REPRESENTAÇÃO DAS PERSONAGENS FEMININAS EM LUCÍOLA E
NOME DE GUERRA
Clarice Gomes Clarindo Rodrigues (UNEMAT)1
Resumo: Propõe-se através deste artigo demonstrar que há, nas narrativas brasileiras e portuguesas,
especificamente em Lucíola (1862), de José de Alencar e Nome de Guerra (1938), de Almada
Negreiros, questões de confluências e divergências em relação à condição feminina das personagens.
Assim, permite-se inseri-las no âmbito da literatura comparada. Respectivamente romântico e
modernista, os romances se fundamentam na temática da prostituição nos períodos em foco. Partiu-se
do ponto de vista de que a prostituição em evidência nos romances é tratada de maneiras similares e
distintas, desta forma, há de se considerar a contextualização histórica e social que a figura feminina
representa nas produções literárias por intermédio das personagens Lúcia e Judite. Nessa direção, A
personagem de ficção (2005), de Antônio Cândido, subsidia o estudo em uma perspectiva de ressaltar
a importância da personagem no enredo, na composição da obra e no contexto que se insere. A
prostituição através dos tempos na sociedade ocidental (1996), de Nickie Roberts é uma referência
para a compreensão da origem da prostituição, da projeção dos mitos e da condição feminina a que as
personagens protagonistas nos romances se submetem.
Palavras-chave: Nome de Guerra, Lucíola, personagem, prostituição, modernismo, romantismo
Abstract: It is proposed that through this article to demonstrate that there are Brazilian and
Portuguese narratives, specifically in Lucíola (1862), by José de Alencar and Nome de Guerra
(1938), by Almada Negreiros, issues of consensus and divergence in relation to female characters
condition. Thus, it is allowed to insert them in the context of comparative literature. Respectively,
the romantic and modernist novels are based on the theme of prostitution in the period in focus. It
started from the point of view that prostitution in evidence in the novels is treated in similar and
different ways, in this way, we should also consider the historical and social context that the female
figure represents the literary productions through the characters of Judite and Lúcia. In this
direction, A personagem de ficção (2005), by Antonio Candido, subsidizes the perspective
of a study highlighting the importance of character in the plot, work composition and the context
which it operates. A prostituição através dos tempos na sociedade ocidental (1996), by Nickie
Roberts, is a reference for understanding the origin of prostitution, the projection of the myths and
womanhood that the protagonists undergo in the novels.
Keywords: Nome de Guerra, Lucíola, Character, Prostitution, Modernism, Romanticism.
Pode-se dizer a partir do enfoque de A prostituição através dos tempos na sociedade
ocidental (1996), que a história da prostituição transcende o mundo ocidental. No período
pré-histórico, a mulher era vista como criadora e detentora das forças vitais, sendo que,
primeiramente, foi construído o matriarcado e o ato de gerar filhos com seu próprio corpo
designou à figura da mulher o sinônimo de fertilidade, conceituada pelos humanos da Idade
da Pedra sob a forma de uma deusa. Desta forma, os mitos e as formas de cultura e arte
surgiram por meio da mulher.
A religião, a cultura e sexualidade estavam intimamente ligadas, tudo provinha da
deusa. Assim, o sexo era considerado sagrado por definição e era conduzido pelas
sacerdotisas xamânicas em forma de rituais em grupo, nos quais participavam toda a
comunidade, com o intuito de compartilhar em união extática o manancial de forças vitais.
Segundo Roberts (1996), é desta forma que a verdadeira história da prostituição começa; com
as sacerdotisas dos templos.
1
Bolsista Capes, Aluna do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários – Mestrado Acadêmico, Campus
Universitário de Tangará da Serra, Universidade do Estado de Mato Grosso.
O fato é que, após milênios, a prostituição feminina persiste. Inicialmente, sempre
associada à figura de deusas, o estatuto das prostitutas era elevado, até que lentamente, o
poder patriarcal sucumbiu o lugar e prestígio das sacerdotisas, inferiorizando a um plano de
degradação moral do corpo e suas práticas. Enquanto a mulher domesticada tinha sua
sexualidade reprimida e limitada a um só homem, pelo contrário, aos homens era dado o
direito de recorrerem às prostitutas sempre que lhes convinha.
Naturalmente, a feminilidade e o poder da mulher são aflorados desde os tempos
primórdios. Através da imaginação real e irreal, há traços da presença marcante da mulher.
