Distinção de gênero e design gráfico de embalagens de produtos
de higiene pessoal
Ana Paula França Carneiro da Silva
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Resumo
A distinção de gênero de produtos de higiene pessoal é uma estratégia bastante recorrente no
mercado brasileiro. Nesse contexto, o design gráfico das embalagens torna-se peça chave para a
identificação visual do público ao qual o produto deveria se destinar. Este trabalho apresenta análises
de embalagens do segmento, visando o entendimento de como atributos visuais contribuem para a
representação da distinção de gênero, restringindo ou não simbolicamente o consumo a um único
público. Para tanto, buscou-se analisar, ao lado de exemplares atuais, embalagens mais antigas,
especialmente veiculadas desde a década de 1920, tendo em vista a hipótese de que apesar das
significativas mudanças da posição da mulher na sociedade, o design gráfico de produtos destinados
ao público feminino e masculino demonstra certa continuidade. Desse modo, as configurações atuais
compartilham elementos formais e valores culturais vigentes pelo menos desde as primeiras décadas
do século XX.
Palavras-chave: Gênero; Design Gráfico; Embalagem; Higiene Pessoal.
1
Mestre em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, professora do curso
de pós-graduação em Cenografia da Universidade Tecnológica Federal do Paraná e professora dos
cursos de graduação em design da Universidade Positivo. E-mail: [email protected].
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Introdução
A existência de elementos essenciais determinando a relação entre indivíduos de sexos diferentes é
intensamente questionada desde os anos 1960. Com o advento dos movimentos sociais, as
vicissitudes dessa relação passaram a ser atribuídas a conjunturas sociais específicas e não a fatores
pretensamente irrefutáveis. Diante do avanço das reivindicações feministas, “a categoria ‘sexo’ foi
substituída pela categoria ‘gênero’ com o objetivo de sublinhar o caráter social, econômico e
especialmente político das diferenças entre homens e mulheres”. Segundo Joan Scott, a nova
categoria tornou-se útil para a análise histórica, podendo facilitar a criação de uma perspectiva
sintética que explique as continuidades e descontinuidades, abordando as desigualdades
persistentes, dando significado às relações de poder (SCOTT, 1990, p. 05-19). Em suma, há algum
tempo, discursos que sugerem como naturais distinções culturalmente construídas, tendo em vista a
manutenção da dominação masculina, são revogados. Contudo, estudos de gênero não impedem
que distorções provenientes desses discursos ainda sejam facilmente identificadas no ideário
contemporâneo.
Atualmente, o segmento de produtos de higiene pessoal, integrado ao mercado brasileiro,
investe de maneira contundente na promoção de diferentes soluções para homens e mulheres.
Alicerçado a pesquisas científicas, defende que a especificidade dos produtos baseia-se nas
necessidades físicas e biológicas de cada sexo. Entretanto, as estratégias de marketing vão além,
fomentando a relação entre características tecnológicas e atitudes socialmente demarcadas. Nesse
processo, a embalagem dos produtos é considerada de extrema importância, pois mais do que
conter, proteger e facilitar o uso deve “comunicar de forma eficiente aquilo que se pretende transmitir
aos consumidores para conquistar sua simpatia e adesão.” (MESTRINER, 2002. p. 3)
Este trabalho apresenta um estudo sobre os valores que estariam sendo articulados na obtenção
de tais premissas, visando contribuir para o entendimento de como atributos visuais estão
relacionados à representação da distinção de gênero, a partir da análise do design gráfico de
embalagens de produtos de higiene pessoal.
1
O design gráfico mostra-se relevante componente do campo de produção de artefatos, pois ao
participar da definição de propriedades visuais, dando preferência a determinadas formas, cores,
texturas, imagens, em detrimento de outras, articula valores simbólicos atrelados à teia de
2
significados formadora das culturas. O designer, consequentemente, “é co-responsável pelas
relações que se estabelecem entre artefatos e pessoas, bem como pelas suas implicações na
sociedade.” (ONO, 2006, p.1)
Artefatos ganharam um poder especial no processo de identificação graças à produção advinda
da indústria, ao aumento crescente do público consumidor urbano e a maior fluidez entre as classes,
no período entre meados século XIX e primeiras décadas do século XX. Segundo estudiosos, o
momento histórico é significativo para a instituição de diferenças entre homens e mulheres baseadas
em características pretensamente intrínsecas, considerando o quadro da consolidação da burguesia e
das prerrogativas sociais da modernidade. Segundo Adrian Forty (2007, p. 95), nesse contexto, o
design seria potente portador de ideologias, pois ao contrário de palavras, ofereceria “sinais
duradouros, visíveis e tangíveis das diferenças entre homens e mulheres tal como se acreditava que
existissem.”
