O entrelaçar da história e da ficção em Memorial do convento e Os sinos da agonia
Elizabete Arcalá Sibin. (Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE)
RESUMO: A temática da relação entre literatura e história tem sido bastante explorada desde
os escritos historiográficos da Idade Média até a contemporaneidade, quando surgem novas
possibilidades de tratamento do fato histórico a ser representado como: história romanceada,
metaficção historiográfica, romance de “fundo” histórico, entre tantas outras narrativas que
perpassam a relação entre história e literatura e problematizam o discurso histórico ao propor
sua releitura. A proposta deste trabalho, tendo como base teórica Le Goff (1996), Hutcheon
(1991), Kaufman (1987), Aguiar (1997), é discutir como José Saramago e Autran Dourado
trabalham com a temática histórica e conferem novas características ao romance histórico,
sendo, ambos, escritores contemporâneos que voltam seu olhar para o século XVIII. Em
Memorial do convento (1982), José Saramago relata as questões históricas e ideológicas,
ocorridas durante o reinado de D. João V, por meio da construção de um discurso literário que
se caracteriza pela presença de várias vozes que vão assumindo pontos de vista diferenciados
e, com isso, desvendam o pensar saramagueano acerca da sociedade portuguesa e, em Os
sinos da agonia (1974), Autran Dourado discute o universo sociocultural de uma parcela da
sociedade brasileira da segunda metade do século XVIII, pois sua obra é ambientada no
interior de Minas Gerais, mais precisamente em Vila Rica, apresentando, via narrativa, uma
sociedade cuja força de trabalho encontra-se centrada na escravidão e as famílias mais
abastadas daquela localidade encontram-se preocupadas com a decadência prenunciada pela
exaustão das minas e pelo endividamento dos donos de minas para com a Coroa portuguesa.
PALAVRAS-CHAVE: Romance; Metaficção Historiográfica; Literatura e História;
ABSTRACT: The theme of the relationship between literature and history has been quite
explored since the historiographical writings of the Middle Ages until the present, when new
possibilities for treatment of historical fact be represented as romanticized history,
historiographic metafiction, romance of " background " historical, among many other
narratives that underlie the relationship between history and literature and problematize the
historical discourse by proposing a rereading. In this paper, based on theoretical Le Goff
(1996 ), Hutcheon (1991 ), Kaufman (1987), Aguiar (1997), isto discuss how José Saramago
and Autran Dourado work with the historical theme and provide new features to the historical
novel being both contemporary writers returning his gaze to the eighteenth century . In
Memorial of the Convent (1982), José Saramago recounts the historical and ideological issues
that occurred during the reign of King John V, through the construction of a literary discourse
that is characterized by the presence of several voices that are assuming different points of
view and, therefore, reveal the saramagueano think about the Portuguese society, and Bells of
Agony (1974) Autran Dourado discusses the socio-cultural universe of a portion of the
Brazilian society of the second half of the eighteenth century because his work is set in the
interior of Minas Gerais, more precisely in Vila Rica, presenting, via narrative, a company
whose workforce is focused on slavery and wealthy families of that locality are concerned
with the decay foreshadowed by the exhaustion of the mines and the mine owners of the debt
to the Crown of Portugal.
KEYWORDS: Romance; historiographic metafiction; Literature and History;
A RELAÇÃO ENTRE LITERATURA E HISTÓRIA
De acordo com Linda Hutcheon (1991), no início do século XX, literatura e história
eram vistas como pertencentes à mesma área de conhecimento, visto que ambas objetivavam
interpretar experiências de vida para fornecer orientações aos indivíduos, buscando elevá-los
enquanto seres humanos. Com o passar do tempo, essa ideia foi refutada, por isso literatura e
história começaram a ser vistas como disciplinas completamente diferentes, mas a pósmodernidade contesta essa separação ao afirmar que há traços comuns entre textos literários e
historiográficos, pois ambos apresentam o verossímil representado por meio da construção
linguística.
Lidar com a literatura e a história, enquanto textos que, num certo momento, se
cruzam, pressupõe uma nova forma de leitura para as duas áreas, pois a história tem se
servido da literatura para compreendera representação do mundo, enquanto a literatura faz uso
da história como fonte de conhecimento do real a ser representado. A recriação do passado,
por meio da representação literária não apresenta reflexos da realidade, mas os sentidos que
foram construídos historicamente pela humanidade, por meio da manipulação ideológica. A
literatura busca captar a realidade e transpô-la para a arte com a liberdade de fazer uso da
imaginação para criar narrativas, nas quais os fatos ocorridos no passado servem de pano de
fundo, sem a obrigatoriedade de comprová-los, embora a obra deva ser verossímil, conforme
Le Goff (1996 p 50):
Devo acrescentar que tenho muitas vezes prazer em ler – quando são bem
feitos e escritos – os romances históricos e que reconheço aos seus autores a
liberdade de fantasia que lhes é devida. Mas naturalmente que, se pedirem a
minha opinião de historiador, não identifico com história as liberdades aí
tomadas. E porque não um setor literário da história-ficção na qual,
respeitando os dados de base da história – costumes, instituições,
mentalidades – fosse possível recriá-las, jogando com o acaso e com o
événementiel?
Segundo Baumgartner (2000), define-se como romance histórico o gênero que tem
por objetivo apropriar-se de acontecimentos históricos que marcaram uma determinada
sociedade. O surgimento do romance histórico está ligado à ascensão da burguesia ao poder,
fato que provocou muitas mudanças sociais, políticas e econômicas no século XIX.
O romance histórico surgiu durante o Romantismo, movimento literário conhecido
por apresentar uma nova sensibilidade artística baseada na subjetividade no individualismo.
Essa nova tendência possibilita o surgimento do novo gênero, pois os escritores românticos
valorizam os heróis nacionais, voltando-se para a Idade Média por ser o período de formação
das nações europeias. O romance Ivanhoé, escrito por Walter Scott e publicado em 1819, é
considerado a primeira obra do novo gênero. Desde então, os escritores que optaram por
produzir romances históricos, seguindo a linha tradicional de Scott, conservam em seus textos
as seguintes características: presença de fatos históricos de uma determinada época e
sociedade para ambientar suas personagens; o enredo se desenvolve no passado, num tempo
diferente do tempo do escritor; presença de personagens históricas, cuja existência pode ser
facilmente comprovada, convivendo com personagens fictícias; papel secundário delegado às
personagens históricas; presença de uma história de amor com final trágico ou feliz; os dados
históricos e o respeito á cronologia dos acontecimentos históricos garantem a verossimilhança
da narrativa; a narração ocorre em terceira pessoa para dar o efeito de distanciamento.
A partir do século XX, as características do romance histórico sofrem
transformações. Frederic Jameson (1997), afirma que os estilos do passado foram
transformados em simulacro, pois recriam o passado como se fosse uma época ideal, o que, na
verdade, nunca existiu, pois:
O próprio passado é, assim, modificado: o que antes era, no romance histórico,
segundo a definição de Lukács, a genealogia orgânica de um projeto burguês coletivo
[…] transformou-se, nesse meio tempo, em uma vasta coleção de imagens, um
enorme simulacro fotográfico. (JAMESON, 1997, p.45)
Para Lukács, o romance histórico consiste na criação de um universo particular, em
que o protagonista representa as determinantes sociais e humanas para revelar como a história
de um povo foi construída. Desse modo, pode-se afirmar que as transformações são
perfeitamente possíveis, pois os sujeitos representados, tanto na história quanto na literatura,
são constructos de manifestações discursivas, as quais, inseridas em certo contexto
ideológico, produzem sentidos diferenciados.
Com a evolução da sociedade, a releitura dos acontecimentos históricos pela ficção
também sofreu alterações, surgindo novas possibilidades de tratamento do real a ser
representado. Por isso, o romance histórico, em alguns casos, manteve suas características
tradicionais, mas também sofreu alterações, dando origem a outras formas de tratar os
acontecimentos históricos na obra ficcional, como: a história romanceada, a metaficção
historiográfica, o romance de “fundo” histórico, entre tantas outras narrativas que perpassam a
relação entre história e literatura e problematizam o discurso histórico ao propor sua releitura.
Para Linda Hutcheon (1991), o romance histórico tradicional segue o mesmo modelo
das antigas historiografias, as quais tinham por objetivo narrar os feitos e as experiências
políticas e sociais de um povo, usando a história como ambientação de seus personagens.
Com as inovações do gênero, porém, surge a metaficção historiográfica, romance pósmoderno que tem como pano de fundo a história e no qual as personagens são idealizadas
como tipos que concentram os fatos, são seres que se encontram na periferia dos
acontecimentos. Por isso, a obra deixa transparecer a diversidade ideológica que compõe a
sociedade, como afirma Hutcheon, (1991, p.51):
A metaficção historiográfica adota uma ideologia pós-moderna de
pluralidade e reconhecimento da diferença: o tipo tem poucas funções,
exceto como algo a ser atacado com ironia. Não existe nenhuma
universalidade cultural.
A narrativa de caráter metaficcional enfatiza os sentidos criados pelos fatos
históricos, por isso aproveita tanto as verdades quanto as “mentiras” históricas, preocupandose com a forma como os indivíduos tomam conhecimento do passado e promovendo uma
revisão dos fatos históricos, pois a preocupação do escritor está voltada para o modo como a
produção e a recepção das ditas verdades históricas ocorrem. A característica marcante do
texto metaficcional é a incerteza, provocada no leitor, acerca dos fatos, que podem ser
desestabilizados de dois diferentes modos: primeiro por um narrador declarado que busca
manipular os fatos; segundo, pela presença de inúmeras vozes discursivas que colocam o
leitor em contato com as várias ideologias em conflito, no texto, operacionalizando o
questionamento dos fatos históricos.
Os autores de textos metaficcionais, embora trabalhem com a recuperação de fatos
históricos, não estão preocupados em apresentar apenas o pensamento da classe dominante do
período a ser representado, pois seus textos buscam revelar as diferentes ideologias que
coexistem na sociedade, fazendo com que o leitor tenha consciência do modo como o
processo ideológico moldou o desenvolvimento histórico de uma época, colaborando na
formação dos sentidos culturais. O modo como o discurso é construído, nas obras pósmodernas, mesclando o histórico e o ficcional, leva o leitor a questionar o passado. Tal
questionamento se torna possível porque, nessas obras, o passado é reconstruído, não por
meio do olhar nostálgico que coloca os fatos como verdades acabadas de um paraíso perdido a
ser recuperado, mas como algo que é passível de dúvidas em função de um discurso irônico
que distancia temporalmente a narração dos fatos narrados, como afirma Hutcheon (1991, p.
128), “portanto, o pós- moderno realiza dois movimentos simultâneos. Ele reinsere os
contextos históricos como sendo significantes, mas ao fazê-lo, problematiza toda a noção de
conhecimento histórico.”
O ENTRELAÇAR DA HISTÓRIA E DA FICÇÃO EM MEMORIAL DO CONVENTO
O romance Memorial do convento, publicado em 1982, é considerado pela crítica um
dos melhores textos literários, escritos no século XX, que tem por temática uma parte da
história de Portugal. O romance retrata o período do reinado de D. João V, que assumiu o
trono em 1707, servindo de ambientação para a apresentação da história de vida de Baltasar e
Blimunda, dois seres materialmente miseráveis, mas de uma riqueza incontestável no que se
refere ao seu modo simples de refletir sobre o mundo e as circunstâncias que os rodeiam.
Esses personagens, criados pelo escritor José Saramago, são seres tão especiais que, apesar
dos obstáculos que precisam enfrentar na luta pela sobrevivência, conseguem ser felizes, não
transmitindo, a nós leitores, a sensação de angústia ou de pena diante da existência tão sofrida
que levam. Além de Baltasar e Blimunda, o autor apresenta personagens históricos, como o
rei D. João V, a rainha D. Maria Ana Josefa e frei Bartolomeu de Gusmão.
O governo de D. João V, que se estendeu de 1707 a 1750, ocorreu entre os conflitos da Restauração
e o governo do Marquês de Pombal, por isso Portugal passou por um período bastante conturbado, marcado
por graves crises econômicas, sociais e culturais. O povo português ainda estava preocupado com o fim das
glórias obtidas com as grandes conquistas marítimas, o que fazia com que o país mantivesse muitas
características de uma estrutura senhorial em pleno desenvolvimento do capitalismo mercantilista, o que
colaborou para o agravamento da crise financeira da nação portuguesa. Dentre os fatos históricos, ocorridos
nesse período, são representados ficcionalmente por José Saramago: a construção do Convento de Mafra, a
Guerra de Sucessão, a invenção da passarola e os atos do Santo Ofício.
A Guerra de Sucessão, resultante da oposição de Portugal, Inglaterra e Holanda ao acordo que uniria
os reinos da Espanha e da França, é retratada para dar verossimilhança a personagem Baltasar. O ex-soldado
Baltasar Sete-Sóis é um camponês que abandonou tudo para participar da Guerra de Sucessão. Ele retorna a
Lisboa, no início do romance, tendo como único prêmio a amputação da mão esquerda, uma vez que nem a
pensão, a que ele teria direito, o rei lhe concedeu. Jovem ainda, aos vinte e seis anos, o ex-soldado se arranja
como pode vagando a pé para Lisboa, pedindo esmolas quando o dinheiro lhe falta e dormindo sob telheiros,
como relata o narrador:
Quando Sete –Sóis chegou a Aldegalega estava anoitecendo. Comeu umas sardinhas fritas,
bebeu uma tigela de vinho e, não lhe chegando o dinheiro para a pousada, tão-só, à escassa,
para a passagem amanhã, meteu-se num telheiro, debaixo de uns carros, e aí dormiu,
enrolado no capote, mas com o braço esquerdo de fora e o espigão armado. (M.. C, p. 38) 1
Baltasar é o ex-soldado que, agora, luta por sobrevivência e quase não questiona os fatos a sua volta.
A Guerra de Sucessão é apenas mencionada para ambientar o soldado que volta da batalha, fato comum no
século XVIII, em Portugal. O fato histórico que motiva a escrita do romance de José Saramago não é o relato
da guerra, mas sim a construção do Convento de Mafra. O rei D. João V promete construir o convento na
cidade de Mafra, caso seja agraciado com um herdeiro que venha sucedê-lo na coroa portuguesa. Tal promessa
é feita por causa da influência de um frei que garante ter recebido a revelação de que Deus concederia um filho
ao rei se o convento fosse construído, como se pode notar na passagem do romance:.
Perguntou el-rei, É verdade o que acaba de dizer-me sua eminência, que se eu prometer
levantar um convento em Mafra terei filhos, e o frade respondeu, Verdade é, senhor, porém
só se o convento for franciscano, e tornou el-rei, Como sabeis, e frei António disse, Sei, não
sei como vim a saber, eu sou apenas a boca de que a verdade se serve para falar, (M.C, p.
14)
O discurso do frei tece a manipulação dos fatos, pois ele afirma ter conhecimento o que irá
acontecer, impõe a condição de que o convento deve ser da ordem dos franciscanos, mas não tem nenhuma
explicação plausível para o que diz saber sobre o futuro herdeiro do rei, que resolve acatar a recomendação de
frei António:
Então D. João, o quinto de seu nome, assim assegurado sobre o mérito do empenho,
levantou a voz para que claramente o ouvisse quem estava e o soubessem amanhã cidade e
reino, Prometo pela minha palavra real, que farei construir um convento de franciscanos na
vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano a contar do dia em que
estamos, (M.C, p. 14).
A influência dos líderes religiosos está ligada também à construção da passarola, por Bartolomeu de
Gusmão, uma espécie de protótipo do balão. Frei Bartolomeu Lourenço de Gusmão, embora tenha nascido no
1
Todas as citações do romance Memorial do convento referem-se a: SARAMAGO, José. Memorial do convento. Rio
de Janeiro: Bertrand-Brasil, 1996, que, no presente trabalho, será referenciado pela abreviatura M.C, seguido do
número da página.
Brasil, fazia parte da corte portuguesa por ser secretário particular de D. João V. Por causa de suas ideias
inovadoras sobre os dogmas católicos e de suas invenções, o frei foi acusado de judaísmo e perseguido pelo
Tribunal da Santa Inquisição. No romance, ele revela o pouco espaço que coube ao pensamento científico na
sociedade portuguesa, pois, na época, a ciência era considerada uma ameaça aos domínios da Igreja Apostólica
Romana. Por força da pressão inquisitorial, depois de pronta a máquina de voar, frei Bartolomeu enlouquecido
foge e abandona involuntariamente seus projetos científicos.
Temos de fugir, o Santo Ofício anda à minha procura, querem prender-me, [...] Vamos fugir
na máquina, depois como subitamente assustado, murmurou quase inaudivelmente,
apontando a passarola, Vamos fugir nela, Para onde, Não sei, o que é preciso é fugir daqui.
Baltasar e Blimunda olharam-se demoradamente, Estava escrito, disse ele, Vamos disse ela.
(M.C, p. 193)
A perseguição ao frei não acontece apenas por causa da máquina de voar, embora esse fosse o motivo
principal, mas também por seu modo diferente de pensar a religião. Um de seus sermões, em que ele discute
acerca da trindade de Deus, afirmando que Adão poderia protestar contra o criador que não lhe deu a chance de
arrepender-se, uma vez que, por ter cometido apenas um pecado foi expulso do paraíso, enquanto às gerações
posteriores foi concedida a possibilidade do perdão por meio do sacramento. O argumento usado contra o frei
era a ideia de que, para construir a passarola, o padre estaria usando um misto de ciência e magia, pois a
máquina era movida pelas vontades humanas aprisionadas, o que o aproximava da prática da alquimia.
Regressou o Padre Bartolomeu Lourenço da Holanda, se sim ou não trouxe o segredo
alquímico do éter, mais tarde o saberemos, ou não tem esse segredo que ver com alquimias
de tempos passados, porventura uma simples palavra bastará para encher as esferas da
máquina voadora, (M.C, p. 115).