Seguindo a linha de pensamento de Roberts (1996), os muitos deuses e mitos referentes à
sensualidade, beleza e sexualidade surgiram por intermédio da mulher.
Neste aspecto, evidencia-se neste estudo, o mito de Lilith, primeiramente, pelo fato de
constituir-se de acordo com Maia (1993), como alusivo à prostituição e à personagem
protagonista do romance Nome de Guerra, em um segundo plano, por representar a
encarnação da transgressão à ordem patriarcal. Pois sendo Lilith, segundo a mitologia, antes
de Eva, a primeira mulher de Adão, criada do pó, reivindica seus direitos de igualdade junto a
Adão. De acordo com Sicuteri (1985, p. 19), Lillith questiona a Adão: “- Por que devo deitarme embaixo de ti? – Por que devo abrir-me sob o teu corpo?” Não aceitando a posição do ato
sexual, Lilith é reprimida. Para Lilith, sua sexualidade era vital, o controle de seus desejos
sexuais teria que ser considerados. Segundo a tradição hebraica, Lilith deixa o paraíso, tornase endemoniada, porém, permanece na liberdade de praticar sua libertinagem sexual.
Maia (1993), para justificar a genealogia do nome Judite até chegar à Lilith, parte da
citação que se depreende do romance, no qual diz que “[...] A história verídica é a única que
vale e pode-se contar: o primeiro homem que elas conheceram era um pulha! E cada uma teve
o seu para virem juntar-se todas ali na sala de distracções, dos estranhos e do esquecimento.”
(NEGREIROS, 1997, p. 256). O personagem Antunes é a pulha, assim como foi o primeiro
homem, Adão. Para Maia (1993), mulher e narrativa apontam para o nome Lilith.
Os espaços ficcionais nos romances são locais onde se pode deparar com os mais
variados tipos humanos possíveis, de maneira que para o leitor, a personagem torna-se o
maior elo entre a realidade e a ficção. Candido (2005), por sua vez, ressalta que ante a colisão
de valores, as personagens passam por terríveis conflitos, que se resulta em aspectos trágicos,
sublimes, demoníacos, grotescos ou luminosos. Desta forma, o homem pode transformar
imaginariamente no outro, verificar, viver e até mesmo reviver aspectos de sua própria
condição, pode-se dizer que por meio das personagens ocorre uma espécie de fusão entre
ficção e realidade.
Nome de Guerra (1938), romance modernista, surge como resultado de uma
ideologia que visava colaborar para ascensão sócio-cultural de Portugal, de forma que o autor
procurou romper com todas as modalidades de academicismo pregadas pelas escolas literárias
anterior, buscando inovação nas artes e na literatura. Trata-se de uma obra com prenúncios
existencialistas, em que o homem procura dar sentido à sua existência. O romance traz à tona
a reflexão sobre os fatos cotidianos da vida dos protagonistas Antunes e Judite. Aborda não
somente as características físicas das personagens, como também psicológicas, características
estas, marcantes do período, no qual há interesse pela vida interior (estados de alma, espírito).
O autor trata sutilmente do tema prostituição, através dos indícios, logo é possível
perceber que a protagonista é uma prostituta. O primeiro fator que colabora para este fato,
parte da perspectiva do título da obra Nome de Guerra, em seguida, a referência ao
codinome, assim, o narrador destaca que “[...] o seu verdadeiro nome não era Judite [...]”
(NEGREIROS, 1997, p. 255), fato comum na história da prostituição, desta maneira, a
personagem se refugia através deste codinome, deixando de mostrar por ora, a sua verdadeira
personalidade.
Outro fato que corrobora para a temática da prostituição no romance é a adoção de
codinome, fato comum na história da prostituição. Tal codinome é alusivo à personagem
bíblica Judite. Segundo o narrador, “Judite é um nome de mulher a quem a Bíblia faz cortar a
cabeça de Holofernes.” (NEGREIROS, 1997, p. 255). A trajetória bíblica ressalta no decorrer
dos seus escritos a condição desta mulher, que ora apresenta-se de forma conflitante. Em um
primeiro momento, Judite bíblica, é a típica imagem de boa mulher, respeitável, recatada; no
entanto, de mulher resignada, passa à sagacidade, revela a polaridade que há em sua
personalidade,
Segundo a bíblia católica, Judite era uma mulher recatada, mesmo em sua viuvez,
honrava seu marido e a Deus, pois “Jejuava todos os dias da sua viuvez, exceto aos sábados e
em suas vigílias, nas luas novas e nas vigílias, nas festas e nos dias de regozijo da casa de
Israel”. (CNBB, Judite 8: 6). Porém, a figura de Judite, a viúva, combina a feminilidade com a
determinação, usa o seu poder de sedução para atrair a atenção de Holofernes, grande
comandante do exército rival de seu povo e quando o tem em seu domínio decepa sua cabeça.
