Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 53-73 Ambiente escolar e aprendizagem na visão de pais e alunos do ensino fundamental Elaine Cristina de Freitas Miranda, Leda Gomes Resumo: O interesse por tal pesquisa surgiu pela curiosidade em saber o que é importante no ambiente escolar e o que pode facilitar a aprendizagem. Este questionamento inicial partiu da observação e comparação entre escolas estaduais e particulares uma vez que as diferenças existentes entre elas podem ser percebidas em diversos aspectos, deixando dúvidas sobre a eficiência de cada uma. Assim, buscando constatar quais são as expectativas, lembranças e percepções de pais e filhos em relação à vivência escolar primária, o presente trabalho teve como principal objetivo observar se existiam coincidências nestas questões entre os pais e as crianças, identificando o grau de importância atribuído ao ambiente físico escolar por cada uma das partes envolvidas (adultos e crianças). Constatou-se, por meio de entrevista realizada com nove famílias e desenhos feitos pelos filhos, que os relaciona mentos e as questões diretamente ligadas à aprendizagem (programa pedagógico, aulas específicas etc.) foram os aspectos em comum mais presentes na pesquisa. Além disto, em relação ao ambiente físico escolar propriamente dito, os dados evidenciaram que as crianças trouxeram espontaneamente este aspecto com maior freqüência. Enquanto os adultos fizeram referências ao ambiente físico principalmente como um dos motivos que os levaram a escolher o local atual de estudo do filho, as crianças contextualizaram suas vivências a partir da percepção concreta o espaço escolar. Palavras-chave: aprendizagem. ambiente escolar, pais, relacionamento, Ambiente escolar e aprendizagem na visão de pais e alunos do ensino fundamental The school environment and the learning process from the parents and students point of view Abstract: The interest in this type of research stems from the curiosity to know what is important in the school environment and what could enable students’ learning. This first study observed and compared public and private schools, since the differences between them are quite vast and can be seen in many different aspects, and doubts about how effective each is quite often overlooked. Therefore, in an attempt to reveal parents and their children’s expectations, memories and perceptions experienced throughout elementary school, this paper aims at observing if there is any coincidence between the parents and children’s point of view in relation to these matters, and how important they believe school facilities are. By interviewing nine families and observing drawings from their children, we figured out that relationships and issues directly connected with the learning process (educational syllabus, specific classes, etc.) were the items that people (children and adults) answered in common throughout the survey. Besides this, talking about the school facility itself, the data showed that children spontaneously brought up this aspect with more frequency. As adults referred to the school facilities, mainly as the reason for choosing a place for their children to study, children contextualized their own life experiences from observing the school facilities themselves. Keywords: school environment, parents, relationship, learning process. Introdução Este estudo está estruturado partindo-se da fundamentação teórica que procurou abordar questões do desenvolvimento da criança e do adulto separados, inicialmente, para em um terceiro Boletim de Iniciação Científica e m Psicologia – 2002, 3(1): 53-73 54 Elaine Cristina de Freitas Miranda, Leda Gomes capítulo, buscar maior conexão entre pais e filhos, tocando assuntos como o significado social e psicológico da escolha do local de estudo das crianças. Um quarto capítulo procurou ampliar nossa visão sobre o ambiente físico e as contribuições que este pode proporcionar à vivência escolar. Quem é a criança escolar? Considerando a criança como um complexo que envolve aspectos fisiológicos, cognitivos, psicológicos e sociais, esta revisão teórica procura abordar os principais tópicos de cada um destes elementos, buscando compreender o indivíduo nesta etapa do desenvolvimento como um ser global. Iniciando tal compreensão a partir de uma perspectiva histórica, Ariès (1981) colocará que a infância adquiriu a concepção que adotamos hoje apenas no século XIX, uma vez que antes disto houve todo um processo de desenvolvimento da identidade infantil para a humanidade, que, só então, passou a reconhecer, de fato, as particularidades deste período de vida do ser humano. Do século X ao XVI a criança era