse tal grupo, mas não sabe dizer se algum desses homens
envolvidos com o tal partido tinha alguma coligação com os ditos caramurus. Caeté
ainda retoma a lembrança que os acontecimentos das fazendas Campo Alegre e Bela
Cruz que para ele: “não foi da parte do partido caramuru que se cometeram atos de
barbaridade, e ideias, e princípios da Sociedade Gregoriana, se não o diga a desgraça da
família do Deputado Junqueira”.
Ao referir-se à família do Deputado Junqueira, as frases seguintes do periódico
são organizadas a fim de tratar, como um ato venenoso do Senador. O redator diz que o
tal ato está anexado aos caramurus. Eis o texto na integra:
“Esta ultima asserção cheia de veneno, como é, patenteia bem a maldade do
Nobre Senador; ele pretende lançar o odioso de um fato o mais horroroso sobre o
partido da ordem, quando esse fato verdadeiramente foi praticado pelo partido
Caramuru; e para prova disto apresentamos aqui os depoimentos dos escravos,
que se insurgirão, os quais todos são concordes em confessar o massacre
daquelas desgraçadas famílias e em descobrirem os promotores de tão horrível
atentado; por estes depoimentos nossos Leitores ficaram convencidos da
qualidade desse decantado partido Caramuru ora defendido pelo Sr. Visconde de
Caeté”651
Percebe-se bem a preocupação do redator em discutir a efetividade do trabalho e
da ação caramuru na província de Minas. Em dois pontos, já percebemos que a sedição
ocorrida em 22 de março e a Insurreição de Carrancas, foram colocadas como
instrumentos do tal grupo político. Os tais caramurus foram organizados como grupo
logo no inicio da Regência e são retratados por Marcello Basile como “alinhados à
vertente conservadora do liberalismo” 652 e tributários a Burke.
Francisco Silvério Teixeira fora acusado como um dos responsáveis pela a
aspiração do levante escravo. A ele também foi dado à alcunha de caramuru e a
compreensão de que, o que estava a acontecer foi um movimento em prol das forças
651
Astro de Minas, Op. cit.
652
BASILE, Marcello. O laboratório da Nação. In: GRINBERG, Keila & SALLES, Ricardo. O Brasil
imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. V2. Pág.: 61.
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“caramuruanas”.
Marcos Ferreira entende que essa “acusação nos parece ser
procedente” e salienta o fato de que, a adesão de várias vilas ao governo que estava
sendo estabelecido de forma provisória em São João-del Rei pode explicar o motivo e
dar o substrato necessário a essa vertente interpretativa e acusatória sobre Francisco
Silvério já que nesse cenário, começa a ser ilustrada uma vitória com o avanço das
tropas moderadas. 653
O periódico são-joanense reporta e publica alguns dos processos criminais
referentes a Carrancas. Nela encontramos o depoimento de Joaquim Mina, cativo da
fazenda Bela Cruz, que depõem informando que “Francisco Silvério vindo de Villa Rica
disse a Ventura, que os Caramurus dali estavam tomando a terra e matando os brancos
com as peças, e que era boa ocasião deles ali se levantarem, e fazerem o mesmo aos
seus Senhores”
654
. Contudo, Francisco Silvério foi absolvido por falta de provas,
mesmo com os depoimentos dos escravos e inexoravelmente a associação ao grupo
caramuru. Andréa Lisly Gonçalves aponta que Francisco Silvério, estava inserido
dentro do quadro de proprietários de 11 a 50 escravos que residia Vila Verde da
Campanha e tio do Sargento Mor Luiz Maria da Silva Pinto, este detentor de 11
escravos.655 O que observamos nessa atuação do periódico é um foco maior sobre os
acontecimentos e com as criticas feitas, os relatos dos acontecimentos nos permitiu
efetuar uma investigação a cerca de como esse grupo foi mencionado. Nesse compendio
vimos uma atuação que coloca os caramurus como inimigos da pátria. São eles tão
desprovidos de escrúpulos que as atrocidades não ficam presas somente a Carrancas?
O ASTRO DAS MINAS OBSERVA. O RETRATO DO PERIÓDICO SÃOJOANENSE SOBRE OS CARAMURUS.
No dia 19 de abril de 1831 seguiu a informação no Astro de Minas que o até então
Imperador Dom Pedro I, havia abdicado do trono em nome de seu filho, Dom Pedro II.
656
Porém, a “vacância do Trono deflagrou violenta disputa pelo poder regencial”
653
ANDRADE, 1996. op. cit. p: 86.
654
Astro de Minas, Op. cit.
655
657
e
GONÇALVES, A. L. A "oligarquia tenebrosa": um perfil sócio-econômico dos caramurus mineiros
(1831-1838). In: Seminário sobre a Economia Mineira, 12., 2006. Diamantina Anais... XII Seminário sobre a
Economia Mineira, Belo Horizonte: UFMG/CEDEPLAR, 2006. p.1-26. Disponível em:
http://www.cedeplar.ufmg.br/seminarios/seminario_diamantina/2006/D06A047.pdf. Acesso em: 22/08/2012.
656
Astro de Minas, Edição 675, 22 de março de 1832.
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vários grupos foram sendo consolidados ao longo da Regência. Moderados, exaltados e
caramurus são exemplos desse processo político. O terceiro grupo negava qualquer
reforma na Constituição de 1824. O projeto de nação que desenhavam pautava uma
monarquia constitucional invariavelmente centralizada, seguindo os adornos do
Primeiro Reinado, em casos excepcionais chegando a nutrir anseios restauradores658. Na
edição do dia 22 de março de 1832, foi vinculada a seguinte notícia no Astro de Minas
ao que diz respeito aos caramurus:
“Os exaltados quase desanimados dos repetidos choques, que tem sofrido, iam
desaparecendo desacreditados por suas loucuras; quando esperávamos ver só o
predomínio dos moderados, eis que aparecem de novo os homens do eximperador Pedro Capeto, formando um terceiro partido, que, á julgar-se pelo
Jornal, que publica o Caramurú, nada mais pretende que a restauração desse
malvado inimigo do nosso País.” 659.
Esse trecho já começa a desenhar as expectativas e a agenda política do Astro de
Minas. Como interpreta Jairo Faria Mendes, “em São João Del Rei, surgia mais um
jornal liberal moderado (O Astro de Minas) que iria unir força com o Universal”.660 Na
seção “Correspondências” no dia 05 de abril de 1832, o Astro vinculava uma notícia
escrita pelo “O Calculador” identificando os tais caramurus como pintores do estado de
desgraça:
“Sou amigo das razões de cifras, e gosto de avaliar tudo a dinheiro. Os
Caramurus pintam o Brasil no último estado de desgraça, porque se foi o Sr. D.
Pedro I. e afirmam que a revolução de 07 de abril só nos trouxe males; vamos ao
budget, a ver se assim é. Quanto nos custava cada ano D. Pedro I? 1000 contos.
E quanto nos custa hoje D. Pedro II com a Regência? 276 Aqui temos, pois uma
vantagem de 724 para Nação” 661.
O “véu” que o Astro retira ou coloca sobre a “face dos caramurus” está associado
à tendência liberal moderada do jornal. Além disso, anexa sempre uma imagem de
atraso, de retrocesso nas medidas e ações tomadas pelo grupo. Isso pode ser percebido
com a citação à cima. Para o autor, o governo de Dom Pedro I, onerava os cofres
públicos e várias vezes fora tachado como “inimigo da Nação”. Como percorre nas
páginas do dia 22 de março, os caramurus são nomeados como “homens do imperador
657
BASILE, 2010. op. cit. p: 60.
658
BASILE, 2010. op. cit. p: 61
659
Astro de Minas, edição 688, 24 de abril de 1832.
660
MENDES, Jairo Faria. O “silêncio” das Gerais: O nascimento tardio e a lenta consolidação dos jornais
mineiros. São Paulo: Universidade Metodista de São Paulo, 2007. pág.: 95
661
Astro de Minas, edição 681, 05 de abril.
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Pedro Capeto, formando um terceiro partido, que, á julgar-se pelo Jornal, que publica o
Caramurú, nada mais pretende do que a restauração desse malvado inimigo do nosso
País” 662. A interligação entre os caramurus com o objetivo restaurador é lúcida e direta
pra quem escreve nas páginas do Astro. Porém, não foi apenas esse tipo de postura que
permeou suas páginas. Contudo, suas folhas se tornaram por algumas vezes, uma arena
de ideias. No sábado, que datava o trigésimo primeiro dia do mês de março, a edição
679 debruava a seguinte matéria:
“Como o amigo da Verdade em seu n. 299 estampou o artigo do Caramurú,
panegirista do ex-imperador, nós como em resposta oferecemos aos nossos
leitores este da Aurora N. 605, que plenamente satisfaz ás arguições daquele” 663.
O que veremos é uma resposta longa. As frases iniciais dão o escopo de que os
caramurus se propunham a estabelecer um paralelo entre em dois períodos brasileiros.
O primeiro condizente até o 7 de abril e, consequentemente, o segundo sendo os anos
seguintes. O redator adverte que esperava através dos fatos, o dado levantando apontaria
para a piora da condição enquanto estávamos sob a tutela do ex-imperador. E o que foi
lido, situava outra discussão que fugia da realidade que estava sendo presenciada pela
nação. Para ele, a matéria que foi vinculada no Caramuru trata que a falta do imperador
levou o Brasil “a cair no abismo” 664 e que o príncipe, descendente dos “Antigos reis de
Portugal” 665 nos últimos tempos da sua administração, viu:
“os interesses privados sucumbiram o amor da pátria; que se abusou das
garantias mais caras ao Cidadão; e que o governo em uma contemporização
continuada, sem jamais tomar uma atitude repressiva, acedeu a tudo, sem mesmo
se opor aos germes da desorganização” 666.
Em seguida, o autor atribui que quando o Caramuru trata estes atos e esforços
como posturas da “maldita oposição”. Porém, em seguida faz um adendo sobre esse
objeto apontado pelo jornal Caramuru. Eis:
“mas nos lhe perguntaremos o que havia que dessas forças e crédito a tal
oposição, quando alias tínhamos a testa dos negócios um Príncipe eleito por
662
663
Astro de Minas, edição 675, quinta feira, 22 de março
Astro de Minas, edição 679, sábado 31 de março.
664
Ver Astro de Minas, edição 679, sábado 31 de março.
665
Ver Astro de Minas, edição 679, sábado 31 de março.
666
Astro de Minas, edição 679, sábado 31 de março
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unanime aclamação dos povos, rodeado dos prestígios todos da Realeza, moço e
com as grandes qualidades que lhe atribui?” 667
A taxação é veemente. Isso estaria ligado à fraqueza, desordens e a devassidão do
o reinado de Dom Pedro. Contudo, é implícita a relação que estabelece entre a imagem
caramuruana com a imagem do ex-imperador. Porém no decorrer da matéria, trata que
“D. Pedro não foi tirano”, mas postula uma série de problemas, inclusive criticando a
imagem do ex-imperador frente à administração, afirmando que esta já não prediz do
prestígio para oferecer a estabilidade necessária. Encerra orientado ao Caramuru a
efetuar mudanças para ajudar as coisas, que no momento encontra-se em melhorias.
O “MARCHAR” POLÍTICO PELO SOM DO TAMBOR DO CARAMURU.
Muitas foram às interpretações feitas pelo periódico. Várias associando os caramurus
como o grupo que clamava pela volta de Dom Pedro. Mas, em outras ocasiões
couberam aos caramurus o titulo de “declarados inimigos da nacionalidade”
668
, por
vezes, tratados como aqueles que estão inseridos na desordem. De fato, a pluralidade
que envolve a concepção ao entendimento das identidades políticas e neste caso a
caramuruana é instigante. As disputas políticas que os mariolas669 estavam inseridos,
principalmente contra os chimangos ou moderados, caracterizou por inúmeras vezes os
cenários da província mineira. “Os conflitos entre chimangos e caramurus marcaram os
primeiros cinco anos da década de 30 na Província de Minas Gerais. Os principais
núcleos urbanos da província foram palco de várias disputas e contendas entre essas
duas facções” 670.
“Os falsos boatos, muitas vezes característicos dos momentos de dissensões
políticas entre brancos, constituíam-se em verdadeiros estopins para o surgimento de
revoltas escravas”
671
. Por fim, é interessante resaltar que em vários casos, até mesmo a
utilização do termo caramuru chegou às vias do negro, isso mostra que a pluralidade do
termo é no mínimo sintomática. Os escravos ouviam aquilo que os brancos diziam ou
liam. Isso pode ser mais bem observado no depoimento da testemunha:
667
Astro de Minas, edição 679, sábado 31 de março
668
Astro de Minas, 14 de Março de 1833, edição 825
669
Nome dado aos caramurus
670
ANDRADE, 1996. op. cit. p: 65.
671
ANDRADE, 1996. op. cit. p: 152.
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“Maria Joaquina do Espírito Santo, mulher parda, agregada e moradora na
Fazenda Bom Jardim. O grupo de escravos, liderados por Ventura, que se
dirigira para a Fazenda do Jardim na noite do dia treze passou pela casa da
testemunha. Depois de ameaçá-la, exigiu que lhe entregasse logo as espingardas
que havia na casa. Um dos escravos que fazia parte do grupo, o preto Antônio
Benguela, "pulava no seo terreiro e batia nospeitos dizendo = para ela e seo
companheiro = vosses não costumão a falar nos Caramurús nos somos os
Caramurús, vamos arrasar tudo...” 672.
Os acontecimentos e discursos utilizados pelas elites, o povo ou nos meios de
sociabilidades implicam em uma apropriação e reapropriação dos termos. Essa atividade
dá diversos sentidos. É a partir do emprego desses sentidos, resultado das disputas não
só políticas como sociais, que o objeto vai ganhando força e desempenho social.
Quando usamos algumas acepções linguísticas como elementos para um discurso
ofensivo, veja a utilização da palavra caramuru no moderado Astro de Minas, ou
quando a utilizamos para nos apropriar de uma desculpa ou seguir algo como exemplo,
como foi o caso da associação feita pelo escravo, adentramos a um novo universo, que
anteriormente poderia ou não, ter sido observado pelo receptor da informação, mas que,
no momento usado, foi imbuído de um novo significado devido às transformações
geradas pelos agentes sociais.
672
ANDRADE, 1996. op. cit. p: 198 apud.: AMRSJ. Processo de Insurreição (1833) f. 49 v.
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OS PRAZERES E OS SABORES DA MESA ORDESTINA: UMA HISTÓRIA DA
CULINÁRIA NORDESTINA NA PERSPECTIVA DE GILBERTO FREYRE E
SUA OBRA CASA-GRANDE & SENZALA.
Taísa Fernanda Souza673
Orientação: ALMEIDA, Kennya Lima
Resumo:
O presente trabalho aborda os costumes e tradições da culinária nordestina, em especial,
o registro da culinária pernambucana, a partir da obra Casa-Grande e Senzala de
Gilberto Freyre. Para o autor houve uma significativa troca de valores culturais, cujas
marcas se manifestam de maneira visível no nordeste do Brasil; onde a culinária é fruto
de um passado caracterizado principalmente pela influência indígena e africana
mesclada aos gostos europeus.
Palavras chaves: Brasil colonial-influências-culinária
Abstract:
This paper discusses the customs and traditions of North-Eastern cuisine, particularly
the record of cooking Pernambuco, from the work Casa-Grande Gilberto Freyre. For the
author there was a significant exchange of cultural values, whose brands are manifested
visibly in the northeast of Brazil, where the cuisine is the result of a past characterized
mainly by indigenous and African influences merged to European tastes.
