Para acabar de vez com a Biologia “científica”
José Manuel N. Azevedo
Departamento de Biologia
Universidade dos Açores
Comunicação apresentada ao II Congresso da Ordem dos Biólogos, Porto, Março 2005
Resumo
Na sua generalidade, as licenciaturas em Biologia estão centradas na aquisição de conhecimentos teóricos e vocacionadas
para a formação de investigadores. A principal preocupação dos professores é a investigação, e a responsabilidade pela
aprendizagem é colocada no aluno. Esta situação traduz-se na formação de profissionais com baixa empregabilidade.
Mudanças de fundo na preparação inicial dos biólogos têm sido dificultadas pelo contexto legislativo, quer no enquadramento
do ensino superior e do seu financiamento quer no estatuto da carreira docente. Mas também tem sido aparente a dificuldade
das universidades em liderar qualquer processo de reforma.
O presente processo de Bolonha fornece uma oportunidade única para mudar radicalmente o panorama do ensino superior da
Biologia, com reflexos importantes no papel do biólogo na sociedade. A Ordem deve por isso ter um papel interventor e
regulador, complementando e adaptando as directivas governamentais na matéria. Concretamente, sugiro que a Ordem deve
(i) advogar a criação de um primeiro ciclo de banda larga, e sugerir para ele descritores de conteúdos e de competências; (ii)
fixar descritores de competências para o segundo ciclo.
Depois de uma fase de crescimento acelerado e de massificação, o ensino superior da Biologia está
actualmente numa fase de regressão. A generalidade dos cursos está estruturada em duas vias
principais, “de ensino” e “científica”. Até recentemente, o mercado do ensino absorvia a maioria dos
licenciados, provenientes de qualquer uma das vias. A redução do número de alunos do secundário,
com a consequente redução do pessoal docente, veio cortar aquela que era a principal via de saídas
profissionais. Em consequência, muitas universidades reduziram ou eliminaram a “via de ensino”. As
vias “científicas”, por seu lado, mantiveram-se e proliferaram numa gama de designações que
compensam o que lhes falta em ligação à sociedade e ao mercado real de trabalho com o efeito
atractor que exercem sobre os estudantes.
Nestas vias “científicas” o ênfase é colocado na formação de investigadores. Paradoxalmente, as
principais estratégias pedagógicas são (i) aulas teóricas expositivas, centradas na memorização de
conhecimentos e (ii) aulas práticas em que os alunos executam protocolos pré-definidos.
Exactamente como esta formação de base se traduz em bons investigadores parece merecer pouca
reflexão.
Independentemente da qualidade dos investigadores formados, porém, o que está em causa é se o
país necessita de facto das centenas de investigadores que são formados anualmente nos cursos de
Biologia. Parece-me que apenas uma pequena percentagem desses licenciados terá alguma
colocação relacionada com a investigação ou com o ensino superior. Dos restantes, uma parte
acabará por encontrar colocação em áreas em que a sua formação de Biologia terá alguma
relevância, enquanto o percurso profissional dos restantes valorizará eventualmente as competências
genéricas relacionadas com a sua formação superior.
Perante este quadro, é patente a pouca preparação inicial dos biólogos para o mercado de trabalho,
sobretudo em comparação com os licenciados em áreas afins, que vão da Engenharia do Ambiente a
José Manuel N. Azevedo, Para acabar de vez com a Biologia “científica”
II Congresso da Ordem dos Biólogos, Porto, Março 2005
Farmácia, passando pela Agronomia e Engenharia Florestal. A indefinição profissional e a baixa
empregabilidade andam a par.
O que é preocupante é a incapacidade das universidades em alterarem o corrente estado de coisas,
como se pode constatar por exemplo do facto de terem estado até recentemente alheadas do
processo de Bolonha. Mesmo no momento presente, tem sido o Governo o principal motor da
mudança. Isto não significa que as questões não sejam sentidas e debatidas no meio académico.
Mas da constatação dos problemas pelos académicos, isolados ou em grupos, à implementação de
medidas concretas para os resolver vai um longo caminho em que o enquadramento e financiamento
do ensino superior e o estatuto da carreira docente surgem como obstáculos dificilmente
transponíveis.
É preciso encontrar um esquema de financiamento das universidades mais criativo que a simples
contagem de corpos. É preciso que as universidades adoptem uma gestão de pessoal e de recursos
moderna e eficaz, para serem algo mais que repartições públicas. É urgente um novo estatuto da
carreira docente, que recompense o mérito e flexibilize os percursos. Enquanto estas mudanças
(todas elas!) não ocorrerem temo que todas as alterações associadas ao processo de Bolonha sejam
apenas cosméticas. E o país terá perdido uma oportunidade histórica.
Enquanto se espera pela intervenção governamental, que é fundamental, há coisas que os biólogos
podem fazer, individualmente ou através da Ordem. É responsabilidade individual de cada docente
estar informado sobre as tendências do mercado de trabalho e alterar a sua prática docente em
conformidade. Deve ainda sensibilizar os seus colegas e os corpos dirigentes das suas universidades
para a reflexão sobre estas matérias, que é urgente, e para as reformas, que são inadiáveis. O
sistema actual favorece o egoísmo docente e está em manifesto contraste com a abordagem
centrada no aluno que é o paradigma da universidade do futuro.
A Ordem dos Biólogos tem, neste contexto, um papel fundamental. As questões da acreditação estão
em cima da mesa e impõem visões claras e informadas. O Grupo de Trabalho da área das Ciências
Exactas e Naturais vê como essencial a criação de um órgão de acreditação inicial dos cursos que
terá como funções, entre outras, a limitação do catálogo dos cursos de 1º ciclo e a definição dos
objectivos do cursos e das competências genéricas e específicas que eles pretendem proporcionar.
Parece-me que a representação da Ordem neste órgão é essencial, sem prejuízo de uma definição
independente dos perfis de competências dos biólogos. Numa perspectiva de mobilidade europeia e
de concretização do Espaço Europeu de Ensino Superior é essencial assegurar a formação em
Portugal de profissionais de nível internacional. A Ordem deve cultivar laços com as suas congéneres
europeias e acompanhar a evolução internacional das formações em Biologia, procurando formas de
adaptar essas realidades ao contexto nacional. Um organismo com uma posição intermédia entre o
mercado de trabalho, as universidades, o governo e a realidade europeia não se pode demitir das
suas responsabilidades.
Há muito mais na Biologia que a investigação científica. Os desafios do futuro próximo exigem um
esforço de todos no sentido de proporcionar às novas gerações de alunos a oportunidade de
construírem o seu próprio percurso, procurando o lugar na sociedade correspondente à sua vontade
e às suas inclinações. Que pode passar, obviamente, por uma carreira de investigação.
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