A afirmação do historiador pode ser transposta para a atualidade, pois o design de artefatos,
incluindo embalagens, mantém-se como elemento ativo da cultura material. Isso quer dizer que não
somente reflete as distinções de gênero, mas contribui efetivamente tanto para a constituição quanto
para o revigoramento de estereótipos. Nesse caso, considera-se importante o exame de afinidades
entre configurações exploradas no presente e no passado, atentando-se a produtos mais elementares
e acessíveis, responsáveis pela disseminação de hábitos e promulgação de práticas, desde que foi
possível o maior consumo de artigos de higiene pessoal entre os brasileiros de classes mais
3
populares.
Do sabonete com nome de mulher
No inicio do século XX, época em que o sabonete Gessy foi lançado, os maiores centros urbanos do
Brasil passavam por grandes transformações geradas pela industrialização. A época foi intranquila e
por isso ágil na construção e difusão das representações do comportamento feminino ideal. A área de
2
ação da mulher deveria corresponder “ao ‘recôndito do lar’”, sendo reduzidas “ao máximo suas
atividades e aspirações, até encaixá-la no papel de rainha do lar, sustentada pelo tripé mãe-esposadona de casa” (MALUF: MOTT, 1998. p. 373). A representação masculina, vista como
hierarquicamente complementar, estava aliada a identidade pública, o papel de provedor,
desempenhando “função de valor positivo e dominante na sociedade conjugal”. (MALUF; MOTT,
1998. p. 381)
Quanto a hábitos de higiene e beleza, à medida que a economia modernizava-se, a ideia da
relação estreita entre cultivo moral da beleza feminina e princípios médicos e higiênicos foi
renegociada. Mudanças no comportamento das moças de classe alta e média, que passaram a andar
sozinhas pelas ruas da cidade, possibilitaram maior exposição a novas opções de consumo. Se antes
sabonetes finos ingleses e franceses eram acessíveis somente a pequena parcela abastada da
sociedade brasileira, o sabonete Gessy, desenvolvido pela fábrica sediada em São Paulo, era uma
alternativa em embalagem diferenciada. A riqueza de elementos evidente no exemplar da década de
1920 (Figura 1) assinala a transição de produto de higiene comum para fonte de tratamento de beleza
4
acessível, eficiente contra problemas dermatológicos como manchas, sardas e espinhas.
Figura 1 – Embalagem do sabonete Gessy na década de 1920.
Fonte: UNILEVER BRASIL. Disponível em: http://www.unilever.com.br/aboutus/unilever_no_brasil/
Acesso em 20 dez. 2009.
Na parte frontal da embalagem do sabonete com nome de mulher havia a ilustração de uma
figura feminina em atitude moderadamente lasciva. Na época, contudo, essa estratégia não era
exclusividade de produtos destinados às mulheres. Os cigarros Dalila, Salomé, Diana, Yolanda,
majoritariamente consumidos por homens, ostentavam também figuras de mulheres sensuais em
suas caixas. Os usuários faziam referência aos cigarros Yolanda, por exemplo, como a “loira infernal”
(CAVALCANTI, 2006, p. 46), evidenciando a transformação da imagem reproduzida em símbolo
sexual. Estabeleciam, portanto, analogia entre o consumo do produto e o consumo da mulher,
reforçando valores ligados a elementos fundamentais da dominação masculina.
De certa forma, apesar da figura feminina impressa na embalagem do sabonete Gessy estar
integrada a um produto dedicado às mulheres, a conotação de corpo a ser consumido se mantém,
pois a experiência subjetiva do corpo feminino mostra-se imbuída do sentimento de ser-percebido,
“incessantemente exposto à objetivação operada pelo olhar e pelos discursos dos outros”
(BOURDIEU, 2005. p. 79).