Por fim, outro fator que Justifica a questão da prostituição no romance é o fato de a
personagem Judite possuir características que é possível associá-la à Lilith. De acordo com
Maia (1993), a tradição antiga esteve muitas vezes ligada aos mitos de uma forma geral,
sendo que em algumas orações aparece a expressão “serva de Lilith”, indicando a figura da
prostituta, de forma que as projeções das personagens dos mitos eram descritos como eróticos
e sensuais.
Sicuteri (1985) nos apresenta as mulheres de Adão sob duas vertentes: Lilith, sob o
ângulo da obscuridade, vista como a lua negra. Em oposição, Eva é apresentada como luz do
Sol, como pura graça. A primeira lhe é censurada o prazer carnal; a segunda exprime a
imagem de boa companheira e submissa.
Assim como Adão, o personagem Antunes de Nome de Guerra encontra-se diante de
duas imagens de mulheres, uma era a noiva Maria, a outra era Judite. Conforme nos apresenta
a onisciência do narrador, “[...] A primeira era suave, tão suave que não apetecia acordá-la no
sono branco em que dormia; a segunda tinha as carnes sequiosas e mordia com os dentes, e
cuspia com a raiva, e beijava com os lábios, e arranhava com as unhas” (NEGREIROS, 1997,
p. 282-3).
A suavidade e o sono branco de Maria são a representação da imagem pura para
Antunes, assim como Eva representa a luz do sol para Sicuteri (1985). Em oposição, Judite é
como Lilith, a lua negra, o prazer carnal. As carnes sequiosas pela voracidade sexual de Judite
nos levam a confrontar com os comportamentos de Lilith. Segundo Sicuteri (1985, p. 84):
“[...] as interpretações de Lilith brotam ainda de comportamentos agressivos inconscientes a
serviço do Eu contra as solicitações da libido sexualizada”.
Na representação de personagens femininas, apresentam-se diversos perfis e
comportamentos, destacam-se, neste estudo, as protagonistas Lúcia e Judite dos romances
Lucíola e Nome de Guerra respectivamente. Divididas por dois contextos distintos,
marcados por dois períodos literários; romantismo e realismo, as personagens que encenam o
romance são aproximadas e distanciadas por seus símbolos emblemáticos.
A prostituição feminina tratada nos romances não está muito distante de um período e
outro, no entanto, a contextualização histórica e social apresenta as personagens, enfocando e
conduzindo-as de formas divergentes. Lúcia e Judite são prostitutas, cada qual ao seu tempo e
modo.
Lucíola (1962), do escritor brasileiro José de Alencar, narra a história de uma
prostituta, de luxo e de um amor verdadeiro desenvolvido na trama entre as personagens
Lúcia e Paulo. Assim como Antunes de Nome de Guerra, Paulo é um jovem do interior, que
se desloca à metrópole, com o objetivo de viver uma nova experiência de vida, no caso de
Paulo, uma experiência profissional. Em ambos romances, os jovens logo se envolvem com as
prostitutas. Paulo, no entanto, é levado a nutrir uma boa imagem de Lúcia, até o momento que
esta fica nua em público, resultando daí um conflito entre o casal. Lúcia apresenta-se como a
típica figura feminina romântica do século XIX, os fatos do enredo a conduzem para a sua
transformação, assim, no final do romance, sua personagem regenera-se, corroborando para a
idealização da mulher.
Lucíola situa-se como um romance urbano, no qual o foco se concentra nos costumes
e nos valores de uma sociedade. O período retratado mostra a tradicional burguesia
fluminense do século XIX, arraigada pela velha moral dos bons costumes. A respeito desta
classificação, Candido (2005, p.62) salienta que “[...] o romancista “de costumes” vê o
homem pelo seu comportamento em sociedade, pelo tecido das suas relações e pela visão
normal que temos do próximo”.