Keywords: Brazil colonial- influences-cooking
A obra Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, publicada em 1933, promoveu e
ainda promove as mais diversas reações ao público. Para muitos é considerada uma obra
clássica com um pensamento inovador, a partir do momento em que se afastou das
principais correntes do período (o marxismo e a escola sociológica francesa) e devido a
isso é bastante criticada por estudiosos. Muitos críticos analisam a obra como um
reelogio a colonização portuguesa, como uma justificação da conquista e ocupação de
Portugal no Brasil, e por isso é considerada uma obra neovarnhageniana, mas alguns
estudiosos atuais, como Ricardo Benzaquen professor da Iuperj e da PUC-Rio, tentam
explicar que essa foi apenas uma primeira visão que pôde ser modificada com as
mudanças ocorridas no contexto político (fim da ditadura militar) e, sobretudo no social,
673
Faculdade de Ciências Humanas do Sertão Central-FACHUSC; Orientação: ALMEIDA,
Kennya Lima;
E-mail: [email protected]; Tel. :( 87) 9169-7169; End.:Rua Joâo Mariano Sobrinho,
S/N, Umãs-Salgueiro-PE
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de modo que houve uma significativa valorização do conceito de cultura no sentido
antropológico do termo, de maneira que Freyre é visto como um modelo para a história
cultural. Casa- Grande & Senzala é sem dúvidas a interpretação do Brasil mais
conhecida, que fala da “riqueza de antagonismo” que caracteriza a cultura atual.
Sabe-se que o contato com o outro é o meio mais eficaz no processo de formação
da cultura. O homem sempre necessita de uma relação próxima com outros, tanto para a
sua construção pessoal, quanto para o bom desenvolvimento da sociedade.
No cenário social é percebível todas as manifestações culturais, desde a cultura de
massa até a dita cultura erudita. Todavia, não se pode negar que ao longo da história
sempre existiu a ideia de que a verdadeira cultura era aquela relacionada à elite política
e intelectual de uma dada sociedade. Mesmo a cultura popular sendo a base das práticas
de qualquer sociedade era pouco valorizada pela produção historiográfica brasileira.
Para Freyre, o que se deve entender é que um indivíduo é fruto do seu contexto
social, seus costumes estão intimamente ligados aos seus familiares e até mesmo,
consequentemente, ao processo de formação do seu país. O brasileiro, por exemplo,
apresenta uma cultura variada desde a sua cor de pele a sua alimentação, tudo isso é
atribuído ao contato entre as culturas nativas, europeias e africanas nos primeiros
séculos de colonização. Traços dessa mistura são observados hoje em dia, pois são
manifestos nos costumes e na tradição da sociedade brasileira.
"Todo brasileiro, mesmo alvo, de cabelo louro, traz, quando não na alma e no
corpo - há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil - a sombra,
ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro." 674
Os povos que aqui habitaram influenciaram de maneira geral a população
contemporânea, houve uma significativa troca de valores culturais. Essa transmissão
pode ser diariamente observada; não somente a partir da cor da pele dos brasileiros; mas
no falar e principalmente no comer. É no nordeste do Brasil que a marca da tradição é
mais clara, lá os traços da cultura africana não estão apenas na fala arrastada e
melodiosa, mas nos sabores. Podemos dizer que no nordeste os temperos europeus e
indígenas se harmonizaram com os sabores trazidos da África.
674
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Editora Record, Rio de Janeiro, 1998, cap. IV, 34ª edição, p.
307
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A culinária nordestina que se apresenta hoje é fruto de um passado caracterizado
principalmente pelos índios e pelos africanos. Há uma diversidade de pratos herdados
dos povos nativos e misturados ao gosto africano. Mais o estudo da culinária vai mais
além de pratos saborosos, fala da prática a mesa que revelam a maneira pela qual uma
sociedade, se organiza, e de como se relaciona com o outro.
Assim, nos primeiros contatos com os ameríndios, os colonizadores aproveitaram
de forma significativa a experiência de vida dos mesmos para sobreviver no “Novo
Mundo” e não morrer de fome.
Segundo o cronista Pero de Magalhães de Gandavo as terras do Brasil colônia
eram muito férteis e abastadas de todos os mantimentos necessários para a vida dos
homens. Essa abundancia notava-se por todas as capitanias.
Diz
Gandavo;
que
a
alimentação nesses
primeiros
séculos
provinha
principalmente da criação de animais da caça, da plantação e de algumas frutas,
provando que de certa forma os colonos se apropriaram dessa experiência.
A culinária propriamente dita se baseava na farinha de mandioca, no aipim e no
milho zaburro, que faz um pão bem alvo, além de arroz, fava, feijão ,inhame e alguns
legumes.[19 a 20].
Nas fazendas dos jesuítas se encontravam muita criação de vacas que possibilitava
o consumo da carne e do leite, também criavam porcos, galinhas, adens, e patos, quais
todos certamente contribuíram para a alimentação daquele momento. [15 e 16].
As diversidades dos animais nas matas também contribuíram com a alimentação.
Os índios eram grandes caçadores, eram muito comum nas mesas carnes de veados, de
porcos monteses, das antas ,de coelhos , de tatus de galinhas de mato , e várias outras
quais todos diziam serem saborosas.[20 a 21].
As frutas se encontravam em abundancia, diz Gandavo que algumas pessoas
passavam muitos dias sem comer outros alimentos. Das muitas que se viam, destacamse a ananases, caju, bananas, e ainda outras que se cultivava de outros países como o
melão, pepino, uva, limão, laranja e outras [21 a 23].
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O cristão novo e proprietário de terras Ambrósio Fernandes Brandão na sua obra
Diálogos das grandezas 1618 do Brasil, escrita em 1618, relata de maneira mais clara o
que se comia durante o período colonial. O colono mostra alguns produtos novos como
gergelim, abobora jerimum, batatas amendoim e várias outros, como também descreve a
variedade do tipo de um mesmo produto, como por exemplo, as diferentes castas dos
feijões (sapotaria, gandus) sempre com intuito de demonstrar a fertilidade das terras do
país, cuja fertilidade é sempre constatada pelo suposto emigrante Alvino, qual tenta
compreender o porquê de haver tanta abundância e ao mesmo tempo não se encontrar
mantimentos estimados pele Espanha e pela Europa, como o trigo, centeio e cevado,
explicando Brandão que na verdade o que se planta na maioria das vezes se colhia mais
o que acontece é que os moradores aderem a cultura dos seus antepassados deixando de
à nadir as que surgem (comprovando o modo de produção da monocultura descrita por
Freyre) e acrescentando que apesar dessa carência em alguns alimentos, por outro lado
existia nessas terras variedades que satisfaziam as necessidades.
“Sim, há, os quais aproveitam para o tempo da esterilidade, posto que raramente
sucede havê-la nesta terra, os quais são estes: o primeiro, a raiz do carautá , que
se dá pelos campos sem nenhum benefício, da qual se faz de boa sustentação; o
segundo é as folhas de mandioca cozidas, a que chamam maniçobas , as quais
são também excelentes para o tempo de fome, e ainda sem ela a usam muitas
pessoas por mantimento; o terceiro é farinha o fruto de uma árvore grande a que
a chama umari, o qual serve também de mantimento; o quarto uns coquinhos
que pelo nome da terra se chamam aquês. Este tais se colhem dos pequenos
coqueiros em que se dão em cachos, depois de maduros, e se espreme deles uma
substância doce bem gostosa, que se lhes tira dentro a casca, espremidos com as
mãos as cascas, dentro da água, e de tudo junto, sendo cozido ao fogo, se
formam umas papas que comem, e com elas juntamente os coquinhos, que estão
dentro do caroço, depois de esbrugado e partido; e deste mantimento se sustenta
grande parte do gentio da terra e dos negros de Guiné. O quinto é a raiz de cipó
a que chamam macuna, as quais desfazem em farinha, que comem depois de
cozida.” 675
Ao contrário do que pensavam os europeus, os nativos possuíam uma cultura
complexa, longe da ideia preconcebida que os descreviam como, "já adolescente, quase
um bando de crianças grandes", que podiam não ter um mesmo desenvolvimento
europeu para o comércio, mas apresentavam um amplo e considerado tino para a
sobrevivência. Porém, uma das formas de apropriação da cultura indígena, foi a
alimentação, que valeu a vida dos próprios invasores nos trópicos, carentes de vitaminas
675
BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das grandezas do Brasil. São Paulo, Melhoramentos, 1977.
p. 140
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e práticas de higiene corporal. Segundo Gilberto Freyre, assim como a sua vida
cotidiana, a alimentação indígena baseava-se na natureza.
A mulher ameríndia tinha um papel significativo no dia a dia das tribos, era a ela
que pertencia os principais deveres, a "atividades estável, solida, contínua", restando ao
homem atividades "violentas e esporádicas".
"Por seu intermédio enriqueceu-se a vida no Brasil." [...] “Da cunha é que nos
veio o melhor da cultura indígena. O asseio pessoal. A higiene do corpo. O
milho. O caju. O mingau. O brasileiro de hoje, amante do banho e sempre de
pente e espelhinho no bolso, o cabelo brilhante de loção ou de óleo de coco,
reflete a influência de tão remotas avós." 676
As nativas além de ser responsáveis pelo preparo da comida, ainda fabricavam os
utensílios necessários para fazer a comida, a elas cabia também guarda-la, pisar,
espremer e peneirar. "Ainda hoje o vasilhame de qualquer casa brasileira do norte ou do
centro do Brasil contem numerosas peças de origem ou puramente indígena.
Desde os primórdios que cozinhar é um trabalho das mulheres, mas não no
sentido pejorativo que tomará o significado do trabalho no lar nas sociedades
paternalistas.
É interessante a perceber no olhar de Gilberto Freyre para a culinária e também da
literatura sobre alimentação que em todas as culturas cozinhar é trabalho,
principalmente, de mulher, apreden-se a arte desde pequena. Então, ao falar de culinária
percebe-se que ao longo da história irá se elaborando um domínio das mulheres do que
é servido à mesa e dos problemas domésticos ligados a administração do lar que se
tornam também um assunto de mulher.
Diz Luce Giard, que a arte de nutrir é algo que muda, mas muda lentamente ou
entrelaça o passado ao presente. Dentre os diversos espaços da cultura os sabores e os
cheiros da cozinha despertam os sentidos e a saudade, porque cozinhar é algo que
envolve também afeto e sensibilidade. Lembra-se das avós fazendo biscoitos, lembra-se
do gosto da comida da mãe, pois são elas que guardam as receitas de família.
Desta maneira, são muitas as comidas herdadas das famílias indígenas, a farinha
de mandioca, os quitutes, o Macapá, a moalha, a pamonha, o peixe e vários outros,
676
FREYRE, Gilberto. op. cit. p. 130
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encontrados nas regiões do país, em especial na região norte, é que se manifesta a maior
influência indígena.
"Não só em relação o beiju, mas em tudo quanto é comida indígena, a Amazônia
é a área de cultura brasileira mais impregnada de influência cabocla, o que ai se
como tem ainda gosto de mato, é enrolado em folha de palmeira ou de bananeira,
leva castanha de caju, prepara-se em cuia, é polvilhado de puçanga feita de folha
de kurumiká torrada, e os nomes são ainda os dos índios, com um quer que seja
estrangeiro á primeira vista. Mas só a primeira vista. Quitutes e nomes de
quitutes, indígenas desmancham-se familiarmente na boca do brasileiro, um
gosto de conhecidos velhos desfaz a primeira impressão de exóticos. É quando
sentimos o muito que nos ficou de fundamentalmente agreste no paladar e no
ritmo do idioma, o muito que nos ficou dos nossos antepassados tupis e tapuais."
677
Na mesa dos senhores coloniais a alimentação não se apresentava de maneira
diferente, nesse primeiro contato com os índios, assim como hoje a população brasileira
cultiva a alimentação indígena, os europeus naquele período usufruíram desses pratos.
"Para as necessidades de alimentação foram-se cultivando de norte a sul, através
dos primeiros séculos coloniais, quase que as mesmas plantas indígenas ou
importadas. Na farinha de mandioca fixou-se a base do nosso sistema de
alimentação. Além da farinha de mandioca cultivou-se o milho, e por toda parte
tornou-se quase a mesma mesa colonial, com especializações regionais apenas de
frutas e verduras, dando-lhe mais cor ou sabor local em certos pontos a maior
influência indígena, noutros, um vivo colorido exótico a maior proximidade da
África e em Pernambuco, por ser o porto mais perto da Europa, conservando-se
como equilíbrio entre as três influências, a indígena, a africana e a portuguesa."
678
Mas ao contrário do que se pensa a sociedade colonial não era tão bem
alimentada, como se pode imaginar. Os colonizadores poderiam ter no seu país uma
culinária até mesmo sofisticada, mais chegando ao Brasil Colônia teve que habituar-se a
um local no qual prevalecia o modo de produção da monocultura, pouco favorável a
outras plantações a partir de sua consolidação em meados do século XVII.
“Na formação da nossa sociedade, o mau regime alimentar decorrente da
monocultura, por lado, e por outro da inadaptação ao clima, agiu sobre o
desenvolvimento físico e sobre a eficiência econômica do Brasileiro no mesmo
mau sentido do clima deprimente e do solo quimicamente pobre. A mesma
economia latifundiária e escravocrata que tornou possível o desenvolvimento
econômico do Brasil, sua relativa estabilidade em contraste com as turbulências
nos países vizinhos, envenenou-se e perverteu-o nas suas fontes de nutrição e de
vida. 679
677
678
679
FREYRE, Gilberto. op. cit. p. 155
FREYRE, Gilberto. op. cit. p. 68
FREYRE, Gilberto. op. cit. p. 70
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A falta de uma alimentação variada, (com exceção do planalto paulista, que tendo
um solo pouco propício ao cultivo da cana, desenvolveu uma tendência para a
policultura), fez com que os portugueses mandassem buscar em Portugal e das ilhas,
carne, cereais e frutos secos, que quando chegavam no país já se encontrava em péssimo
estado de conservação, com pouca qualidade nutritiva, o que resultava em doenças no
sistema digestivo, muito comum ao período colonial.
Não somente era péssima e escassa a alimentação nos engenhos, mas também nas
cidades. Freyre observa que os próprios padres tinham que cultivar o trigo, em clima e
solo nada favorável a este cultivo, a fim de preparar as hóstias usadas no ritual das
missas. Quando era preciso comprar algum ingrediente típico da culinária europeia
dificilmente encontrava-se nos lugares de venda, muitas vezes "tendo que recorrer às
casas particulares dos ricos."
"Todos sustentam-se mediocremente ainda que com trabalho por causas valerem
muito caras, e três dobro do que em Portugal. Da carne de vaca informa não ser
gorda, "não muito gorda por não ser a terra fértil de pastos. E quanto a legumes,
"da terra há muito poucos."... “Alguns ricos comem pão e farinha de trigo de
Portugal, máxime em Pernambuco e Bahia, e de Portugal também lhes vem
vinho, azeite, vinagre, azeitona, queijo, conserva e outras coisas de comer.” 680
No tocante a esta situação, restava aos colonos viverem o "personagem do Senhor
de terras rico e poderoso". Em certas datas festivas costumavam demonstrar uma
opulência que na vida cotidiana não podiam vivenciá-la - com fartura -, para não
perderem a pose de "donos do poder", interpretavam com as suas famílias uma prática
cotidiana de luxo esplêndido, mas totalmente falso.