Sendo assim, embora a presença da imagem de uma mulher na embalagem mostrar-se capaz
de feminilizá-la em sentido mais amplo, não podia ser avaliada como elemento restritivo pleno, capaz
de indicar a qual gênero o produto dedicava-se. Esse papel era cumprido de maneira mais eficiente
pelas rosas que em ramos contornavam os limites do espaço frontal, englobando a figura da mulher e
os elementos textuais em caracteres manuscritos.
Em primeira instância, as rosas fariam referência à cor da barra do sabonete e às características
da fragrância. Contudo, a eleição das mesmas pode ser considerada em demais termos, pois a
representação de flores era bastante recorrente em outros artefatos femininos vigentes na época. Nas
primeiras décadas do século XX, as mulheres eram frequentemente comparadas às flores. A relação
metafórica visava reproduzir a ideia de integração entre corpo feminino, suavidade, fragilidade e
delicadeza; valores também indicados como base do comportamento da mulher. A estampa floral,
3
portanto, tornava-se algo como a marca natural da mulher, tanto em seus pertences e acessórios
particulares quanto nos artigos para casa (cortinas, almofadas, estofados), seu ambiente de ação por
excelência. (CARVALHO, 2008)
O potencial simbólico da representação gráfica de flores foi mantido nas embalagens do
sabonete Gessy vigentes nas décadas de 1930 e 1940 (Figura 2, a e b). As rosas tornaram-se
elementos gráficos mais estilizados, em consonância com a estrutura geometrizada das composições
e dos demais elementos decorativos. As alterações formais acompanhavam novo direcionamento do
produto, apresentado a partir de então como um produto para a família (CAVALCANTI, 2006. p. 46).
Em anúncio de 1934, o sabonete “puro como a rosa que lhe dá a cor” prometia ser a “melhor
proteção para a epiderme delicada”, sendo “bom para a cútis feminina, para o banho diário, para a
epiderme infantil” (UNILEVER, 2010).
Figura 2 – Embalagens do sabonete Gessy desde a década de 1930 a 1950.
Fonte: Adaptado de CAVALCANTI, 2006.
A aproximação entre as necessidades femininas e dos pequenos membros da família mostravase mais recorrente do que a inclusão das necessidades do chefe da casa. Isso porque, apesar dos
bebês estarem alheios as prerrogativas de gênero, na época em questão, associava-se a inatividade
da infância ao comportamento feminino. No mesmo sentido, acreditava-se que as mulheres seriam
essencialmente mais indicadas para o trato com os filhos por demonstrarem natural identificação
psicológica com a irracionalidade, ingenuidade, descontrole das emoções e desejos.
Entretanto, a configuração corrente na década de 1940 (Figura 2, b) apresenta exacerbado
caráter geométrico e, consequentemente, intensiva utilização de signos visuais relacionados a
atributos racionais de composição. A gama cromática é mantida, assim como o motivo floral, embora
ainda mais esquematizado e quase obliterado pela divisão espacial estabelecida. A mudança quanto
à tipografia mostra-se mais radical. O nome do produto, grafado anteriormente em letras bold, com
5
serifas intricadas, foi substituído por traços geometricamente definidos.
Ao mesmo tempo em que não se pode afirmar definitivamente que a configuração mais
racionalista do design gráfico da embalagem tornou-a menos feminina aos olhos dos consumidores
da época, não se pode ignorar que a dívida com a visualidade da indústria e da máquina fomentava o
princípio burguês ainda vigente de cisão entre o lar e o trabalho. O produto fazia parte do universo
privado e dos trâmites do lar, sendo, portanto, da conta das mulheres. Isso não deveria impedir,
contudo, que valores como modernidade e eficiência, atribuídos ao produto, fossem reconhecidos e
valorizados pelas donas de casa através de signos de predicados masculinos.