Narrado em primeira pessoa pela personagem protagonista Paulo, a temática acerca da
prostituição evidencia-se no início do enredo no romance. Através de um diálogo entre as
personagens Paulo e Sá, logo é possível observar a condição de Lúcia. Conforme o trecho: “Quem é esta senhora? Perguntei a Sá. [...] - Não é uma senhora, Paulo! É uma mulher bonita.
Queres conhecê-la?” (ALENCAR, 1992, p.15).
Para Sá, Lúcia estava distante de ser considerada uma senhora, de acordo com o
costume do século XIX, o olhar patriarcal impera, à senhora de bem, cabia-lhe companhia.
Assim, o narrador declara: “[...] Só então notei que aquela moça estava só; e que a ausência de
um pai, de um marido, ou de um irmão, devia-me ter feito suspeitar a verdade.” (ALENCAR,
1992, p.15).
Como fato comum na história da prostituição, há uma metamorfose de nomes. No
romance existe uma dualidade de nomes em torno de Lúcia, assim como Judite de Nome de
Guerra, o seu verdadeiro nome não era este. A transformação do nome da protagonista é
narrada com um sentimentalismo típico romântico. Seu verdadeiro nome era Maria da Glória,
Lúcia, na realidade, era um nome de uma prostituta que morreu, porém, no óbito, Maria da
Glória troca os nomes, assumindo a partir daí a personificação deste novo nome.
Lúcia é a típica personagem romântica, o romance ressalta aspectos da vida interior da
personagem, de maneira que se encontra envolta em uma cadeia de contrastes, apresenta-se
ora discreta, ora extravagante, santa e devassa, conflitante, traduzida na desarmonia de
situações e sentimentos. Lúcia vive uma dualidade, por vezes representa o mal, a meretriz
depravada e discriminada pela sociedade, por outro lado, é a menina pura e inocente. O
narrador busca constantemente mostrar a transformação da figura de Lúcia.
A dualidade dos nomes da personagem Lúcia, leva a uma oposição que vai além da
genealogia. Maria da Glória não somente soa contraditório à Lúcia, com também
significativamente expressa totalmente o oposto. O nome Maria provém do hebraico, a bíblia
foi assim disseminadora do sentido de pureza e santidade em torno deste nome, pelo fato da
designação da figura de uma mulher pura e casta para ser designada mãe de Jesus, que para os
cristãos é considerado o salvador do mundo.
A partir do momento em que a personagem assume de fato a prostituição, deixa de ser
Maria, deixando para trás a pureza, assim, adota com todos os seus significados um novo
nome, Lúcia. De acordo com a narração, Lúcia é a própria representação do mal: “[...] Em
lugar de Lúcia- diga-se Lúcifer!” (ALENCAR, 1992, p.41). Lúcia, em consonância com a
citação, declara que “[...] Quem não sabe que eu sou o anjo de luz, que desci do céu ao
inferno?” (ALENCAR, 1992, p. 41). Lúcia toma para si neste instante os atributos de Lúcifer
antes de sua queda do céu ao inferno, uma vez que, segundo a tradição cristã, Lúcifer foi um
anjo portador de luz, mas que se torna o demônio Satanás.
No romance, a genealogia do nome Lúcia nos leva ao termo Lúcifer, que por sua vez
possui o mesmo significado do planeta Vênus, “portador de luz”, na sequência de sentido, vêse que o nome deste planeta é proveniente da deusa romana Vênus. Há desta forma uma tríade
de sentidos ao redor do codinome da personagem em Lucíola, constituindo assim: Lúcia,
Lúcifer e Vênus.
Vênus era a deusa romana do amor e da beleza, segundo esta mitologia, era casada
com Vulcano, porém mantinha relações extras conjugais com o deus da guerra, Marte. Na
mitologia grega, Vênus se equipara à Afrodite. Segundo a tradição antiga, a história da
prostituição está ligada a figura de deusas.
Na cultura grega clássica, já não eram as sacerdotisas que cumpriam os rituais
sagrados de prostituição, neste momento da história, eram as prostitutas; mulheres servidoras
da deusa e eram respeitadas pelos homens. Desta forma, Roberts (1996, p. 32) diz que: “[...]