O romance enfatiza a manipulação da Igreja sobre os fatos que ameaçam seu poder. Os
inquisidores, ao invés de aceitarem a possibilidade da criação de uma máquina para voar e, com isso, discutir
com seus fiéis a capacidade inventiva com que Deus dotou o homem, preferem condenar o padre inventor. No
entanto, ao chegar em Mafra, Baltasar e Blimunda são surpreendidos com o fato de que havia sido organizada
uma procissão para agradecer a Deus pela passagem do espírito santo sobre a construção do convento dos
franciscanos :
Isso aqui é a serra do Barregudo, lhes disse um pastor, légua andada, e aquele monte além,
muito grande, é Monte Junto. Levaram dois dias para chegar a Mafra, depois de um largo
rodeio, por fingimento de que vinham de Lisboa. Andava procissão na rua, todos dando
graças pelo prodígio que fora Deus servido fazer, mandando voar por cima das obras da
basílica o seu espírito santo. (M.C, p. 207)
Outra personagem que é perseguida e condenada pelo Tribunal da Santa Inquisição é a mãe de
Blimunda. Sebastiana Maria de Jesus é condenada por ter o dom da vidência e, no romance, tem a
responsabilidade de assumir a narração para descrever o auto de fé em que foi condenada:
E esta sou eu, Sebastiana Maria de Jesus, um quarto de cristã-nova, que tenho visões e
revelações, mas disseram-me no tribunal que era fingimento, que ouço vozes do céu, mas
explicaram-me que era efeito demoníaco, que sei que posso ser santa como os santos o são,
ou ainda melhor, pois não alcanço diferença entre mim e eles, mas repreenderam-me de
que isso é presunção insuportável e orgulho monstruoso, desafio a Deus, aqui vou blasfema,
herética, temerária, amordaçada para que me ouçam as temeridades, as heresias, e as
blasfémias, condenada a ser açoitada em público e a oito anos de degredo no reino de
Angola , ( M.C, p. 53-54)
Em Memorial do convento, por meio da narração de episódios prosaicos, revela-se a ideologia de
uma instituição religiosa preocupada em manter seus privilégios sem importar-se com o modo como seus fiéis
estavam sendo conduzidos.
Em relação à representação ficcional dos fatos históricos, o romance de José Saramago inova
quando comparado ao modelo do romance histórico tradicional. Memorial do Convento obedece aos preceitos
característicos do romance histórico scottiano, pois nele há personagens ficcionais que vivem uma história de
amor; há personagens históricos que coexistem com os seres ficcionais; os acontecimentos históricos relatados
podem ser comprovados; porém, inova quando o enredo encontra-se no passado, mas faz também remissões
ao futuro e, principalmente por questionar os fatos históricos, lançando dúvidas sobre os acontecimentos e
revelando como os fatos podem ser resultantes de manipulações ideológicas. Por isso, pode-se afirmar que o
tratamento dado aos fatos históricos em Memorial do convento, por meio do uso da paródia e da ironia que
desmistificam a ideologia vigente durante o reinado de D. João V, tornando os acontecimentos históricos do
século XVIII, em Portugal, questionáveis, permitem classificar o romance como metaficção historiográfica.
O ENTRELAÇAR DA HISTÓRIA E DA FICÇÃO EM OS SINOS DA AGONIA
O romance Os sinos da agonia, de Autran Dourado, revela o universo sociocultural
de uma parcela da sociedade brasileira da segunda metade do século XVIII. Ambientado no
interior de Minas Gerais, mais precisamente em Vila Rica, o romance apresenta, via narrativa,
uma sociedade cuja força de trabalho encontra-se centrada na escravidão e revela que as
famílias mais abastadas de Vila Rica estão preocupadas com a decadência prenunciada pela
exaustão das minas e pelo endividamento dos donos de minas para com a Coroa portuguesa.
Na composição da narrativa há menção a fatos históricos do período do Brasil-colônia, como
a escravidão, as causas da Inconfidência Mineira, o modo de punição aplicada aos criminosos
e a decadência social e moral ocasionada pelo esgotamento das minas de ouro.
O escravo aparece como força de trabalho em várias passagens da obra. É aquele que
se embrenha pela mata a serviço de seu senhor, que sonha com a liberdade, que foge para os
quilombos, que, sendo cativo, compartilha dos segredos de seus senhores, como Inácia, que
ajuda Malvina em seus planos para conquistar o enteado Gaspar Galvão e, ainda, como
Isidoro – escravo particular de Januário que, embora almeje a liberdade e tenha pouco valor
por ser um “negro fujão – prefere ficar ao lado de Januário seja qual for a circunstância”. Na
fala de Isidoro é evidente a amargura, o sofrimento, o desejo de liberdade, mas sua
consciência revela que na sociedade escravista, devido à sua condição social, não há lugar
para um escravo alforriado, pois ele sempre foi tratado como mercadoria, objeto pertencente a
alguém.
Os olhos escamados de veludo e estrias de sangue no branco acastanhado às
vezes pareciam voltados para dentro, buscavam alguma coisa esquecida no
tempo, perdida na escuridão. Preto não carece de sono, disse. Nenhum
branco, ninguém nunca respeitou sono de preto. Preto é bicho, coisa pior. Eu
sou peça da Mina, branco é quem diz. (S.A, p. 16) 2
Em relação às causas da Inconfidência Mineira é possível perceber o clima de tensão instaurado na sociedade por causa
da derrama. Uma das medidas adotadas por Portugal para tentar minimizar os problemas econômicos da metrópole
foi a exploração do ouro e das pedras preciosas encontradas no Brasil colônia.
Mas a descoberta do ouro e dos diamantes do Brasil, o incremento das
exportações de vinhos (estabilizadas pelo tratado de Methuen em 1703)
adiam de novo o problema econômico e social, propiciam o prolongamento e
reajuste das formas barrocas em Portugal. No tempo de D. João V, com
efeito, o ouro brasileiro repete os efeitos das especiarias de Quinhentos: a
indústria, ainda mesteiral, definha (excepto em certos ramos sumptuários),
no movimento comercial externo destaca-se a exportação visível do ouro,
como moeda cunhada ou por interpole (contrabando); [...] (SARAIVA e
LOPES, 1996, p 446).
A exploração dos minérios brasileiros se estendeu até o século XVIII, trazendo transformações,
principalmente, para a região de Minas Gerais. Em 1750, o governo português decidiu estabelecer uma cota
sobre todo o ouro explorado na colônia, o que provocou um atraso no pagamento dos impostos, pois o ouro já
estava escasso. Em função da dívida contraída, em 1765, instituiu-se a derrama, aumentando os abusos da
2
Todas as citações do romance Os sinos da agonia referem-se a: DOURADO, Autran. Os sinos da agonia. Rio
de Janeiro: Francisco Alves, 1998, que, no presente trabalho, será referenciado pela abreviatura S.A, seguido do
número da página.
metrópole sobre os colonos que deveriam pagar a quinta. A preocupação com a derrama fica evidente no
episódio em que o coronel Bento Pires questiona Gaspar sobre a agitação que se instaurou na cidade:
Alguma má nova, a derrama vem afinal? Não é isso, tranquilizou-o Gaspar, estou falando
dos dragões e das ordenanças, dessa festa de mosquetes e varapaus que o
Senhor Capitão e o Governador das Minas aprontou para receber o assassino do
meu pai. (S.A, p.197).
Além da cobrança dos impostos, outra questão citada é a punição dos criminosos. Era
comum, na Península Ibérica, a preparação de rituais, nos quais o Tribunal da Inquisição
punia os casos de heresia. Esses autos de fé tornavam-se verdadeiras atrações. Outra forma de
punição era a chamada morte em efígie, que era aplicada, geralmente, a criminosos foragidos.
A morte em efígie consistia na confecção e enforcamento, em praça pública, de um boneco de
pano que simbolizava o indivíduo a ser punido. A partir da encenação da morte em efígie, o
indivíduo poderia ser assassinado a qualquer momento sem que houvesse punição para aquele
que o matasse, pois ele, a partir da morte em efígie, era considerado socialmente morto.
Januário é um exemplo disso. Sua morte em efígie foi encenada publicamente em
Vila Rica, após ele ser condenado pela morte de João Diogo Gaspar. Autran Dourado usa do
pastiche carnavalesco ao narrar o espetáculo da morte em efígie de Januário, mostrando toda a
pompa da preparação, a euforia das pessoas, a aglomeração na praça, as roupas de gala, a
publicação do decreto em praça pública, reconstituindo, na vila, a mesma atmosfera dos
rituais praticados em Portugal pelo tribunal da Inquisição nos casos de condenação por
heresia. Embora Januário não tenha sido condenado pelo tribunal da Inquisição, e sim pela
justiça criminal, por ter cometido o assassinado um potentado, o que, indiretamente, era
considerado um crime de lesa-majestade, o comportamento dos moradores e a preparação
para a encenação assemelha-se ao que acontecia nos autos de fé.
E de manhã bem cedinho, a cidade engalanada e festiva como se fosse um
dia de soberba alegria e não de macabra ópera e condenação, tropa
municiada com a pólvora e as doze balas do preceito, os sabres areados com
esmeril, brilhante ao sol da manhã que já vencera as brumas da madrugada
[…] (S.A, p. 25).
Outro fato histórico relatado em Os sinos da agonia é a decadência moral e
econômica, revelada por meio das personagens femininas que se casam por interesse. Malvina
é um exemplo desse fato, pois não obedece à mãe e acaba por roubar o noivo da irmã,
motivada apenas pelo interesse de ascensão social que o casamento com um velho rico pode
lhe proporcionar.
Aliás, o casamento por interesses não ocorre, apenas, com Malvina. Ana, a filha do
Coronel Bento Pinto Cabral, também tem seu enlace acordado entre o pai e Gaspar Galvão
para resolver a situação financeira da família. Essa forma de aliança não visava celebrar a
união entre duas pessoas que se amavam, mas fazer prevalecer a vontade dos pais, sobretudo,
para assegurar a situação socioeconômica das famílias. Segundo Gilberto Freyre (2003), as
mulheres tinham uma função social a ser cumprida, por isso delas se esperava a submissão ao
poder patriarcal. Desse modo, tanto Ana quanto Malvina se casam em nome da manutenção
econômica da família, mas Malvina não faz por obediência e sim por interesses próprios, para
fugir da decadência econômica.
Quem mais escutava, porém era Malvina. Os olhos lumearam, deitavam
chispas. Sim, nada de castelo de armas, de mil pretos espingardeiros, pretos
só os de serviço, pensou. Um sobrado, um sobrado de teto apainelado, e não
aquela casa deles de esteira barriguda. Tudo pintado na mil perfeição. Na
melhor rua. E as baixelas de prata e ouro, as jóias e vestidos custosos, as
sedas e veludos, as cambraias e holandas, os damascos e brocados. Já se via
no espelho, o penteado alto, as plumas, as jóias refulgentes, a trunfa
enfeitada de fios de pérola. Malvina, como o velho, desvairava. (S.A, p.76)
Os dois casamentos revelam uma sociedade decadente. A decadência das famílias
mais abastadas pode ser notada quando o narrador, ironicamente, comenta que aquilo que
mais interessa ao pai de Malvina é casar as filhas com um magnata do ouro e pela reação que
ele tem ao saber que João Diogo é um homem de posses. No caso de Ana, a decadência da
família é revelada por meio da descrição de sua casa de suas roupas.
Gaspar se lembrou de que Ana não andava mais de jóias, os vestidos sempre
os mesmos. Se tudo acabasse bem, se nada hoje acontecer, ia apressar o
casamento. Do jeito que as coisas iam Bento Pires acabava mesmo aceitando
receber dele as alfaias e o enxoval da noiva, o que seria uma vexação para
homem antes tão bem de vida. (S.A, p. 193)
Essa decadência, várias vezes reiterada, acontece em função do exaurimento das
minas e, consequentemente, do prenúncio do fim do ciclo do ouro, período em que a extração
do metal era a atividade econômica mais importante da colônia. Com o exaurimento das
minas e a quebra na produção, famílias, que se mantinham à custa da exploração do ouro,
perdem sua valiosa fonte de sustento. João Diogo Galvão é um dos poucos personagens que
se mostra precavido, pois, prevendo a decadência, toma a decisão de investir na criação de
gado. A pecuária teve início nas proximidades dos engenhos no Nordeste, mas foi,
principalmente, nas regiões do Piauí, Maranhão, Rio Grande do Norte e Ceará que os
criadores de gado se estabeleceram, desenvolvendo outra atividade econômica importante na
história da sociedade brasileira. Assim, João Diogo Galvão, em uma região na qual o principal
meio de produção era o ouro, inova, importando o modelo pecuário nordestino, o que lhe
garante, na contramão dos poderosos da região, tornar-se um potentado e manter a fortuna.
Embora haja menção a fatos históricos, não se pode afirmar que o romance Os sinos da agonia seja
um romance histórico tradicional. O texto apresenta características do romance histórico tradicional, como: o
enredo ancorado num tempo passado; a presença da história de amor com final trágico e a presença de
protagonistas puramente ficcionais; porém, não há citação de datas e nem de nomes de personagens históricos.
As questões históricas são colocadas apenas para dar suporte às personagens, reafirmando o passado por meio
do clima de suspense que envolve a vida e o fim trágico de Januário e Malvina. Em Os sinos da agonia, o
passado se faz presente, mas não segue o modelo do romance histórico tradicional elaborado por Walter Scott.
O romance de Autran Dourado aponta para uma nova forma de tratamento com os fatos históricos, o que leva
a perceber que, no século XX, o romance histórico passa por uma fase de transição.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após a leitura comparativa das obras conclui-se que, tanto em Memorial do convento
(1982), do escritor português José Saramago, quanto em Os sinos da agonia (1974), do
escritor brasileiro Autran Dourado, temos escritores contemporâneos que voltam seus olhares
para o século XVIII e usam os fatos históricos do referido período para ambientar suas
personagens.
Em Memorial do convento, registra-se de modo irônico, os acontecimentos ligados à
corte de D. João V, em Lisboa, mostrando a dominação exercida pela Instituição religiosa
sobre a nobreza e sobre o povo, em defesa dos interesses da Igreja.
Em Os sinos da agonia, o mesmo século é retratado, registrando-se fatos importantes
para a vida da colônia portuguesa na América, mais especificamente em Vila Rica. Desse
modo, pode-se afirmar que a história registrada se cruza, pois a metrópole está endividada,
como mostra o romance de Saramago e é na colônia que se encontra a possibilidade da
solução dos conflitos de ordem econômica por meio da extração do ouro, como mostra o
romance de Autran Dourado.
Portanto, os dois autores, resgatam fatos históricos do século XVIII a partir da
contemporaneidade, reconstroem ficcionalmente acontecimentos importantes tanto para a
sociedade portuguesa quanto para a colônia e, também, optam pelo gênero histórico. Ao optar
pela relação literatura e história, Autran Dourado e José Saramago apontam para os novos
rumos do romance histórico. Em Os sinos da agonia, Autran Dourado retoma o passado de
Vila Rica e da colônia, por meio de alusões ligadas ao cotidiano das personagens, fazendo
com que o romance não se prenda ao molde tradicional e apontando um novo direcionamento
para o resgate do passado. E, em Memorial do convento, romance escrito oito anos depois de
Os sinos da agonia, José Saramago retoma o passado da sociedade portuguesa, resgatando as
características do romance histórico tradicional, mas acrescenta-lhe o questionamento, a
reflexão sobre os fatos históricos, o que caracteriza uma nova modalidade de tratamento com
o histórico, denominado de metaficção historiográfica, segundo Linda Hutcheon.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.222-234.
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HUTCHEON, Linda. .Poética do pós-modernismo: História, teoria e ficção. Rio de Janeiro:
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cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1997. p. 27-79.
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Suzana Ferreira Borges). 4. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.
SARAIVA, Antonio José e LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. Porto: Editora
Porto, 1996.
Entre a resistência e a rendição: uma leitura do imigrante alemão em A ferro e fogo
Elisangela Redel (UNIOESTE)
Rita Felix Fortes (UNIOESTE)
RESUMO: Embora pouco explorada, a temática da imigração alemã na literatura brasileira
ganhou nova roupagem a partir da obra A ferro e fogo, de Josué Guimarães, composta por A
ferro e fogo I: tempo de solidão (1972) e A ferro e fogo II: tempo de guerra (1975). A
proposta deste trabalho, partindo do aporte teórico de Kristeva (1994), Bhabha (2005) e Bernd
(2010), é discutir como Josué, ao se ater à saga da imigração alemã no Sul do Brasil, confere
lugar mais descentralizado às personagens alemãs, cujas trajetórias oscilam entre exemplos de
enfrentamento das adversidades, de resistência face à terra hostil, de conflitos e de integração
à cultura brasileira. O escritor rio-grandense soube se valer de uma visão dialética da
realidade, posto que funde com muita propriedade as adversidades de uma região de vazios
demográficos e a trágica e solitária existência do imigrante na luta pela sobrevivência. É
relevante na obra a inserção espacial da mesma na fronteira movediça que coloca em
contato/conflito as culturas de índios, portugueses, castelhanos e imigrantes.
PALAVRAS-CHAVE: A ferro e fogo; imigração alemã; resistência; solidão.
RESUMEN: Aunque poco explorado, el tema de la inmigración alemana en la literatura
brasileña gañó nuevo ropaje a partir de la obra A ferro e fogo, de Josué Guimarães, compuesta
por A ferro e fogo I: tempo e solidão (1972) y A ferro e fogo II: tempo de guerra (1975). La
propuesta de este trabajo, basado en el aporte teórico de Kristeva (1994), Bhabha (2005) y
Bernd (2010), es discutir cómo Josué, al prenderse a la saga de la inmigración alemana en el
sur de Brasil, confiere lugar más descentralizado a los personajes alemanes, cuyas trayectorias
oscilan entre ejemplos de enfrentamiento de las adversidades, de resistencia frente a la tierra
hostil, de conflictos y de integración a la cultura brasileña. El escritor rio-grandense supo
valerse de una visión dialéctica de la realidad, ya que fusiona con mucha propiedad las
adversidades de una región de vacíos demográficos y la trágica y solitaria existencia del
inmigrante en la lucha por la supervivencia. Es importante, en la obra, la inserción espacial de
ella en la frontera movediza que pone en contacto/conflicto las culturas de indios,
portugueses, españoles e inmigrantes.
PALABRAS CLAVE: A ferro e fogo, inmigración alemana, resistencia, soledad.