A despeito do nível especulativo dessas afirmações, a embalagem lançada em 1953 (Figura 2, c)
parece estabelecer apelo mais direto a elementos visuais femininos novamente. Anúncios
destacaram a renovação estabelecendo uma analogia entre o design da embalagem e tendências de
moda. As figuras femininas ilustradas nas peças publicitárias trajavam vestido com as mesmas listras
cor de rosa que estruturavam a configuração visual da embalagem. Apesar de não haver mais a
presença da flor, as cores ganharam mais brilho e a tipografia, com o nome do produto e com o texto
“embeleza e perfuma”, apresentava-se novamente em estilo cursivo, estabelecendo uma
contraposição ao padrão retilíneo do fundo.
As consecutivas alterações gráficas das embalagens eram motivadas por uma acirrada
concorrência com as multinacionais. O estabelecimento das empresas de origem americana como a
Colgate, a Coty e a Lever, forçaram a elevação do nível de qualidade das embalagens no Brasil e a
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instauração de técnicas de marketing inovadoras (CAVALCANTI, 2006, p. 110), integradas a
divulgação do american way of life e a superação dos moldes europeus de comportamento e
consumo, especialmente a partir do fim da Primeira Guerra Mundial.
O “sabonete das estrelas” e o “sabonete de saúde”
A maior concorrente da empresa nacional Gessy foi a companhia de origem inglesa responsável pela
introdução do sabonete Lever no mercado local, em 1932. O produto atendia pelo nome Lux em
outros países, mas no Brasil a denominação já era propriedade das Indústrias Matarazzo. Apesar
dessa diferença, a embalagem veiculada por aqui era visualmente idêntica a comercializada pelos
Irmãos Lever nos Estados Unidos e foi mantida até 1962 (Figura 3). O discurso publicitário que
promovia o produto de origem estrangeira também era similar. Os anúncios vinculavam o “sabonete
das estrelas” a imagens e depoimentos de atrizes de cinema famosas.
Figura 3 – Anúncio do sabonete Lever, 1951. Fonte: CAVALCANTI, 2006, p. 117.
Nessa época, a possibilidade de desenvolvimento individual no Brasil tornava-se mais decisiva,
especialmente para a classe média. Disseminava-se a ideia de que as oportunidades estavam
disponíveis a todos, sendo o sucesso pessoal resultado exclusivo de atributos particulares. Para as
mulheres, contudo, a possibilidade envolvia o conflito entre a adesão ao trabalho fora de casa (tendo
em vista uma gama limitada de profissões aceitáveis) e o cumprimento do ideal da “rainha do lar”.
Apesar da disseminação do casamento romântico e consequente diminuição do afastamento social
entre os cônjuges, “a diferenciação de funções persistia”. (MELLO; NOVAIS, 1998. p. 612)
Tendo as oportunidades de conquistas profissionais limitadas, o consumo como meio de
individualização ganha um peso maior para as mulheres e a sagaz nova publicidade explora
condições favoráveis ao sucesso de produtos direcionado a elas.
No caso do sabonete Lever, os anúncios da época vendiam o apaziguamento do conflito entre
desenvolvimento individual e funções domésticas, articulando imagens de mulheres que expandiram
seu espaço de atuação, como as atrizes, aos valores ambivalentes fomentados pelo design gráfico da
embalagem. No exemplar em questão, sobre o tom dominante cor de rosa, tanto a parte textual
quanto a decorativa era apresentada como bordado ilusório, em ponto cruz. A especificidade de
gênero indicada pelos motivos florais foi, portanto, enriquecida pela referência ao trabalho manual
realizado com agulhas, atividade considerada ideal para as capacidades físicas e psicológicas das
mulheres. Ademais, as revistas femininas dos anos dourados reforçavam a importância do domínio
das prendas domésticas para o currículo de qualquer moça que almejasse o casamento, sendo o
matrimônio meio indispensável para a realização feminina. (BASSANEZI, 1997).
5
Entretanto, os trabalhos com as agulhas como a costura, a tapeçaria, a renda, o tricô, o bordado,
poderiam também funcionar como “espaços de liberdade e ação” em que moças podiam dar margem
a sua criatividade e imaginação, proporcionando “momentos de evasão, convívio e troca afetiva com
vizinhas e amigas” (MALUF; MOTT, 1998, 418). Sendo assim, os elementos gráficos explorados no
design visual da embalagem poderiam fomentar reminiscências emocionais ligadas tanto ao
cumprimento do papel social quanto a possibilidade restrita de escapar do mesmo.