vista como um adulto em miniatura, uma vez que a infância era considerada um período de transição, cuja lembrança logo seria perdida. Isto fica visível ao observarmos as pinturas da época que não demonstravam preocupação em diferenciar partes do corpo ou roupas de crianças e adultos, assim como ao identificarmos a escassez de vocábulos que diferenciassem a primeira infância das demais idades. Somente no século XVII percebeu-se um início importante de valorização da criança. Segundo Ariès (1981), estas passaram a aparecer no centro dos retratos das famílias, assim como a literatura, o vocabulário e as roupas tornaram-se mais distintos entre adultos e crianças. Em relação ao século XVIII, o mesmo autor destaca as Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 53-73 55 Ambiente escolar e aprendizagem na visão de pais e alunos do ensino fundamental práticas contraceptivas e a preocupação com a higiene e a saúde física como indicadores da ampliação dos cuidados com as crianças. Atualmente, diversos autores classificam e descrevem a infância, procurando abordar aspectos do desenvolvimento deste período. Adotaremos a visão de Bee (1997), que denomina como meninice intermediária a faixa etária entre os 6 e 12 anos. De acordo com esta autora, é importante ressaltar que por volta dos 6 ou 7 anos a maior parte das habilidades motoras mais importantes já está desenvolvida em sua forma básica e que, portanto, no período que compreende dos 6 aos 12 anos é esperado que ocorra uma coordenação cada vez maior para tarefas físicas específicas e que, desta forma, haja um aumento na velocidade para realização destes movimentos. Além do aprimoramento das habilidades motoras, a meninice intermediária compreende também o aprendizado das habilidades sociais adequadas com pessoas fora do círculo familiar mais restrito que, até então, representava o único ou o mais importante ambiente de convívio social das crianças. Levando em consideração estes dois aspectos, o cognitivo e o social, e também a idade em que este período começa (6 anos), podemos imaginar a importância que a escola terá no desenvolvimento das crianças. Para estas, a escola representa uma grande mudança no nível de expectativa e exigências dos pais, itens estes aos quais, geralmente, elas tentarão satisfazer. Com o início da escolarização formal, começam a surgir papéis específicos que fazem parte de cada cultura e o aprendizado de determinadas competências passa a ser fundamental para o desenvolvimento de qualquer ser humano. “O elemento central é que as relações das crianças com os outros tanto refletem quanto modelam a Boletim de Iniciação Científica e m Psicologia – 2002, 3(1): 53-73 56 Elaine Cristina de Freitas Miranda, Leda Gomes compreensão que elas têm de si mesmas e das relações”. (Bee, 1997, p. 293). A autora coloca que pesquisas mais recentes confirmam muitas das descrições de Piaget sobre as seqüências de desenvolvimento, embora questionem seu conceito básico de estágios. Assim, Bee (1997) considera importante também experiências ou especializações específicas de cada indivíduo, dizendo que estas afetam o momento de cada seqüência. Após esta abordagem sobre os aspectos cognitivos, é importante falarmos também do campo das relações. A mesma autora chama nossa atenção ao fato de que se tem dado maior importância a este campo nos últimos anos, podendo destacar dois aspectos principais que possam justificar tal acontecimento: • Muito da experiência em que se baseia a evolução cognitiva da criança ocorre nas interações sociais, especialmente durante o brincar; • As relações sociais fazem um conjunto singular de exigências, tanto cognitivas quanto interativas. De acordo com Bee (1997), meninos e meninas possuem mais amigos nesta fase do que quando pré-escolares, sendo que muitas dessas amizades são mais estáveis, perdurando durante o ano letivo e às vezes ultrapassando este tempo. É esperado que as relações dos garotos sejam mais extensivas e “limitadas”, com níveis maiores de competição e agressividade (embora haja uma redução da agressão física, ao passo que aumentam as verbais e os insultos). Já as relações entre as meninas costumam ser mais intensas e facilitadoras, com maior concordância e condescendência. Diferentemente das crianças em idade pré-escolar que parecem entender as amizades principalmente em termos de características Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 53-73 57 Ambiente escolar e aprendizagem na visão de pais e alunos do ensino fundamental físicas, nesta fase, o principal conceito sobre amizade é a confiança recíproca. Agora, amigos são as pessoas que ajudam e confiam uns nos outros, principalmente