O CONTEXTO DA IMIGRAÇÃO ALEMÃ PARA O BRASIL
A imigração dos alemães para o Brasil se deu a “ferro e a fogo” – como muito
apropriadamente compreendeu Josué Guimarães – pois as continências econômicas e sociais
na Alemanha e em boa parte da Europa praticamente os obrigaram a emigrar para o
continente americano. O Brasil que, desde o início da colonização, sempre recebeu muitos
colonizadores portugueses, passou a ser o destino de milhares de imigrantes a partir do
primeiro quartel do século XIX.
Efetivamente, a imigração alemã para o Brasil teve início em 25 de julho de 1824 e
as primeiras levas de imigrantes se instalaram, provisoriamente, na Real Feitoria do Linho
Cânhamo3, no Faxinal da Courita, à margem sul do Rio dos Sinos, onde se situa o município
de São Leopoldo, Rio Grande do Sul. No início da imigração, os imigrantes foram recrutados
em diversas regiões da Alemanha, agenciados pelo Major Antonio Schaeffer, contratado pelo
governo imperial brasileiro. Além dos colonos destinados à agricultura, também foram
recrutados soldados e mercenários, necessários para garantir a segurança do país, recémindependente, visto que estava em curso a disputa pela província Cisplatina (Uruguai),
que1830, quando o agenciamento de imigrantes foi proibido e só retomado em 1845,
perdurando até meados de 1950.
A legislação imigratória do início da colonização partiu do objetivo de povoamento
de vazios demográficos: momento histórico/ideológico em que se queria transformar o Brasil
em um país moderno, de imigração e branco, já que a população – seja a nativa, sem a vinda
através da violenta escravidão negra – era considerada incivilizada e representava um modelo
econômico nômade e retrógado (SEYFERTH, 2002).4 Nesse sentido, parece que a
substituição de negros por brancos no território brasileiro estava vinculada à percepção de que
... o capital investido no tráfico poderia ser usado positivamente, para
chamar a imigração branca livre e industriosa que daria ao país cidadãos
exemplares e ao imperador súditos fiéis. Sem qualquer referência à cor, os
escravos são desqualificados como “trabalhadores estúpidos”, “brutos” e
“precários” (SEYFERTH, 2002, p. 123).
3
O museu histórico Visconde de São Leopoldo contempla toda a história da imigração alemã no Rio Grande do
Sul e preserva para visitação a Casa da Feitoria, ou Casa do Imigrante, criada em 1788 pelo governo português, e
que serviu de abrigo para os primeiros imigrantes alemães que lá aportaram. A Real Feitoria do Linho Cânhamo
recebeu este nome em virtude da produção do linho cânhamo, matéria-prima retirada de plantas ricas em fibras
têxteis, usadas, na época, para velas e cordeis de navios portugueses. Site do museu disponível em:
<http://www.museuhistoricosl.com.br/>.
4
Seyferth (2002) esclarece que, com a Lei das Terras e a Lei Euzébio de Queirós, a presença de negros e índios
no debate sobre a colonização foi subtraída, uma vez que esses eram considerados inaptos para o trabalho livre
como pequenos proprietários. O império brasileiro discutia sobre as mudanças necessárias para transformar o
Brasil num país “branco” e moderno. Por isso, a exclusão “do índio, do negro e do mestiço do discurso do
colono ideal ocorre em função da ideologia imigratória que, na época, não é [era] percebida como um regime
imoral ou ilegítimo, mas simplesmente adjetivada por seu caráter arcaizante, um modelo econômico retrógrado e
impeditivo de imigração” (SEYFERTH, 2002, p. 120).
De acordo com Seyferth (2002), a escolha por imigrantes alemães não partiu de
premissas raciais, dado que estava articulada à classificação do colono alemão como
agricultor eficiente, habilidoso no trabalho com a terra e que emigrava em família. No
entanto, na Europa da primeira metade do século XIX, já se discutia, há muito tempo, o fator
racial. Portanto, parece notório que a noção hierárquica de civilização – subjacente à questão
simbólica da epiderme branca como indicativo de superioridade – tinha um intuito racial,
embora este não fosse claramente explicitado.
Durante a avaliação do estrangeiro “ideal” que preenchesse as terras públicas vazias,
produzisse alimento e instituísse uma classe de pequenos proprietários rurais, diferentes
nacionalidades foram classificadas de acordo com suas habilidades agrícolas. A exigência era
de que o bom colono devesse ter “amor ao trabalho e à família e respeito às autoridades, além
de ser sóbrio, perseverante, morigerado, resignado, habilidoso, etc. Alemães e italianos são as
nacionalidades mais frequentemente situadas no topo da hierarquia dos desejáveis bons
agricultores” (SEYFERTH, 2002, p. 120).
Também influenciou no estabelecimento de alemães no Brasil o fato de que
Leopoldina, esposa de D. Pedro I – filha de Francisco II, último imperador do Sacro-Império
Romano Germânico – por ser uma princesa germânica, providenciou para que o país recémindependente recebesse imigrantes alemães. Por outro lado, no contexto europeu, as guerras
napoleônicas, ocorridas entre 1802 e 1815, haviam empobrecido o continente. Também
colaborou para a imigração dos alemães o crescimento demográfico da Alemanha, cuja mãode-obra disponível passou a exceder ao que poderia ser absorvido pelo mercado de trabalho,
sobretudo dos mais pobres. A título de exemplo, nas regiões do sul e sudoeste da Alemanha,
“depois de cada colheita má, principalmente na Badênia e no Palatinado, a fome forçava
milhares de sitiantes alemães a emigrarem, tornando-os uma presa fácil de estrangeiros”
(GEHSE, 1931 apud WILLEMS, 1980, p. 33).
Os minifúndios, como explica Weissheimer (s/d), decorrentes de ininterruptas
divisões da terra, apresentavam baixas produções devido à excessiva exploração. A situação
foi agravada pelo fato de que, para os camponeses, também não havia emprego nas cidades,
nas quais, em consequência da Revolução Industrial – iniciada na Inglaterra no século XVIII
– a manufatura, que até então demandara grande mão-de-obra, passou à produção já em
processo de mecanização que, além de diminuir a necessidade de mão-de-obra, gerava novas
modalidades de trabalho, para as quais os camponeses não tinham qualificação nem preparo.
Sob o regime reacionário da monarquia, a administração de territórios também
concorreu para o desarraigamento das populações rurais e a imigração de muitas famílias que,
sem condições de pagar os impostos, fugiam de sua pátria em busca de novas perspectivas de
vida (WILLEMS, 1980). No entanto, ainda de acordo com Willems, muitas vezes as causas
da imigração de alemães se restringem a fatores econômicos, apagando o fato de que:
“‘frequentemente não eram os mais pobres que emigravam, e a emigração continuava mesmo
quando a situação do país já se havia tornado favorável, mais favorável, às vezes, do que a
situação do país de imigração’” (FREEDEN; SMOLKA, 1937 apud WILLEMS, 1980, p. 3435). Isto quer dizer que, assim como havia um contingente de imigrantes carpinteiros,
ferreiros, artesãos e seleiros – como a personagem ficcional Daniel Abrahão, de A ferro e fogo
(1972/1975) – havia outra classe constituída de aventureiros, intelectuais e médicos, como,
por exemplo, o Dr. João Daniel Hillebrand, que se tornou, mais tarde, diretor da colônia São
Leopoldo e registrou a entrada de todos os imigrantes naquele povoado entre 1824 e 1850 5,
aproximadamente.
A heterogeneidade cultural dos alemães que aportaram no Brasil era bastante
acentuada, levando-se em conta que grande porcentagem de imigrantes deixou a Europa antes
de 1871, ano da Unificação da Alemanha. Logo, tentar definir quem/quantos foram os
imigrantes alemães que entraram no Brasil é incorrer em terreno movediço, visto que não há
como se obter um número preciso de quais países europeus nos quais – em sua totalidade, ou,
apenas grupos – falavam a língua alemã, mas pode-se elencar: Áustria, Suíça, Rússia,
Luxemburgo, Polônia, Romênia e Hungria, por exemplo. Por isso, as estatísticas sobre o
contingente de imigrantes divergem de um autor para o outro e, além de desconsiderarem a
migração interna, não chegam a um resultado comum, justifica Seyferth (2007). No caso de
São Leopoldo, era predominante o número de imigrantes que vinham da região do Hunsrück e
que, devido a determinados processos culturais internos, tal variante absorvia as demais, “...
deixando assim a impressão de uma homogeneidade que a princípio não existira (WILLEMS,
1980, p. 38 – grifo nosso).
A REPRESENTAÇÃO DO IMIGRANTE ALEMÃO EM A FERRO E FOGO
Esta história começa com a chegada, no Rio Grande do Sul, do bergantim
Protetor, em 1824, trazendo no seu precário bojo de madeira 38 colonos
5
Disponível em: <http://www.rootsweb.ancestry.com/~brawgw/alemanha/col_SaoLeopoldo.htm>. Acesso em:
jan. 2013.
alemães destinados à extinta Real Feitoria do Lingo Cânhamo, no Faxinal
da Courita, hoje São Leopoldo. Depois deles, outros tomaram o mesmo
caminho, trazidos a tanto por cabeça, por um aventureiro internacional, o
Major Jorge Antônio Schaeffer. Muitos conseguiram sobreviver. Bem, mas
então temos a história de homens e mulheres em solidão que plantaram as
suas raízes, a ferro e a fogo, nas fronteiras movediças dominadas por
castelhanos, índios, tigres, caudilhos e portugueses (grifo do autor).
É assim que Josué Guimarães inicia a trilogia inacabada – visto que o terceiro
volume, que seria sobre os Mucker, não foi escrito e publicado – A ferro e fogo I: tempo de
solidão (1972) e A ferro e fogo II: tempo de guerra (1975), sobre a temática da saga da
imigração alemã no Rio Grande do Sul. O autor situa a narrativa no início em 1824, ano que
teve início o processo migratório no Brasil, com a fundação da colônia de São Leopoldo, no
Rio Grande do Sul. A obra foi escrita em Portugal, quando o autor estava exilado em razão
do Golpe Militar no Brasil em 1964, e narra a trajetória da família de imigrantes alemães,
Daniel Abrahão Lauer Schneider e sua esposa Catarina Klummp Schneider. As condições de
sobrevivência de ambos eram miseráveis, o que os levou a aceitar a proposta de trabalho de
seu conterrâneo Gründling, um abastado comerciante que lhes ofereceu terras a perder de
vista na Estância de Jerebatuba, em troca de receber e armazenar mercadorias. Daniel
Abrahão e Catarina fogem de São Leopoldo, mas depois descobrem que foram enganados,
pois as mercadorias se tratavam de armas contrabandeadas do Uruguai, em um momento
conturbado em que se iniciava a Guerra Cisplatina. Assim, quando a tropa castelhana invade a
fazenda dos alemães, Catarina esconde seu marido dentro de um poço, onde a personagem
permanecerá durante anos.
Nos moldes do romance histórico, a narrativa faz remissão a episódios históricos,
como a Guerra Cisplatina (1825-1828), a Revolução Farroupilha (1835-1845) e a Guerra do
Paraguai (1864-1870). Entretanto, as referências a estes fatos históricos se dão com a
liberdade de uma obra ficcional, portanto, não têm compromisso factual com a história. Tais
dados ajudam a construir o cenário histórico e social no romance – no qual aparecem nomes
de bergantins, navios e pessoas que realmente existiram, sendo este o caso do médico
Hillebrand e do agenciador Schaeffer. Tais resgates dão verossimilhança ao texto ficcional e
criam no leitor a impressão de realidade.
Josué Guimarães busca criar a ilusão de tratar-se de uma história real tanto nas
referências históricas supracitadas, quanto nas contingências culturais e sociais do início da
colonização. Sob a perspectiva microcósmica do cotidiano dos alemães – sobretudo do da
família do seleiro Daniel Abrahão Lauer Schneider – o autor opera uma desleitura do discurso
historiográfico e literário sobre a temática. O escritor rio-grandense soube se valer de uma
visão dialética da realidade, posto que funde com muita propriedade as adversidades de uma
região praticamente desabitada e os conflitos do indivíduo em sua relação com o outro, com a
sociedade e consigo mesmo. A preocupação de Josué Guimarães, para além de dados
históricos regionais e da manutenção de um discurso estereotipado sobre o imigrante alemão,
está centrada no homem e na sua trágica existência. Tal como Simões Lopes Neto, Josué
Guimarães trabalha com a matéria regional, mas supera a ficção regionalista.
Em uma trama pautada tanto nas dificuldades reais sobre o início da imigração,
quanto nos conflitos entre o eu e o outro muito diverso culturalmente, Josué Guimarães
resgata a saga do imigrante alemão no Sul do Brasil e confere lugar mais descentralizado – se
comparado às obras Canaã e Um rio imita o Reno, nas quais ora os imigrantes alemães são
representados como superiores pela raça, ora desprezíveis por serem germanófilos demais – às
personagens alemãs, cujas trajetórias oscilam entre exemplos de enfrentamento das
adversidades, de luta pela sobrevivência, de resistência diante de uma terra hostil, de coragem,
integração ou negação. Tal descentralização se opera, primeiramente, por meio do espaço no
romance, que é um entre lugar, uma zona de fronteiras movediças cercada por diversos grupos
culturais em contato: índios, portugueses, castelhanos, negros e imigrantes europeus.
A ficcionalização de um espaço cultural e étnico tão diverso e conflitante é um
elemento fundamental em A ferro e fogo. Ao discutir sobre os traços identitários
transnacionais na cultura do Rio Grande do Sul, Cicero Galeno Lopes (2010) aponta que esta
foi se formando entre as linhas fronteiriças atuais da Argentina, do Brasil e do Uruguai. E,
sobre a noção de transnacionalidade, o autor explica que:
como o assinala o prefixo trans, o transnacionalismo implica um processo
segundo o qual formações identitárias tradicionalmente circunscritas por
fronteiras políticas e geográficas vão além de fronteiras nacionais para
produzir novas formações identitárias. [...] O transnacionalismo é a recusa
das definições identitárias fechadas (PETERSON, 2008, p. 96 apud LOPES,
2010, p. 362).
De acordo com Gonzáles (2010), James Clifford, em Itinerarios transculturales
(1999), discute com propriedade sobre a questão das fronteiras como forma particular de
deslocamento, pois, em zonas de contato, as identidades diaspóricas, fronteiriças e híbridas
“tendem a unir idiomas, tradições, imaginários, sempre de maneira criativa, ‘articulando
pátrias em combate, forças da memória, estilos de transgressão, em ambígua relação com as
estruturas nacionais e transnacionais’” (GONZÁLES, 2010, p. 112). É desta perspectiva que,
também, Homi Bhabha (2005) ressalta que, enquanto inovação teórica e importância política,
é necessário “focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de
diferenças culturais. Esses ‘entre-lugares’ fornecem o terreno para a elaboração de estratégias
de subjetivação [...] que dão início a novos signos de identidade...” (BHABHA, 2005, p. 20).
Afora o espaço ficcional transnacional, a representação estereotipada e fechada do
imigrante alemão é deslocada através do caráter dialético das personagens de A ferro e fogo.
Com as personagens Daniel Abrahão, Catarina e Gründling
não se abre espaço para uma simplista oposição entre vilão e vítimas, mas
para a encenação de a que ponto de penúria e grandeza podem chegar as
sociedades e os homens na luta pela sobrevivência dos sonhos, ideais e
ambições mais dignos ou comezinhos. A saga corrói e reconstrói, a cada
passo, suas duas principais matrizes, a épica e a dramática, numa
interessante dobra dialética (MARTINS, 1997, p. 46).
Conforme aponta Martins (1997), Gründling não é, apenas, um homem inescrupuloso,
preconceituoso e corrupto, mas é, também, sensível e relegado à solidão como todas as outras
personagens:
...e que diria eu, meu filho, que estou ficando para semente? Que perdi a
minha Sofia [sua esposa] tão cedo [...] que quando voltar para casa vou
encontrar quatro paredes vazias, Albino [seu filho] morto, Jorge Antônio
[também seu filho] com a sua vida, sei lá [...] me resta pouca coisa na vida
(GUIMARÃES, 1975, p. 212).
Gründling representa o paradoxo humano, pois, por outro lado, ele se aproxima muito
do perfil de Lentz, de Canaã, e de Frau Marta, de Um rio imita o Reno, por ser um sujeito
emparedado a preconceitos raciais, e que se mantinha no Brasil com o propósito explícito de
explorar o próximo e de enriquecer: “...é preciso que a gente que vem da civilização abra bem
os olhos e trate de ganhar dinheiro. É o que importa, meu caro, ganhar dinheiro.”
(GUIMARÃES, 1972, p. 16).
Assim, o comportamento de Gründling em relação aos negros e aos índios é de
exclusão e frieza, visto que ele os descreve como “bastos” para o trabalho braçal e os compara
aos animais, reproduzindo o discurso socialmente construído que buscou justificar a relação
de opressão e exploração do colonizador europeu sobre o colonizado, do senhor sobre o
escravo: “digo a vocês agora que Deus inventou o negro para derrubar mato, cavar terra e
carregar água. Não há sol que consiga queimar a sua pele, as patas e as mãos deles tem mais
casco que fazem inveja de quanta mula existe por aí [...].” (GUIMARÃES, 1972, p. 7). E
continua: “para domar cavalo xucro, camperear, marcar boi, castrar bicho e servir mate, que
vocês pensam que o diabo inventou? [...] que para isso o diabo inventou o índio, o bugre, que
forma com o cavalo um só corpo ...” (GUIMARÃES, 1972, p. 8).
Tal discurso respalda-se na ideologia colonial, cujo objetivo é “apresentar o
colonizado como uma população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a
justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução” (BHABHA, 2005,
p. 124). Tendo-se em vista o contexto histórico e social representado por Josué Guimarães –
quando a escravidão ainda estava totalmente legitimada pelo discurso oficial nas colônias – as
diferenças de raça, cor e cultura são anuladas num processo automático de recusa por
Gründling, que vê ao índio e ao negro como animais. Ou seja, como afirmou Bellei (2000, p.
129), “trata-se de uma questão de sobrevivência cultural e racial em que se torna imperativo
ativar narrativas que venham atender ao desejo branco de auto-afirmação” (grifo do autor).