"(...) mesmo os mais ricos e honrosos e os missionários de pé descalço, a
maneira dos índios, costumes que parece ter-se prolongado ao século XVII e os
próprios fidalgos olindenses - os tais dos leitos de seda para a hospedagem dos
padres visitadores e dos talheres de prata para os banquetes de dia de festa. Seus
tecidos finos seriam talvez para as grandes ocasiões... Parece igualmente ter
prevalecido entre nossos fidalgos de garfo de prata... Para inglês ver (mas inglês
raramente se deixa iludir por aparências douradas ou prateadas) o gosto de comer
regularmente com a mão. Nem esqueçamos este formidável contraste nos
senhores de engenho, a cavalo grandes fidalgos de estribo de prata, mas em casa
uns franciscanos, descalços, de chambre de chita e as vezes só de ceroulas.
Quanto às grandes damas coloniais, ricas sedas, e um luxo de teteias, e joias na
igreja, mas na intimidade, de cabeção, saia de baixo, chinelo sem meias..." 681
680
681
Ibid Apud. cit. p. 76
FREYRE, Gilberto. op. Apud. cit. p. 75
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Gilberto Freyre faz um elogio à cultura africana, para ele sua inclusão irá
aprimorar o paladar do europeu e do indígena com a experiência de uma culinária
saudável e facilmente adaptável ao clima do nordeste brasileiro. Diz ele que assim como
os colonos "viviam" economicamente à custa dos africanos, assim também foi o seu
sistema alimentar.
Dentre todas as culinárias, dirá Freyre, foi na africana que colonos e escravos
(nativos ou não), encontraram maior resistência. Ele propõe que não era o sistema
alimentício indígena que era insuficiente e de pouca qualidade, mas que os africanos
tinham uma cultura alimentar diferente da que existia aqui, alem disso, ela era bem mais
forte e sadia, cujas características favoreciam o trabalho escravo, árduo e contínuo.
Neste contexto, a cultura alimentar brasileira, em especial, a nordestina terá nesse
modelo de culinária sua base formadora.
"Cremos poder-se afirmar que a formação do brasileiro - considerada sob o
ponto de vista da nutrição - a influência mais salutar tem sido a do africano, que
através dos valiosos alimentos, principalmente vegetais, que por seu intermédio
vieram-nos da áfrica, que através do seu regime alimentar, melhor equilibrado
do que a do branco - pelo menos aqui, durante a escravidão. Dizemos aqui, como
escravo, por que bem ou mal, os senhores de engenho tiveram no Brasil o seu
arremedo de teylorismo, procurando obter do escravo negro, comprado caro, o
máximo esforço útil e não simplesmente o máximo de rendimento." 682
Diferente da organização da cozinha dos indígenas, na sociedade escravocrata,
não só as mulheres preparavam as comidas, - nas palavras de Gilberto Freyre-, também
"alguns negros incapazes de serviço bruto, quase sempre amaricados." Os escravos
responsáveis pela cozinha, tinham certo status, eram tratados com mimos, era costume
serem saudados pelos convidados com vivas nos jantares burgueses e quando muito
bons cozinheiros podiam receber dos seus donos carta de alforria.
Para Freyre, os principais centros onde predomina a alimentação afro-brasileira
são, Bahia, Pernambuco e Maranhão.
São vários os alimentos de origem africana, doces, quitutes, bolos, feijoadas, pão,
banana, mocotós, vatapás, acaçás, abarás, arroz de coco, feijão de coco, angus e vários
outros, além de alguns temperos como a pimenta malagueta, o azeite de dendê, e alguns
vegetais.
682
FREYRE, Gilberto. op. cit. p. 80
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Desta forma, os suculentos e deliciosos pratos afro-brasileiros passaram a
alimentar o colono no seu dia a dia. Contudo, por mais que a alimentação do
colonizador fosse preparada pelas mãos de seus escravos africanos nunca foi totalmente
igual à servida nas senzalas. A comida da casa-grande exercia também a função de
ostentação do poder, uma maneira de demarcar a relação entre patrão e trabalhador
(escravo) na qual o colono necessitava que fosse profundamente diferenciada. Essa
diferença aparecia, geralmente, nos alimentos servidos nos grandes jantares promovidos
pelos senhores, muitas comidas que no Brasil não se encontrava com facilidade, que só
eram vistas em jantares oferecidos para a burguesia a fim de mostrar poder e luxo.
"Pelos grandes jantares e banquetes não se há de fazer ideia exata da alimentação
entre os grandes proprietários, muito menos da comum, entre o grosso dos
moradores... Um jantar de dia de festa com pudim de ameixa, carne de porco,
galinha, toucinho, bife, carne de carneiro, peru assado, molho grosso, bolos,
pastéis, queijos, etc. (todo excesso de proteína animal - o professor Percy
Goldthwait Stiles, de Harvard, observa muito sensatamente que semelhante
fartura talvez fosse típica do regime alimentar entre os colonos da Nova
Inglaterra, do ordinário, do comum de todo dia... O que parece poder aplicar-se,
com literal exatidão, os banquetes coloniais no Brasil intermeados de certa muita
parcimônia alimentar, quando não pelos jejuns e pelas abstinências mandadas
observar a santa igreja..." 683
Para o autor em questão, a chegada dos europeus representou a distribuição das
camadas sociais separadas economicamente por diferenças abismais, e uma mistura
cultural que também se manifesta de forma característica no Brasil. São comuns na
culinária brasileira os pratos herdados dos africanos, indígenas e europeus que
misturados deram origem a pratos só existentes no Brasil, como o munguzá salgado da
culinária sertaneja nordestina, uma mistura de feijão mulatinho, milho e todos os demais
ingredientes da feijoada.
Para Freyre, enfim, a culinária nordestina seria um reflexo desse contato entre
culturas diversas - neste caso o contato entre os elementos europeus, indígenas e
africanos. No nordeste, não há mais a culinária da casa-grande, de senhores de terra e de
escravos separadamente e, ao menos no aspecto cultural, não permite diferenças sociais.
Neste aspecto as camadas sociais estão juntas em um amálgama tão profundo que não
poderíamos separá-las. No livro “Vida social no Brasil nos meados do século XIX” o
autor revela que, nos grandes jantares as iguarias servidas mesclava a cozinha europeia
a nativa, na mesa tornava-se comum encontrar “grandes pratos cheios de gorda carne de
683
FREYRE, Gilberto. op. cit. p.74
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porco com feijão preto, de pirão, de canjica, de pães doces, de bolos e de sobremesas
frias”, como os cremes de frutas nativas feitos com laranjas, maracujás, goiabas ou
mangas.
Todavia, um aspecto permanece o mesmo. O cardápio oferecido em grandes
festas, comuns, principalmente, nas altas classes sociais, tem a mesma intenção do
período colonial, demonstrar poder, riqueza e prestigio. Como no período colonial o que
comemos em dias festivos nem sempre é o que comemos em nosso cotidiano.
Obviamente, hoje a alimentação cotidiana não é de má qualidade como naquele período,
mas nos grandes eventos sociais há sempre um desejo de mostrar maior luxo,
principalmente, no excesso e desperdício de alimentos, sem levar em consideração que
uma grande parcela da população ainda passa fome.
No estudo do livro Casa-grande & Senzala, de Gilberto Freyre, pode-se, perceber,
um culto a diversidade. É certo que o autor faz um elogio ao cenário cultural da casa
grande, mas bem antes que a historiografia brasileira viesse a debater esses pontos,
Freyre descortinava a história do Brasil e difundia que uma cultura se funda de outra,
não existe cultura isolada, assim como não existe indivíduos totalmente isolados.
Com o presente trabalho pretende-se dar início ao registro das formas de preparo
da culinária nordestina e dos costumes que envolvem os ritos entorno da mesa, em
especial, o registro da culinária pernambucana. Para tanto, realizou-se um levantamento
bibliográfico e documental sobre o tema em debate. A pesquisa, que ora encontra-se em
fase de desenvolvimento, é uma realização do Núcleo de Pesquisa em História Cultural
e Geopolítica da FACHUSC.
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REFLEXÕES INICIAIS ACERCA DA MODA MEDIEVAL
Thaiana Gomes Vieira684
Orientadora: Prfª. Drª. Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva
Resumo:
O objetivo do trabalho não é realizar uma simples descrição linear sobre a história da
moda, mas pensar a moda como objeto representativo da história, pois se articula a
diversos fenômenos sociais. As obras sobre a história da moda, em geral, tratam de
diversos temas: as variações nas vestimentas, as caracterizações regionais, as restrições
para cada camada social, a indumentária como aparato e sua funcionalidade. Nessa
comunicação vamos tratar da moda em sua relação com a imagem e o poder.
Palavras-chave: Moda – Medieval – Vestimenta.
Abstract:
The objective of this work is not to make a simple linear description about fashion
history but to think fashion as a representative object of history because it articulates
with several social aspects. Works about fashion history in general deal with a bunch of
themes: vestment variations, local conditions, restrictions for each social stratum,
clothes as an accouterment and its functionality. In this work we are going to treat
fashion and its relationship with image and power.
Keywords: Fashion - Medieval - Clothes.
A moda é um tema atraente, de modo que o especialista, por vezes, acaba misturando-se
com o curioso, aquele que está informado de todas as tendências e o faz por interesse
próprio, sem objetivo acadêmico. O assunto história da moda está se difundindo cada
vez mais no Brasil, tanto no âmbito acadêmico quanto fora das universidades e centros
de pesquisa, o que podemos comprovar pela quantidade de livros traduzidos. Todavia,
os estudos mais aprofundados e teóricos permanecem restritos àqueles que possuem
contato com o que é produzido internacionalmente, ou seja, as pessoas que leem outro
idioma e/ou participam de eventos e conferências internacionais. Os principais estudos
sobre a questão se desenvolvem na Inglaterra, França e Estados Unidos, e igualmente,
sobre a moda nesses espaços ao longo do tempo. Fato é que há uma demora no
compartilhamento de ideias nesse tema, o que resulta em um afastamento entre os
especialistas e, consequentemente, na inércia no currículo dos cursos de moda no Brasil,
684
Graduanda – UFRJ; [email protected]
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onde as discussões e publicações recentes são pouco utilizadas por professores e
estudiosos do tema.
Os primeiros trabalhos acadêmicos datam por volta de 1860. Foram estudos
elaborados por arquivistas, como Quicherat, Demay e Enlart, que tinham como objetivo
investigar as circunstâncias e motivações da origem da moda e datar suas peças. Esse
tipo de pesquisa é ainda predominante nos dias atuais. De modo geral, a história do
costume não se beneficiou muito da renovação dos estudos históricos que ocorreram na
França a partir de 1930 com a Escola dos Annales.
Nosso foco central é a indumentária e as formas para o seu controle no medievo e
como observa Maria Giuseppina Muzzarelli:
Tem sido fraco, até aqui, o interesse dos historiadores, com algumas exceções,
pelas roupas e sociedade. Essa via não foi utilizada para se conhecerem melhor
as possibilidades, aspirações e gostos dos homens e das mulheres que viveram
entre a Idade Média e o começo da Idade Moderna. 685
Levi Pisetzky explica o incômodo de Muzzarelli sobre ao motivo de as
publicações sobre o tema serem poucas: “parece estar ligado à presença de um
preconceito, ainda bem radicado entre os historiadores, pelo qual se distingue uma
„história maior‟ e uma „história menor‟”. 686
Nessa comunicação temos como objetivo tratar da moda em sua relação com o
poder. Destaco que nossa pesquisa é voltada para a organização social na Península
Ibérica, desse modo, os aspectos serão abordados tendo esse espaço como referência.
Segundo Lipovetsky, “Só a partir do final da idade média é possível reconhecer a
ordem própria da moda, a moda como sistema, com suas metamorfoses incessantes,
seus movimentos bruscos, suas extravagâncias.”687 Desse modo, o que consideramos
comumente como moda surgiu no final da Idade Média, particularmente no século XIV,
quando apareceu um tipo de vestuário diferenciado para os dois sexos: curto e ajustado
para o homem, longo e justo para a mulher688. Lipovetsky acrescenta: “Se o lugar do
685
MUZZARELLI, M. G., Il guadaroba medivevale. Bolonha: Il Mulino, 1999. p.19.
686
Idem, p.15.
687
LIPOVETSKY, Gilles. O Império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. Tradução
de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.24.
688
Idem, p.31.
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aparecimento importante revolução do vestuário é controvertido, sabe-se em
compensação que muito depressa, entre 1340 e 1350, a inovação difundiu-se por toda a
Europa ocidental.”689 Foi a partir desse momento que as mudanças começaram,
intensificaram e as variações tornaram-se mais correntes.
A moda em seu sentido de variedade surge a partir das novas condições da
produção; a expansão demográfica; o aumento da riqueza coletiva; o desenvolvimento
da vida urbana, a intensificação do comércio à distância e o consequente contato entre
povos; o surgimento da burguesia; o aparecimento da noção de indivíduo,
especialmente a partir do século XII.
As transformações ocorriam em diversos âmbitos, e também no vestuário. O
desenvolvimento têxtil afetou diretamente a habitação e o traje, transformando-os. Além
disso, razões estéticas e psicológicas também justificam a transformação, por exemplo,
do vestuário dos séculos XII a XV, que acompanhou o desenvolvimento dos estilos
artísticos.690
O gosto pelo luxo confirma-se especialmente na segunda metade do século XIV e
durante o século XV. Era um momento em que a sociedade estava habituada às
epidemias mais intensas e devastadoras, o que conferia aos contemporâneos uma
necessidade de viver intensa e plenamente, afinal, acreditava-se que a morte os rondava
em todos os momentos. Desse modo, houve uma descrença nos valores acreditados, que
acabaram resultando em grandes heresias, uma valorização incipiente do individualismo
e a falência dos quadros sociais estabelecidos. O traje acompanhou as transformações,
as perturbações e inquietações dos espíritos, bem como refletiu as preocupações daquele
mundo que angustiava.
Segundo Daniel Roche,
A moda era, portanto, antes de tudo, um ponto de equilíbrio entre o coletivo e o
individual, uma maneira de marcar a hierarquia social, ao mesmo tempo fixa e
móvel. À medida que floresceram as distinções indumentárias, a fantasia de
689
Idem, p.32.
690
MARQUES, A.H. de Oliveira. A sociedade Medieval Portuguesa: aspectos da vida quotidiana. 6 ed.
Lisboa: A Esfera dos Livros, 2010. p. 47.
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alguns e o conformismo de outros desencadearam ação defensiva de parte de
instituições (a Igreja) ou grupos (a burguesia) que haviam ficado para trás. 691
A partir dessa definição vamos tratar das formas de controle exercidas sobre a
vestimenta, especialmente as leis suntuárias, os discursos moralizantes e os discursos
médicos.
Muzzarelli afirma que o estudo das leis suntuárias permite conhecer “a relação
entre aparências, situações políticas, sociais, econômicas e morais” 692. A autora ressalta
que as leis suntuárias foram concebidas “para fixar um código detalhado das
aparências”693.
As leis suntuárias eram promulgadas pelo monarca, direcionadas, sobretudo, às
camadas em ascensão e tinham como principal objetivo frear o consumo, reforçar a
hierarquia social e possibilitar a diferenciação social e de sexo a partir das vestes, em
resumo, uma identificação externa. Também se dirigiam às minorias, como judeus,
muçulmanos, leprosos, prostitutas, ordenando e regulamentando a utilização de
vestuário distintivo, para identificação rápida de religião e condição, para que os demais
pudessem adequar anteriormente seu comportamento e, principalmente, que evitassem
relações sexuais com esses indivíduos. Verifica-se, entretanto, que essas leis foram de
baixa eficácia e não impediram que os indivíduos consumissem o que não lhes era
permitido.