Esse recurso simbólico foi cultivado mesmo depois que o sabonete Lever finalmente pode
atender pelo nome original no mercado brasileiro. A referência a rendas, fitas e bordados prevalece
(Figura 4, a) e nas décadas de 1970 e 1980, até a versão atual, as embalagens apresentam estrutura
6
não muito distante daquela explorada no exemplar do sabonete Gessy de 1920 (Figura 4, b).
Figura 4 – Embalagens do sabonete Lux.
Fonte: Adaptado de anúncios pertencentes ao Acervo de Periódicos da Biblioteca Pública do Paraná.
Além do “sabonete das estrelas”, a multinacional inseriu no mercado brasileiro o sabonete
Lifebuoy. Ao contrário do primeiro, este foi sempre vendido como um produto para a família, com
apelo popular mais explícito. Seu “garoto propaganda” era um menino que não gostava de tomar
banho e, recorrentemente, os anúncios do produto traziam imagens de crianças do sexo masculino e
figuras de homens adultos (geralmente anônimos) como protagonistas. Os homens, contudo, levaram
mais tempo para adotar o uso de produtos específicos como o xampu e o desodorante. Já “os mais
ricos chegaram até ao perfume moderno, disfarçando, de início, sob a designação de loção, até o
creme de beleza.” (MELLO; NOVAIS, 1998, p. 569)
Assim como nos anúncios do sabonete Lever, os homens apareciam apontando motivos pelos
quais davam preferência ao produto. Os argumentos eram tão objetivos quanto àqueles apresentados
nos anúncios que falavam às mulheres, mas ao invés de destacarem os atributos embelezadores
ressaltavam os benefícios a saúde (Figura 5).
6
Figura 5 – Anúncio do sabonete Lifebouy, 1942. Fonte: UNILEVER BRASIL. Disponível em:
http://www.unilever.com.br/aboutus/unilever_no_brasil/
Acesso em 20 dez. 2009.
A inclusão do gênero masculino como potencial consumidor manifestava-se visualmente também
na embalagem. Ao contrário dos exemplares analisados até aqui, o design gráfico da embalagem do
“sabonete de saúde” apostava em recursos gráficos mínimos. O anúncio de 1942 apresenta a caixa
vermelha vivo com tipografia encorpada e geometricamente traçada em branco ocupando quase todo
espaço disponível. Não havia nenhum outro elemento ornamental exceto as finas molduras brancas
7
que delimitavam cada face da caixa. O sabonete Lifebuoy não era destinado exclusivamente ao
consumidor masculino, mas tendo em vista sua adesão definiu-se uma contrapartida visual baseada
em certa neutralidade que, no entanto, pode ser interpretada como imposição de valores
8
pretensamente naturais da condição masculina como a austeridade e despojamento.
Segundo Adrian Forty (2007), a manifestação formal dessa premissa já era largamente
perceptível nos produtos comercializados no século XIX. Nas páginas de escovas de cabelo do
catálogo das Army and Navy Stores, o historiador notou que as escovas masculinas eram
caracteristicamente ovais, com pouco ou nenhum ornamento enquanto as femininas de preço
equivalente apresentavam forma mais complexa através de entalhes e gravações.
A presença de produtos de higiene pessoal dedicados especialmente aos homens seria bastante
tímida até pelo menos a década de 1990, mas as embalagens da linha chefiada pelo creme de
barbear Bozzano, veiculadas na década de 1960, estavam estruturadas em elementos análogos
(Figura 6).
Figura 6 – Linha de produtos para homens da Bozzano, década de 1960.
Fonte: (LEON, 1992, p. 80).
7
Para elas ou para eles
No final da década de 1960, a marca Rexona ofereceu ao mercado brasileiro um produto denominado
“sabonete-desodorante”. Segundo anúncio de 1969, “enquanto perfuma, o desodorante dentro dele
vai agindo também. Depois que o banho acaba a ação do Rexona continua” (Figura 7). Apesar de ser
considerado o sucessor do Lifebuoy no Brasil, o produto foi direcionado a “mulher moderna” e a
embalagem não apresentava os tons pastéis, motivos florais, rendas e bordados característicos do
sabonete Lux.