Neste sentido, a fala de Gründling alude à conquista violenta da terra americana e à
brutalidade colonizadora às quais índios e negros foram submetidos. Pois, ao se afirmar a
incapacidade racial e cultural dos “selvagens” e dos negros escravos, está-se afirmando,
subliminarmente, que eles não têm o direito de possuir a terra, tampouco que têm direito
pleno ao status humano. Esse nível ideológico é sustentado, por exemplo, pelo casamento
entre o abastado Gründling e Sofia Spannenberger, uma jovem alemã órfã, abandonada,
violentada e miserável – que muito se aproxima das condições de Maria Perutz, de Cana –
que, apesar de sua condição econômica, é branca e alemã, ou seja, ela se equipara a ele em
relação à condição humana, ao contrário dos negros, índios e demais.
Através da Catarina, mulher do seleiro Daniel Abrahão, Josué Guimarães “busca
comprovar a relação do europeu com a nova terra: coragem, audácia e integração. É a
tentativa de uma raça capaz de exercer o papel de agente civilizador” (MARTINS, 1997, p.
25). Tal integração se revela no amor que a personagem, a despeito das adversidades, nutre
pela terra, pelo espaço habitado e construído com o seu trabalho:
- E abandonar tudo aqui, sem mais nem menos? As casas, os bichos, as
plantas e todo o resto? Isso não, nunca. Depois desse trabalho todo, do
sacrifício que se fez. E mais, agora peguei amor a esta terra, ela é minha,
força nenhuma me tira daqui - disse Catarina (GUIMARÃES, 1972, p. 34).
Para Catarina, a casa e o espaço que ela criou não são apenas espaços físicos e
materiais, mas remetem às heranças simbólicas imemoriais herdadas do homem religioso e à
imago mundi. No entanto, a despeito de sua força, coragem e do ódio que nutre por
Gründling, Catarina não é, apenas, um modelo da mulher matriarca. A construção dialética da
personagem se evidencia na cena em que ela se dirigia à casa de Gründling, o compatriota
explorador, para matá-lo, e encontra-o levando o caixão de sua esposa, Sofia. Assim, se em
Gründling o paradoxo humano se evidencia, o mesmo, de certa forma, também acontece com
Catarina, pois seu rancor e ódio, naquele momento, se transformam em piedade, ternura e
reconciliação.
O que Josué Guimarães discute com propriedade é que ambos, Catarina e Gründling,
apesar da rivalidade e das diferenças econômicas e sociais, enfrentavam o mesmo problema: a
solidão e a fragilidade do homem diante da vida, e que, portanto, estão acima de qualquer
diferença.
Ao passar por ela, Gründling parou, os homens que o ajudavam olharam
curiosos para ela. Então ele disse: - Não esperava que viesse, não sei como
agradecer. Estava magro, olhos vermelhos e inchados, encurvado. Catarina
desceu, empurrou para debaixo da almofada do assento o pedaço de cano da
espingarda que se deixava entrever. Caminhou até Gründling; ele sem Sofia,
ela sem o seu velho ódio. Os dois em solidão. Catarina seguiu ao lado dele,
sem uma palavra, olhando duro para frente, com medo de chorar
(GUIMARÃES, 1972, p. 237 – grifo nosso).
Em A ferro e fogo as relações de conflito entre as personagens se invertem, pois
nota-se que os inimigos, neste caso, pertenciam ao mesmo grupo: Catarina e Gründling eram
alemães que, de modos diferentes, buscavam melhores condições de vida e de ascensão
econômica no Brasil. Por outro lado, a relação de Catarina com o índio Juanito – que lhe foi
dado por Gründling, quando se deslocaram de São Leopoldo para a Estância de Jerebatuba – é
harmônica e de aceitação, pois, a sobrevivência supera os preconceitos étnicos e raciais.
Assim, não obstante haverem diferenças, Juanito tornara-se integrante da família de
imigrantes alemães: “Catarina [...] trouxe para Juanito meio pão de milho aberto em dois,
dentro dele uma grossa fatia de pernil. Disse em português: Ceji boa, ficando boa. Ele
assentiu com a cabeça e começou a comer devagar, sem fome” (GUIMARÃES, 1972, p. 66).
O autor mostra que o processo de aculturação realmente acontecia no contato dos
grupos de imigrantes com a cultura local, como exemplificam a assimilação do hábito do
chimarrão, do churrasco e do charque pelos alemães, por exemplo: “Queres alguma coisa
mais? - Unglaubich6, mas sinto vontade de tomar um mate. A gente se acostuma com tudo.
6
Tradução: Inacreditável.
Minutos depois Catarina fazia descer no balde uma cuia já preparada e uma pequena chaleira
de água quente...” (GUIMARÃES, 1972, p. 43).
No caso de Daniel Abrahão, as causas que o levaram ao estado de deterioração de
sua condição mais puramente humana foram as contingências econômicas extremamente
precárias às quais foram submetidos muitos dos imigrantes que se estabeleceram no Brasil no
início do processo migratório. Daniel aguardava, ao lado de outros alemães, o recebimento de
sementes, ferramentas, animais e terras, conforme assegurava o regulamento imigratório do
Império.
Tais condições fizeram com que Daniel aceitasse a oferta de seu conterrâneo,
Gründling – amigo do Major Jorge Antonio Schaeffer – um comerciante bem sucedido,
instalado em Porto Alegre, que designou Daniel Abrahão à função de receptor de mercadorias
contrabandeadas da Banda Oriental (Uruguai), enganando-o com promessas de fartura em
terras a perder de vista, longe do ataque de “bugres” e feras: “a terra da zona da Feitoria era
pocilga para negro, e até então só negro vivera ali, muito justo, o que não tinha explicação era
ele, um Schneider, mais a mulher e o filho, confinados naquele estábulo, bem que mereciam
um destino melhor” (GUIMARÃES, 1972, p. 13). Contudo, a família Schneider foi submetida
a contingências trágicas, como ocorreu historicamente com muitos imigrantes.
Daniel Abrahão não tinha conhecimento de que as mercadorias descarregadas em sua
estância eram, de fato, armas, justamente no momento em que uma grande guerra se iniciava,
entre o Brasil e Argentina pela posse da Província Cisplatina. A partir daí o leitor acompanha
a ruptura muito profunda da personagem que, graças aos cuidados da sua mulher Catarina, se
esconde em um poço sem saber que lá seria para sempre sua morada. O despersonalização de
Daniel se intensificava à medida que a tortura psicológica o confrangia ao delírio existencial,
sob o medo mais natural do homem frente à morte. O ódio e a dor lancinantes o mortificavam
ao ouvir os gemidos de soldados violentando sua mulher.
Água pelo queixo, impotente, a corda solta – restara para ele cravar as unhas
nos vãos das pedras, morder forte os lábios e chorar de ódio, de soluçar.
Num silêncio quase igual ao da mulher que estava sendo de outro. Depois
mais nada, apenas um retinir de esporas de distanciando (GUIMARÃES,
1972, p. 39).
Ao permanecer durante anos escondido no poço, Daniel Abrahão adquire, ao longo
do tempo, feições de animal e arquiteta outro mundo para si, mais suportável e seguro entre as
paredes estreitas, escuras e úmidas e o alçapão que o separa do mundo real. A imigração de
alemães para o Brasil passa a ser representada enquanto experiência traumática, dado o surto
psicótico provocado na personagem em vista do choque com a alteridade do outro, dos
acontecimentos de desespero, violência e morte que vivenciou (FERREIRA; GIL, 2007).
Assim, as adversidades encontradas no Brasil provocam um desdobramento psicológico na
personagem, transfigurando-a em um duplo estrangeiro: enquanto alemão que emigrou para
outro país e enquanto desconhecido de si mesmo (KRISTEVA, 1994).
O poço no qual Daniel Abrahão reside é a fronteira dentro da fronteira, é uma
linguagem alegórica de crítica e de denúncia, é memória das mazelas sociais, pois as “formas
de existência social e psíquica podem ser melhor representadas na tênue sobrevivência da
própria linguagem literária, que permite à memória falar” (BHABHA, 2005, p. 34). Ou seja,
as experiências traumáticas e conflituosas advindas com a imigração emergem do buraco,
imagem presente no romance que traz à tona as vozes esquecidas e não representadas do
passado. O poço é a imagem discursiva que dá voz ao silêncio de Daniel Abrahão, é uma
forma de expressão do acontecimento histórico da imigração alemã para o Brasil, visto como
instância interna – a psíquica – e externa, política, social e governamental.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A experiência da imigração é o distanciamento necessário que leva à conscientização
da pluralidade cultural, tornando-se, desta perspectiva, uma experiência positiva. Josué
Guimarães desenvolve uma reflexão diferente sobre a problemática migratória, assumindo
postura crítica em relação à visão que escamoteia a experiência dolorosa e traumática do
sujeito migrante, pois, se por um lado o migrante é significativo/representativo para o
discurso do entre-lugar, por outro lado, desconsidera-se que ele, muitas vezes, não habita
lugar nenhum socialmente e psiquicamente, explica Olivieri-Godet (2010). A autora, ao fazer
tal reflexão sobre o ensaio Réflexions sur l’exil, de Edward Said, afirma que a cultura
moderna elegeu a migração, o exílio, a errância e o nomadismo como temas enriquecedores,
banalizando as mutilações causadas às vítimas. A autora ainda acrescenta que, se a dimensão
estética de tais temáticas fascina, ela não pode apagar a experiência trágica de deslocamentos
abruptos e violentos de populações: “a dimensão estética do exílio não apaga a angústia, o
sofrimento da perda, o horror a que estão sujeitas as massas humanas expatriadas,
desenraizadas em nosso tempo” (OLIVIERI-GODET, 2010, p. 196-197).
Portanto, é às adversidades enfrentadas no Novo Mundo que Josué Guimarães se
reporta ao mostrar que o estabelecimento de imigrantes no Brasil se deu a ferro e a fogo.
Relegados a própria sorte, coube aos primeiros imigrantes europeus do século XIX povoar os
vazios demográficos e sobreviverem, visto que a vida destes no Brasil foi marcada pelo
abandono do governo – que não cumpriu, de imediato, com a medição da terra e a entrega de
animais, ferramentas, sementes e certa quantia em dinheiro, conforme prometido na
Alemanha –, pela miséria e pela violência com que foram recebidos pelos habitantes da
região: “os bugres andavam cada vez mais atrevidos, nem esperavam a noite para atacar. Ela
mesma vira um bugre morto por Franz Bohrer, o corpo ainda quente. Matavam homens e
mulheres, raptavam as crianças, saqueavam, queimavam as choupanas” (GUIMARÃES,
1972, p. 109).
Como afirma Octavio Paz em Signos em rotação (2003, p. 126), “uma literatura
nasce sempre frente a uma realidade histórica e, frequentemente, contra essa realidade”. Dessa
forma, faz sentido a citação de Vargas Llosa nas primeiras páginas de A ferro e fogo:
escribir novelas es um acto de rebelión contra la realidade, contra Dios,
contra la creación de Dios que es la realidade. Es uma tentativa de
corrección, cambio o abolición de la realidade real, de su sustición por la
realidade fictícia que el novelista crea. Este es um dissidente: crea vida
ilusória, crea mundos verbales porque no acepta la vida y el mundo tal como
son (o como cree que son). La raiz de su vocación es um sentimento de
insatisfacción contra la vida; cada novala es um deicídio secreto, um
asesinato simbólico de la realidade. VARGAS LLOSA: García Márquez,
História de um Deicídio.
Levando-se em conta o pensamento da época representado por Josué Guimarães –
quando ainda não se discutia sobre fronteira e alteridade – a problemática vivida por Daniel
Abrahão parece estar relacionada ao discurso dos direitos humanos, consolidados na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, criada em 1789. Segundo Kristeva (1994),
o documento, longe de ser a expressão fiel da igualdade entre os homens, estabelece a
dicotomia cidadão versus homem, fazendo com que o indivíduo se torne mais ou menos
homem de acordo com a sua cidadania. Sem ela, ele é subtraído de seus direitos enquanto
pessoa e de seu lugar em um mundo de fronteiras em que se acentua, cada vez mais, a
dificuldade de viver com o outro e com as adversidades.
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As “Sagas do País das Gerais”, de Agripa Vasconcelos
Maurício Cesar Menon (UTFPR Campo Mourão/Bolsista de Pós-Doutorado PDJ/CNPQ)
[email protected]
RESUMO GERAL: Entre as décadas de 50 e 60, no século XX, o escritor mineiro Agripa
Vasconcelos escreve uma série de seis romances históricos, cada qual correspondente a um
ciclo de importância econômica, social ou cultural não só na formação do estado de Minas
Gerais, mas também na do Brasil. Por intermédio dessas obras, o escritor revisita o passado
desde o período colonial até o republicano, compondo um grande painel repleto de episódios e
personagens que emergem da História e se juntam a outros provenientes da tradição oral, ou
oriundos da própria criação ficcional do autor. Embora cada romance possua um título
diferente e não haja uma integração diegética entre eles como se vê em O Tempo e o Vento, de
Érico Veríssimo, todos foram publicados no ano de 1966 pela editora Itatiaia, a fim de se
estabelecer a idéia de conjunto intitulada “Sagas do País das Gerais”. Este trabalho visa à
apresentação desse conjunto, evidenciando alguns procedimentos narrativos comuns em todos
esses romances, como também revelando o silêncio do cânone literário oficial em torno da
obra do escritor.
PALAVRAS-CHAVE: romance histórico; narrativa; cânone; conjunto
ABSTRACT: Between the 50’s and 60’s , in the twentieth century , Agripa Vasconcelos
writes a series of six historical novels , each corresponding to a cycle of economic, social or
cultural importance. These cycles were important in the history not only in the state of Minas
Gerais, but also in Brazil. Through these works , the author revisits the past from the colonial
period to the Republican , composing a large panel full of episodes and characters that emerge
from history and join others from the oral tradition , or arising out of his own fictional
creation. Although each novel has a different title and there is no diegetic integration between
them as seen in O Tempo e o Vento, by Erico Verissimo , all were published in 1966 by
publisher Itatiaia in order to integrates them, under the title " Sagas do País das Gerais ". This
work aims at presenting this set, showing some common narrative procedures in all these
novels, as well as revealing the silence of the official literary canon around the writer’s work.
KEY WORDS: historical novel; narrative; canon; series
AGRIPA VASCONCELOS E O CÂNONE LITERÁRIO NACIONAL7
Adentrar os limites da história literária é, quase sempre, pisar em um solo árido e
minado. Árido pelo extremo exercício de paciência e desgaste que a matéria requer, e minado
pelos muitos conceitos e também preconceitos nele existentes. Tal fato, porém, não é mérito
apenas da história produzida no Brasil, mas também de qualquer história estrangeira que se
proponha a sistematizar um cânone.
Essa afirmação, contudo, não pretende desmerecer, de maneira alguma, o trabalho e
os anos de pesquisa de análise e de recolha de material gastos pelos historiadores que já
imprimiram e ainda imprimem sua marca nos estudos literários; o objetivo é demonstrar como
o assunto torna-se emblemático, quando do questionamento acerca das inevitáveis lacunas
observadas nos cânones.
Não se podem desvencilhar quaisquer discussões que envolvam o cânone literário e a
história literária de qualquer país, da questão da autoridade do historiador e do método por ele
utilizado, por se tratarem de elementos cruciais que interferem tanto na escolha quanto na
busca do material analisado. Nesse sentido, afirma Alamir Aquino Corrêa (1995):
Mais que o simples apontamento de datas e fatos, a história literária está
sujeita a um contexto do historiador, que escolhe ou filtra o material a ser
historiado. Não há história, em qualquer área do conhecimento humano, que
não deixe transparecer que ‘value judgements are implied in the very choice
of materials’ (Wellek e Warren 1949: 32). A separação do joio do trigo se dá
a partir da consciência do historiador daquilo que é bom ou ruim, ou seja,
uma escolha de valores. Basicamente, ele utiliza-se de princípios aceitos pela
comunidade, que lhe conferem uma condição de autoridade. (p. 323,324)
Nesse filtrar do material a ser historiografado, evidencia-se o caráter pessoal da
escolha proveniente de valores, conceitos, ideologias e formação intelectual inerentes à figura
do historiador. Em vista disso, torna-se impossível tentar tomar uma história literária como
completa, uma vez que ela sempre será seletiva e apresentará variáveis – algumas histórias da
literatura compreendem maior abrangência de abordagem que outras.
7
Parte deste texto foi retirada do segundo capítulo de minha tese de doutorado, defendida na UEL no ano de
2007. Nesse capítulo foi feita uma reflexão acerca do cânone literário, sua autoridade e seus preconceitos,
portanto, como se faz pertinente essa reflexão neste trabalho, utilizei-me de alguns parágrafos presentes na
tese, atualizando-os, reparando-os, como também neles inserindo o recorte aqui pretendido.
Um caso notório de análise seletiva, a título de exemplificação, ocorre nesse filtrar
do material a ser historiografado, evidencia-se o caráter pessoal da escolha proveniente de
valores, conceitos, ideologias e formação intelectual inerentes à figura do historiador. Em
vista disso, torna-se impossível tentar tomar uma história literária como completa, uma vez
que ela sempre será seletiva e apresentará variáveis – algumas histórias da literatura
compreendem maior abrangência de abordagem que outras.
Um caso notório de análise seletiva, a título de exemplificação, ocorre na história
literária brasileira em relação ao poeta Gregório de Matos Guerra (1636 – 1696)8; Sílvio
Romero e Araripe Júnior celebram o poeta como a grande personalidade do barroco nacional,
enquanto José Veríssimo assinala uma série de restrições a esse respeito.
Na esteira desses críticos e historiadores do século XIX, caminharam também os do
século XX. A discussão atinge um ponto culminante quando da publicação de O seqüestro do
Barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Matos (1989), livro no
qual Haroldo de Campos questiona alguns pareceres de Antonio Candido ao tratar do poeta
baiano na Formação da Literatura Brasileira (1957).
O que vale notar, aqui, é que Antonio Candido imprime seus julgamentos valendo-se
de um filtro – sua visão de literatura nacional enquanto formação de um “triângulo ‘autorobra-público’, em interação dinâmica, e de uma certa continuidade da tradição” (CANDIDO,
2000, p. 16). Dentro dessa perspectiva, portanto, é que ele traça seus apontamentos a respeito
do barroco no Brasil, bem como do poeta.