Além da normatização social, essas leis tinham uma justificativa econômica de
contenção de gastos, mas não foram eficazes na minimização do consumismo. Como
aponta Daniela Calanca, “o luxo e suas proibições desencadeiam análises a cerca das
normas suntuárias”, mas conclui apontando que “as leis suntuárias são, na história do
costume, um grande capítulo que ainda deve ser escrito”.694
Durante séculos, o traje de moda permaneceu um consumo luxuoso e prestigioso
confinado às classes nobres e o vestuário respeitava a hierarquia das condições. As leis
691
ROCHE, Daniel. A cultura das aparências: Uma história da indumentária (séculos XVII-XVIII).
Tradução de Assef Kfouri. São Paulo: Edita Senac São Paulo, 2007. p.61.
692
MUZZARELLI. Op. Cit., p.268.
693
Idem, p. 273.
694
CALANCA, Daniela. História social da moda. Tradução de Renato Ambrosio. São Paulo: Editora Senac
São Paulo, 2008. p. 49.
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suntuárias proibiam as camadas baixas de se vestirem como os nobres. Segundo Diana
Crane “...leis suntuárias especificavam os tipos de material e ornamento que podiam ser
usados por membros de diferentes classes sociais”.695 Fica claro, desde esse período
inicial, que a moda já revelava seus traços sociais e estéticos característicos, mas apenas
para grupos muito restritos que monopolizavam o poder de criação e iniciativa.
As riquezas circulavam nesse momento também nas mãos dos burgueses, que,
com bom padrão de vida, começaram a vestir-se como os nobres, utilizando joias e
tecidos preciosos. A burguesia se abriu para uma nova vida e, nela, graças ao
desenvolvimento do comércio, começou a deter o lucro e, consequentemente, a romper
com os valores da Igreja. Pela grande proximidade na área urbana, os burgueses
começaram a imitar os nobres e, logo que os burgueses copiavam, os nobres inventavam
algo novo e, assim, propiciaram a engrenagem da moda funcionar. Conforme
Lipovetsky: desse duplo movimento de imitação e distinção nasceu a mutabilidade da
moda. Foi nesse momento que na Itália, França e Espanha se multiplicaram as leis
suntuárias, tentando inicialmente proteger as indústrias locais e impedir o esbanjamento
de metais raros e preciosos. Mas, essas leis pretendiam também lembrar a cada
indivíduo de seu lugar na ordem hierárquica, proibindo o uso de determinadas roupas,
cores, tecidos, adornos, que eram reservadas exclusivamente à nobreza, sob pena de
pagamento de multas altíssimas.
Outra forma de controle das vestimentas eram os discursos morais produzidos
pela Igreja. A roupa adquire sentido multifuncional, além da função básica de proteger o
corpo das alternâncias do clima. As vestimentas e os adornos ganham sentido de
ostentação e sedução, passando a ser bens de alto custo e descartáveis. Por esse motivo,
são condenados pela Igreja, que era uma instituição que objetivava, dentre outros
aspectos regular os excessos. Além disso, pregadores e moralistas relacionaram o luxo e
as inovações das vestes ao diabo e seus seguidores, o que reafirmava a condenação pela
Igreja.
Andréia Frazão, por exemplo, ao estudar a trajetória dos santos Francisco e Clara,
apresenta que “Tal como era presente na hagiografia do século XII, os santos de Celano,
695
CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas. Tradução de Cristiana
Coimbra. 2 ed. São Paulo: Editora Senac, 2013. p.24.
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ao consagrarem suas vidas a Deus, também rejeitaram ao luxo, conforto e beleza das
vestes.”696
Francisco renunciou todos os seus bens após a conversão, inclusive suas roupas.
Aliás, o ato de despir-se em público é um dos mais significativos na conversão do santo,
pois é o momento em que ele renuncia aos seus bens, a sua atividade de mercador e as
suas roupas luxuosas. Após esse momento Francisco veste-se com uma túnica de tecido
grosseiro, um calção e uma corda, e as utiliza com a única função de proteger o copo. A
autora cita que as roupas eram ásperas para punição dos corpos e pobres para não serem
objeto de ambição, destacando que na obra de Celano é feita uma relação entre a
renúncia à moda e a pobreza697.
Em relação à Clara, a autora apresenta que esta desde que se interessou pelas
questões divinas, desprezou as vestimentas luxuosas, tão comuns ao seu status
econômico e social, e passou a utilizar um cilício sob os vestidos finos. Ainda apresenta
que após a conversão a santa passou a vestir apenas uma simples túnica e um rude
manto áspero, sem sapatos. Os cabelos tinham importância sexual nesse momento, de
modo que os longos cabelos eram visto como símbolos de beleza e sensualidade. Desse
modo, quando Clara corta os cabelos e os mantém curtos, renunciou à sensualidade e à
beleza, consequentemente ao poder de atrair homens para o matrimônio. Nessa
hagiografia, segundo a autora, “a renúncia à moda é uma forma de penitência, uma
maneira de conter os impulsos e desejos do corpo feminino.”698
Além desses exemplos, a autora aponta que a renúncia à moda passou a ser traço
fundamental da espiritualidade franciscana, baseada na opção pela pobreza individual e
coletiva. E como no momento as mulheres eram vistas como corruptoras dos homens
por sua sensualidade e a moda fora associada a esse potencial sedutor, o fato de Clara
renunciar às vestes luxuosas foi um importante elemento na construção da memória da
sua santidade.699 Destacamos que as hagiografias foram importantes veículos
696
SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da. Moda, santidade e gênero na obra hagiográfica de Tomás de
Celano. In: COSTA, Sandro Roberto da, SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da. e SILVA, Leila
Rodrigues da. (org.) CICLO A TRADIÇÃO MONÁSTICA E O FRANCISCANISMO. Rio de Janeiro, 2002.
Atas... Rio de Janeiro: Programa de Estudos Medievais, 2002. p. 232.
697
Idem, p. 233.
698
Idem, p. 236.
699
Idem, p. 237.
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moralizadores, que ensinavam à sociedade que para aproximar-se de Deus era
necessário, assim como os santos, renunciar à moda.
Outra forma de controle sobre a vestimenta foram os discursos médicos. Sob a
justificativa da saúde, foram elaborados discursos que avaliavam as peças do vestuário,
analisavam sua relação com a saúde, especialmente feminina, e as condenavam.
Entretanto, apontamos que nem sempre as condenações eram baseadas unicamente na
saúde, muitas tinham motivos morais e utilizavam a justificativa da saúde para
conquistar seus objetivos morais e condenar as peças. Nesse sentido, trataremos
especialmente do farthingale (aros), do corset e do chapine.
Os farthingales eram aros utilizados inicialmente sobre as saias, que tinham como
objetivo moldar a silhueta de modo a aparentar um quadril mais largo. Ressalto que a
função natural da mulher para os medievais era de reprodução, nesse caso, a aparência
de quadris largos, tão visados para a reprodução, era almejada no período. Os
farthingales divergiam de acordo com os espaços e ao longo do tempo, assim como seus
materiais e seus formatos.
A principal condenação sobre os farthingales passava pela saúde, mas continha
um aspecto moral. Acreditava-se que esses aros favoreciam as liberdades sexuais pelas
mulheres, o que era altamente condenado no período, pois beneficiam que essas
escondessem as consequências dessas relações, como possíveis doenças venéreas, como
a sífilis, ou gestações. Percebe-se uma concomitância entre motivos morais e
justificativas realmente saudáveis.
Os corsets possuem justificativas morais também, mas possuem mais motivos
realmente saudáveis. Os corsets também diferiram ao longo do tempo e, no mesmo
momento, nos diversos espaços. Os primeiros corsets, como consideramos hoje,
surgiram no século XVI; antes desse momento temos os considerados “ancestrais do
corset”. Um deles era a cota, uma túnica com cordões; o outro era conhecido como
bliaud, uma espécie de corpete amarrado atrás ou nas laterais, que apertava o busto
como uma couraça e era costurado a uma saia plissada; o sorquerie era uma cota muito
justa também conhecida como guarda-corpo ou corpete; e havia ainda o surcot, um
colete que se vestia por cima do vestido que posteriormente era amarrado. No final da
Idade Média, em torno do século XV, durante o ducado da Borgonha, é que as mulheres
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nobres passaram a usar um largo cinto sob o busto que, além de sustentar os seios,
faziam com que eles parecessem mais volumosos. No período esses modelos eram
considerados sedutores. O objetivo da utilização da peça era de modelação do corpo, em
função de uma valorização da verticalidade, pois o corset atenua o que há em demasia,
contorna o corpo valorizando o seio, e, ao diminuir a cintura, aparenta um alargamento
do quadril.
A peça possuiu alguns defensores, que o fizeram sob justificativa de repouso da
parte superior do corpo (como um encosto de cadeira), que melhoraria a postura,
proteção às glândulas mamárias que ficam comumente expostas a esbarrões e abalos
perigosos e apoio dos músculos abdominais. Entretanto o grupo dos condenadores é
maior e com mais justificativas. As principais são a deformação dos pulmões, a
possibilidade de causar enfisema vesicular, hipertrofia cardíaca e o entravamento das
funções digestivas. Além disso, o útero, órgão considerado flutuante, é “recalcado” pelo
intestino e incessantemente deslocado, o que afetaria diretamente a reprodução. Para ser
inofensivo o corset deveria aumentar seu diâmetro a um largo cinto, apenas para
suportar as peças do vestuário, de modo que deveria apenas sustentar e não comprimir,
ser flexível e elástico para que os órgãos que circundava tivessem livre funcionamento.
Evidenciamos que mesmo aqueles que defendiam o uso da peça, o faziam caso não
fosse muito apertado. Em resumo, o corset era aceito quando respeitadas suas condições
higiênicas e de saúde, e expressamente rejeitado quando intermeado por barbatanas e
lâminas metálicas constituindo corpo rígido e usado muito apertado, pois acarretava
múltiplas alterações orgânicas e funcionais.700
Os chapines eram sapatos de salto utilizados desde a Roma antiga, para afastar o
pé da umidade do solo e para ostentar altura maior que a real.701 Na Idade Média os
chapines eram usados sob as mesmas justificativas e ainda como distinção social, pois
era um artigo de luxo.702 Desse modo as alturas variavam; eram utilizados
majoritariamente chapines de 10 ou 13 cm, mas há registros de peças de 52 e 77 cm. Os
chapines eram feitos de camadas de cortiça e forrado com veludo, tecido ou couro e
700
Cf. PÊGAS, Belmiro. Os inconvenientes do espartilho. Porto: Officinas de Impressão Estereotypia e
Photogravura da Typographia Central, 1903.
701
DANVILA, Francisco. Los chapines em España. Boletín de la Real Academia de la Historia, Madrid, t.
12, p. 330 – 344, 1888. p.330.
702
Idem, p.333.
370
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adornado com prata, outro ou pedrarias.703 Há referências de peças feitas de madeira,
mas dificultavam demasiadamente o andar feminino.
Salientamos que os chapines eram indicadores sociais, pois a altura de uma pessoa
era considerada proporcional ao poder na sociedade (antes indicado pelo comprimento
dos bicos). As mulheres de camadas baixas da sociedade utilizavam os chapines, mas
apenas para proteger os pés e sua estrutura era muito simples.704 Ainda, eram, em alguns
lugares, indicadores de matrimônio, de modo que somente as mulheres casadas
utilizavam. Ressaltamos que a peça mesmo sob as saias não passava despercebida, pois
a utilização dos chapines resultava em um andar caricato, de modo geral bastante
dificultado, como as referências a damas que necessitam de duas criadas para caminhar
com relativa segurança permite concluir. As principais condenações eram feitas sob
justificativa de esterilidade e aborto, afinal a dificuldade de caminhar favorecia a queda
e consequentemente os abortos e dificultavam a reprodução. Por esse motivo a peça foi
censurada inclusive por bispos nos séculos XV e XVI.
Em resumo, no âmbito da saúde, os controles da vestimenta tem sua justificativa
no fato de que as peças alteravam os corpos, nos casos abordados, femininos, tanto na
aparência (as mulheres parecem mais altas, mais magras ou com quadris mais largos)
quanto no seu funcionamento. Desse modo, fica claro que os corpos estão, nesse
momento, em função da moda e não apenas voltados para sua função “natural”. A moda
acabava alterando os corpos e os comportamentos, sendo extremamente inconveniente à
função considerada como natural da mulher naquela sociedade e por esse motivo alvo
de controle por diversos setores.
Concluímos que compreender as restrições e condenações em relação à moda
possibilita conhecer os significados dados pelos distintos grupos às práticas sociais. Por
meio das normatizações podemos perceber uma tentativa de padronização das
vestimentas e adornos como forma de controle social. Desse modo, podemos sublinhar
que a relação é estreita entre aparências, situações políticas, sociais, econômicas e
morais. As mudanças na escolha de vestuário podem apresentar muitos aspectos e
transformações das sociedades. As roupas acabam criando comportamentos, alterando
703
Idem, p.336.
704
Idem, p.338.
371
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corpos, impondo identidades sociais e permitindo que os indivíduos afirmem essa
identidade social, daí a preocupação de fazê-las alvo do poder.
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O ESTADO PORTUGUÊS NA MODERNIDADE: TENSÕES E RELAÇÕES DE
PODER ENTRE A METRÓPOLE PORTUGUESA E A COLÔNIA
BRASILEIRA
Thaís Silva Félix Dias705
Orientador: Marcos Guimarães Sanches
Resumo:
Financiada pelo Programa de Iniciação Científica da Universidade Gama Filho
(PIBIC/UGF), a pesquisa busca analisar as relações de poder entre a metrópole
portuguesa e sua colônia brasileira, na segunda metade do século XVI, representadas na
relação entre o Governo-Geral, sob a jurisdição de Tomé de Souza, e a Capitania de
Pernambuco, administrada por Duarte Coelho, buscando perceber como as matrizes
políticas e sociais do reino português, no início da era moderna, foram apresentadas,
adaptadas e desenvolvidas no processo de colonização brasileira.
Palavras-Chaves: Estado Moderno - Relações de Poder – Brasil Colonial
Abstract:
Funded by the Scientific Initiation Program of the University Gama Filho (PIBIC /
UGF), the research seeks to analyze the power relations between the Portuguese
metropolis and its Brazilian colony in the second half of the sixteenth century,
represented the relationship between the Government-General under the jurisdiction of
Tomé de Souza, and the Captaincy of Pernambuco, administered by Duarte Coelho,
seeking to realize as the headquarters of the political and social realm Portuguese in the
early modern era, were presented, adapted and developed in the process of colonization
of Brazil.
Keywords: Modern State - Power Relations - Colonial Brazil
O presente artigo é um desdobramento de minha pesquisa financiada pelo Programa de
Iniciação Científica da Universidade Gama Filho (PIBIC/UGF), que esteve em vigência
entre agosto de 2012 a julho de 2013, sendo orientada pelo professor Marcos Guimarães
Sanches. A pesquisa busca compreender o „poder‟ como agente e sujeito da sociedade
colonial a partir das relações de poder entre a instituição régia do Governo-Geral e a
instituição das Capitanias. E, fazendo uso de um diálogo entre os campos da História
705
Graduanda - Universidade Gama Filho; Email: [email protected]; Tel:
02184321568/02139797994; Endereço: Rua Jacaúna, 51 fundos, casa 01 – Piedade, Rio de Janeiro/
RJ
373
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Política e da História Social, propomos trabalhar com três conceitos, a saber, Estado
Moderno, Instituição e Poder.