porque a criança nesta faixa etária muda sua atenção do exterior cada vez mais para o interior, tendo uma compreensão mais psicológica. Assim, os amigos são vistos como pessoas especiais, com diversas qualidades e com um papel central na vivência do outro. Quando falamos de auto-estima, tanto os valores dos pais quanto dos amigos devem ser vistos como opiniões que auxiliam a moldar a importância que a criança irá conferir a determinada habilidade ou qualidade. Podemos adotar a visão da autora sobre esta questão, uma vez que ela diz que o nível de auto-estima de uma criança pode ser entendido a partir de duas avaliações: qual o grau de discrepância entre o que ela gostaria de ser (ou crê que deveria ser) e aquilo que ela pensa ser; sensação geral de apoio que ela tem de alguma pessoa importante próxima a ela (em especial pais e companheiros). Em relação ao grau de discrepância, quando esse é baixo, a auto-estima costuma ser alta. E vice-versa. Os padrões não são os mesmos para todas as crianças, pois alguns valorizam muito habilidades acadêmicas, outros, habilidades esportivas ou as boas amizades. E tudo isto vai levando a criança a ampliar sua visão de simesma. Na meninice intermediária o self vai sendo visto cada vez mais como algo complexo, centralizado em aspectos psicológicos, nos sentimentos, nas idéias. Como bem coloca a autora, a vida diária de uma criança em idade escolar é modelada pelas horas passadas na escola, pela companhia dos amigos, pelas circunstâncias econômicas da família, pelos programas de televisão a que assiste e pela sociedade e cultura que a envolvem. Além de tudo isto, existem as diferenças individuais que não serão aqui enumeradas devido a sua complexidade. Boletim de Iniciação Científica e m Psicologia – 2002, 3(1): 53-73 58 Elaine Cristina de Freitas Miranda, Leda Gomes Quem é o adulto? Ao pensarmos em uma definição sobre o início da vida adulta, percebemos que não existe algo fechado neste sentido. As mudanças físicas e cognitivas no adulto são bastante variáveis de um indivíduo a outro, fazendo com que as definições para esta etapa do desenvolvimento mudem ao longo do tempo histórico, diferindo, muitas vezes, entre subgrupos. Entretanto, buscando um referencial teórico para este estudo, adotaremos a definição de Bee (1997), que divide o desenvolvimento adulto em três partes praticamente iguais: início da vida adulta, dos 20 aos 40 anos, vida adulta intermediária, dos 40 aos 65 anos, e final da vida adulta, dos 65 anos até a morte. Pelo caráter deste trabalho de pesquisa, maior enfoque será dado ao início da vida adulta. Segundo Bee (1997), o corpo encontra-se em seu auge dos 20 aos 40 anos. Os processos que se baseiam na velocidade do funcionamento mental, assim como os aspectos que dependem da eficiência fisiológica do organismo, encontram nesta etapa do desenvolvimento humano a melhor performance. É somente depois dos 40 anos que iniciam mudanças mensuráveis na maioria dos aspectos do desempenho. Vários teóricos pós-piagetianos trazem uma mudança nos adultos, relacionando-os ao desenvolvimento de uma nova espécie de pensamento, denominado “pós-formal”. Colocam que as exigências da vida adulta forçam o desenvolvi mento de uma forma mais pragmática de pensamento, a princípio, fazendo com que todo adulto aprenda a solucionar os problemas associados aos papéis que ele está desempenhando, buscando sempre chegar a respostas claras. Num segundo momento, começamos a mudar nosso modo de compreender as situações, valorizando mais a imaginação, aceitando os paradoxos e incertezas da vida. Assim, o conhecimento passa a ser relativo e a consciência de que não existe uma verdade absoluta Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 53-73 59 Ambiente escolar e aprendizagem na visão de pais e alunos do ensino fundamental passa a fazer parte do dia-a-dia dos adultos, demonstrando uma adaptação importante ao mundo. Apesar deste potencial cognitivo, social e emocionalmente, esses são os anos mais difíceis, quando comparados com outras fases da vida adulta. Grande parte dessas dificuldades estão relacionadas aos diferentes papéis que precisam ser aprendidos e que provocam diversas mudanças em todos indivíduos. De acordo com Bee (1997), o risco de transtornos emocionais é maior entre 25 e 44 anos, principalmente os relacionados à depressão, perturbações devido à ansiedade, abuso de substâncias e esquizofrenia. “Aquele período da vida em que vivenciamos o auge da função física e intelectual é também o período em que podemos estar mais propensos à depressão e a outras formas de problemas emocionais”. (Bee, 1997, p. 398) Freud já citava o amor e o trabalho como processos