Encontrava-se templos por todo o continente grego, especialmente em Corinto, << cidade de
luxo do mundo grego>>, onde o templo de Afrodite (com fama de ser um dos templos mais
ricos do velho mundo) abrigavam mais de mil prostitutas <<sagradas>>.”
Para o narrador de Nome de Guerra, às prostitutas restam as mutilações
correspondentes aos estragos que a vida fizera sobre a natureza formosa e robusta, assim se
Judite fosse uma estátua, podia ser aproveitada como sinônimo de beleza, porém somente,
após sofrer algumas mutilações, como sofreu a Vênus de Milo.
Na representação artística literária, a figura da prostituta no século XIX, se justifica
socialmente pelas condições que estas se encontravam, de maneira que eram como Vênus de
Milo, mutilada parte de sua existência pelas condições sociais às quais se submetiam.
Segundo Roberts (1996, p. 238): Assim, “[...] A este respeito o século XIX não era diferente
de qualquer outro período: a grande maioria das prostitutas eram mulheres da classe
trabalhadoras”.
No romance Lucíola, Lúcia é cruelmente forçada a prostitui-se, com o intuito de
salvar a família que foi cometida por febre amarela. Aos catorze anos de idade, Lúcia é
induzida por meio da pobreza e das circunstâncias a enveredar-se ao caminho da prostituição.
A fusão entre texto e contexto, a qual se refere Candido (2005), nos leva a partir do texto
ficcional e adentrar no contexto de produção. Segundo Roberts (1996, p.238), “Muitas
prostitutas vinham de lares destruídos, onde a perda súbita de um ou dos dois pais a privava
do apoio econômico do rendimento familiar”.
Mulheres exploradas sexualmente, Judite e Lúcia refletem o caráter de uma sociedade
patriarcal e preconceituosa. De acordo com Roberts (1996, p.231), “[...] era necessário que
existisse uma outra classe de mulheres para desviar da família as necessidades sexuais dos
homens: mais uma vez a prostituta voltava a ter um papel central”. A prostituta era vista
perante a sociedade não mais como uma figura sagrada como na tradição antiga, mas como
necessária, apesar de repugnante.
Roberts (1996) ressalta que na tentativa de dividir as mulheres em classes e se firmar
os estereótipos sobre as prostitutas, a sociedade do final do século XIX tentou impregnar o
conceito de que os motivos que levam as mulheres para a vida de prostituição vão além das
circunstâncias mais comuns e evidentes, vão para o lado da moralidade, com o objetivo de
justificar que a mulher que se prostituía, já trazia o negócio do sexo nas veias. A burguesia
deste período encontrava-se na condição de impor ao restante da sociedade suas ideias e
costumes, assim, poderia existir apenas duas classes de mulheres; as casadas e as prostitutas.
O narrador de Nome de Guerra não deixa claro as razões pelas quais a personagem
Judite entrou na prostituição, no entanto, observa-se que a personagem também é induzida
pelas questões sociais. No contexto modernista, o que é importa é acompanhar as tendências
do novo, os ritmos da modernidade, as modas, as danças, tudo afinal que pudesse exprimir o
espírito moderno, desta forma, o que se evidencia neste período é o capitalismo sem medida
impregnado na sociedade do século XX. Judite é, portanto, uma personagem que revela essa
característica marcante do período, conforme se verifica no trecho:
[...] Uma vez era um vestido de soirée que uma senhora da aristocracia tinha
posto só uma vez, outro dia era um casaco de peles muito barato por causa
da dona ter que ir para o estrangeiro, uns sapatos da última moda que vinham
oferecer a porta muito em conta, meias de seda baratíssimas que nunca mais
se apanham por aquele preço, um empréstimo feito a uma irmã precisada, a
mesada para o seu querido filhinho, a prestação para o perfumista e muitas
outras coisas que infelizmente não podiam esperar [...] (NEGREIROS, 1997,
p. 299)
Apesar de a personagem Judite inserir-se no século XX, onde a história da prostituição
o designa como o século da sociedade livre, alguns estereótipos vitorianos acerca da prostituta
se aplicam a personagem. De qualquer forma, são comportamentos, que contribuem na
verificação que vai além dos traços superficiais da caracterização física e psicológica da
personagem, revela-se o modo íntimo de ser.