Figura 7 – Anúncio do sabonete Rexona, 1969. Fonte: UNILEVER. Disponível em:
http://www.unilever.com.br/aboutus/unilever_no_brasil/
Acesso em 20 dez. 2009.
O design da embalagem baseava-se em elementos gráficos de caráter abstrato, sendo a
organicidade das formas espelhadas sobre fundo branco responsáveis pela grande leveza da
composição. Essa mesma configuração foi explorada nas embalagens de outros produtos da linha: o
talco e o desodorante. Paulatinamente o primeiro foi substituído pelo segundo até tornar-se o carro
chefe da marca de maneira definitiva.
Enquanto isso, o discurso publicitário enfatizava a necessidade de uma atuação social feminina
mais ampla, levando em consideração as discussões quanto às limitações da condição da mulher e a
liberação sexual. Nesse período, a diferença entre hábitos femininos e masculinos e suas implicações
materiais diminuiu consideravelmente. As mulheres incorporaram elementos da indumentária
masculina, principalmente a calça, enquanto alguns homens adotaram cabelo comprido e bolsas.
Esses aspectos alinharam-se a presença no Brasil de elementos da revolução sexual oriunda dos
países desenvolvidos, possibilitando introdução da pílula anticoncepcional, maior acesso da mulher a
universidade e ao mercado de trabalho. (MELLO; NOVAIS, 1998, p. 612)
Uma década depois, as embalagens do desodorante Rexona mantinham proposta visual análoga
a antecedente, baseada em formas orgânicas sobre fundo branco (Figura 8, a). Nesse exemplar, em
contrapartida, as formas apresentavam caráter mais figurativo recorrendo ao motivo vegetal. Logo em
seguida, visando a ampliação do público consumidor, o produto foi remanejado e divulgado como
“unissex”. A estratégia de expansão tornou-se mais enfática somente na década de 1980 e no inicio
da década de 1990, imagens de homens praticando esportes passaram a figurar nos anúncios. A
organicidade das formas componentes da programação visual mostrava-se mais contida, adequandose a representação de uma espécie de mostrador ou gráfico técnico (Figura 8, b). A intenção era
fazer referência a renovação tecnológica do produto que a partir de então tinha a capacidade de
proteger o usuário gradualmente.
8
Figura 8 – Anúncios do desodorante Rexona. Fonte: UNILEVER. Disponível em:
http://www.unilever.com.br/aboutus/unilever_no_brasil/
Acesso em 20 dez 2009.
No final da mesma década, a estratégia foi recomposta e a alternativa de oferecer uma linha de
produtos para cada sexo sobrepôs-se ao caráter unissex reforçado até então. Em anúncio veiculado
em 1998, a empresa apresenta uma embalagem para desodorante rollon diferente, vendida como
“especial para o corpo da mulher” (figura 9). O recurso visual definido para acompanhar o
embasamento biológico da distinção foi bastante convencional. A feminilização do design gráfico da
embalagem deu-se pela alteração da cor dos elementos visuais para tons de rosa.
Figura 9 – Anúncio do desodorante Rexona 24 horas Sensive, 1998.
Fonte: UNILEVER. Disponível em: http://www.unilever.com.br/aboutus/unilever_no_brasil/
Acesso em 20 dez 2009.
9
Já no século XXI, a marca continua investindo nessa segmentação e o discurso de adequação
dos produtos a especificidades fisiológicas das mulheres e dos homens mostra-se cada vez mais
atrelada ao reforço de estilos de vida e papéis sociais díspares. O discurso publicitário atual reforça a
ligação entre evitar a transpiração e tecnologia, enfatizando motivações bastante particulares para os
dois gêneros. As mulheres precisam ser protegidas intensivamente para cavar um túnel que as
conduza do escritório ao shopping com a intenção de não perder uma liquidação; ou para usar uma
serra elétrica com o objetivo de danificar um outdoor que oblitera o sol e as impede de manter a pele
bronzeada. Nesse caso, o discurso claramente reproduz a ideia de que as atitudes tipicamente
femininas estão circunscritas a manutenção de sua boa aparência. Já os homens precisam controlar
a transpiração para vencer corridas de carro ou concluir com sucesso aventuras que indicam o
fortalecimento de sua virilidade.