O próprio Candido, contudo, em vista a algumas críticas ao seu trabalho, imprime no
prefácio da 2ª edição de sua obra historiográfica que “(...) há várias maneiras de encarar e de
estudar a literatura” (p. 15) – o que reconhece lucidez de sua parte no que diz respeito às
múltiplas possibilidades de se abordar um cânone, como também resguarda o valor do seu
trabalho.
Em vista a essas constatações há de se levantar um questionamento: será possível
haver uma história da literatura imparcial, que contemple as suas mais diversas
manifestações? A resposta certamente é negativa, pois a escrita da história passará, antes, pelo
olhar do historiador que não pode se eximir de sua própria pessoa, por mais que tente, no ato
da escrita.
8
A data de nascimento do poeta é discutível, tendo em vista que alguns historiadores assinalam o nascimento
no ano de 1633.
Em um sentido mais específico, pensando apenas na história da literatura brasileira,
seria praticamente impossível um historiador conseguir abraçar todas as manifestações
inerentes à literatura produzida no Brasil em sua obra; isso se deve, em parte, à extensão
territorial – fato que impede, por vezes, a coleta de material – como também às dificuldades
de preservação da memória nacional existentes no país.
Sendo assim, apenas uma tarefa conjunta seria capaz de reunir material suficiente
para alcançar, não de forma completa, o objetivo de se produzir um trabalho que
contemplasse as mais diversas manifestações literárias dentro dos mais variados gêneros, no
Brasil.
Talvez, ao se pensar nisso, possa ser citada a volumosa obra organizada por Afrânio
Coutinho como grande esforço de compilação de olhares sobre a literatura no Brasil,
constituindo-se, por isso, numa das mais abrangentes já feitas. Tal obra, todavia, só se tornou
possível devido à reunião de esforços de vários críticos e historiadores que deram a sua
contribuição na escrita de muitos dos capítulos. Não se pode negar, também, a importância,
nesse sentido, dos trabalhos desenvolvidos dentro dos grupos de pesquisa (nem sempre tão
visíveis) por pesquisadores docentes e discentes da área de Letras nas várias instituições de
ensino superior Brasil afora.
Atualmente, não são poucos os pesquisadores que têm olhado para a história e para o
cânone nacional numa perspectiva de revisão e compreensão do mesmo, atendendo, assim, a
necessidades que passaram despercebidas ou, por vezes, nem foram entendidas como tais.
Cite-se como exemplo de esforço conjunto o trabalho de resgate das escritoras
brasileiras do século XIX, sob a liderança da professora Zahidé Lupinacci Muzart. O
tratamento dado às escritoras do século XIX pelos historiadores, mesmo os mais empenhados,
era parco ou, como na maioria dos casos, nulo. Era mister, por isso, levantarem-se vozes que
tirassem do olvido tais escritoras e suas respectivas obras, a fim de se trazer lume a essa
matéria – abre-se, com isso, um novo capítulo de estudos nas Letras nacionais.
As lacunas que ficaram abertas na história quase sempre dizem respeito àquilo que
esteve marginalizado em termos de literatura, fato que é totalmente compreensível ao se
constatar que a maior parte das histórias literárias feitas no Brasil é produzida baseando-se
numa concepção estética das obras, o que, de fato, constitui-se como um dos fatores mais
relevantes para a análise literária, porém não como o único fator existente. Sendo assim,
gêneros ou subgêneros, como se queira chamar, como: ficção científica, terror, narrativa
policial entre outros, caíram e ainda caem no desprestígio de uma parcela considerável dos
estudiosos de literatura.
Em seu ensaio sobre o Direto à Literatura, CANDIDO expõe a seguinte ideia:
Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as
criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis
de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que
chamamos de folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e
difíceis da produção escrita das grandes civilizações. (1995, p. 232)
No mesmo texto de que decorre a citação acima, o autor, falando sobre o processo de
humanização por meio da literatura, reconhece que “A obra de menor qualidade também atua,
e em geral um movimento literário é constituído por textos de qualidade alta e textos de
qualidade modesta, formando no conjunto uma massa de significado que influi em nosso
conhecimento e nos nossos sentimentos” (p.251). A postura adotada pelo crítico sobre o tema,
porém, nem sempre é seguida por outros historiadores ou estudiosos da literatura que se
colocam de forma arbitrária e autoritária frente à produção literária.
Cid Vale Ferreira, em breve ensaio sobre o poeta João Cardoso de Menezes e Souza,
inicia o seu texto com uma afirmação tão contundente quanto verdadeira:
Nos países marcados pela escassez de leitores, o ofício poético desafia
a peneira do tempo sob o iminente risco do esquecimento. A
desatenção da crítica pode cavar a cova de quaisquer poetas, mas seu
desabono – pá de cal – encobre-os sob conceitos repulsivos de difícil
remoção. No Brasil, qualquer estante de biblioteca pode confirmar
que, à margem de cada autor consagrado, espreitam centenas de
talentos desacreditados, relegados pelos mais diversos – às vezes
torpes – motivos (FERREIRA, 2002, p. 201).
A marginalização de textos e de autores revela a face autoritária da história literária
que legitima determinadas obras ao mesmo tempo em que relega parte considerável à
periferia. Decorrente disso tem-se a canonização de autores e de obras que, por sua vez,
passam a ser quase que inquestionáveis, pois aparecem como paradigma ou como exemplos
da grande arte. Nesse sentido adverte KOTHE (2000) “A história da literatura é escrita como
se o cânone fosse puro abrigo de talento, e como se todo talento fizesse parte desse panteão
acadêmico” (p.22).
Aquilo que, muitas vezes, a história literária não contempla é feito, em alguns casos,
por estudos sobre literatura que se detêm de forma particular a pesquisar um recorte bem
definido de objeto. Vêm à tona, então, trabalhos que colaboram na compreensão de
determinado fato como também na expansão de olhares acerca dele. É o que realiza Marlise
Meyer em profícuo estudo sobre o romance-folhetim.
Dessa forma, não é possível deixar à margem dos estudos literários textos rotulados
de fracos e inconsistentes meramente por terem eles recebido tal designação; mesmo porque
essa designação pode ser resultado não apenas da escolha pessoal do estudioso, como também
do filtro do qual se utiliza para estereotipá-la.
Ao se estereotipar a obra, faz-se, geralmente, o mesmo com o público leitor. É de
praxe assinalar que obras de “menor qualidade” são lidas ou apreciadas por pessoas de pouca
instrução, de gosto duvidoso, pessoas que não são capazes de apreciar uma obra de arte em
seus muitos níveis. Por outro lado, também se crê que uma obra de “maior qualidade” só
poderá ser apreciada por um grupo restrito de iniciados, o que constitui meia verdade, não se
podendo estabelecer regra de conduta para tal.
MEYER (1996) aponta, dentre os muitos casos por ela estudados, que “A
popularíssima mrs. Radcliffe foi muito admirada por Byron, ao passo que romancistas
consagradas pela crítica oficial, louvadas algumas por Walter Scott, que nelas via modelos
dignos de imitar, eram abundantemente representadas nos catálogos das circulating
libraries9” (p.38).
Têm-se, nesse caso, dois fatos que atestam a vulnerabilidade das rotulações acerca de
obras, bem como de leitores. Primeiramente, observa-se uma escritora de “2º time” sendo
admirada por um escritor de “1º time”. Em um segundo plano constata-se que escritoras
consagradas são difundidas em meio populares e lidas por um público acostumado às
peripécias folhetinescas.
Isso demonstra que a rigidez só pode ocupar espaço nas cabeças mais ortodoxas,
cegas a outras possibilidades e firmadas num estatuto de autoridade que, a bem dizer, traz
subliminarmente o conceito de dominação. A literatura está impregnada disso, como bem
atesta KOTHE (1994):
Com a prática continuada de uma política de assimilação, impondo a
identidade de um grupo sobre os demais, ao invés de se adotar uma
política de agregação ou integração, acaba-se tendo um resultado bem
9
Gabinete de leitura de aluguel
mais pobre e subdesenvolvido do que aquele que se originaria da
incorporação das diversas culturas em um todo maior. (p.88)
É nesse sentido de agregação, ou integração, que se fazem necessários trabalhos que
tragam ao bojo das discussões acerca de cânone e história literária textos, autores ou gêneros
que se encontram à margem. Alinhado a essa perspectiva encontra-se o objeto deste trabalho
que pretende apresentar a ficção histórica do autor mineiro Agripa Vasconcelos (1900 –
1969).
Natural de Matosinhos MG, Agripa Vasconcelos iniciou sua carreira literária com o
livro Silêncio, que o levou, aos 22 anos de idade, a conquistar um lugar na Academia Mineira
de Letras, sucedendo a Alphonsus de Guimaraens. Em 1949, obteve o prêmio Olavo Bilac da
Academia Brasileira de Letras. O escritor produziu uma obra bastante fértil, transitando entre
a poesia, a narrativa, o ensaio e textos de caráter científico. De toda sua produção, porém,
destaca-se o conjunto de seis romances denominados, pelo próprio autor, de “Sagas do País
das Gerais”.
Esses romances, escritos entre 1951 e 1966, compreendem a parcela mais significativa
e trabalhosa da produção de Vasconcelos, devido ao resgate histórico e biográfico que
promove amalgamando-o à ficção. Interessa notar que, à época da escrita desses romances,
Érico Veríssimo encontrava-se escrevendo a sua saga gaúcha, composta pelos romances que
integram O Tempo e o Vento (1949 – 1961), recuperando a história e a memória de outro
estado importante, o Rio Grande do Sul. Parece haver, da parte de Agripa Vasconcelos,
intenção semelhante à do escritor gaúcho cuja obra despontava há algum tempo no cenário
das letras nacionais.
A diferença, porém, entre uma e outra saga é bastante notória, no que tange à técnica
narrativa empregada. Enquanto na saga de Érico Veríssimo tem-se a história do Rio Grande
do Sul desenrolada a partir de alguns personagens, num fluxo narrativo interdiegético, na saga
de Agripa Vasconcelos, tem-se a história de Minas perpassada pelos ciclos que correspondem
a cada romance, não havendo uma continuidade narrativa de um para outro, no que diz
respeito a personagens e fatos.
Os romances do escritor mineiro, portanto, não se encontram descontextualizados no
cenário da ficção histórica nacional na época em que são escritos. Há, contudo, um silêncio
muito grande pro parte da crítica e dos historiadores da literatura no que tange a essa
produção do autor mineiro.
Na pesquisa realizada para a composição deste trabalho, percebeu-se que Agripa
Vasconcelos mereceu um verbete, bem como cada uma de suas obras, na Enciclopédia de
Literatura Brasileira, compilada por Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa, edição de 2001,
contudo seu nome ou sua produção não constam nas mais importantes histórias literárias
utilizadas por docentes e discentes da área de Letras. Podem-se mencionar, entre trabalhos
que fazem referência ao autor, pelo menos três que reconhecem a obra do escritor mineiro,
dando-lhe algum crédito. O primeiro deles é a História da Literatura Mineira, de Martins
Oliveira, cuja primeira edição data de 1958, no qual se evidencia o Agripa Vasconcelos poeta;
o segundo é o trabalho de José A. Pereira Ribeiro, intitulado O Romance Histórico na
Literatura Brasileira (1976), no qual são abordados todos os romances históricos das Sagas
das Gerais; por fim, há de se mencionar o trabalho dirigido pelo professor Dr. Antônio R.
Esteves, organizado em livro sob o título O Romance Histórico Brasileiro Contemporâneo
(1975-2000) (2010), no qual existe uma única citação acerca da obra do autor.
Se faltou lugar no cânone literário para o escritor mineiro, é de se crer que ele só não
caiu no total esquecimento por conta de dois de seus romances que foram levados à tela, A
Vida em Flor de D. Beja que se tornou a telenovela Dona Beija (1986) e Chica que Manda
que se tornou, além de já referido filme, a telenovela Xica da Silva (1996), ambas exibidas
com grande sucesso pela extinta TV Manchete.
Este artigo tem como maior objetivo trazer um pouco mais de luz sobre Agripa
Vasconcelos e sua obra, apresentando de forma sucinta a ficção histórica por ele produzida,
assinalando a importância dessa produção no contexto cultural brasileiro da época.
AS “SAGAS DO PAÍS DAS GERAIS”
Os seis romances que compõem as sagas mineiras constituem a parcela mais
importante e elaborada da produção de Agripa Vasconcelos. Nessas obras, o autor revisita o
passado de Minas Gerais recuperando, por meio de ciclos temáticos, personalidades históricas
que sintetizam cada um dos temas propostos. Em 1966 a editora Itatiaia publicou todos os
romances que fazem parte das sagas, com a finalidade de gerar a ideia de conjunto relativa à
obra; cada romance é interdependente, todavia um complementa o outro, no sentido de montar
um extenso painel histórico do passado mineiro, que se estende desde o Brasil colônia até o
Brasil republicano. Assim, os romances passaram a ser apresentados da seguinte forma:
1) Fome em Canaã – Romance do Ciclo dos Latifúndios nas Gerais
Provavelmente escrito em 1951, este romance foi publicado em 1964 pela editora
Cruzeiro; em 1966 surge pela Itatiaia, integrando o conjunto das sagas de Minas. A ação
transcorre entre o final da década de 20 e início da década de 30 do século XX, explorando a
temática do latifúndio, comportando os mandos e desmandos dos grandes latifundiários e a
violência que, acima da justiça, prevalece como elemento norteador e condutor das situações.
Neste romance, ambientado na região do Vale do Rio Doce, mostra-se como da terra virgem
brotaram poderosos latifúndios que experimentaram ascensão e decadência, numa época em
que a chamada República Café com Leite vive seu o declínio.
Esta obra diferencia-se de todas as outras cinco no que diz respeito a não ser
protagonizada por algum personagem histórico. A trama, simples e até certo ponto previsível,
ganha corpo com o retrato dos costumes políticos e sociais da época, tanto urbanos quanto
rurais; as marcas da exploração, a rígida moral patriarcal colocada em xeque, as agruras do
trabalho duro, os conchavos políticos amealhados por traições, o poder que transita sempre na
mão dos mais abastados, as marcas da cultura do povo e os episódios históricos evocados aqui
e ali circundam a trama principal compondo o estofo do romance. O que sobra, no
melancólico final, é o questionamento acerca de muitas das práticas que cercavam os
latifúndios da época, chegando-se a uma conclusão de cunho pessimista e de viés moralista.
2) Sinhá Braba – Romance do Ciclo Agropecuário nas Gerais
Editado em 1966, este romance traz à tona a figura de Joaquina Maria Bernarda da
Silva de Abreu Castelo Branco Souto Maior de Oliveira Campos (dona Joaquina do Pompéu),
retratando o maior latifúndio das Minas Gerais, entre o final do século XVIII e meados do
século XIX, pertencente a um matriarcado. Para se ter uma idéia, o montante de terras
registrada em testamento quando da morte de Dona Joaquina compreendia um milhão de
alqueires – totalidade dos municípios de Abaeté, Dores do Indaiá, Maravilhas, Martinho
Campos, Paracatu, Pequi, Pitangui, Pompéu; uma extensão territorial maior que a Bélgica,
Holanda, Suíça, Dinamarca ou El Salvador.
Romance repleto de citações, datas, fatos e personagens históricos, retrata a fase de
transição do ciclo do ouro para o ciclo agropecuário na região central mineira. Agripa
Vasconcelos constrói toda a trama principal em torno não somente de Joaquina do Pompéu,
como também no de Maria Tangará, sua maior rival. Ambas senhoras de escravos eram
detentoras de temperamento difícil e dominante, todavia o autor as concebe em registros
diferentes, explorando a ambiguidade de Joaquina e a crueldade de Tangará, colocando em
dúvida sobre quem seria realmente a sinhá braba. Todo o livro é permeado pelo ambiente
rural que desponta com as descrições e histórias que lhe são inerentes; lendas, assombrações,
cânticos de negros e de trabalhadores e destaca, em meio ao enredo, a importância que
Joaquina adquiriu no cenário nacional ao suprir, com gado e mantimentos, a corte de D. João
VI, recém chegada ao Rio de Janeiro.
3) A Vida em Flor de Dona Bêja (1957) – Romance do Ciclo do Povoamento nas Gerais
Este romance foi publicado pela primeira vez em 1957, pela editora Pongetti; em
1966 passou para a editora Itatiaia, juntamente com os demais romances que compõem as
sagas. A obra retrata a figura de Ana Jacinta de São José (Dona Bêja) que, segundo
historiadores e o autor do livro, foi a responsável por reconquistar para Minas a região
conhecida como Triângulo Mineiro, usurpado por Goiás. Para amarrar o tema do povoamento
das Minas Gerais, Agripa Vasconcelos recupera a história desde a bandeira de Lourenço
Taques cuja entrada se deu pelo Sertão do Novo Sul, hoje conhecida por Triângulo Mineiro; a
partir daí constrói-se todo o estofo da narrativa que irá enfocar a figura da prostituta que
exerceu papel tão importante na história mineira.
Dona Bêja é apresentada ao leitor desde muito pequena, quando já mostrava espírito
vivaz e iniciativa que encantavam todos a sua volta. A menina fora criada pelo avô que,
movido pela vergonha de ver sua única filha grávida ainda solteira, muda-se para as terras do
Araxá a fim de recomeçar nova vida longe da sociedade a que pertencera. Mais tarde esse avô
será morto no episódio em que o Ouvidor, fascinado pela beleza de Bêja, manda raptá-la para
levá-la consigo. Tudo é narrado, até neste ponto, acentuando-se o caráter trágico da história e
justificando-se, dessa forma, o destino da protagonista.
O que ocupará, porém, o cerne da narrativa será a própria vida opulenta da rainha do
Araxá, lugar ao qual voltou e se estabeleceu após abandonar o Ouvidor. Todos os pequenos
episódios da vida de Dona Bêja são costurados a outros que demonstram os movimentos de
aborígenes, de quilombolas e das pessoas que formaram os núcleos urbanos de algumas
cidades mineiras. Agripa Vasconcelos reconstrói essa personagem tirada da história,
acentuando-lhe contornos contrastantes que exploram desde a inteligência até o sadismo da
personagem.