Quando nos referimos a Estado é importante salientar a polissemia do conceito, na
medida em que devemos compreender a particularidade de seu uso mediante ao
contexto e recorte temporal-espacial escolhido.706
Outro ponto que devemos mencionar é que o Estado e sua aplicação variam de
como o caracterizamos e que tal vocábulo não é homogêneo. 707 Daí o fato de termos
adjetivos sendo utilizados junto com o substantivo (que por si só não se explica) Estado Feudal, Moderno, Absoluto.
Quando estudamos o Estado, o atrelamos a política, que por sua vez é atrelada ao
conceito de poder. Porém, quando fazemos isso buscamos estudar o Estado a partir de
sua relação para com as outras instituições e entre si. O que queremos dizer é que o
Estado não é só um ordenamento jurídico (só baseado em leis que regulem as relações
entre governantes e governados), ele não pode ser dissociado da sociedade e das
relações sociais existentes.
É comum aplicar o conceito de Estado Absolutista, originado no século XVIII, ao
século XVI. Porém, em primeiro lugar, esta configuração de Estado não passou, em
muitos casos, de tentativas; em segundo, essa construção tardia do conceito visava
desqualificar e homogeneizar tudo que é anterior à Revolução Francesa (marco do fim
do Antigo Regime), o que é um erro, pois não respeitava as particularidades
pertinentes/atreladas ao conceito.
A palavra centralização está exposta pela historiografia política como negação dos
poderes periféricos708, porém o centro não nega a existência da periferia. A legitimação
do monarca não se dá em detrimento dos demais setores sociais ou instituições. É a
706
DIDIEU, Jean Pierre. Procesos y redes. La historia de las instituciones administrativas de La época
moderna, hoy. In: DIDIEU, Jean Pierre; CASTELLANO, Juan Luis; CORTEZO, María Victoria LópezCordón (Eds.) La Pluma, La Mitra y la Espada –Estudios de Historia Institucional em la Edad Moderna.
Madrd/Barcelona: Universidad de Burdeos - Marcial Pons. 2000. p.15
707
BOBBIO, Norberto. Estado. In: Enciclopédia Einaldi. Estado-Guerra. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da
Moeda, 1989, p.225
708
HESPANHA, Antônio Manuel. Para uma teoria da História Institucional do Antigo Regime. In.
HESPANHA, Antônio Manuel (org.). Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime: Coletânea de
textos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1984 p. 32
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perspectiva relacional, onde não há cabeça sem corpo e vice-versa (sociedade
corporativa – o poder central é apenas uma parte).
Determinada corrente historiográfica define que o fim da servidão, somado a
outros fatores, teria gerado um equilíbrio entre a nobreza e a aristocracia urbana 709.
Porém, o fim da servidão não significou o desaparecimento das relações feudais no
campo (isso só vem no século XVIII, com a Revolução Industrial).
O Estado Moderno seria, portanto um aparelho de dominação que se basearia na
lógica das relações feudais, a partir do fortalecimento da realeza 710. A exploração sobre
a classe rural, por exemplo, continuaria, mas sob uma articulação na qual a monarquia
tinha papel decisivo (a tributação, agora, ia para as mãos do rei).
O Estado não é o fim do poder. Este não está encarnado no Estado ou em outra
instituição. Antes, ele permeia todo o corpo social. Ele não atinge o indivíduo, antes,
passa pelo mesmo711, logo o poder não se esgota em sua materialidade.
E nem as próprias instituições se formam somente a partir do poder, antes temos
vários tipos de instituições, como por exemplo, a família. A função das instituições,
sendo assim, é plural e é da combinação dessa pluralidade que se origina a estrutura da
sociedade. As instituições são um conjunto de formas ou estruturas sociais elaboradas
pelo costume ou estabelecidas por uma ou mais leis712. Logo, não existe sociedade sem
instituições: a socialização (o ato de socializar) nasce da interdependência à formação
das instituições.
Com isso, podemos dizer que a relação “Estado x Instituições” ou “poder central x
poderes periféricos” sustenta o equilíbrio da estrutura política vigente. A existência de
demais instituições aquém do Estado se faz necessária para que o mesmo não rompa os
seus limites (o que Foucault chama de “contrato-opressão”)713, como a Igreja, a
nobreza, órgãos colegiais das cidades.
709
ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985, p. 17
710
Idem p. 18
711
FOUCAULT, Michel Microfísica do Poder. 25º edição. São Paulo: Graal, 2007.p. 183
712
PAPAGNO, Giuseppe. Instituições. In. Enciclopédia Einaudi: Direito-Classes. Lisboa: imprensa
Nacional. Casa da Moeda, 1999, p.160
713
FOUCAULT, Microfísica do Poder. Op.cit. pp.175-177
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Outra forma de se por limite ao poder do Estado são as próprias leis – direito
comum, a tradição, o direito natural; com a Lei de Sucessão ao Trono: o rei não podia
violar esta lei e quando houvesse algum problema que levasse a essa violação, se fazia
necessária a convocação das Cortes, como nos casos de D. João de Avis, D. Manuel e
Filipe II na União Ibérica.
Já abordamos que o poder não está encarnado em uma instituição, antes o
trabalhamos a partir da compreensão de redes sociais714 (interface com a sociedade).
Mas então, o que é poder? Poder é a capacidade de um indivíduo mandar, exercendo
isso através da dominação (que é a capacidade de você ser obedecido) e da disciplina
(que é o treino da obediência)715.
Há várias estratégias para se legitimar o poder, tais como atribuições divinas
(instituições, Estado e personagens do mesmo – reis); crença na racionalidade/na lei (o
poder racional) e até mesmo a crença nos dotes extraordinários do chefe (poder
carismático)716. E com isso lembramos que há várias formas de poder e de o exercer.
Quatro bons exemplos do papel do poder para legitimar a soberania são
apresentados por Foucault717:
- como mecanismo efetivo de poder (monarquia feudal);
- servir para constituir as grandes monarquias administrativas (período medievomoderno);
- séculos XVI e XVII: limitar os demais poderes e reforçar o poder real;
- modelo alternativo contra as monarquias administrativas absolutas ou
autoritárias, a partir do século XVIII.
Mediante a isso procuramos conduzir a pesquisa sob a ótica de um Estado
Moderno, onde o poder central não era exclusivo ou monopolista (antes o poder era
concentrado, porém partilhado, concedido pelo rei). Nessa instância, o aparelho de
714
Idem, p.184
715
Idem pp. 188-190
716
BOBBIO, Norberto. Estado. Op.cit pp. 239-244
717
FOUCAULT, Microfísica do Poder. Op.cit. p.187
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dominação718 em que se constituiu o Estado português se percebeu como essencial, um
pré-requisito, para a expansão marítima que o mesmo se propôs a realizar a partir do
século XV. A centralização do poder no reino era condição essencial para que o Estado
metropolitano realizasse seus feitos de expansionismo marítimo, econômico e colonial.
Após a centralização régia, o que se faz necessário é possuir elementos que contribuam
para o processo de fortalecimento deste poder, dentre os quais, e talvez o mais
importante na política expansionista, o processo de colonização719.
O Estado se sustentava no equilíbrio entre os poderes periféricos e central. O rei
tinha que governar de acordo com essa pluralidade de poderes, a fim de manter a
própria lógica que regia as relações políticas e a dominação naquela sociedade. Ou seja,
as existentes tensões entre as várias instâncias de poder não eram necessariamente
desestabilizadoras, pois de certa forma agiam na manutenção da estrutura política e
social. Tal lógica estatal foi apresentada à colônia brasileira, sendo, portanto,
fundamental a compreensão de como foi desenvolvida perante a estrutura estatal
colonial.
A ideia de corpo social (ou sociedade corporativa) foi bastante presente ao longo
da existência das monarquias na Europa Ocidental no início da era moderna, e em
Portugal não foi diferente. Nessa idéia, o poder era repartido entre os membros do
corpo, porém não concentrado em apenas um membro720, onde o poder central era
representado pela cabeça e os poderes periféricos pelos demais membros do corpo.
A função da cabeça neste corpo não era a de destruir a autonomia dos membros
restantes, mas sim de manter a harmonia e a ordem, orientando cada um a exercer a sua
função pelo bem-estar do corpo721.
Ora, a delegação de poderes feita pelo monarca D. João III, a partir de 1532 com
as capitanias hereditárias, não excluía o poder do soberano. Na verdade, os capitães
718
NOVAIS, Fernando A. O Brasil nos quadros do Antigo Sistema Colonial. In. MOTTA, Carlos Guilherme
(org.) Brasil em perspectiva. São Paulo: Difel, 1980 p. 49
719
Idem p. 50
720
HESPANHA, Antônio Manuel. História de Portugal Moderno político e institucional. Lisboa:
Universidade Aberta, 1995 p. 28.
721
HESPANHA, Antônio Manuel. História de Portugal Moderno político e institucional. Op. Cit. p.29
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donatários eram agentes em favor do reino português, tendo que obedecer às diretrizes
impostas por seu monarca.
Cosentino nos apresenta que “a tarefa de governar pertencia ao rei e aos seus
auxiliares que agiam como um centro coordenador, garantindo que cada parte do
aparelho político-administrativo desempenhasse suas funções e preservasse sua
autonomia funcional”722.
Essa centralização na administração da colônia brasileira se intensificou a partir
de 1548, como a implantação do Governo-Geral - a representação régia do poder do
monarca na colônia. As funções exercidas pelo governador geral faziam parte do
próprio ofício régio e possibilitaram ao rei governar sua colônia, mesmo à distância 723.
Jorge Couto percebe o Governo-Geral como uma estrutura política que buscou
ampliar e garantir o domínio português na América724. Porém, ao delegar a fiscalização
tributária das capitanias ao governador geral provocou um choque na relação com as
mesmas.
Na verdade, a orientação recebida pelo governador geral, Tomé de Souza, através
de seu Regimento (uma fonte a ser analisada durante a pesquisa) era a de organizar os
espaços e limites de atuação de cada jurisdição existente na colônia 725, fossem elas no
âmbito fiscal, administrativo, judicial ou militar.
Uma das capitanias que protestou junto ao rei sobre as intervenções impostas pelo
mesmo, a partir do Governo-Geral, foi a capitania de Pernambuco, na época sob
jurisdição de Duarte Coelho, uma das mais prósperas (a principal riqueza da capitania
era o açúcar, mas o donatário se preocupou em cultivar também algodão para
722
COSENTINO, Francisco Carlos. Governo-Geral do Estado do Brasil: governação, jurisdições e conflitos
(séculos XVI e XVII). In. FRAGOSO, João. GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Na Trama das Redes –
Política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Op. Cit. p 405
723
Idem p. 408
724
COUTO, Jorge. A construção do Brasil, ameríndios, portugueses e africanos, do início do povoamento a
finais dos quinhentos – 3º edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011 p. 254
725
COSENTINO, Francisco Carlos. Governo-Geral do Estado do Brasil: governação, jurisdições e conflitos
(séculos XVI e XVII). In. FRAGOSO, João. GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Na Trama das Redes –
Política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Op. Cit. p 412
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exportação e mantimentos726). A implantação do Governo-Geral, em 1548, restringiu os
direitos concedidos pela Coroa aos donatários e Duarte Coelho ficou preocupado em ter
que se submeter diretamente à autoridade da instituição máxima da colônia. As críticas
do donatário perante a mais nova instituição no Brasil Colonial estão expressas em suas
cartas remetidas ao rei (outras fontes a serem utilizadas).
Célia Freire analisa o perfil da capitania e percebe Duarte Coelho como um
letrado, diplomata, um fidalgo da Casa Real. Para ela as cartas do donatário ao monarca
apresentam suas críticas aos rumos que, por orientação das autoridades ou por
obstáculos inesperados, segue a colonização727. A autora busca analisar a posição de
Portugal na nova conjuntura apresentada pelo século XVI e o projeto de implantação
das capitanias e do Governo-Geral no Brasil.
A capitania de Pernambuco foi utilizada como ponto estratégico nas rotas EuropaAmérica do Sul e, assim como Manuel de Andrade observa, a boa administração de
Duarte Coelho contribuiu para um desenvolvimento proveitoso da capitania 728.
Para o autor, o motivo para as tensões entre Duarte Coelho e o Governo-Geral foi
que
a diminuição de certos privilégios concedidos pela Coroa nas cartas de doação
afetavam a agro-indústria açucareira. Atingiam, portanto, a mais importante
forma de aplicação de capitais, uma vez que anulavam as garantias dadas pelo
donatário e acertadas, no reino, com certos investidores [...] apesar de estar a
defender privilégios políticos e honrarias recebidas, não há dúvida que defende
(Duarte Coelho) também a base econômica e os investimentos de sua donataria,
que lhe pareciam ameaçados, e é sobretudo neste aspecto que insiste em sua
carta729.
Os protesto do donatário de Pernambuco ao monarca D. João III representaram a
indignação pela implantação de uma instituição de ofício superior que possuía
atribuições que suprimiam algumas das suas730. Ora, a formação política do império
726
COSENTINO, Francisco Carlos. Governo-Geral do Estado do Brasil: governação, jurisdições e conflitos
(séculos XVI e XVII). Op. Cit. p. 37
727
FONSECA, Célia Freire A.. A economia europeia e a colonização do Brasil (a experiência de Duarte
Coelho). Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura e IHGB, 1978 p. 20
728
ANDRADE, Manuel Correia de. Economia Pernambucana no século XVI. Recife: Ed.Universitária da
UFPE, 1998 p.20.
729
Idem pp. 238-239
730
COSENTINO, Francisco Carlos. Governadores Gerais do Estado do Brasil (séculos XVI-XVII) – Ofício,
regimentos, governação e trajetórias. São Paulo: Annablume: Belo Horizonte: Fapeming, 2009 p. 311
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português baseou-se no reino estabelecendo em suas colônias os mecanismos jurídicos e
administrativos já existentes na metrópole731, porém, houve obstáculos durante o
estabelecimento desses mecanismos, resultando na ação dos colonos em buscar nas
“rachaduras no sistema”732 formas de atingirem seus próprios objetivos. Portanto,
se por um lado, a estrutura de governo era altamente centralizada na metrópole
[...] de outro, equiparava-se a um contexto descentralizado [...] forças centrífugas
ligadas a múltiplos pontos de tomada de decisão e a falta de coordenação entre
administradores individuais e entre as agências administrativas enfraqueciam a
efetividade da ação do governo. Isso abria espaços para que os colonos
participassem da estrutura administrativa e da formulação ou implementação das
políticas da Coroa733.
Perante isso vemos que no processo de centralização régia na colônia o centro
exerceu controle sobre a periferia, porém não podemos negar que os obstáculos (não só
a distância, mas principalmente a dificuldade dos colonos em reconhecer a autoridade
régia, mesmo com a implantação do Governo-Geral) surgidos durante a administração
no Brasil foram empecilhos para o reino português.
731
FRAGOSO, João. GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Uma leitura
do Brasil Colonial, bases da materialidade e da governabilidade no império. Penélope – Revista de História
e Ciências Sociais, nº23, 2000 p. 76
732
Wood, Russel. Centros e periferias no mundo luso-brasileiro, 1500-1808. São Paulo: Revista Brasileira
de História, v. 18 nº 36, 1998 s/pág.