Nota-se como o design gráfico das embalagens vinculadas a esses discursos também articula
elementos visuais há tempos explorados em artigos de consumo como signos de distinção de gênero.
Interessante notar que prerrogativas visuais semelhantes são fomentadas por diversas marcas de
desodorantes presentes atualmente no mercado brasileiro, instaurando uma uniformidade na
manifestação visual das identidades culturais em jogo (Figura 10).
De maneira geral, as cores das embalagens que representam o gênero feminino são mais claras,
apresentando toques de cores pastéis sobre fundo branco. Texturas mais delicadas e cores em
degradé são bastante recorrentes. Elementos decorativos que remetem a flores e vegetais valorizam
edições especiais. As linhas formais dos frascos baseiam-se na boa continuidade, apresentando, em
alguns casos, curvas suaves. A tipografia é também mais sutil. Nos desodorantes Rexona a palavra
women é grafada em tipo cursivo, assim como a nome da versão feminina do desodorante Speed
Stick.
Já a gama cromática utilizada para indicar a masculinidade dos produtos abriga tons mais
escuros ou mais saturados. A tipografia ocupa espaço maior na composição, sendo até mesmo usada
na vertical em alguns exemplares, aumentando o impacto visual de sua versão mais encorpada.
Sendo assim, a palavra men ou a expressão for men também ganha maior destaque nos produtos
dessa classe. No caso dos desodorantes Rexona, a forma dos frascos está integrada a elementos
decorativos instituindo uma espécie de pega, contribuindo para a referência a artefatos tecnológicos.
A inserção de signos gráficos como o escudo e a bola de futebol contribuem para a relação entre
atividades e interesses tipicamente masculinos e o produto.
10
Figura 10 - Embalagens atuais de desodorantes das marcas Rexona, Nívea, Cashmere Bouquet, Lady Stick e Speed
Stick. Fontes: Adaptadas de REXONA. Disponível em: http://rexona.com.br. Acesso em 12 out. 2009; NIVEA. Disponível
em Disponível em http://www.nivea.com.br/subbrands/show/100 . Acesso em: 20 dez 2009; COLGATE-PALMOLIVE.
Disponível em: http://www.colgate.com.br/app/Colgate/BR/PC/HomePage.cvsp . Acesso em: 28 nov. 2009.
Considerações finais
O reforço da oposição entre dois universos simbólicos ligados a distinção de gênero
corrobora uma espécie de estereótipo visual, uma espécie de repertório padrão largamente
9
reproduzido. A partir dos primeiros esforços em busca de exemplares mais antigos, confirmou-se a
hipótese de que apesar das significativas mudanças da posição da mulher na sociedade, o design
gráfico de produtos destinados ao público feminino e masculino demonstra certa continuidade, apesar
das atualizações, recorrendo a elementos formais vigentes pelo menos desde meados século XIX e
primeiras décadas do século XX.
Diante disso, considera-se que a uniformidade da programação visual das embalagens de
produtos de higiene pessoal ao representar visualmente a distinção de gênero não indica somente
uma tendência efêmera, relacionada a ditames da moda, mas a reprodução de valores culturais que
podem contribuir para sistemas reguladores mais enraizados, abrindo possibilidades e alimentando,
em contrapartida, estratégias de limitação material impostas às práticas e, respectivamente, ao
pensamento.
Considera-se que este trabalho não girou em torno da busca simples por elementos
imutáveis. Em outros termos, não teve como foco a des-historização do design gráfico de embalagens
de produtos de higiene pessoal, pois a identificação da continuidade não deve impedir a percepção
11
das mudanças, o entendimento de revisões, abandonos, substituições. Investigar a existência de
reproduções de estereótipos de gênero no design gráfico de embalagens pode estimular a percepção
de distorções e contribuir para o entendimento do conflito entre papéis do passado e eminências
contemporâneas.
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em 20 dez. 2009.
VAN OOST, Ellen. Materialized gender: how shavers configure the users’ feminity and masculinity. In:
OUDSHOORN, Nelly (ed.) How users matter. Cambridge Mass: Mit Press, 2005. p. 193-208.