4) Gongo-Sôco – Romance do Ciclo do Ouro nas Gerais
O nome do romance alude à mina de ouro de onde se extraiu quantidade considerável
de ouro entre os séculos XVIII e XX. Como na maioria dos outros livros das sagas das Gerais,
a narrativa focaliza uma figura histórica, neste caso a de João Batista Ferreira Chichorro de
Sousa Coutinho (1º Barão de Catas Altas). Por meio de encadeamentos de histórias que
lembram As Mil e uma Noites vislumbra-se a trajetória do sacristão que, de enfermeiro de
sangue chega ao patamar de um dos homens mais ricos do Brasil. Trata-se de uma história de
ascensão e decadência desse homem, seguida de nova ascensão e decadência, promovida pela
busca do ouro e pelo uso perdulário da riqueza adquirida.
Parece ser este um dos mais bem trabalhados romances de Agripa Vasconcelos,
senão o melhor. A urdidura da trama, tecida com vigor, é amparada por largas descrições dos
opulentos banquetes promovidos pelo Barão de Caltas Altas a seus convivas e agregados,
revelando o poder, ainda que transitório, que o dinheiro tem não só de comprar tudo o que se
quer, mas também de fazer amigos cuja amizade e solidariedade desaparecem ao surgirem os
primeiros sinais da decadência monetária.
Agripa Vasconcelos não deixa de salientar o contraste entre a vida dos ricos e a dos
escravos, explorados e castigados dentro e fora das minas de ouro. Nesse sentido vale a
perspicácia do autor em mostrar também como João Batista Chichorro, de menino humilde,
sacristão, de enfermeiro de sangue, solidário ao sofrimento escravo nas minas de seu tio,
passa a mandatário rico e poderoso, cujo passado esquecido cede lugar a ações frias e
calculadas. O final, cercado de certo moralismo, revela-se melancólico ao protagonista que
relembra dos dias que se foram e não voltam mais.
5) Chica-que-Manda (Chica da Silva) – (Romance do Ciclo dos Diamantes nas Gerais)
Trata-se de outro romance de Agripa que merece destaque, seja pelo tema ou pela
tessitura bem construída. Nesta obra foca-se a figura lendária de Francisca da Silva e Oliveira
e de seu matrimônio com o contratador João Fernandes de Oliveira. O título do livro, numa
brincadeira fonética, aproveita-se, na verdade, do apelido dado a ex-escrava: “Chica
Queimada”.
A face revelada de Chica da Silva neste romance destoa um pouco daquela
apresentada por Cecília Meireles em Romanceiro da Inconfidência (1953); na obra de Cecília
destaca-se o caráter perspicaz e o amor entre ela e o contratador, mantendo-se certo tom lírico
em torno da personagem. No livro de Agripa Vasconcelos, além desses elementos, revela-se
uma Chica passional e vingativa, capaz das piores atrocidades ao ser corroída pelo ciúme, fato
que não lhe era raro.
Este livro pode figurar lado a lado a Gongo-Sôco, no sentido de evidenciar o luxo e a
riqueza advinda da exploração de mão de obra escrava na extração de minérios preciosos.
Toda a história é construída com o intuito de revelar os contrastes quase caricaturais que se
produzem ao se tentar arremedar a vida da corte com todos seus exageros nas paragens do
Tijuco. Tais contrastes equivalem, analogamente, à própria figura de Chica da Silva e à
história por ela vivida numa época em que o negro ou o mulato não tinham vez nem voz.
6) Chico-Rei – Romance do Ciclo da Escravidão nas Gerais
A figura central deste romance não é consenso entre os historiadores, contudo
pertence à tradição oral de Minas Gerais. Segundo os poucos registros, Chico Rei fora rei no
Congo, onde foi aprisionado com toda sua corte e enviado ao Brasil como escravo; sua esposa
e filha foram jogadas ao mar durante a travessia, como forma de sacrifício para salvar a nau
de uma tempestade. Depois de chegar ao Brasil e ser vendido como escravo, com o tempo,
conseguiu comprar sua alforria e a do filho. Após a alforria comprou uma mina e enriqueceu,
o que proporcionou que ele comprasse a alforria de muitos outros negros, fundando assim
uma espécie de 2ª corte no Brasil, em Ouro Preto, com anuência do governador-geral Gomes
Freire de Andrade, o conde de Bobadela.
Em todos os outros cinco romances históricos das sagas a escravidão torna-se sempre
uma discussão latente, geralmente evidenciando-se a crueldade dos senhores em relação aos
escravos. Chico-Rei oferece outra possibilidade, que é a da focalização da narrativa sobre um
protagonista escravo que age, quase que messianicamente, no sentido de ajudar a libertar seus
pares; emerge via personagem, nesse sentido, a visão, mesmo que distorcida em muitos
pontos, que o negro tinha da própria escravidão, por isso trata-se do único romance dos que
compõem o conjunto a mostrar o episódio de dentro da escravidão para fora, ao contrário dos
demais que a mostram de fora para dentro.
SOBRE PROCEDIMENTOS NARRATIVOS
Embora não haja uma intradiegese entre os seis romances, é possível verificar que
Agripa Vasconcelos adota procedimentos narrativos semelhantes em cada um deles que, de
alguma forma, auxiliam na compreensão da obra como conjunto. Dentre tais procedimentos,
podem-se destacar os seguintes:
1) Elaboração de narrativas que possuem progressão linear de tempo, corroborando com
a ideia de ciclo evidenciada no peritexto;
2) Preocupação didática demonstrada por meio de elementos adjuntos ao texto como:
dicionário de termos ao final de cada livro; notas de rodapé elucidativas ou
informativas sobre elementos mencionados no corpo da narrativa; prefácios
explicativos em três dos romances – nesses prefácios o autor procura indicar as fontes
de pesquisa ou elucidar historicamente quem são as figuras centrais trabalhadas;
3) Inserção de trechos puramente documentais na narrativa;
4) Explanação histórica em alguns dos romances, por vezes se estendendo ao longo de 60
páginas;
5) Narrativa principal permeada por outras pequenas narrativas, lendas, folclore, histórias
oriundas da oralidade, cantigas sertanejas, trechos de poemas;
6) Abundância de descrições;
7) A presença de um narrador em 3ª pessoa, intruso que, ao longo do texto, pontua
críticas, tece comentários, desfaz expectativas, antecipa conclusões e arbitra diante de
situações.
8) Trechos que beiram, por vezes, o Naturalismo do século XIX.
9) Marcas do tempo presente na narrativa.
CONCLUSÃO
As décadas de 50 e 60, tempo de grande efervescência literária no Brasil, colocaram
os autores mineiros ocupando um dos primeiros planos do cenário literário nacional. A título
de exemplificação vale destacar a presença multifacetada da poesia de Drummond, uma das
mais importantes do gênero, e a do escritor Guimarães Rosa que, em 1956, escreve uma das
obras máximas da literatura Grande Sertão Veredas. Ao lado desses escritores, é possível
ainda colocar Lúcio Cardoso com sua magistral Crônica da Casa Assassinada (1959) e
Autran Dourado que, em 1967, já trazia à tona um dos seus romances mais importantes,
Ópera dos Mortos.
Guimarães Rosa extrai sua matéria dos mitos, histórias e casos contados nos rincões
mineiros, mixa essa matéria a elementos que perpassam o arcaico e o moderno, empregando
apurada técnica narrativa; Lúcio Cardoso e Autran Dourado, por outro lado, sondam o íntimo
da família mineira, instituição construída sobre os pilares da tradição, expondo seus conflitos,
sua decadência e suas contradições.
Em vista disso, pode-se supor, então, que a obra de Agripa Vasconcelos preencha
outro espaço: o da ficção histórica de Minas. Curiosamente, no entanto, as histórias literárias
nacionais e os estudos acadêmicos dão pouco testemunho a esse respeito, havendo certa
escassez de trabalhos sobre o autor e sua obra. Em se tratando de cânone literário, o fato de
Agripa Vasconcelos e de sua obra ser pouco mencionado não se põe como algo isolado, ele se
coloca lado a lado com tantos outros que ainda aguardam que, sobre eles, seja lançado algum
foco de luz.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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_____________________. Chica-que-Manda. Belo Horizonte: Itatiaia, 2010.
_____________________. Chico Rei. Belo Horizonte: Itatiaia, 1966.
_____________________. Fome em Canaã. Belo Horizonte: Itatiaia, 1966.
_____________________. Gongo-Sôco. Belo Horizonte: Itatiaia, 2003.
_____________________. Sinhá Braba. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999.
Agradecimentos
Agradeço ao CNPQ pela concessão da bolsa de pós-doutorado júnior para a realização da pesquisa sobre os
romances históricos de Agripa Vasconcelos, na UFPR, sob supervisão da professora Dra. Marilene Weinhardt.
O romance histórico de Sherwood Anderson: historicidade literária e literatura
histórica
Lucas André Berno Kölln (Unioeste)
RESUMO: Existindo à sombra das transformações históricas que abalaram a economia e
sociedade dos Estados Unidos do início do século XX, os escritores não poderiam permanecer
ignorantes nem calados diante de seus efeitos e desdobramentos humanos. Como parte de um
grupo de críticos sociais engajados com a denúncia do impacto do capitalismo monopolista
sobre a realidade do período, Sherwood Anderson (1876-1941) foi uma das vozes que se
ergueram, e que soube, através de sua literatura, dar relevo aos problemas postos pela
evolução histórica tanto com relação ao conteúdo quanto em relação à forma de sua obra. Por
meio de sua trajetória de vida emblemática, que experimentou as mudanças históricas de uma
forma amarga - sofrendo, entre outros efeitos, um colapso nervoso em 1912 -, Anderson
buscou congregar em sua literatura tanto problemas existenciais quanto problemas estéticos,
ambos históricos e humanos em primeira e última instâncias. Como um dos pioneiros da
prosa realista norte-americana, o escritor constitui-se um objeto de análise valoroso enquanto
representativo de uma tradição que se estendeu por décadas na literatura estadunidense. Além
disso, por sua perspicácia na observação da realidade e por sua concepção engajada e sensível
acerca da literatura, a obra de Anderson constitui-se num rico documento histórico em seu
retrato e em sua interpretação da conflituosa realidade, contribuindo, inclusive, para a
discussão acerca do romance histórico e da historicidade da/na literatura.
PALAVRAS-CHAVE: História, Literatura, Estados Unidos, Literatura Norte-Americana,
Sherwood Anderson
ABSTRACT: Existing under the shadow of the historical changes that rocked the American
economy and society in the beginning of the twentieth century, the writers could not have
kept silent or ignorant towards the human effects of those changes. As part of a group of
social critics engaged in the denounce of the monopolist capitalism's impact over that reality,
Sherwood Anderson (1876-1941) was one of the voices that rose and that knew, through his
literature, how to identify the problems posed by the historical evolution, using his literature's
form and content to do it. Through his emblematic story of life, that experienced the historical
changes in a bitter way - suffering, among other things, a nervous breakdown in 1912 -,
Anderson tried to congregate in his books not only the existential problems but also the
aesthetic ones, both being human and historic primarily and ultimately. As one of the pioneers
of American realist prose, the writer is a worthy object of study while representative of one
tradition that extended itself for decades in the United States. Besides that, for his keen
observation of reality and for his compromised concept of literature, Anderson's oeuvre
constitutes a rich historical document regarding its portrait and its interpretation of that
conflict-ridden reality, inclusive of the discussions on the historic novel and the historicity
of/in literature.
KEYWORDS: History, Literature, United States, American literature, Sherwood Anderson
O presente trabalho tem por objetivo contribuir com as discussões que marcam o
campo de intersecção entre a literatura e a história, estando, entretanto, dentro do domínio da
historiografia. A pertença a um campo informa as opções teóricas e metodológicas de uma
investigação, e acaba por servir à função de acautelar o leitor com relação às distinções
existentes entre diferentes perspectivas de abordagem. Antes de um estigma limitador,
portanto, essa posição delimita o caráter da abordagem e guia o olhar sem que, com isso, torne
impossível o diálogo entre um e outro campo de análises.
Toda essa introdução encontra-se vinculada a um pressuposto que serviu de base para
a análise aqui levada a cabo: a de que os interesses epistemológicos do campo das Letras é
diferente dos interesses epistemológicos do campo da História. Por conflitante que isso possa
parecer - afinal trata-se de uma abordagem historiográfica da literatura -, é nesse diálogo de
distanciamentos e aproximações que a análise se move, bem como, aliás, os próprios
escritores.
Não se almeja aqui levar a cabo grandes virtuosismos ou discussões teóricos, dada a
envergadura e a profundidade não serem consoantes a um texto dessa extensão e desse jaez. O
que se deseja, sim, é trazer alguns dos elementos constituintes desse debate teórico para o
centro da discussão na medida em que alguns dos romances de Sherwood Anderson (18761941) forem sendo dissecados. O escopo de abordagem, portanto, gira em torno desse eixo
temático, localizado no tempo e no espaço, buscando propô-lo como um problema de
investigação historiográfica, isto é, buscando abordá-lo em sua historicidade e em seu diálogo
com as condições sócio-históricas que o ensejaram.
Para que tal intento seja levado a cabo, é importante que o escritor de que se fala, bem
como sua realidade histórica, estejam minimamente delimitados como elementos constituintes
da experiência desse sujeito e, por consequência, também de sua obra.
Sherwood Anderson nasceu na cidade de Camden, em Ohio, no último quartel do
século XIX. O escritor fez parte de uma numerosa família cuja renda dependia em grande
parte dos frutos da pequena fábrica de arreios que seus pais possuíam. Pela condição material
e social de que os Anderson gozavam, é possível dizer que eles faziam parte daquele
tradicional grupo social que o sociólogo estadunidense Charles Wright Mills chamou de "as
antigas classes médias" (MILLS, 1979, pp. 25-79).
As cidades nas quais viveram os Anderson na infância e na juventude do escritor eram
cidades predominantemente rurais, visto que os produtos que a fábrica da família produzia
eram direcionados especialmente para o campo, embora também para a cidade. Nesse cenário
rural e de rarefeita urbanização é que Sherwood Anderson cresceu, e foi a partir das
experiências vividas naquele contexto que ele primeiramente começou a se aperceber da
realidade que o cercava.
Na conjunção de uma crise particular e de uma crise estrutural, os Anderson tiveram
sua antiga base de existência abalada. Irwin Anderson, o pai de Sherwood, começara a beber e
ganhara má fama na cidade onde a família habitava, de modo que uma série de mudanças
começou. Ainda que se movendo dentro de Ohio, os Anderson mudaram-se várias vezes, e na
medida em que as casas e as vizinhanças se sucediam, a condição social da família era posta
em xeque.
Arreios são o tipo de produto que não encontra grande demanda em economias em
vias de modernização. Ohio ainda era um estado de tradição agrícola sólida, assim como
vários outros do Meio-Oeste (Midwest, como Sherwood Anderson veio a chamá-los
posteriormente), mas os ventos da modernização estavam soprando por sobre aquela região:
as transformações econômicas anunciavam cada vez mais o ocaso dos antigos modos de
produzir, seja por meio da mecanização, seja por meio do advento dos tentáculos
monopolísticos do capitalismo em transição.
Sherwood Anderson cresceu, portanto, num ambiente que carregava toda a
dramaticidade encerrada no seio das transformações econômicas: o descompasso entre os
movimentos da vida material e da vida subjetiva. A economia e a maneira como os sujeitos se
inseriam nessa conjuntura de transformações era muito cambiante e instável. Embora não
possamos simplesmente assumir que essa "onda de mudanças" tenha se abatido irremediável e
fatalisticamente por sobre todo o território dos Estados Unidos e por sobre todos os habitantes
dele, a trajetória de Sherwood Anderson possui marcas desses abalos estruturais, marcas essas
que se incrustaram como cicatrizes simbólicas no âmago de sua literatura.
Enquanto o pai de Sherwood Anderson se afundava no alcoolismo, e enquanto o
negócio da família ia se tornando mais e mais recessivo no conjunto da economia, outras
mudanças se operavam no cotidiano da família. O irmão do escritor se mudou para Chicago
em busca de emprego, a mãe começou a lavar roupa para fora e o próprio Sherwood Anderson
foi obrigado a entrar precocemente no mundo do trabalho. À época, por conta da quantidade
de diferentes e efêmeros trabalhos aos quais o escritor teve de se submeter, ele ganhou o
alcunha de "Jobby"10 (TOWNSEND, 1987, pp. 1-30).
Não creio que a trajetória de Anderson tenha sido, de um ponto de vista geral,
arquetípica. Contudo, ela certamente possui profundas ressonâncias históricas em outras
famílias e sujeitos que viveram nesse período, pois a economia estadunidense estava passando
por amplas metamorfoses, de modo que os abalos que sofriam os Anderson fossem tão seus
quanto de outros, tanto econômicos quanto sociais, tão materiais quanto espirituais.
A conjuntura econômica que imperou ao longo de praticamente todo o século XIX foi
uma que oferecia condições para que os pequenos produtores (pequenos proprietários,
comerciantes e empresários, por exemplo) pudessem ter uma existência minimamente estável
e segura. As "antigas classes médias", para usar novamente o termo cunhado por Wright
Mills, eram proprietários dos meios de produção e podiam, por conseguinte, organizar seu
trabalho e a maneira como iriam se inserir na economia. A estabilidade e a prosperidade
alcançadas por esse grupo social ao longo daquele século foram tamanhas que tal experiência
sócio-histórica se arraigou profundamente em sua visão de mundo e mentalidades.
Como Wright Mills ressalta, "[h]avia (...) uma estreita relação entre renda, status,
trabalho e propriedade." (MILLS, 1979, p. 31) Irwin Anderson, por exemplo, quando
dispunha do controle sobre sua fábrica de arreios, estava ligado de maneira intrínseca à
dinâmica e aos nuances daquele trabalho, tendo a possibilidade de decidir acerca dos horários,
das rotinas e dos demais aspectos que diziam respeito àquela atividade. Ele controlava sua
produção e sua posição social estava diretamente ligado ao papel social que ele ocupava
enquanto fabricante de arreios local. A separação entre trabalho e vida era pouca, pois os dois
se constituíam enquanto elementos da existência dos sujeitos, de modo que a ligação entre as
antigas classes médias e seu trabalho tendia a ser ontologicamente visceral.