733
Idem
380
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MEMÓRIAS REPUBLICANAS DA CIDADE IMPERIAL (1930-1945):
MEMÓRIA COLETIVA E IDENTIDADE SOCIAL.
Thales Rocha de Freitas734
Resumo:
Em 1981 é atribuído à Petrópolis-RJ, pelo então Presidente da República João
Figueiredo, o título de “Cidade Imperial”, tornando evidente a presença do Império na
Identidade Social petropolitana. Isto leva-nos ao seguinte problema de pesquisa: Onde
está a República na Identidade Social petropolitana? Tal problema norteia a presente
pesquisa, que, por meio de fontes documentais e bibliográficas, busca estabelecer um
panorama historiográfico da cidade no período entre 1930-45 e, a partir daí, demonstrar
elementos Republicanos na Identidade Social petropolitana.
Palavras-Chave: Memória e Identidade, República, Estado Novo, Petrópolis-RJ,
Abstract:
In 1981 is attributed to Petrópolis-RJ, by the President of the Republic João Figueiredo,
the title of "Imperial City", pointing to the presence of the Empire in Social Identity
Petropolitan. This leads us to the following research question: Where is the Republic on
Social Identity Petropolitan? This problem guides this research, which, through
documentary sources and bibliography, historiography seeks to establish an overview of
the city in the period 1930-45 and, thereafter, to demonstrate elements Petropolitan
Republicans on Social Identity.
Keywords: Memory and Identity, Republic, Estado Novo, Petrópolis-RJ,
INTRODUÇÃO
Petrópolis localiza-se na região serrana do Estado do Rio de Janeiro. A região outrora
conhecida como Fazenda do Córrego Seco chama a atenção desde os tempos de D.
Pedro I devido a seu clima ameno e temperado735.
Já no tocante ao segundo Pedro, o Imperador D. Pedro II, sua presença na cidade é
sobremaneira pragmática, a ponto de constar inclusive no nome do município. Em pleno
centro da cidade há a Praça D. Pedro II e, em seu interior, a estatuária do Imperador
construída em 1911 para sua homenagem.
734
Graduando em Turismo pelo CEFET-RJ.. Bolsista de Iniciação científica (CNPq/CEFET-RJ) orientado
pela prof.º Drª Nara M. C. Santana.
735
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
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Reconhecendo a inerente presença imperial na identidade e memórias de
Petrópolis, o Presidente da República João Figueiredo atribui, por meio do decreto
nº85.849, de 27 de Março de 1881, o título de Cidade Imperial a Petrópolis.
A presença imperial nas memórias e identidade petropolitana, somada ao título
oficial de Cidade Imperial e ao material turístico que constantemente ressalta a natureza
imperial da cidade nos leva ao seguinte questionamento: Existe vida na cidade de Pedro
após o Império?
Quando propomos, neste artigo, a questão sobre a existência de vida em
Petrópolis após o Império, buscamos, na verdade, compreender onde está a República
nas memórias e identidade social petropolitana.
Para que tal análise possa ser realizada, o foco temporal recorrerá sobre o recorte
1930-1945. A escolha deste recorte, por sua vez, deve-se a uma conjuntura de fatores.
Entre tais fatores deve-se ressaltar, primeiramente, a questão da viabilidade. O
grande acervo de documentos e jornais, sobretudo o jornal A Tribuna de Petrópolis,
além de documentos pertencentes à Fundação Getúlio Vargas (FGV), entre outros,
permite que haja viabilidade ao se analisar questões referentes a este período.
Em segundo lugar, observa-se que, além da existência de acervo documental para
análise, também existe grande produção bibliográfica pertinente ao tema, propiciando
uma verificação crítica e fundamentada a respeito do recorte 1930-1945.
Em terceiro lugar e, talvez o mais incisivo motivo para escolha do recorte 19301945, observamos a escassez de produções bibliográficas referente às memórias
republicanas do período 1930-1945 em Petrópolis.
O ESTADO NOVO
Poucas fases da história do Brasil produziram um legado tão extenso e duradouro
como o Estado Novo. Em função das transformações ocorridas no país, o
período tornou-se referência obrigatória quando se trata de refletir sobre
estruturas, atores e instituições presentes no Brasil de hoje. 736
736
PANDOLFI, Dulce (organizadora). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio
Vargas, 1999. p. 9
382
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Assim como a proclamação da república em 1889 traz uma série de inovações e
uma brusca ruptura em relação ao período que a antecedia, assim também o período
1930-1945 em relação ao seu antecessor737. Certos termos utilizados para designar o
período ou fatos a eles concernentes já denunciam tal ruptura com a República Velha,
tais como “Revolução de 30”, “Estado Novo”, etc.
O período sucede um momento em que o Brasil, segundo Mendonça738, vivia uma
“intensa turbulência político-social”. O sentimento de marginalização causado em
diversas regiões brasileiras devido à contínua sucessão entre São Paulo e Minas Gerais
no poder político, além de movimentos como o tenentismo, eclodindo nas dificuldades
financeiras dos municípios, eram o suficiente para gerar o que muitos historiadores 739
denominaram a crise dos anos 20.
Capelato740 sugere que o período 1930-1945 seja dividido em dois para fins de
compreensão e análise, sendo eles: 1- 1930-1937, período que decorre da Revolução de
1930 onde, segundo a autora, evidenciava-se profunda indefinição sócio-política e o
governo movia-se em “terreno movediço”; 2- 1937-1945, período onde a sobressalência
estava na vigência do Estado Novo, novidades políticas entravam em vigor e a Segunda
Guerra Mundial inseria-se neste contexto como um divisor de águas, tornando o Estado
Novo insustentável ideologicamente.
Já D‟Araujo741 sugere que o período seja dividido em três para fins de análise: O
governo provisório (1930-1934), o governo constitucional (1934-1937) e o Estado
Novo (1937-1945)
Inerente à análise do período 1930-1945 é o conhecimento de Getúlio Vargas,
autoridade máxima do período em questão.
737
Guardadas as devidas proporções, uma vez que (CASTRO, 1999, p.54) “A República é um fato histórico
muito especial, porque juntamente com a Abolição da escravatura, demarca provavelmente o momento de
maior transformação social já vivido pelo país.”IN PANDOLFI, Dulce (organizadora) . Repensando o
Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas, 1999
738
In LINHARES, Maria Yedda (organizadora). História Geral do Brasil. 9 ed. Rio de Janeiro: Elsevier,
1990.
739
Dos quais podemos destacar Marieta de Moraes Ferreira, Sônia Regina de Mendonça, entre outros,
740
In FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O tempo do nacional-estatismo: do início
de 1930 ao apogeu do Estado Novo. 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. (O Brasil republicano;
v.2)
741
D‟RAUJO, Maria Celina. Getúlio Vargas. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2011.
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Nascido no Rio Grande do Sul, Vargas era advogado e desde a juventude
demonstrava interesse pela carreira política. Sobre sua carreira política até 1945,
observemos que
Iniciou sua vida política como deputado estadual (1909-1912; 1917-1921) pelo
Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), e na mesma legenda foi indicado e
eleito, em outubro de 1922, à Câmara dos Deputados e, em 1924, reeleito
deputado federal (1923-1926). Com a posse do presidente Washington Luís, em
15 de novembro de 1926, assumiu a pasta da Fazenda, permanecendo no cargo
até dezembro de 1927. Eleito presidente do Rio Grande do Sul, tomou posse em
25 de janeiro de 1928. Em agosto de 1929, formou-se a Aliança Liberal,
coligação oposicionista de âmbito nacional que lançou as candidaturas de
Getúlio Vargas e João Pessoa à presidência e vice-presidência da República,
respectivamente. Derrotado nas urnas pelo candidato paulista Júlio Prestes,
Vargas reassumiu o governo do Rio Grande do Sul, e articulou o movimento de
deposição do presidente Washington Luís, que culminaria com a Revolução de
1930. Após o exercício da junta governativa, Getúlio Vargas tomou posse como
chefe do governo provisório em 3 de novembro de 1930. Com a promulgação da
Constituição de 1934, foi eleito presidente da República pela Assembléia
Constituinte. Em 10 de novembro de 1937 anunciou a dissolução do Congresso e
outorgou nova Carta, dando início ao Estado Novo. Governou o país até ser
deposto, em 29 de outubro de 1945.742
MEMÓRIA COLETIVA E IDENTIDADE SOCIAL: POR UMA
COMPREENSÃO TEÓRICA.
“O emprego dos conceitos de descontinuidade, de ruptura, de limiar, de limite,
de série, de transformação, coloca, a qualquer análise histórica, não somente
questões de procedimento, mas também problemas teóricos”743.
Como observa-se nas palavras de Foucalt, os problemas teóricos são, além dos
de procedimento (metodológicos), inerentes a qualquer análise histórica que se
proponha executar.
O objetivo do presente artigo, buscar um maior conhecimento do período
compreendido entre 1930-1945 na Identidade Social de Petrópolis-RJ, só é possível a
partir da compreensão do que é identidade, em quais parâmetros ela pode ser
considerada “social”, o que a constitui, o que a promove e o que a perpetua.
742
ARQUIVO NACIONAL. Os Presidentes e a República. Deodoro da Fonseca a Dilma Rousseff. 5º ed. ver.
e ampl. Rio de janeiro: O arquivo, 2012.
743
FOUCALT, Michel. A arqueologia do saber. 7ºed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
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Para Castells, “Entende-se por identidade a fonte de significado e experiência de
um povo”744. Como trataremos especificamente da Identidade Social, vejamos que,
convergentemente a Castells, a análise de Pollak745 propõe: “(...) assimilamos aqui a
identidade social à imagem de si, para si e para os outros”.
Para Chartier746 “(...) a construção da identidade de cada indivíduo situa-se
sempre no cruzamento da representação que ele dá de si mesmo e da credibilidade
atribuída ou recusada pelos ouros a essa representação”, ressaltando, desta maneira, o
teor social de cada identidade.
Candau747 ressalta esta idéia ao propor que
Contra as concepções “primordialistas”, “substancialistas”, “essencialistas”,
“originárias”, “fixadoras”, etc. da Identidade, se observa um relativo consenso
entre os pesquisadores (antropólogos, sociólogos, filósofos) em admitir que ela, a
identidade, é uma construção social, de uma certa maneira sempre acontecendo
no quadro de uma relação dialógica com o Outro.
Compreendendo o teor do conceito de identidade social como proposto acima,
vejamos que tal conceito é indissociável ao conceito de memória.
Candau748, no tocante a relação memória-identidade, sugere que:
Não pode haver identidade sem memória, “uma espécie de conexão de si para si
próprio”, observa Quine (1977, p.138). Somente a memória é capaz de alimentar
o sentimento de nossa continuidade desde o dia que, como observa comicamente
Benedict Anderson (1996, p.2004), nós posamos nus sobre uma colcha ou uma
cama de criança para um fotógrafo, até aquele de nossa morte. Essência da
consciência (NICOLAS, 2003, p.152), a memória “dá sua dimensão ao tempo”
(ROSE, 1994, p.13) e assegura não apenas o sentimento de continuidade pessoal
mas também aquele de uma continuidade social.
Para Laborie749, a memória não só é elemento importantíssimo na constituição
da identidade como representa uma espécie de base, de fundamento para a existência da
identidade.
744
CASTELLS, Manuel. O poder da Identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 6º ed, v.2.
745
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol 5, n.10, 1992.
746
CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. 2ed .Algés (Portugal): Difel,
2002.
747 ²²
CANDAU, Joel. Bases antropológicas e expressões mundanas da busca patrimonial: memória, tradição e
identidade. Memória em Rede. Pelotas, v.1, n.1, jan/jul 2009.
385
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Le Goff750 ainda afirma que “A memória é um elemento essencial do que se
costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades
fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”.
Tzvetan Todorov, em seu estudo “Los abusos de la memoria”, propõe que751
En primer lugar, hay que señalar que la representación del pasado es constituitiva
no sólo de la identidad individual – la persona está hecha de sus propias imágens
acerca de sí mima – sino tamabién la identidade colectiva. Ahora bien, guste o
no, la mayoría de los seres humanos experimentan la necessidad de sentir su
pertenencia a un grupo: así es como encuentran el medio más inmediato de
obtener el reconocimiento de su existencia, indispensable para todos y cada uno.
Deste modo,compreende-se que a ciência da articulação entre os conceitos de
identidade social e memória752 propicia a concepção de que a identidade social
petropolitana pode ser analisada por meio de suas memórias (documentos históricos), e
lugares de memória.
Em relação a questão dos lugares de memória, propostos e amplamente
abordados por Pierre Nora753, analisaremos o Palácio Rio Negro, tratando-o como um
lugar de memória com a capacidade expor memórias proveitosas para observação da
identidade social petropolitana.
Exame feito à documentos históricos (jornais, revistas e material de divulgação
turística) da Sala Petrópolis, localizada na Biblioteca municipal de Petrópolis, permite
observar que o Palácio Rio Negro foi demasiadamente freqüentado por Getúlio Vargas,
749
LABORIE, Pierre. "Memória e opinião". In: Cecília Azevedo, Denise Rollemberg, Paulo Knauss, Maria
Fernanda Bicalho e Samantha Voz Quadrat (orgs). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro :
FGV Editora, 2009.
750
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 1990.
751
TODOROV, Tzvetan. Los Abusos de la Memória. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 2000. P.51.
752
Para Maurice Halbwachs (HALBWACHS, Maurice. A memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990),
toda memória é coletiva. Isto pois, ainda que ela se forme biologicamente no indivíduo uno e nele
primordialmente se manifeste, ela será composta de um conjunto de elementos captados pelos estímulos
sensoriais deste indivíduo, e estes elementos serão um conjunto de atores que, unidos, constituirão a memória
do indivíduo: sua memória individual (interior); contudo, sempre coletiva (constituída por diversos atores).
753
Para Pierre Nora (NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História,
nº 10, São Paulo: PUC-SP, 1993, p.12) “Os lugares da memória são, antes de tudo, restos. A forma onde
subsiste uma consciência comemorativa numa história que a chama, porque ela a ignora. É a desritualização
de nosso mundo que faz aparecer a noção. O que secreta, veste, estabelece, constrói, decreta, mantém pelo
artifício e pela vontade uma coletividade fundamentalmente envolvida em sua transformação e sua
renovação. Valorizando, por natureza, mais o novo do que o antigo, mais o jovem do que o velho, mais o
futuro do que o passado. Museus, arquivos, cemitérios e coleções, festas, aniversários, tratados, processos
verbais, monumentos, santuários, associações, são marcos testemunhas de uma outra era, das ilusões de
eternidade.”
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ícone, quiçá o maior deles, da República no período 1930-1945. A freqüência de Vargas
no Palácio permitiu que sua imagem-identidade se associasse sobremaneira a identidade
petropolitana, de modo que em alguns documentos históricos podemos observar
colocações comparando a presença de D.Pedro II em seu palácio de veraneio hoje
conhecido como Museu Imperial e a presença de Vargas e o Palácio Rio Negro.
Desta maneira, nítida fica a presença de memórias de Vargas e outros atores do
cenário republicano nacional no período 1930-45 no Palácio Rio Negro, fazendo com
que qualquer análise onde se busque verificar a república em Petrópolis-RJ tenha que se
deparar como este lugar de memórias.