centrais na vida adulta. Bee (1997) ao falar da teoria de Erikson, coloca que o adulto jovem deve ser capaz de ter uma produtividade geral no trabalho sem que ele perca a capacidade de ser uma criatura amorosa. De uma maneira geral, defende a idéia de que esta idade do homem é caracterizada pela ampliação dos horizontes sociais, quando o adulto jovem saudável sai do lar paterno e se integra numa comunidade mais ampla, adquirindo um novo sentimento de camaradagem e solidariedade que não existia antes. Para assumirmos um lugar na sociedade, precisaremos adquirir, aprender e desempenhar diferentes papéis. Entre estes, três parecem ser fundamentais: o papel conjugal, o parental e o profissional. Boletim de Iniciação Científica e m Psicologia – 2002, 3(1): 53-73 60 Elaine Cristina de Freitas Miranda, Leda Gomes Talvez devido ao impacto mútuo desses vários papéis importantes, algumas mudanças na personalidade parecem ser compartilhadas entre a maior parte dos adultos: no início da fase adulta, há um aumento de confiança, auto-estima, independência e orientação para as conquistas. E, à medida que o jovem adulto domina os vários papéis, fica mais capacitado a afirmar sua individualidade, sendo cada vez menos governado por padrões sociais. Vários fatores podem influenciar para que estas características sejam desenvolvidas em maior ou menor grau, assim como o nível de dificuldade e estresse na vivência dos diversos papéis analisados. Entre estes, Bee (1997) cita a classe social familiar, a personalidade e as escolhas pessoais. Em relação à classe social, a autora coloca que um adulto vindo de um contexto familiar desordenado ou cheio de privações apresenta maior probabilidade de permanecer como membro da classe social mais inferior. Sobre as escolhas pessoais, inclui os hábitos de saúde, assim como as opções acerca do momento certo para a adoção de vários papéis importantes. O ADULTO E A ESCOLA DOS FILHOS Ao pensar nestas duas instituições, a dizer, escola e família, parece ser importante resgatar o quadro familiar. Diante de tantas transições pelas quais passamos e iremos passar ao longo da história, sejam elas de valores, políticas ou escolar, percebemos o quão ligadas à sociedade estas instituições estão. Citando Valente (1995, p. 21), podemos refletir “se é a sociedade que ao modificar-se e evoluir interfere sobre as unidades institucionais, ou se são as instituições, família e escola, entre elas, que ao mudarem provocam mudanças na sociedade como um todo”. Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 53-73 61 Ambiente escolar e aprendizagem na visão de pais e alunos do ensino fundamental Segundo Soifer (apud Valente, 1995, p.47), “a família é um núcleo de pessoas que convivem em determinado lugar, durante um laps o de tempo mais ou menos longo e que se acham unidas (ou não) por laços consangüíneos. Este núcleo por seu turno, se acha relacionado com a sociedade, que lhe impõe uma cultura e ideologia particulares, bem como recebe dele influências específicas”. Na tentativa de ampliar esta concepção mais moderna de família, queremos ressaltar não apenas as influências sociais, como também psicológicas de cada integrante, principalmente as oriundas do casal parental. Com o nascimento dos filhos, este casal precisa resgatar o significado do que é ser filho para, só então, conseguir elaborar e imaginar o papel de pai e mãe. Isto significa que o casal parental irá planejar, fazer projetos para a vida desta criança. Podemos perceber que estes projetos envolvem os próprios desejos dos pais, não só daquilo que eles tiveram de positivo em suas vivências e que, enfim, querem que a criança também tenha, como de tudo aquilo que não conseguiram realizar para si mesmos e que, portanto, projetam de forma esperançosa neste representante da nova geração. É no momento da escolha do local de estudo que se revela a ideologia da família. Para o bom funcionamento de qualquer proposta pedagógica deve existir uma concordância de objetivos e valores por parte dos seus interessados, a família e a escola. Valente (1995) coloca que grande parte dos pais e mães deixam transparecer em seus depoimentos a desorientação, dúvida ou conflito que enfrentam quando têm que escolher uma escola para seus filhos, pois não se identificam totalmente com nenhuma proposta pedagógica, embora cada uma delas traga alguns pontos que julgam interessante para o desenvolvimento dos filhos. Nos dias atuais, muitos questionamentos são feitos pelo casal parental acerca das novas metodologias de Boletim de Iniciação Científica e m Psicologia – 2002, 3(1): 53-73 ensino, também 62 Elaine Cristina de Freitas Miranda, Leda Gomes chamadas de “experimentais”. Para aqueles que têm opções de escolha, o método de ensino das escolas tradicionais e o das escolas ‘experimentais’ aparece como uma das principais dúvidas dos pais: enquanto o ‘novo’ proposto pelas escolas ‘experimentais’ apresenta uma proposta mais voltada para as características de cada criança, oferecendo classes menores e critérios de avaliação individualizados, “os valores arcaicos não foram erradicados e passam a conviver em diferentes níveis de consciência com os novos valores. A escola tradicional que deu resultados para os pais modernos, torna-se então um caminho seguro para seus filhos trilharem na atualidade. Como confiar em algo novo se a experiência que deu certo é a arcaica?”. (Valente, 1995, p. 26). Escola e ambiente físico Uma grande questão busca resposta quando pensamos na educação: Qual a influência do ambiente físico na aprendizagem? Será este determinante ou apenas um facilitador para tal processo? Ao procurar maiores informações sobre isto, descobrimos profissionais da arquitetura especialistas em educação, como Mayumi Watanabe Lima, cujos escritos servirão como base para este aspecto do atual estudo. Adotando o ponto de vista de Lima (1995), percebemos que a escola é reflexo do social, mais especificamente da hierarquia de poderes, podemos relembrar a visão de escola pública do passado e de hoje. Esta, enquanto atendia às pessoas da elite, era valorizada e seus ambientes mais diversificados e melhor conservados; grande importância era atribuída às condições físicas necessárias à educação. Em contrapartida, ao atender predominantemente a população mais pobre, a “filosofia” da escola pública é mudada e, assim, ela passa a ser representada por um conjunto de salas, construídas de forma “rápida e barata”, desde que “atenda à demanda social”, mesmo que Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 53-73 63 Ambiente escolar e aprendizagem na visão de pais e alunos do ensino fundamental isso signifique uma tentativa de resolver a questão escolar em termos quantitativos apenas. Buscando compreender as contribuições do ambiente físico ao desenvolvimento e aprendizagem, devemos levar em consideração que: “Para qualquer ser vivo, o espaço é vital, não apenas para a sobrevivência, mas sobretudo para o seu desenvolvimento. Para o ser humano, o espaço, além de ser um elemento potencialmente mensurável, é o lugar de reconhecimento de si e dos outros, porque é no espaço que ele se movimenta, realiza atividades, estabelece relações sociais”. (Lima, 1995, p. 187) Nos dias de hoje, em que, cada vez mais, as crianças ficam dentro de apartamentos minúsculos, onde o espaço para o brincar é reduzido, e as ruas e praças ficam vazias devido à insegurança em que vivemos, percebe-se que o desenvolvimento e o aprendizado do viver coletivo estão cada vez mais restritos. E, como coloca Lima (1995), justamente “numa época histórica em que o crescimento demográfico, as crises econômico-sociais e a pluralidade cultural exigem, de cada um, (...) atos responsáveis” (p. 190). E a criança, onde consegue tal aprendizado além do proporcionado pela família (lembrando-se que esta cada vez tem menos tempo disponível)? Certamente valores como o conviver em grupo, a partilha, a solidariedade, o aceitar uma opinião diferente da sua não são aprendidos por completo simplesmente ouvindo um discurso acadêmico sentado, dentro de uma sala de aula. O brincar, o interagir com os outros e com o meio são fundamentais para tal Boletim de Iniciação Científica e m Psicologia – 2002, 3(1): 53-73 64 Elaine Cristina de Freitas Miranda, Leda Gomes aprendizado. E, neste sentido, o ambiente físico é uma variável importante. Os objetos, os espaços disponíveis para cada atividade, a mobília, características do entorno (jardins, bancos, praças etc) podem funcionar como facilitadores deste processo de aprendizagem, oferecendo mais alternativas para a percepção e criatividade de cada um. A mesma autora fala do brincar não apenas colocando-o como fundamental em termos de relacionamento da criança com outras pessoas e objetos, mas também como uma possibilidade de passagem de tradições, lembrando-nos de como muitas brincadeiras dos adultos foram passadas para o universo infantil durante séculos (espetáculos de lutas, jogos de adivinhação, cavalo-de-pau, catavento etc). Objetivos Este estudo teve como principal objetivo verificar quais aspectos do ambiente escolar são importantes para a aprendizagem. Para tanto, buscou-se observar se existiam coincidências entre as lembranças dos pais sobre sua vivência escolar primária e os aspectos trazidos pelos filhos que estão nesta fase de desenvolvimento. Além disto, um objetivo