A prostituta representava também imaturidade e instabilidade; era, à vez,
taciturna e incrivelmente frívola, arrogante e ordinária, estava sempre a
mudar, era inconstante e impulsiva, mudava de opinião, de roupa, de humor,
de casa e até de classe social; falava constantemente sem saber o que dizer;
mentia; consumia álcool e comida em excesso; era regularmente tomada de
acessos de raiva; gastava dinheiro como água. (ROBERTS, 1996, p. 234).
A personagem Judite se enquadra neste perfil: a prostituta sem escrúpulos, permeada
desta imaturidade e instabilidade. No decorrer do romance, Antunes passa a refletir sobre suas
mentiras, seu comportamento no clube noturno, seu humor na voluptuosidade de opinião e
ainda em seu sentimento capitalista, duvidando, assim, definitivamente do amor dela por ele,
conforme se observa no trecho: “Os seus dezenove anos cheios de cicatrizes são a estátua
mutilada da verdade. Os gestos da estátua são falsos, é tudo mentira, apenas a matéria da
estátua mutilada é verdade!” (NEGREIROS, 1997, p. 325).
Lúcia e Judite inserem-se em sociedades nas quais o preconceito prevalece. Porém,
observa-se que ao longo da narrativa de Alencar que a personagem Lúcia é idealizada, sua
condição regenerada, o amor entre Paulo e Lúcia sobressai. Essa idealização, no entanto, não
ocorre com Judite, e em relação ao relacionamento com Antunes, este, servira apenas como
uma etapa no árduo processo de aprendizagem. Judite permanece até o fim do romance como
uma estátua de pedra, imutável, estática. A onisciência do narrador afirma que: “[...] Ela serlhe-ia na memória uma pedra de toque para as coisas do coração, uma coisa doce que se
estragou, mas que foi doce, uma chamada forte para a realidade [...]” (NEGREIROS, 1997, p.
320).
Lúcia não se rende inteiramente aos valores da sociedade que por ora estigmatiza sua
condição, a personagem romântica luta contra os preconceitos estabelecidos pela sociedade,
seu comportamento funciona como combate a sua suposta fragilidade, assim, fortalece-se
mediante as circunstâncias que as forçaram a prostituir-se. Judite, ao contrário, encontra-se
em uma teia de sentidos, por inserir-se em um romance modernista de aprendizagem, não há
idealização da figura da mulher.
No decorrer das narrativas, Lucíola e Nome de Guerra, há muitas similaridades.
Além da prostituição e todo seu contexto, existe uma inversão de valores associada aos
nomes. No final do romance Lucíola, a personagem Lúcia morre, ressuscitando, então o
caráter de Maria da Glória por meio da alusão deste nome. Maria, nome imaculado,
universalmente associado à figura santa da mãe de Jesus, revela o caráter da mulher pura a
quem a bíblia faz menção de virgem. No caso, Alencar faz reviver essa Maria, idealizando
dessa forma a imagem de moça recatada e pura.
Em Nome de Guerra, o narrador também menciona o nome de uma personagem
chamada Maria. Esta era a noiva que Antunes havia deixado na província, assim, Antunes se
vê dividido entre as duas imagens de mulheres, de um lado, a pureza e a castidade, de outro, a
própria sexualidade encarnada. Antunes encontra-se fascinado com os prazeres que Judite o
proporciona e acaba deixando Maria de lado. Muitas cartas lhe são enviadas por seus pais
notificando acerca da tristeza e doença de Maria, porém, devido à alienação à Judite passam
despercebidas, até que um dia resolve ler as cartas e a última delas, revela a morte de Maria.
A morte faz parte em ambos romances e marcam definitivamente um começo na vida
dos personagens Paulo e Antunes. A morte presente nas narrativas possibilita ao crítico
literário construir com mais clareza os sentidos de efeitos que essas circunstancias inferem.
De acordo com Candido (2005, p. 64): “A morte é um limite definitivo dos seus atos e
pensamentos, e depois dela é possível elaborar uma interpretação completa, provida de mais
lógica, mediante a qual a pessoa nos aparece numa unidade satisfatória, embora as mais das
vezes arbitrária”.