Na medida em que a presença de pequenos proprietários, comerciantes e empresários
constituía a forma pela qual a economia e a sociedade estadunidenses estavam organizados, a
fábrica de arreios dos Anderson estava minimamente protegida contra concorrências desleais
contra empresas de maior envergadura e maior capacidade de competição. Precisamente nesse
ponto é que a economia do período mudava, pois, como notou Wright Mills, a "(...) pequena
empresa torna-se cada vez menor, [e] a grande empresa torna-se cada vez maior." (Idem, p.
10
Não há tradução precisa para essa palavra. Sendo "job", em português, "emprego", "jobby" talvez seja
melhor traduzido na expressão "faz-tudo", já que a característica das experiências de trabalho de Sherwood
Anderson no período tenham sido de inconstância e provisoriedade permanente.
45) A base da "democracia econômica" (BOTTOMORE, 1970, p. 30) dos pequenos
produtores estava ruindo.
A concentração de capital - a tendência do modo de produção capitalista ressaltada por
Marx - alterava a constituição da economia na medida em que tornava possível a existência de
grandes indústrias, grandes empresários, grandes investidores, grandes proprietários e assim
por diante. Para os pequenos empresários como o pai de Sherwood Anderson, isso significava
tornar-se anti-econômico conforme o avanço das grandes indústrias tornava a fabricação de
arreios mais barata - ou mesmo tornando-os obsoletos pela produção de alternativas a eles.
A ascensão do capitalismo monopolista foi a quebra de todo o arranjo sócioeconômico que o mundo das antigas classes médias havia criado e no qual se baseava, desde
suas componentes materiais até suas componentes sócio-culturais mais profundas. Se não
podemos necessariamente esperar encontrar na literatura registros evidentes das primeiras,
certamente podemos esperar encontrar aspectos da segunda. Os romances de Sherwood
Anderson são históricos por estarem incrustados irremediavelmente nessa conjuntura de
mudança, uma vez que ela era a experiência com a qual o escritor teve de lidar - isto é, ele não
poderia dela se furtar. São históricos, também, por dialogarem com essa realidade, ainda que
o façam a sua maneira e se valendo de toda a miríade de potencialidades e artifícios da ficção.
Diante de todas as transformações pelas quais passava seu cotidiano e de sua família,
Sherwood Anderson mudou-se para Chicago, onde continuou fazendo jus ao seu alcunha
"Jobby". Ele morou com familiares e buscou conciliar a jornada de trabalho com os estudos
numa escola noturna. O escritor se alistou e chegou a ir a Cuba, como soldado, para lutar na
Guerra Hispano-Americana, mas voltou em 1899, continuando os estudos e persistindo em
diversos empregos. Em alguns deles Sherwood Anderson encontrou algum sucesso e
estabilidade, como em um emprego ligado à uma empresa de fabricação de tintas; em outro,
relativo a vendas por catálogo; ou, ainda, em um ligado à administração de uma empresa de
publicidade.
A alternância de trabalhos e a própria natureza deles não agradavam ao escritor, que
teve um colapso nervoso em 1912, evento que foi seguido pela decisão do abandono da
"existência materialista" que, segundo ele, vinha levando até então. A literatura passou a ser a
atividade à qual ele passaria a dedicar seu tempo e esforços a partir de então.
Numa trajetória que vai desde a vida tranquila nos arredores de Ohio até o momento
em que, tendo passado pelos vários empregos e pelas provações físicas e espirituais deles, ele
sofre uma crise nervosa, é a literatura que se tornou o objetivo ao qual Sherwood Anderson
decidiu se dedicar. Partindo apenas desse ponto de vista já é possível perceber que a literatura
representa para Anderson algo diametralmente diferente daquilo que ele vinha fazendo até
então, isto é, a literatura era uma espécie de contraponto à "existência materialista" da qual ele
escapara tão sofregamente. Não se pode passar ao largo das profundas ressonâncias
ontológicas dessa decisão radical de Sherwood Anderson para a investigação historiográfica
de sua literatura, afinal a ligação entre autor e obra é um elemento de primeira importância.
Essa constatação é basilar para uma análise historiográfica da literatura por conta de
ser um dos pilares de sustentação do pressuposto de que, sendo o homem um ser histórico por
natureza, também são históricos os frutos de sua ação. Desse modo, reconhecendo o mundo
no qual Sherwood Anderson habitou e os dilemas e problemas com os quais teve de lidar,
sabemos também quais foram as imediações e circunscrições históricas nas quais sua
literatura pode florescer.
As escolhas informam realidades históricas, de modo que no âmbito da literatura, as
escolhas estéticas, tanto quanto aquelas relacionadas ao conteúdo em si - ou do "tema da
obra" -, estejam revestidas de historicidade. As escolhas indicam renúncias, da mesma
maneira como as escolhas informam a especificidade de um e de outro autor dentro do
gigantesco universo de possibilidades literárias. O fato de Sherwood Anderson ter optado pela
narrativa em primeira ou em terceira pessoa, a concepção de homem apresentada, o estilo da
narrativa, a organização da trama, a construção dos personagens, os silêncios ou omissões e
assim por diante, tudo isso, devidamente observado e dissecado dentro de quadros sociais,
políticos, econômicos e culturais - i.e., históricos -, apresenta a possibilidade de ir além e fruir
a obra como a ação de um sujeito histórico. O escritor foi alguém que viveu determinadas
experiências social e historicamente construídas e que, condicionado por sua implacável
realidade, não pôde se furtar a lidar com elas. Por mais metamorfoseada que a historicidade
esteja por conta de toda a carapaça e as entranhas literárias - com todos os seus artifícios e
potencialidades estéticas, metafóricas e estilísticas -, é possível abordá-la como um
documento histórico.
Mais do que arrolar fatos para tentar encaixá-los nas entrelinhas da ficção, essa breve
nota biográfica serve ao propósito de introduzir algumas informações que serão utilizadas
para a interpretação historiográfica dos livros de Anderson a partir de agora. Essa análise não
busca interações mecânicas e simétricas entre a obra e a realidade histórica, visto que não há
maneira única de lidar com os acontecimentos e nem são eles os mesmos para todos. Dentro
da complexidade dos universos micro e macro que o sujeito histórico - o escritor - habita, é
preciso ter sempre em conta a necessidade de não pressupor reações ou visões como atos
"esperados", é preciso ir além e perceber como o escritor se inseriu naquela realidade,
considerando, portanto, tanto sua pertença social e coletiva quanto sua individualidade
idiossincrática. Afinal, a mesma variabilidade existencial que distingue uns dos outros é
aquela que torna suas leituras e interpretações de mundo também distintas.
As obras de Sherwood Anderson começaram a ser publicadas nos anos 1910,
primeiramente em 1916, com a publicação de Windy McPherson's son (O filho de Windy
McPherson, em tradução livre), livro que conta a história de Sam McPherson - o filho de
Windy McPherson - em sua busca por novas experiências e por uma vida melhor do que a que
ele levava na cidadezinha onde morava. O pai de Sam é um alcoólatra que continua revivendo
as supostas glórias que teve quando da Guerra de Secessão, fazendo com que o filho busque
ser o oposto do pai através da busca de um trabalho que lho permita fazê-lo. Esse trabalho
surge quando Sam muda-se para Chicago, onde passa a ser uma espécie de negociador para
uma firma de implementos agrícolas.
Não bastasse a similaridade do enredo do livro com a vida de Sherwood Anderson por demais evidente para ser ignorada ou tratada como algo de menor significado -, surgem
algumas questões que se repetiriam nos livros posteriores do escritor. São exemplos disso: o
significado dúbio acerca da vida tranquila do campo e do trabalho na cidade, o dilema
vivenciado no conflito entre a existência aberta a experiências de engrandecimento espiritual
e as diligências burocráticas do emprego, o desconforto com a modernidade industrial e
urbana e assim por diante. Isso sem contar a recorrência de personagens cujas trajetórias são
muito similares a experiências vivenciadas pelo próprio Anderson.
Assim como a vida de Sherwood Anderson esteve marcada pelos dilemas que ele
vivenciou em suas experiências com o mundo do trabalho e com as exigências que eles
faziam em relação a sua vida como um todo, suas obras carregam os mesmos
questionamentos. A fuga da "existência materialista" - um fato da vida de Anderson - não
encontra ressonâncias profundas no trecho em que o escritor fala através da boca de um de
seus personagens: "Um homem de negócios - o que é ele? (...) Ele tem sucesso passando a
perna nas mentes pequenas com as quais ele entra em contato"?11 (ANDERSON, 1916,
location 7012)
11
Todas os trechos de livros de Sherwood Anderson citados ao longo desse texto, com exceção daqueles
provenientes do livro Winesburg, Ohio, são de tradução livre, de minha autoria.
12
Como li o e-book em formato .MOBI no e-reader Kindle, tomarei como base para citação as 'Locations', que
são a referência gerada pelo próprio aparelho para a localização de trechos no interior de uma obra. As
A busca que o escritor empreendeu em Chicago, por exemplo, certamente era uma
busca dura mas que fora vivenciada com um ardor similar ao que Sam McPherson
experimentou quando se punha a pensar sobre o que se tornaria quando se transformasse num
adulto, como o seguinte trecho nos permite observar:
Ser um jovem jornaleiro ou engraxate numa pequena cidade americana de leitores de
romance é aparecer no mundo. Não são esses mesmos pobres jornaleiros que se
tornam, nos livros, grandes homens? E não é esse garoto que caminha entre nós tão
industriosamente dia após dia aquele que aparecerá no mundo? (ANDERSON, 1916,
location 197)
Há uma vontade de ser alguém e de fazer algo, uma vontade de se tornar alguém
reconhecido, com um lugar no mundo. A ânsia de Sam certamente tem muito da ânsia de
Anderson ao mudar-se para Chicago e se submeter à dura lida diária de trabalho seguida da
dura rotina de estudos noturnos. Ao que parece ele pensou estar "aparecendo no mundo" aos
poucos, ao pular de emprego em emprego ou ao servir como soldado em Cuba, mas tudo
parece ter deixado de fazer tanto sentido para ele levando em consideração o abandono tão
decidido que ele levou a cabo em 1912, com sua crise nervosa. As esperanças do filho de
Windy McPherson, exploradas por Anderson com intimidade e sensibilidade como o são, não
estão descoladas de todo um constructo histórico, afinal a instabilidade trazida pela conjuntura
de transição econômica gerou tais tipos de inseguranças e incertezas em diversos outros
sujeitos e grupos sociais. Estando Sherwood Anderson num lugar social ameaçado por essas
mudanças, não pôde sua vida - nem sua literatura - passarem incólumes pelo turbilhão de
mudanças.
Não era somente a falência da fábrica da família que marcava a vida de Anderson, mas
a maneira como esse fato desencadeou uma série de mudanças na maneira como ele teve de
inserir-se naquele mundo e naquela sociedade. A vontade de realização pessoal que ele
alimentava tão ardorosamente estava ligada àquilo ao que seu grupo social - as antigas classes
médias - costumava almejar enquanto parte de seu modo de vida. Essas aspirações foram
minimamente garantidas para esse grupo social durante muito tempo - ao longo da maior
parte do século XIX, pelo menos -, de modo que se tornaram parte da mentalidade e das
expectativas correspondentes a ela. Isso, no entanto, encontrava-se cada vez mais ameaçado
na medida em que as bases materiais que outrora "permitiam" tais aspirações também estavam
referências acerca do endereço virtual onde os arquivos (e-books) encontram-se hospedados estão listadas nas
referências bibliográficas ao final do texto.
sendo ameaçadas. Os dramas e os dilemas pessoais que boa parte das obras de Anderson
carregam em seu seio são, em grande parte, resultados dialéticos desse traumático processo de
transformações que iniciavam-se na economia e espraiavam-se por todos os demais âmbitos
da vida social estadunidense.
O ardor que encontramos em Sam McPherson é muito parecido com a ânsia de
realização que anima a marcha de Norman "Beaut" McGregor, protagonista do romance
Marching men (Homens em marcha, em tradução livre), de 1917. Na história deste, o
protagonista também é um jovem que mora numa pequena cidade, nesse caso ligada à
extração de carvão, e que decide deixá-la em busca de melhores condições de vida e da
realização de seus sonhados intentos.
As marcas autobiográficas não precisam sequer ser mencionados em específico para
que seja possível perceber como os enredos que compõem as histórias ficcionais guardam
jornadas muito similares àquelas que Sherwood Anderson experimentou como suas. Embora
não se possa assumir, pura e simplesmente, que a história ficcional seja a transposição da vida
do escritor, tal e qual, para as páginas de um livro, é impossível ignorar tais indícios.
Sendo a figura do jovem sonhador e industrioso uma das recorrências das obras de
Sherwood Anderson - não somente dessas duas supracitadas, mas de diversas outras -, é
forçoso que a cotejemos como parte de um problema que ocupava os pensamentos do escritor
de tal modo que ele julgou-a digna de figurar em suas histórias.
À medida que diversas marcas dessa história vão se repetindo, novos problemas vão as
delineando, visto que o próprio escritor passara por novas experiências e construía outras
interpretações acerca do mundo e de sua concepção de literatura. Se no primeiro livro a busca
de Sam McPherson é por um trabalho estável, por status e por um futuro do qual se orgulhar de realização, num sentido mais amplo -, no segundo romance dos anos 1910 a busca
envereda por nova seara.
McGregor foi, a exemplo de Anderson e McPherson, para Chicago em busca de um
futuro estável, mas foi lá que encontrou uma constante instabilidade e uma realidade que
parecia hostilizá-lo ao invés de acolhê-lo. Em um de seus contos, Sherwood Anderson parece
sintetizar a impressão que Chicago, bem como o mundo urbano, industrial e moderno, lhe
causava: "Em Chicago, era às vezes inacreditável quão feio o mundo se tornara."
(ANDERSON, 1921, location 2876) Tal passagem encontra ressonâncias significativas
quando posta diante de outra passagem, essa do livro Winesburg, Ohio, em que o escritor
parece identificar as transformações pelas quais o mundo passava - aquelas que causam a
feiúra dele -:
Nos últimos cinquenta anos verificou-se uma grande mudança na vida de nossa gente.
Houve, a bem dizer, uma revolução. O advento do industrialismo, acompanhado pelo
tumulto dos negócios, (...) o tráfego dos trens, o crescimento das cidades, a
construção de linhas interurbanas de bondes que entram nas cidades e delas saem (...)
(ANDERSON, 1987, p. 50)
Era a modernidade, enquanto conjunto de mudanças concretas e enquanto conjunto de
experiências humanas, que ele tinha como algo incômodo, ruim e feio. Era a modernidade a
realidade na qual buscavam se inserir tanto o escritor quanto seus personagens, pois Chicago
foi um dos centros da industrialização e urbanização dos Estados Unidos nesse período. A
ânsia subjetiva de McGregor em sua busca por realização chocava-se frontalmente com a
incontornável dureza da realidade, que não tinha mais amplas condições para fomentá-la. Do
choque entre esses dois elementos é que boa parte da literatura de Anderson se alimenta, não
somente porque fosse um conflito digno de exploração literária, não somente porque fosse um
dos dilemas pessoais de Sherwood Anderson, mas também porque era um problema posto
pelos rumos da evolução histórica da economia e da sociedade estadunidense da época.
Ainda que a tônica subjetiva e intimista seja um dos ingredientes da literatura de
Anderson, ela não fala de uma situação restrita à individualidade do autor: dado que a
conjuntura era de profundas transformações e que os abalos dessa mudança se estendiam
amplamente pelos diversos rincões da sociedade estadunidense, é possível encontrar diversas
outras vozes e sujeitos a lidar com problemas semelhantes. O diálogo de Anderson com
outros escritores do período, aliás, contribui para dimensionar quão complexos eram esses
movimentos que a uma primeira vista podem parecer simplesmente econômicos. Mas
primeiras impressões são potencialmente enganadoras.
Quando Sherwood Anderson escreve sobre Norman "Beaut" McGregor e cria uma
história em que ele, insatisfeito com a aparente impossibilidade de construir uma vida
minimamente segura em Chicago, passa a marchar pelas ruas da cidade, o escritor falava
sobre seu tempo através dos artifícios da ficção. A historicidade está presente nos mais
obscuros cantos e arestas da trama ficcional, pois sabemos que Chicago era um dos centros
pulsantes do capitalismo em transição, de modo que dentro dos novos parâmetros exigidos
pela acumulação monopolista, a destruição de antigos modos de vida e antigos valores se
tornara parte da pauta, legando aos trabalhadores - sujeitos como McGregor - uma vida de
instabilidades e poucas possibilidades de se estabelecerem em definitivo em um trabalho.
A historicidade também se infiltrou na forma como "Beaut" McGregor tentou reagir à
"(...) desordem e falta de sentido da (...) vida americana (...)" (ANDERSON, 1917, location
45): marchando. Considerando que Anderson dedicou o livro aos "trabalhadores americanos"
(ANDERSON, 1917, location 8), o ato de marchar e o fato de que o protagonista do romance
de 1917 arregimentou um contingente bastante grande de outros homens para com ele
marchar se infla de sentido e se põe a tecer uma crítica àquela realidade, ainda que dúbia e em
vias de se fazer. Há uma dúvida que permeia o ato de marchar - e que se estende por todo o
livro -: porque se marcha? ou em nome de quem ou de que ideal ou de qual razão se marcha?
A dúvida que ocupa as mentes de "Beaut" McGregor e os demais homens em marcha é
uma dúvida que vem seguindo na mente de Anderson desde o primeiro romance dos anos
1910, justamente porque se tratava de uma questão que jazia em aberto na experiência
histórica do escritor. O retrato subversivo da Chicago, não a vitrine da pujança do capitalismo
mas a cidade cuja propalada riqueza obscurecia a condição precária de muitos sujeitos, era
uma das maneiras com as quais Anderson deu forma aos conflitos que vivia enquanto seus e
enquanto conflitos pertinentes a uma situação histórica definida. A dedicatória do livro
endereça-o aos trabalhadores americanos, fato do qual não se pode passar ao largo em uma
análise desse jaez, uma vez que redimensiona a escritura na medida em que informa um
posicionamento e o sentido daquilo inscrito nas páginas dos livros do autor.