secundário foi o de verificar se a amostra, composta por pais e filhos, abordaria o ambiente físico escolar de forma significativa. Método Foi realizada uma entrevista com nove famílias, sendo que cinco possuíam filhos estudando em escolas estaduais e quatro em particulares. A entrevista foi feita com os pais, baseada em um questionário, que buscava analisar não apenas as lembranças destes sobre a época em que estavam no ensino primário, como também conhecer quais foram os motivos para escolha do atual local de Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 53-73 65 Ambiente escolar e aprendizagem na visão de pais e alunos do ensino fundamental estudo do filho, procurando identificar que tipos de aquisições desejam que as crianças alcancem nesta vivência escolar. Com as crianças foi realizado um KSD (Desenho Cinético da Escola) modificado, solicitando às mesmas que desenhassem uma escola da forma mais completa que conseguissem. Tal instrumento possibilitou posterior análise sobre as pessoas e demais aspectos desenhados espontaneamente por cada aluno, demonstrando a percepção destes sobre sua vivência escolar atual. As questões feitas aos pais foram: 1) Quais recordações você tem da sua vivência escolar primária? 2) Quais coisas do ambiente escolar desta época são lembradas por você? 3) Em relação ao ambiente físico escolar quais são suas lembranças? 4) Quando você pensa nesta fase escolar, quais são as pessoas da escola mais significativas deste período? Explique o motivo desta importância. 5) O que levou você a escolher a escola atual do seu filho como local em que o mesmo deveria estudar? 6) Quais lembranças você gostaria que seu filho levasse desta experiência escolar primária? 7) Quais valores você gostaria que seu filho aprendesse nesta vivência escolar? 8) Levando em consideração a sua vivência escolar primária, o que você gostaria que fosse semelhante e o que gostaria que fosse diferente na experiência escolar do seu filho? Discussão dos resultados A maior parte dos pais entrevistados (seis) citaram a relação professor-aluno ao serem questionados sobre suas primeiras recordações da vivência escolar primária. Na questão que fazia referência às pessoas significativas deste período, todos os participantes (nove) citaram professores. É importante destacar que estas recordações foram apresentadas pelos entrevistados de forma predominantemente positiva. Boletim de Iniciação Científica e m Psicologia – 2002, 3(1): 53-73 66 Elaine Cristina de Freitas Miranda, Leda Gomes Nas recordações destes pais, outro item bastante citado foi a auto-imagem (cinco pessoas). Algo que merece destaque em relação a esta lembrança é que quatro das cinco respostas nesta categoria aparecem com um caráter negativo. É interessante pensarmos em uma relação entre os dois itens anteriores: a visão do professor predominantemente positiva enquanto a visão de si mesmo é, na grande maioria, negativa. Levando em consideração que todos os pais deste estudo freqüentaram escolas estaduais que adotavam o método de ensino tradicional, fica a hipótese de uma influência marcante da escola tradicional nesta visão negativa e cheia de culpa dos entrevistados, do tipo “o professor era competente, eu é que não era suficientemente inteligente e adequado”. Com três respostas cada, a relação aluno-aluno, a lembrança de eventos (passeios, campeonatos etc.), o uniforme e material escolar, assim como a citação de acontecimentos sociais do passado (vacinação na escola e menor índice de violência) foram recordações apresentadas pelos pais entrevistados. Abordadas pelos pais com menor freqüência (duas respostas) apareceram: a relação aluno-demais funcionários da escola (diretora), lembranças da família (reuniões, incentivo para o estudo) e valores ensinados na escola. Ainda em relação às recordações dos pais neste período, o ambiente físico interno (detalhes da sala de aula), o externo (o caminho da escola), a merenda e a lembrança do vendedor de doces que ficava na frente da escola foram itens que receberam apenas uma resposta. Ao serem questionadas objetivamente sobre as lembranças do ambiente físico escolar, cinco famílias falaram sobre ambientes informais (banheiros, cantina, pátio); também com cinco repostas, aparecem os atributos do prédio escolar (aspectos de limpeza, tamanho da escola, detalhes do prédio). Três pessoas responderam lembrar dos ambientes formais, descrevendo Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 53-73 a localização, o 67 Ambiente escolar e aprendizagem na visão de pais e alunos do ensino fundamental tamanho e os detalhes da sala de aula. Além disto, duas respostas falam do ambiente externo (quadras de esporte e jardins), outras duas dos locais de circulação (escadas e corredor) e, por fim, um dos participantes não conseguiu trazer lembranças relacionadas ao ambiente físico. Outro aspecto abordado nesta pesquisa foram os critérios de escolha dos pais entrevistados sobre o local de estudo dos filhos. Vale ressaltar que a amostra deste estudo é composta por quatro famílias com filhos em escola particular e cinco em escola estadual. Apesar deste número, apenas três famílias disseram não ter tido escolha em relação ao local de estudo devido à matrícula automática das crianças. Entre os fatores citados pelos pais, em primeiro lugar apareceram as questões pedagógicas (método de ensino, diferentes tipos de atividades, aulas que demonstram o conhecimento na prática, a formação dos professores etc.), destacadas por cinco pais. Em segundo lugar, empatados com três respostas cada um, os fatores espaciais (tamanho da escola, conservação) e as questões sociais (segurança e possibilidade de vivenciar a realidade do país). O fator financeiro foi colocado por duas pessoas: uma que conseguiu bolsa parcial para os filhos e outra que acredita que a escola atual do filho oferece boas condições de ensino por um preço acessível. A indicação da escola por conhecidos foi uma outra categoria de resposta que recebeu duas citações. Ainda em relação aos critérios para escolha do local de estudo, as relações institucionais (bom ambiente, com pessoas alegres e interagindo) e a localização da escola (proximidade) receberam uma resposta cada. Outra questão deste estudo procurou analisar que lembranças os pais gostariam que seu filho levasse desta experiência escolar primária. Todos os participantes (nove famílias) trouxeram os Boletim de Iniciação Científica e m Psicologia – 2002, 3(1): 53-73 68 Elaine Cristina de Freitas Miranda, Leda Gomes relacionamentos como fundamentais nesta vivência. Desta resposta, duas hipóteses podem ser levantadas: o desejo dos pais de que os filhos tenham experiências semelhantes àquelas que eles tiveram no período correspondente, pelo menos no que se refere ao valor dos relacionamentos, e também a possível influência de diversos estudos da atualidade que enfatizam a importância dos aspectos relacionais. Cinco famílias colocaram aspectos da aprendizagem como lembranças que gostariam que seus filhos guardassem deste período. Entre estes aspectos, citaram a aprendizagem propriamente dita, a alfabetização para o resto da vida, a educação de uma maneira geral, as atividades realizadas e a lembrança de um tempo só para estudar. Em terceiro lugar, desenvolvimento de quatro famílias valores morais citaram (base a de aquisição e honestidade e solidariedade, respeito pelos outros, humildade e respeito às regras). Os esportes e passeios foram colocados por duas famílias; o clima da escola por uma e, por fim, outra participante da entrevista quer que o filho guarde na lembrança a ajuda que a família sempre forneceu em seu processo de aprendizagem. Em relação aos desenhos das crianças podemos destacar que a presença de pessoas é algo que surgiu em oito dos dez desenhos. Cinco crianças representaram a relação professor-aluno e outras duas desenharam a figura do professor. Esta referência é muito semelhante, em termos de freqüência, às respostas dadas na primeira questão respondida pelos pais entrevistados. Em contrapartida, enquanto alguns pais (dois) colocaram nesta questão a lembrança da família, nenhuma criança trouxe esta associação. Talvez nesta idade as crianças procurem criar diferenciações entre o ambiente escolar e o familiar, para que, mais tarde, quando forem jovens ou adultos, possam integrar estas lembranças espontaneamente, compreendendo o quão relacionadas estão estas duas instituições. Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 53-73 69 Ambiente escolar e aprendizagem na visão de pais e alunos do ensino fundamental O ambiente físico interno desenhado por seis crianças e o externo por quatro diferem das lembranças dos pais: apenas uma família falou sobre o ambiente interno e outra do externo. Podemos pensar nas diferenças cognitivas entre crianças e adultos: enquanto as primeiras pensam de forma mais concreta, os adultos conseguem abstrair, comparar e relativizar. Assim, enquanto a maior parte das crianças desenhou e enfatizou o ambiente físico escolar de forma a contextualizar sua percepção, os pais fizeram referências mais significativas neste sentido quando foram questionados sobre os motivos que os levaram a escolher a escola atual do filho. A sala de aula e seus atributos, como lousa, carteiras e armários, foram os mais desenhados quando pensamos na representação