AS MEMÓRIAS DA CIDADE IMPERIAL
Documentos históricos da cidade de Petrópolis não deixam dúvida em relação a
existência de uma série de memórias republicanas na cidade, tornando evidente a
existência de uma identidade petropolitana que não permanece inerte na imagem
imperial, mas permite diariamente uma disputa dicotômica entre suas memórias
imperiais e republicanas.
Tal disputa entre memórias pode ser observada em matérias jornalísticas, como a
vista nas páginas 6 e 7 do Jornal de Petrópolis, de 22 a 28 de setembro de 1996 754.
Segundo a esta matéria, o Palácio Rio Negro, palácio responsável por acolher os
Presidentes da República em suas visitas a Petrópolis, constitui a “Versão republicana
do Museu Imperial”. Tal comparação deve-se ao fato de que o Museu Imperial, durante
o Império, recebeu em seus verões a autoridade máxima do país, o Imperador D. Pedro
II. Tempos depois, já no período republicano, voltara a receber, também durante o
período do verão, a autoridade máxima do país, o presidente da república.
A mesma matéria aproxima a compreensão acima detalhada a seu leitor
ressaltando que
Desde sua construção, em 1889 (o mesmo ano da proclamação da república), até
os dias de hoje, a função do Palácio sempre foi a mesma: hospedar governantes
no verão. Aliás, Petrópolis sempre foi preferida pelos governantes – sejam eles
imperadores ou presidentes.
754
PITTA, Matheus. Presidente vai se hospedar no Rio Negro.Jornal de Petrópolis. De 22 a 28 de setembro
de 1996. P. 6-7.
387
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A presença do recorte republicano 1930-1945 é sobressalente nas memórias
petropolitanas, bem como a aproximação entre a cidade e o governante máximo do período,
Getúlio Vargas. Isto pode ser visto ao continuar a análise da edição de 22 a 28 de Setembro de
1996 do Jornal de Petrópolis, que propõe:
Getúlio Vargas foi talvez o presidente que mais gostava de Petrópolis: passou
quinze verões na cidade (1931 a 1945). Ele sempre gostou de passear pelas
trilhas e montanhas de Petrópolis – foi Getúlio quem criou o Parque Nacional da
Serra do órgãos, hoje um pouco abandonado.
Caderno Especial do Diário de Petrópolis, de Março de 1998755, aponta que “De
1930 a 1945 Getúlio Vargas ocupou o palácio passando nele em média três meses por
ano e transformando-o em cenário marcante do Estado Novo.”
Continuando a análise em documentos históricos, vemos a matéria intitulada
“Bonito, suntuoso e contador de histórias”, de José Luiz Campos.
Nesta matéria, publicada no jornal “Gazetinha semanal” 756, de 27 de agosto de
1999, o Palácio Rio Negro é abordado, analisando historicamente alguns marcos
sobressalentes deste patrimônio histórico. Nela, há um setor intitulado “Era Vargas”, o
qual busca descrever a presença de Getúlio Vargas no Palácio Rio Negro, bem como
sua identificação com a cidade de Petrópolis, o que pode ser visto em trecho extraída
integralmente do jornal:
Mas diretamente a vida do Palácio Rio Negro, está o presidente Getúlio Vargas.
Ele tinha um carinho especial pelo palácio e no seu veraneio por vezes chegava
aqui em dezembro e permanecia até abril. Vargas despachava no Rio Negro, e
aqui tomou decisões importatnes como a confecção de leis trabalhistas em seu
governo de Estado Novo.
A matéria continua, observando que
Baixinho, elegante e sempre trajando terno branco e chapéu gelô, Vargas
constumava caminhar a pé pela Koeler com as mãos para trás, acompanhado de
assessores e do segurança Gregório Fortunado, que era chamado de seu “anjo da
guarda”. Comumente Getúlio driblava a segurança conversando com as pessoas,
como os charreteiros e afagando as cabeças das crianças que o reconheciam.
Dava dinheiro aos mais humildes e por vezes crivava um passante (naturalmente
um trabalhador) sobre como vivia, como era sua família. Em recente depoimento
sobre o avô estadista, Celina Vargas do Amaral Peixoto, diretora do Museu
Nacional no Catete, revelou o acendrado amor, o grande carinho que Getúlio
Vargas tinha para com o Palácio Rio Negro. Todas às vezes que podia e com
755
Rio Negro: Palácio dos Presidentes aberto à visitação pública. In: Caderno Especial, Diário de Petrópolis.
Março de 1998.
756
CAMPOS, José Luiz. Bonito, suntuoso e contador de histórias. Gazetinha semanal. 27 de agosto de 1999.
P. 3.
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certeza em furtivas escapadas, vinha para o palácio no meio da semana e no seu
interior se deixava ficar isolado de tudo e de todos.
Segundo Michael Pollak (1889, p.3)757
Para que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta que eles nos
tragam seus testemunhos: é preciso também que ela não tenha deixado de
concordar com suas memórias e que haja suficientes pontos de contato entre ela
e as outras para que a lembrança que os outros nos trazem possa ser reconstruída
sobre uma base comum.
Segundo a observação de Pollak, a memória de um indivíduo não pode se
beneficiar, se interligar com as memórias de outro indivíduo se as memórias de ambos
não possuírem suficientes pontos em comum. Desta maneira, concluímos que para que a
cidade de Petrópolis associe sua identidade e memórias as memórias de Getúlio Vargas
(entre s quais as citadas acima), não basta que Getúlio se identifique com a cidade, mas
necessário é que também a cidade se identifique com Vargas.
Tal identificação entre o presidente em questão e o município serrano ficam
evidentes ao se analisar documentos como versões do jornal a Tribuna de Petrópolis do
período 1930-1945. Na capa da Tribuna de Petrópolis de 17 de Janeiro de 1937758, por
exemplo, observa-se a seguinte notícia: “O verão presidencial – ao que se diz, o sr.
Presidente da República pretende subir no próximo dia 20, fim de passar o verão nesta
cidade.”
Este breve fragmento propicia a observação do modo como a presença do
Presidente Getúlio Vargas se demonstrava deveras sobressalente, fazendo com que o
simples rumor de sua presença em Petrópolis ocupe parte da capa de um dos principais
jornais da cidade.
A república, particularmente o período 1930-1945, pulsa nas memórias
petropolitanas não apenas no que diz respeito ao Palácio Rio Negro e a presença de
Getúlio Vargas na cidade, mas também a agitação política que nela ocorreu neste
período, bem como a constante presença de notícias e matérias jornalísticas que
conectassem o município serrano ao contexto republicano nacional.
757
POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento e silêncio”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.2, n. 3,
1989. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/43.pdf
758
O verão Presidencial. Tribuna de Petrópolis. 17 de Janeiro de 1937. Ano XXXV. Número 14.
389
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Em 1937, a corrida para a sucessão Presidencial se tornou assunto freqüente no
jornal A Tribuna de Petrópolis. Na edição de 12 de janeiro de 1937, lê-se o seguinte: “O
Brasil e a Sucessão Presidencial. Effervesce, nos vários sectores da política, o animo
dos homens à medida que o tempo eflue, approximando a data da sucessão
presidencial.”
Edição anterior a esta, datada de 5 de janeiro de 1937, permite observar o
mesmo teor de identificação e aproximação com o cenário republicano nacional:
“A convenção Nacional” – Deverá reunir-se em Maio próximo a grande
Convenção Nacional para a escolha do candidato das principaes forças políticas
à presidência da República. Da Convenção farão parte senadores, deputados,
delegados especiaes, dos partidos não representados no legislativo federal e
delegados das diversas classes organizadas. Para coordenar, todos esses
elementos e prefazer a Convenção deverá ser nomeada, dentro de poucos dias,
uma grande commissão, composta de elementos representativos da maioria das
forças políticas.
Na edição de 8 de janeiro de 1937, pode-se observar a matéria intitulada
“Política Nacional”, aqui reproduzida conforme composição original:
A “Gazeta”, autorisado diário que se edita em São Paulo, inseriu hontem em
sua primeira pagina, com destaque a seguinte nota: “ O actual momento político
é de grande espectativa e as varias frentes vão se compondo para a luta
presidencial que se approxima. Não é mais segredo, para os que seguem a
marcha dos acontecimentos, que o P. Constitucionalista, que se empenha a fundo
pelo successo da candidatura de seu chefre supremo, conseguiu a sympathia das
chamadas Opposições Colligadas e leaderadas pelo sr. Octavio Mangabeira, sr
Arthur Bernardes e Flores da Cunha.(..)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presença de D. Pedro II, bem como elementos representativos do período Imperial
são inegáveis nas memórias e identidade social de Petrópolis. Entretanto, acreditar que
tal identidade restringe-se a este período histórico e crer que o título de “Cidade
Imperial”, atribuído em 1981 pelo presidente João Figueiredo à Petrópolis é uma
legenda das memórias petropolitanas seria um equívoco e, quiçá, uma busca de tornar
memórias republicanas em memórias subterrâneas.759
759
Ver POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento e silêncio”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.2, n.
3, 1989. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/43.pdf
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Mais que a recordação de um período de sua história, as memórias republicanas
petropolitanas permitem ver que a cidade não estagnou-se em sua identidade imperial,
mas continuou participando e, em alguns pontos, se destacando no período republicano.
Petrópolis não apenas vivenciou o período entre 1930-1945: a identificação entre
o Presidente Getúlio Vargas e o município, tendo por ele grande apreço, bem como a
aproximação entre Petrópolis e os acontecimentos republicanos ao seu redor, verificada
em fontes históricas e documentais, revelam uma cidade proeminente no cenário do
período acima citado.
Desta maneira, podemos concluir este estudo respondendo a questão
inicialmente feita: Sim, existe vida após o império.
391
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O CAMINHO PARA A LIBERDADE: ASCENSÃO DE “LIBERTOS” NA
CAPITAL DA PROVÍNCIA DO MARANHÃO (1830 – 1845)
Wallas Meireles Gouveia760
Resumo:
Proponho-me a analisar a ascensão socioeconômica de alguns libertos na capital
maranhense, no período de 1830 a 1845, ocorrida após sua emancipação e de diversas
formas. Utilizo nessa pesquisa, que se encontra em fase inicial, alguns testamentos e
inventários, a fim de analisar as relações sociais e econômicas em que estavam
envolvidos estes sujeitos. É a partir dessas relações (dividas, doações, compadrios,
compras e etc.) que traço minhas análises sobre a ascensão destes no pós-cativeiro.
Palavras-chave: Libertos – Ascensão – Emancipação – Testamentos – Inventários.
Abstract:
I propose to analyze the socioeconomic improvement of some freed the capital of
Maranhão, in the period from 1830 to 1845, occurred after their emancipation and in
various ways. Use in this research, which is at an early stage, some wills and inventories
in order to analyze the social and economic relations that were involved in these
subjects. It is from these relationships (dues, donations, skulduggery, shopping, etc.).
Trait that my analysis of the rise of these post-captivity.
Keywords: Freedmen - Ascension - Emancipation - Testaments - Inventories
INTRODUÇÃO
A exclusão e marginalização de certos grupos em determinada sociedade, não podem
ser analisadas como fenômenos atuais. Desde a antiguidade grupos “dominaram” outros
grupos, por interesses diversos, variando na forma e na finalidade, o que não implica
afirmar que o grupo “dominado” estaria fadado a tal condição até o fim de sua
existência. Inúmeras oram e são as formas encontradas pelos “dominados” para romper
com tal status quo: fugas, rebeliões, sabotagens, assassinatos e mesmo suicídios foram
comuns quando um grupo subjugou outro. Transpondo tal situação para uma realidade
mais próxima a nós, podemos analisar o contexto escravista brasileiro, mais
enfaticamente, o período oitocentista na capital da província do Maranhão, onde a elite
760
Graduando em História-Licenciatura na Universidade Estadual do Maranhão, bolsista de iniciação
científica (BIC UEMA) no edital 2013/2014; e-mail: [email protected] fone: (98) 81505963.
392
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local e mesmo as classes intermediárias associaram-se a uma lógica de trabalho escravo
que se enraizou na sociedade por mais de três séculos. Esta pesquisa tem pouco mais de
três meses e recentemente com o auxilio do professor Dr. José Henrique de Paula
Borralho761, fomos contemplados com uma bolsa de iniciação cientifica762 que começa a
vigorar no mês de outubro deste mesmo ano.
A capital maranhense do século XIX recebeu desde o período colonial um
contingente considerável de africanos, oriundos de inúmeras regiões do continente.
Estes sujeitos eram excluídos de todas as formas possíveis. “O homem preto,
mercadoria, objeto do tráfico, passa de mão em mão; comprado, vendido e revendido,
percorre circuitos balizados por todo um conjunto de relações, costumes, praxes,
regulamentos, armadilhas, que é preciso delimitar”
763
. Suas perspectivas de libertação
dependiam de uma enorme variedade de fatores, quando libertos deparavam-se com
novas barreiras para o exercício de sua liberdade e algumas outras bastante similares às
do tempo de cativeiro.
Na realidade histórica da época, poucas distinções separavam os escravos e os
livres, especialmente ao se tomar como polo comparativo a vivência dos
escravos de ganho. Embora não conhecessem os rigores do trabalho forçado, os
negros livres dividiam com os escravos moradias coletivas, compartilhavam
relações de parentesco, mesmo que informalmente estruturadas e disputavam
oportunidades de trabalho num mercado pouco generoso764
Mesmo em meio a tantas dificuldades, alguns libertos conseguiram melhorar suas
condições de vida, em alguns casos essa melhoria foi legada os filhos ou familiares e
em casos excepcionais alguns desses sujeitos conseguiram ascender socialmente de
forma mais incisiva, a ponto de possuírem escravos e levarem uma vida bastante
diferente da dos tempos de cativeiro. São esses sujeitos que conseguiram transpor as
barreiras do escravismo e consequentemente obtiveram mudanças significativas no seu
modo de vida que essa pesquisa começa a analisar. No referido recorte temporal já
localizei nove testamentos/inventários os quais a partir das transcrições tracei as
761
Professor Doutor do departamento de história e geografia da UEMA, do Programa de Pós-Graduação –
História, Ensino, Narrativas.
762
A bolsa é financiada pela Universidade, (BIC UEMA), o projeto de pesquisa é intitulado: “LIBERDADE”
DURANTE O REGIME ESCRAVISTA: MARGINALIZAÇÃO E INSERÇÃO SOCIAL DE LIBERTOS
EM SÃO LUÍS (1830-1888).
763
MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 3ª edição, 1990, pág. 23.
764
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos e vivências ladinas: escravos e forros em São
Paulo (1850-1880). São Paulo: Hucitech, 1998, pág. 53.
393
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análises iniciais dessa pesquisa. As práticas escravistas ocorriam de formas
diferenciadas, variando de região para região, dependendo do contexto histórico. Muito
já foi dito pela historiografia no que se refere a uma maior liberdade 765 dos escravos
urbanos quando comparados aos que viviam nas zonas rurais, consequentemente, os
escravos da cidade possuíam maiores chances de obtenção de suas manumissões, por
isso o eixo desse projeto é urbano, o fato de haverem maiores probabilidades favoráveis
aos escravos urbanos não diminui em hipótese alguma as dificuldades enfrentadas por
esses sujeitos. “Por ocasião da emancipação, esses escravos habituados à lavoura, não
encontrarão outras oportunidades senão aquelas mesmas a que sempre haviam estado
habituados. Nas cidades serão, durante muito tempo, marginais”.766
Ao pensar sobre as perspectivas de ascensão dos libertos durante o regime
escravista, por mais que se utilize fontes muitas vezes individuais (testamentos,
inventários, alforrias) a análise sobre estes é feita tomando-os como um grupo, uma
classe vide o conceito thompsiano em que a classe ocorre: “quando alguns homens,
como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a
identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e
geralmente se opõem) dos seus” 767.