Ao contrário do romantismo, em Nome de Guerra, não há regeneração e idealização
da figura da mulher. A morte de Maria assinala um momento de ruptura com os conflitos até
então vividos por Antunes. A morte não lhe correspondia nada, porém viu muito além das
cartas, viu outras palavras que significavam muito mais. A partir daí, qualquer possibilidade
de relacionamento futuro com Judite é descartada. Verifica-se esta questão da morte através
do trecho: “E quando a Maria morreu o Antunes ficou, acto contínuo, liberto da Judite. A essa
mesma hora estava terminada a missão da Judite junto do Antunes.” (NEGREIROS, 1997, p.
342).
A morte em Lucíola ocorre por diversas vezes. Primeiro, morre literalmente a
verdadeira Lúcia, Maria da Glória troca de identidade, passando assim de Maria da Glória à
Lúcia, com esta morte, ocorre o fim da inocência e da pureza de seu nome. Em um segundo
momento, morre a suposta Lúcia, no entanto, uma Maria é renascida. De forma que se
idealiza a figura feminina, eternizando dessa maneira a sua regeneração enquanto prostituta.
Lúcia. Em Nome de Guerra, Maria é morta, destruindo com qualquer possibilidade de
regeneração de Judite.
Nome de Guerra se apresenta aos moldes de um romance de aprendizagem, nos quais
as questões vão sendo apresentadas numa articulação de personagens, cenário e ação,
conectados a uma reflexão filosófica, permanente de um narrador onisciente; as personagens
neste romance são apresentadas de acordo com Candido (2005), além de suas caracterizações
superficiais, pelo seu modo íntimo de ser e agir das personagens. Lucíola, no entanto é
apresentado como romance urbano, pois tem como características a representação dos
costumes e críticas de uma sociedade, narrado em primeira pessoa pelo personagem Paulo, no
qual vive toda a trama.
José de Alencar e Almada Negreiros, autores de nacionalidades diferentes, abordam
em suas obras o mesmo tema, embora em estilos diferentes, ambos expressam ideologias e
concepções sobre a prostituição. Enquanto José de Alencar funde características do
Romantismo através da personagem Lúcia, Almada Negreiros, no Modernismo, permeiam
tendências simbolistas, trabalhando a questão do conhecimento da própria personalidade.
No contexto de produção, a ideologia torna-se fator fundamental, uma vez que esta
rege nações, sendo elas primitivas ou contemporâneas. Assim, “A ideologia, que é uma
percepção historicamente determinada da vida, passa a distribuir valores e esconjurar
antivalores, junto à consciência dos grupos sociais”. (BOSI, 2000, p. 138). Em ambos os
romances, o cerne é a condição da mulher como prostituta. A trajetória e história da
prostituição vão sendo traçadas ao longo dos séculos, mas o que se percebe é que a sociedade
apenas transpõe seu tempo, porém evolui muito pouco em sua ideologia. Um fator
imprescindível para investigação literária é discuti-la dentro de um contexto de produção, ou
seja, considerar os fatores históricos e sociais, elementos que permitem compreender as
mensagens explícitas e propositalmente implícitas.
Em suma, a literatura, neste sentido, tem a função social de humanizar e transformar
paradigmas. Candido (2008) destaca que entre a relação literatura e sociedade, os fatores
externos-sócio-históricos devem ser analisados na medida em que se tornam fatores internos,
ou seja, em que passam a desempenhar algo relevante na estrutura da obra. Dessa forma,
evidencia-se que a literatura tem o poder de transformar uma sociedade, trazer à tona as
vozes de marginalizados e, ainda, de cumprir o papel desmistificador da verdade pura e
absoluta imposta pela sociedade.
Referências
ALENCAR, José de. Lucíola. 2. ed. São Paulo: Editora FTD, 1992.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. 6. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
CANDIDO, Antonio [et al.], A personagem de ficção. 11. ed. São Paulo, Perspectiva, 2005.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 10. ed. Rio de Janeiro, 2008.
CNBB, Bíblia Sagrada. 9 ed. São Paulo, Canção Nova, 2009.
MAIA, João Domingues. Revista Augustus. Rio de Janeiro: sociedade Unificada de Ensino
Superior Augusto Motta. V.01, N.1, Agosto de 1995.
NEGREIROS, Almada. Nome de guerra: obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova
Aguilar, 1997.
ROBERTS, Nickie. A prostituição através dos tempos na sociedade ocidental. Lisboa,
1996.
SICUTERI, Roberto. Lilith, a lua negra. 3. ed. Paz e Terra, 1985.
Download

MARCOS LEANDRO PEREIRA DE OLIVEIRA