do ambiente escolar. Isto aconteceu uma vez que cinco crianças representaram a escola desenhando uma sala de aula, caracterizando estas com os atributos já citados a pouco. Comparando estes dados com as respostas dos pais à questão que abordava o ambiente físico escolar, observamos semelhanças nos dados relacionados aos atributos do prédio, como detalhes, tamanho etc. Entretanto, a ênfase dada pelas crianças na sala de aula, ou seja, nos ambientes formais, é bem diferente do relatado como lembrança dos pais: a maior parte destes, destacou os ambientes informais, como a cantina, o pátio e os banheiros. Talvez isto aconteça em função das crianças procurarem satisfazer às expectativas dos pais, ou seja, quando estes colocam os filhos na escola é evidenciado qual o papel desta, o que eles deverão aprender, a importância dos conteúdos ministrados. Segundo Bee (1997), a escola representa uma grande mudança no nível de expectativa e exigência dos pais, itens que geralmente as crianças tentam satisfazer. Como muitas escolas ainda são tradicionais ou adotam aspectos do método tradicional, como possuir diversas aulas numa sala com moldes semelhantes e também como a maior parte Boletim de Iniciação Científica e m Psicologia – 2002, 3(1): 53-73 70 Elaine Cristina de Freitas Miranda, Leda Gomes dos pais esperam que a criança leve da experiência escolar lembranças e conhecimentos relacionados à aprendizagem (vide resultados já descritos neste estudo), possivelmente os alunos associem o aprender à sala de aula e, conseqüentemente, talvez esta seja a melhor representação que encontram de uma escola, enquanto instituição de ensino. Conclusão Partindo da questão central deste estudo, que buscava analisar se existem coincidências entre as lembranças da vivência escolar primária dos pais e a dos filhos que se encontram nesta fase, pudemos observar que os relacionamentos e as questões diretamente ligadas à aprendizagem foram os aspectos em comum mais presentes na pesquisa. Assim, os relacionamentos professor-aluno e aluno-aluno receberam grande destaque na entrevista realizada com os pais não só no que se refere às lembranças de suas vivências, como também ao relatarem suas expectativas de que os filhos possam vivenciar relações e desenvolverem vínculos saudáveis durante estes primeiros anos de escolaridade. Em relação às questões pedagógicas, os pais desta amostra trouxeram tal aspecto de forma significativa ao falarem dos motivos para escolha do local de estudo dos filhos, assim como ao colocarem que tipo de lembranças gostariam que os filhos levassem da vivência escolar primária. Estes dois aspectos também apareceram nos desenhos das crianças, que evidenciaram, na grande maioria, a situação de sala de aula, assim como os relacionamentos, através da presença de pessoas, em especial a figura do professor e dos alunos. Outros aspectos, entretanto, não demonstraram coincidências expressivas, ao ponto de poderem ser generalizadas Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 53-73 para o 71 Ambiente escolar e aprendizagem na visão de pais e alunos do ensino fundamental entendimento da questão escolar. Tal fato pode estar relacionado às vivências individuais de cada pessoa. Desta forma, podemos imaginar que um adulto pode ter trazido questões sociais em suas lembranças sobre a vivência escolar primária porque estas foram marcantes em sua história de vida, o que não significa, necessariamente, que seu filho irá experienciar os acontecimentos enfatizando tais questões. Além disto, as formas de pensamento e apreensão da realidade de crianças e adultos possuem diferenças importantes. O fato dos pais possuírem maior capacidade de abstração, enquanto as crianças nesta faixa etária ainda dependem de forma significativa do concreto para darem sentido às suas vivências, pode representar um outro fator que explique a restrição de coincidências claras entre pais e filhos aos aspectos já citados (relacionamentos e questões pedagógicas). Quando pensamos na questão secundária deste estudo, que buscava observar se o ambiente físico escolar seria trazido de forma significativa por pais e filhos, os resultados demonstraram uma valorização maior deste aspecto por parte das crianças. Mais uma vez, podemos pensar que este resultado pode ser reflexo não apenas dos instrumentos utilizados, como também das diferenças cognitivas existentes entre adultos e crianças. Referências Bibliográficas ABRAMOVICH, F. (org.) Meu professor inesquecível: ensinamentos e aprendizados contados por alguns dos nossos melhores escritores. São Paulo, Editora Gente, 1997. ABRAMOVICH, F. (org.) 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