A partir da análise desses sujeitos enquanto indivíduos vistos sob uma ótica
coletiva, em que partilhavam a vivência de situações de cativeiro e marginalização
geralmente semelhantes, possuíam anseios geralmente comuns (melhorias na sua
qualidade de vida e legar aos herdeiros uma situação melhor que a vivida por eles).
Pode-se enquadrar este estudo histórico como de caráter social, onde,
Sob o signo mais forte dos Annales, desenvolvia-se, desde a década de 1930,
uma “historia econômica e social”. Apesar da maior ênfase na historia
econômica, nos primeiros anos da revista, a “psicologia coletiva” e as hierarquias
e diferenciações sociais também encontravam-se presentes. A oposição a
historiografia rankiana e a definição do social se construía, assim, a partir de uma
pratica historiográfica que afirmava a prioridade dos fenômenos coletivos sobre
765
Refiro-me a liberdade de circulação.
766
COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 3ª. Ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998,
pág. 194.
767
THOMPSON, Edward Palmer. A Formação da Classe Operária Inglesa: A Árvore da Liberdade. Rio de
Janeiro: Paz e Terra. 1987, pág. 10
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os indivíduos e das tendências a longo prazo sobre os eventos na explicação
histórica, ou seja, que propunha a historia como ciência social. 768
O estudo sobre as articulações da luta dos libertos por seus interesses a partir de
perspectivas coletivas, tais como as irmandades e confrarias, os grupos de ajuda mútua,
as relações com amigos e parentes que ainda eram mantidos como escravos e outros
casos nos dão base para analisá-los enquanto classe, as articulações desses sujeitos para
a obtenção e consumação de suas liberdades, assim como a ascensão e inserção no
mundo livre são os objetivos de análise desta recente pesquisa.
O CAMINHO DO CATIVEIRO PARA A LIBERDADE
A sociedade maranhense oitocentista, assim como a sociedade brasileira desse período
encontravam-se num estado em que a escravidão enraizara-se em todos os tipos de
relações, o último século da escravidão no Brasil possuiu várias facetas as quais
impossibilitam qualquer análise do período como um continuum. O presente trabalho
baseia-se num período em que o tráfico transatlântico ainda era a principal forma de
renovação dos plantéis de escravos, alguns anos depois essa prática perderá espaço para
o tráfico interprovincial, vide as pressões inglesas para o fim do tráfico que começam
desde a “proibição” da importação de escravos pela lei de 7 de novembro de 1831, essas
leis só terão mais vigor no inicio da segunda metade do século, quando se intensificarão
as pressões inglesas.
A província do Maranhão recebeu um grande numero de africanos, quase sempre
estando entre as quatro primeiras províncias em numero de africanos desembarcados,
esses escravos vinham na maioria dos casos da Costa da Mina, de Angola e de
Moçambique, geralmente estes sujeitos aqui chegavam muito jovens, alguns ainda eram
crianças, muitos destes quando adultos declaravam não ter conhecido seus familiares
naturais na África. “Declaro que sou natural da Costa da Africa de Nação Cacheo, e que
vim para esta terra da idade de seis annos e por isso não conheci Pai, nem May”
769
.
Esses sujeitos que em terras maranhenses em especial no porto da capital da
província chegavam estavam lançados à própria sorte, suas vidas a partir do momento
768
CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e
metodologia, Rio de Janeiro: Campus, 1997, pág. 79.
769
Arquivo Histórico do Tribunal de Justiça do Maranhão, Testamento da preta forra Clara Joaquina, 12 de
outubro de 1831, livro 22, pág. 136.
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de desembarque tinham infinitas possibilidades de fim, a maioria desses fins foram
trágicos, porém alguns desses sujeitos conseguiram terminar num final relativamente
feliz. Depois de desembarcados esses sujeitos seriam comercializados como qualquer
mercadoria comum, seus destinos estavam nas mãos de seus possuidores. No mundo
escravista cativeiro e escravidão nem sempre eram situações antagônicas, havia
situações intermediárias entre os dois mundos, o deslocamento poderia ocorrer nos dois
sentidos, um escravo poderia se libertar (por compra ou por ganho) ou um ex-escravo
poderia ser reescravizado (já que as cartas de alforria eram revogáveis). Havia um
emaranhado de relações entre senhores e escravos, ambos os lados utilizavam-se das
armas que possuíam para tirar proveito da outra parte, os senhores exploravam ao
máximo a capacidade de gerar recursos dos escravos e estes buscavam boas relações
com seus senhores e com a sociedade ao seu redor, além de acumular o máximo de
capital para uma futura compra de alforria, seja do próprio escravo, seja de algum
familiar deste.
Havia finalmente o incentivo supremo da liberdade por meio da alforria. Como
veremos, isso não era exatamente uma “miragem”, pois as manumissões no
Brasil eram comuns e podiam der obtidas não só com bom comportamento, mas
também por compra; a alforria estava pois relacionada à capacidade do escravo
de acumular capital. Um cativo mulato ou crioulo com ocupação especializada
ou experiência em supervisão no engenho não só podia ter esperanças de
finalmente um dia tornar-se livre, mas também podia ter relativa certeza de
conseguir emprego após liberto. [...] Os senhores de engenho descobriram que a
melhor maneira de obter a desejada quantidade e qualidade do trabalho era com
um misto de punições e recompensas: os escravos perceberam que em tal sistema
havia oportunidades para melhorarem sua vida. 770
As situações que levaram escravos a conseguir comprar ou “ganhar” sua liberdade
foram as mais diversas, porém quase sempre estavam ligadas ao trabalho e a um bom
relacionamento com seus senhores e demais pessoas livres. Essas relações eram
mantidas durante a vida livre, os senhores mesmo em casos de venda faziam com que a
negociação meramente comercial e de interesse estritamente econômico parecesse aos
olhos do escravo uma expressão de benevolência do senhor, dessa forma mesmo livre o
agora ex-escravo continuava dependente de seu “ex-senhor”. Em alguns dos
testamentos e inventários que tive contato e que utilizo em minha pesquisa existem
pedidos de celebrações de missas para a alma de ex-senhores(as) já falecidos, tal fato
nos mostra que estes sujeitos até o leito de morte (quando “escreveram” seus
770
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial, São Paulo,
Companhia das Letras, 1995, págs. 141- 142.
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testamentos) arrastaram a relação de dependência e gratidão aos supostos concessores
de suas liberdades.
Manuela Carneiro da Cunha e Sidney Challoub já mostraram o quanto os
senhores se opunham a conceder ao escravo no código escrito o direito de
redimir-se do cativeiro mediante a apresentação de seu valor de mercado. Na
ótica escravista, qualquer direito desse tipo minaria a base do sistema de
domínio, ao restringir a vontade senhorial. Era necessário que a alforria pudesse
ser representada pelo senhor sempre como concessão ou dádiva, mesmo quando
a “graça” cruzava com dinheiro na outra mão 771.
O caminho para a vida em liberdade era marcado por essas relações permanências
e rupturas, porém isso não inviabilizava o surgimento de novas relações e mesmo da
ascensão social e econômica destes sujeitos, essas relações ocorriam com pessoas livres
e com os antigos companheiros e familiares que ainda encontravam-se no cativeiro.
Muitas famílias escravas vivenciaram um lento processo de libertações membro por
membro, até a consumação ou não de todos os membros. Alguns desses novos livres
buscavam relações com conjugues que já encontravam livres do cativeiro, nos
testamentos e inventários com que trabalho, pouquíssimos desses relacionamentos entre
libertos geraram filhos, geralmente os bens desses sujeitos eram deixados para afilhados
ou compadres, essas relações eram muito fortes na vida dos ex-escravos, pois muitas
vezes a ajuda mútua havia sido a razão para a obtenção das alforrias que quase nunca
partiam de anseios individuais.
Os libertos e a ascensão social e/ou econômica
Se considerarmos todo o processo para reconquista da vida em liberdade vivenciado
pelos africanos que vieram para ser escravizados no Brasil, a obtenção da alforria por si
só já consiste num processo de ascensão social, mesmo quando as mudanças na prática
eram muito pequenas e as barreiras a serem transpostas muito grandes. Na capital da
província do Maranhão, desde o século XVII, já havia a presença de escravos africanos,
porém a atividade escravista intensifica-se nos dois séculos seguintes. No período
oitocentista ludovicense772 a escravidão já era uma instituição que a todos atingia, a
posse de escravos era algo relativamente comum, era corriqueiro o fato de ex-escravos
possuírem escravos, a trajetória desses sujeitos me interessou, não somente os exescravos que possuíam escravos, mas os ex-escravos que conseguiram mudar seu
771
NOVAIS, Fernando A. História da vida privada do Brasil. Vol II, 1997, pág. 260.
772
Oriundo ou natural de São Luís do Maranhão.
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padrão de vida, encontrei cerca de 27 testamentos e inventários no Arquivo Histórico do
Tribunal de Justiça do Maranhão no recorte de 1809 a 1869, dos quais utilizarei um
terço em minha pesquisa que encontra-se em fase inicial.
Esses ex-escravos ou “pretos forros(as)” como consta em seus testamentos, só
pelo fato de conseguirem legar seus bens a seus herdeiros por meio de um Testamento e,
além disso, descrever todos os seus bens num Inventário, já demonstram que sua
ascensão social e econômica foi mais acentuada. Esses testamentos e inventários eram
feitos em cartórios e, geralmente pelo fato de não saberem ler e escrever, os forros ou
forras ditavam ao escrivão, que transcrevia suas falas Nos testamentos e inventários que
já transcrevi, fica nítido que esses sujeitos não estavam integralmente marginalizados,
pelo contrário, fica claro que estes sujeitos desenvolviam inúmeras relações sociais e
econômicas no mundo livre e no mundo cativo, muitas vezes agindo como
intermediadores.
Declaro que Francisco Cardozo de Miranda, e João Cardozo de Miranda, vindos
da ilha de Cabo verde, e que forão escravos do finado José Luiz dos Santos, me
são devedores athe hoje da quantia de sessenta mil reis, digo de sessenta mil
trezentos reis valor da quantia que eu lhe emprestei para as suas alforrias 773.
O trecho citado acima consta no testamento da preta forra Maria dos Santos das
Neves, também natural da ilha de Cabo Verde, no trecho fica claro que a forra auxiliou
emprestando uma alta quantia a dois escravos possivelmente irmãos para que estes
pudessem comprar sua liberdade, esse tipo de relação era muito comum, esse
sentimento de ajuda mútua talvez seja ainda mais intenso nos casos em que quem ajuda
e quem recebe o auxilio são oriundos da mesma localidade do continente africano como
no caso acima. Essa mesma preta forra tinha como seu testamenteiro um Primeiro
Tenente da Armada Nacional, de nome Joaquim Eugenio Avelino e a mesma também se
envolvia em negociações com pessoas forras e livres das classes intermediárias,
Declaro mais que a preta fôrra Camilla escrava que foi do Amorim, me he
devedora de seis pessas em renda de prata = Declaro que o Official de Justiça
Antonio Madeira de Matos me he devedor de vinte oito mil reis procedidos de
huma escrava que lhe vendi = Declaro que o alfferes de pedestre Edmundo de
Leal que eh Declarante de Rozario me he devedor de desesseis mil reis, resto de
maior quantia de huma obrigação minha que elle tem em seu poder = Declaro
que o preto fôrro Francisco de Barros me he devedor de dez mil reis = Declaro
que emprestei a Cafuza Maria Raimunda, escrava que foi de Dona Joana, huma
773
Arquivo Histórico do Tribunal de Justiça do Maranhão, Testamento da preta forra Maria dos Santos das
Neves, 20 de fevereiro de 1834, livro 25, p.102.
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volta de contas grossas com quatro duzias, tendo cada conta meia oitava, e todas
de Ouro774.
Este outro trecho do mesmo testamento demonstra as relações econômicas da
preta forra, que deveria ser comerciante, emprestava e vendia para forros, funcionários
públicos, um Oficial de Justiça. Nessa negociação fica claro que Maria dos Santos das
Neves possuía escravos e inclusive vendeu uma para o Oficial Dos testamentos que já
transcrevi este é o melhor exemplo de ascensão social e econômica, fica claro que
Neves estava articulada socialmente e que soube tirar proveito disso para melhorar sua
vida.
Outro testamento de um preto forro que possuíam menos posses que a forra citada
anteriormente nos mostra um exemplo de um ex-escravo casado e que possuía uma
escrava (mulatinha),
Declaro que sou Cazado com a preta forra Anna Thereza, e deste matrimonio
não tenho filhos = Declaro que não tenho herdeiro alguns forrados e por isso
posso adispor dos meus bens da maneira seguinte=Declaro que possuo uma área
de cazas na rua de Santa Rita desta cidade, huma Negrinha de nome Maria de
Nação Cassanga, cuja comprei ao Senhor Felippe Diaz Borges, para cuja compra
vendi de minha mulher o ouro que ella tinha 775.
Tal fato nos mostra que estes sujeitos não estavam totalmente marginalizados ou
distantes das instituições religiosas, em todos os testamentos que fotografei, há sempre
menção ao nome de Deus e da fé Católica, essa era uma forma de se aproximar com o
modelo “dominante”, os libertos e mesmo os escravos buscavam sempre uma
aproximação com o modo de vida dos seus ex-senhores e senhores respectivamente. Por
isso, mesmo sendo escravizados num passado próximo, muitos libertos possuíram
escravos, a posse de escravos era uma forma que? demonstrava que além de senhores de
si os “novos livres” agora eram senhores de outros, mesmo que esses outros fossem seus
compatriotas. O psiquiatra e escritor Frantz Fanon 776 pontua voltando-se para outro
contexto que, os dominados tendem a adotar a ideologia de seus dominadores,
basicamente era isso que acontecia, havia uma tendência dos ex-escravos buscarem o
ideal senhorial, sem se desvincular de seus antigos laços criados no cativeiro Enfim o
774
Idem
775
Arquivo Histórico do Tribunal de Justiça do Maranhão, Testamento do preto forro Luiz Antônio, primeiro
de agosto de 1834, livro 25, p.201.
776
Ver FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA, 2008.
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mundo dos libertos pairava entre as relações com o mundo novo de ascendência
senhorial e com o velho mundo de que estes haviam a pouco se libertado.
CONCLUSÃO
A presente pesquisa objetiva desvincular a figura de ex-escravos dos estereótipos de
marginais, ociosos e de dependentes de seus ex-senhores. Nesta pesquisa, que possui
poucos meses, busca-se mostrar esses sujeitos enquanto agentes, que conseguiram
ascender econômica e socialmente a ponto de mudarem de vida. Seria fascínio afirmar
que alguns desses sujeitos conseguiram exercer plenamente sua liberdade, mas é uma
realidade o fato de estes sujeitos estarem articulados dentro do mundo dominante e
levarem uma vida muitas vezes parecida com a de seus senhores, exceto por algumas
barreiras difíceis de transpor como a da cor Mesmo os ex-escravos mais ricos se auto
intitulavam e eram taxados como “pretos forros e pretas forras”. O caráter inicial da
pesquisa nos impossibilita de apresentar resultados definitivos, as análises aqui
apresentadas são análises iniciais, o contato com a documentação apenas começou e
algumas prerrogativas podem ser modificadas.
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