Notas
1
Segundo Pierre Bourdieu, “O campo de produção – que não poderia, evidentemente, funcionar se não pudesse contar com os
gostos já existentes, propensões mais ou menos intensas a consumir bens mais ou menos estritamente definidos – é que
permite ao gosto de se realizar ao oferecer-lhe, em cada instante, o universo dos bens culturais como sistema das
possibilidades de um estilo de vida.” BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: EDUSP; Porto
Alegre: Zouk, 2007. p. 216.
2
Noção defendida por Clifford Geertz: “O conceito de cultura que eu defendo (...) é essencialmente semiótico. Acreditando,
como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como
sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência
interpretativa, à procura do significado.” GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, c1989. p. 15.
3
Segundo João Manuel Cardoso de Mello e Fernando A. Novais, a partir de 1930, “houve avanço, e significativo, na higiene
pessoal, que se pode observar uma difusão para as camadas populares do uso (...) uso do desodorante, do shampoo e do
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condicionador de cabelos, de melhor ou pior qualidade; para mulheres, no uso de modess, que substituiu o paninho caseiro
tradicional, culminando com o tampão; no uso dos cotonetes e do fio dental; na popularização das escovas de cabelos e dos
pentes de plásticos: as antigas escovas de madrepérola, e os antigos pentes, de osso, eram o apanágio das damas e dos
senhores das elites.” MELLO, João Manuel C.; NOVAIS, Fernando A. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In:
SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998. v. 4. p. 568.
4
Analisando o contexto norte americano, Kathy Peiss indica a maior instabilidade e fluidez social da mulher em meados do
século XIX, ligada ao desempenho de performances e acesso a eventos sociais, como fator decisivo para a dissolução do
paradigma que relacionava beleza feminina a beleza natural e cosméticos a prostituição. Ver: PEISS, Kathy. Make up, Making
Over: cosmetics, consumer culture, and women’s identity. In: THE SEX of things: gender and consumption in historical
perspective. Berkeley, CA: University of California Press, 1996. p. 311-336.
5
O design, assinado pela filial brasileira da agência norte-americana de publicidade dirigida por Raymond Loewy, ligava-se
estilisticamente a propostas art déco que ganharam novo impulso nos Estados Unidos ao aliar-se a formas aerodinâmicas,
estendendo-se a objetos industrializados e, consequentemente, mais acessíveis. A face decorativa da estética da máquina
torna os motivos art déco a expressão visual de uma nação que desejava promover-se como arauto da modernização.
6
Em 1960, “a Irmãos Lever adquire as ações da Gessy. Apesar de ser uma compra, o negócio é conduzido como uma fusão,
agregando à nova Empresa o que as anteriores tinham de melhor: o know-how multinacional da Lever e a experiência e
popularidade no mercado brasileiro da Gessy. Na prática, surge uma assinatura com o nome das duas empresas e um portfólio
maior, com produtos de ambas.” Disponível em: http://www.unilever.com.br/aboutus/unilever_no_brasil/anos60/. Acessado em
01 fev. 2010.
7
O produto apresentou outras versões de embalagem, mas a base da configuração manteve-se bastante estável. Em
exemplar de 1935, por exemplo, havia incorporados desenhos de bolhas de sabão, sem, entretanto, alterar elementos
estruturais do design gráfico. Ver: CAVALCANTI, Pedro. História da embalagem no Brasil. São Paulo: Grifo Projetos
Históricos e Editoriais, 2006. p. 116.
8
O design gráfico da embalagem do sabonete Palmolive, comercializado na mesma época, estava calcado em valores visuais
semelhantes. O público alvo do produto, contudo, era prioritariamente feminino e os anúncios traziam sempre junto a imagem
da embalagem ramos de rosas vermelhas.
9
Pode-se relacionar esta observação ao conceito de “gender script”, destacado por Ellen van Oost em trabalho que investiga
a diferença entre produtos da Philips destinados a homens e mulheres. Segundo a autora, “Gender Script” refere-se às
representações de gênero as quais os designers estão imersos e as quais inscrevem materialmente nos artefatos. Ver: VAN
OOST, Ellen. Materialized gender: how shavers configure the users’ feminity and masculinity. In: OUDSHOORN, Nelly (ed.)
How users matter. Cambridge Mass: Mit Press, 2005. p. 193-208.
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Distinção de gênero e design gráfico de embalagens de