Diante das incertezas e dos posicionamentos em construção é que surge o livro de
poesia Mid-American chants (Cânticos americanos ou Cânticos do Meio-Oeste, em tradução
livre) em 1918. A seu modo, ele é uma forma de tentar responder aos dilemas e dramas que se
colocavam historicamente, e apresenta Sherwood Anderson apontando para direções que até
então somente haviam se insinuado em sua obra, especialmente aquela visão voltada para o
modo de vida rural - com sua realidade material, suas experiências e sua gente - como uma
espécie de repositório de valores que eram mais dignos de constituírem lirismo literário e
parâmetros existenciais do que outros.
É assim que ao longo do livro encontramos passagens que louvam os campos do
Midwest estadunidense, tais como a que segue:
Eu sou o Oeste, o longo Oeste dos pores-do-sol. Eu sou os campos profundos onde o
milho cresce. A doçura das maçãs está em mim. Eu sou o início e o fim das coisas.
(...) A carícia daqueles que estão cansados veio para dentro dos milharais.
(ANDERSON, 1918, location 281)
A Mid-America, especialmente com relação à tradição agrícola e ao modo de vida
ligado ao campo que ali surgiram, passa a ser uma espécie de referência para Anderson, uma
realidade digna de ser cantada, inclusive como forma de se opor a uma realidade diferente,
que forma seu negativo: a realidade do "industrialismo". Considerando a passagem anterior, é
muito provável que aqueles que "estão cansados" e que vão para "dentro dos milharais" sejam
justamente aqueles que, como Anderson, sofreram as agruras da instável e poluída vida
urbana, e encontraram nos campos a "carícia" dos milharais e a "doçura das maçãs".
Os cânticos são formas de traduzir de maneira poética o Oeste e os homens que o
habitaram, conclamando seus descendentes a levantar suas vozes para cantar contra as
imposições humanas das transformações históricas. Os ecos dessa conclamação encontram-se
reverberando na seguinte passagem:
Eu não serei esmagado pela máquina de ferro.
Cante.
Ouse cantar.
Beije a boca da canção com seus lábios.
À manhã e ao anoitecer
Confie na força terrível da canção indômita (ANDERSON, 1918, locations 905-920)
Há um inegável tom de crítica em relação ao industrialismo, embora haja também um
quê de fuga em buscar no campo aquilo que a cidade não parecia poder oferecer, tão
entranhada estava no industrialismo. A escolha mesmo do "industrialismo" como contraponto
à "doçura" do campo é algo que não passa incólume por ressonâncias históricas: os Estados
Unidos do final do século XIX e início do XX eram uma sociedade e uma economia que se
industrializavam cada vez mais e esvaziavam cada vez mais seus campos, quando não os
mecanizavam.
O avanço do "industrialismo" por sobre o campo estadunidense não passou
despercebido pelos olhos de Sherwood Anderson, pois ele compreendeu e retratou as
mudanças que acompanhavam - e fomentavam - a inserção dos milharais na órbita capitalista,
como permite enxergar o seguinte excerto:
Eu não sou como o banqueiro Walker (...) Ele pensa sobre o cultivo de milho em
termos de engorda de cabeças de gado na fazenda Rabbit Run; eu penso sobre o
cultivo como algo majestoso. Eu vejo as longas ruas de milho com homens e cavalos
semi-escondidos, quentes e ofegantes, e penso num vasto rio de vida. (ANDERSON,
1916, location 713)
Sam McPherson não conseguia conciliar sua visão acerca do campo com aquela mais
sintonizada com os interesses capitalistas. Para Anderson, a julgar pelo conjunto das obras de
1910 e mesmo as posteriores, o mundo rural era um "vasto rio de vida" cujos potenciais
dividendos dele provenientes eram elementos secundários. A proximidade ontológica da
ligação do escritor com o mundo de feições rurais de outrora encontra-se explorado em sua
beleza poética na seguinte passagem:
Fundo em meu velho vale jaz o homem nu.
Ele é uma semente.
A semente dorme nele.
Esse homem será o pai de uma tribo, de uma raça.
Ele é o mundo e todo um mundo tem estado nele adormecido (ANDERSON,
1918, locations 580-595)
A sacralidade subjacente a esse retrato certamente consideraria sacrílego um
pensamento que tome os lucros da terra antes da riqueza transcendental de um mundo, em
forma de um "homem-semente", nele adormecido. Aquela angústia experimentada nos longos
e árduos anos de tentativas, fracassos e perseverança de Chicago, deságuam na tranquilidade
muito mais humana dos campos do Midwest.
É precisamente esse sentimento que veio a coroar Sherwood Anderson quando da
publicação daquela que é tida como sua obra-prima: Winesburg, Ohio, de 1919. No corpo de
pequenas histórias, o escritor faz várias trajetórias de personagens se entrecruzarem, tendo
como o protagonista virtual da trama o jovem George Willard, um jovem jornalista aspirante a
algo maior do que aquelas promessas de sua cidadezinha.
Uma das razões que faz de Winesburg, Ohio uma obra significativa para uma análise
historiográfica dos escritos de Anderson é o fato de que o livro celebra a vida das pequenas
cidades num conflito com aquele mundo existente para além delas, aparentemente tão
grandioso e promissor, mas que proporciona tantas experiências traumáticas, como as do
próprio escritor.
As histórias do livro de 1919 exploram a beleza da simplicidade do cotidiano e da vida
da pequena cidade de Winesburg. Através da narrativa, Anderson vai dissecando a beleza da
pequenez e o grande sentido humanista e sensível que ele via em tal tipo de vida. Em si
própria, pode não parecer uma obra de peso enquanto documento histórico, mas posta diante
da trajetória existencial de Anderson e das obras literárias que ele produziu antes dela,
Winesburg, Ohio se redimensiona, tornando-se um livro de profundos significados históricos.
Na medida em que Sherwood Anderson valorizava o tipo de vida levado nas pequenas
cidades tais como Winesburg, e na medida em que ele criticava a vida encontrada nas grandes
cidades tais como Chicago, vemos que algumas fibras do tecido histórico e humano daquela
realidade foram retratadas e cotejadas pelo escritor em suas obras. O conjunto de
transformações em curso na sociedade e economia estadunidenses foram compreendidos e
retratados por Sherwood Anderson ainda que ele se valesse dos filtros de sua experiência para
fazê-lo. Por mais restritas e específicas que as obras de Anderson possam parecer nesse
sentido, as conexões entre elas e a realidade histórica mais ampla são inegáveis.
A "totalidade" proporcionada pelo romance, segundo escreveu Lukács em O romance
histórico (2011), encontra-se nas frinchas em que a experiência de Anderson, de suas histórias
e de seus personagens, as quais encerram profundos sentidos acerca do que era a realidade
histórica para diversos sujeitos naquela conjuntura de transformações. A mudança no mundo
do trabalho e na forma como, por exemplo, a vida de egressos de pequenas cidades corria era
marcada pela constante instabilidade e incerteza, de modo que a busca por tranquilidade se
tornasse algo pleno de significado para Anderson bem como para outros sujeitos que se
encontravam em situação similar.
É diante de toda aquela vida e literatura pregressa que Winesburg, Ohio tem de ser
compreendida, isto é, como parte de um processo histórico em que mesmo as obras ditas
"menores" se enchem de significação exegética e historiográfica. A trajetória de Sherwood
Anderson e sua literatura nos anos 1910 conta a história de como aqueles grupos sociais que
tiveram o status quo de sua existência social e subjetiva abalados procuraram lidar com a
intempérie dos tempos: ora tentando inserir-se no mundo que se transformava, ora marchando
sem rumo definido, ora voltando-se à experiência passada, ora celebrando a tranquilidade
humanista como antídoto a um mundo que lhes fugia ao controle.
Nesse sentido é que se desenha a historicidade dos livros de Anderson. Não por sua
referência cronológica ou pela simples associação mecânica da vida do escritor e de sua obra,
mas da confrontação dos usos da literatura - temática e esteticamente falando - com tudo
aquilo que constituiu a experiência histórica do escritor. E tudo isso, por sua vez, levando em
consideração a subjetividade do escritor-sujeito histórico em existir, ontologicamente falando.
Ainda que a literatura de Anderson não seja arquetípica, ou ainda que a vida dele não
seja analogamente extensível à totalidade dos sujeitos sociais daquela sociedade ou mesmo
daquele grupo social, é possível entrever traços, elementos e visões que permitem enxergar
parte importante do que era aquela realidade e o que era aquele processo histórico. Dentre
outras razões, é por conta dessa riqueza documental, metamorfoseada por toda a carapaça e as
entranhas literárias e ficcionais, que vale a pena voltar os olhos à obra de Sherwood
Anderson.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDERSON, Sherwood. Marching men. Disponível em <http://archive.org/details/
marchingmen00anderich> Acesso em: 1 jul. 2013.
__________. Mid-American chants. Disponível em <http://archive.org/details/midame
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__________. The triumph of the egg and other stories: A Book of Impressions from
American Life in Tales and Poems. Disponível em <http://archive.org/ details/cu319240
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__________. Windy McPherson's son. Disponível
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em
<http://archive.org/details/
__________. Winesburg, Ohio. Tradução de James Amado e Moacyr Werneck de Castro.
Porto Alegre: L&PM, 1987.
BOTTOMORE, Tom B. Críticos da sociedade - O pensamento radical na América do
Norte. Tradução de José Ricardo Brandão Azevedo. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.
LUKÁCS, György. O romance histórico. Tradução de Ruben Enderle. São Paulo: Boitempo,
2011.
MILLS, C. Wright. A nova classe média. 3ª ed. Tradução de Vera Borda. Rio de Janeiro:
Zahar, 1979.
TOWNSEND, Kim. Sherwood Anderson. Boston: Houghton Mifflin Company, 1987.
Romance Histórico: Rupturas Iniciais ao Modelo Clássico
LOPES, Rodrigo Smaha (UNIOESTE)13
13
Mestrando do Programa de Pós-Graduação Stricto Senso em Letras, Área de concentração em Linguagem e
Sociedade, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE/Cascavel). Integrante do Projeto de
FLECK, Gilmei Francisco (UNIOESTE)14
RESUMO: Neste trabalho buscamos: expor como se deu a gênese do romance histórico, por
Walter Scott; apresentar as características dessa narrativa em seu modelo clássico; e tratar de
duas produções românticas, uma norte-americana, The last of the mohicans (1826), de James
Fenimore Cooper e outra hispano-americana, Xicoténcatl (1826), de autoria anônima, a fim de
mostrar como a primeira segue, quase em sua totalidade, os padrões do gênero inaugurado por
Scott, enquanto a segunda, de mesmo ano, porém, com locus enunciativo e contexto
ideológico distinto, apresenta, com um olhar avant-garde, rupturas em relação ao modelo
clássico. Como base teórica, utilizamos alguns dos pressupostos e conceitos do romance
histórico, escrita híbrida que objetiva fazer uma releitura da histórica pela ficção,
reconfigurando, poeticamente, personagens e fatos do passado. Esperamos possibilitar aos
leitores da literatura, mais especificamente do romance histórico, um olhar geral sobre ambas
as narrativas e sobre o romance histórico em seus primórdios, mostrando como o gênero em
questão sofreu modificações em sua estrutura e linguagem em um curto espaço de tempo,
doze anos mais especificamente. Essa tarefa se realiza com o apoio de autores como Lukács
(1970) Márquez Rodríguez (1991), Abrantes (s.d.), Menton (1993), Mata Induráin (1995),
Prieto (2003), entre outros.
PALAVRAS-CHAVE: Romance Histórico Clássico; The Last of the Mohicans; Xicoténcatl.
ABSTRACT: This paper aims at: exposing the genesis of the historical novel by Walter
Scott; showing the characteristics of this narrative in its classic model; and addressing two
American romantic works, one North-american, The Last of the Mohicans (1826), by James
Fenimore Cooper and an Hispanic-american one, Xicoténcatl (1826), written anonymously, in
order to show how the first follows, almost entirely, the standards of the genre inaugurated by
Scott, while the second, from the same year, with an enunciative locus and ideological context
distinct, presents, with an avant -garde look, ruptures in relation to the classical model. As
theoretical background, we use some of the assumptions and concepts of the historical novel,
hybrid writing that aims at re-reading the historical fiction by reconfiguring, poetically,
characters and events of the past. We hope to present readers of literature, specifically the
historical novel ones, with a general look at both narratives and at the historical novel in its
infancy, showing how the genre in question has undergone changes in its structure and
language in a short time, twelve years specifically. This purpose is accomplished with the
support of authors such as Lukács (1970) Márquez Rodríguez (1991), Abrantes (s.d.), Menton
(1993), Mata Induráin (1995), Prieto (2003), among others.
KEYWORDS: Classic Historical Romance; The Last of the Mohicans; Xicoténcatl.
INTRODUÇÃO
extensão "Literatório: a prática da literatura na escola", vinculado ao Programa PELCA - Programa de Ensino de
Literatura e Cultura. E-mail: [email protected]
14
Gilmei Francisco Fleck - Professor Adjunto da UNIOESTE/Cascavel na Graduação em Letras, nas áreas de
Literatura e Cultura Hispânicas, e na e Pós-graduação em Letras, nas áreas de Literatura Comparada e
Tradução. Doutor em Letras pela UNESP/Assis. Vice-líder do grupo de pesquisa “Confluências da Ficção,
História e Memória na Literatura”. Coordenador do PELCA: Programa de Ensino de Literatura e Cultura. E-mail:
[email protected]
O inaugurador do gênero híbrido que hoje conhecemos como romance histórico foi o
escritor escocês Walter Scott (1771–1832). Anteriormente às suas produções híbridas
conscientes da mistura entre história e ficção – como Waverley (1814), Rob Roy (1817) e
Ivanhoé (1819) – publicaram-se obras com temas históricos, porém, a estas lhes faltava um
olhar sobre a realidade social como sendo um produto da história, uma representação artística
fiel de um período concreto, configurado por meio de personagens e suas ações. Assim, “a la
llamada novela histórica anterior a Walter Scott le falta precisamente lo específico histórico:
el derivar de la singularidad histórica de su época, la excepcionalidad en la actuación de
cada personaje. (LUKÁCS, 1997, p. 15). Ao falar do romantismo do século XVIII, Lukács
afirma, ainda, que os escritores refletiam: “[...] las características esenciales de su época con
un realismo audaz y penetrante. Pero no saben ver lo específico de su propia época desde un
ángulo histórico”. (LUKÁCS, 1977, p. 16). O crítico refere-se à ideia de que cada momento
na existência de um grupo ou de uma nação é condicionado por um passado que deveria ser
representado de forma mais consciente pela ficção quando essa se alimenta do passado
histórico.
Entretanto, é necessário entender que o material histórico terá um tratamento
diferenciado ao ser incluído na trama romanesca. Lukács (1977), como primeiro estudioso do
gênero romanesco em questão, busca trazer tal diferenciação entre os romances que apenas
exploram a temática histórica daqueles romances históricos clássicos produzidos por Scott.
Segundo seus registros, no primeiro caso, temos uma narrativa na qual a historicidade não é
penetrante e os fatos do passado trazidos para a trama romanesca serão apreciados apenas na
sua superfície. No segundo tipo de narrativa híbrida mencionada há uma tematização de um
período histórico concreto, exposto na ficção, sobretudo, a partir das crises oriundas dos
conflitos de classes.
As características mais evidentes desse tipo de romance, de acordo com Carlos Mata
Induráin (1995, p. 16-20), que se baseia no texto de Lukács sobre o romance histórico, são as
seguintes: 1. Situam uma ação fictícia, inventada, narrada em primeiro plano, em um passado
real, histórico, mais ou menos longínquo; 2. Narrativas que reconstroem a época em que se
situa a ação de forma rigorosa; 3. É um gênero híbrido, mistura de invenção e discurso
historiográfico. Assim, ficção e história se entrecruzam na junção de elementos históricos
com elementos inventados pelo romancista e isso pode ser facilmente comprovado pelo tema
ou argumento utilizado pelo ficcionista.
De outra forma, é possível definir, ao ler os textos de Lukács (1977), Márquez
Rodríguez (1995) e Mata Induráin (1995), as principais características dos romances
históricos românticos, por meio de quatro características básicas, a saber:
1-Presença de um “pano de fundo” cuja ambientação é feita com base em um período
histórico real, mais ou menos distante do tempo do romancista. Este “pano de fundo” é
constituído de um rigoroso caráter histórico e da apresentação de personagens históricas bem
conhecidas que agem segundo as normas de sua época, conservam traços físicos, emocionais
e psicológicos que já lhe foram atribuídos pelo discurso historiográfico e localizam-se em
situações historicamente comprovadas. Busca-se, assim, ensinar história pela ficção, não há
questionamentos sobre a forma como esse passado foi apresentado anteriormente;
2-Uma trama ficcional na qual personagens são artisticamente compostas é
apresentada, mas estes se adéquam às características de existência comum, dadas pelos
personagens de extração histórica da época real do “pano de fundo”. Os personagens
ficcionais vivenciam suas aventuras, ações que são o centro da narrativa. Ou seja, há dois
planos bem definidos.
3-Apresentação, nesta trama ficcional em primeiro plano, de uma história
problemática de amor, cujo desfecho pode ser tanto feliz quanto trágico, mantendo-se dentro
dos padrões românticos da época;
4-A trama ficcional é o componente essencial da obra e nela se concentra a atenção
tanto do autor como do leitor. O contexto histórico real constitui somente “pano de fundo”. É
do enfrentamento entre as personagens principais, de caráter ficcional, e das secundárias,
históricas e de extração real, que se originam alguns dos argumentos fundamentais da trama.
No romance histórico clássico, segundo Lukács (1977), em seu estudo de análise de
todos os processos que levaram ao surgimento desse gênero, pode-se perceber um conjunto de
características específicas desse gênero romanesco, com relação aos personagens. A primeira
delas seria a escolha de personagens medianas, desprovidas de uma elevação “natural” que as
colocariam diretamente em um nível superior, ou seja, o ethos não possui relevância para a
caracterização das personagens puramente ficcionais no novo gênero.
Uma segunda característica tem relação com o tratamento dispensado aos
personagens de extração histórica, que no romance histórico clássico, diferentemente das
epopeias e tragédias, ocupam um lugar secundário na trama. Elas continuam, porém, a
preservar toda a sua importância, pois são figuras consagradas antes pelo discurso
historiográfico. As personagens de extração histórica são a peça fundamental para a criação
das obras, pois é em torno a elas que são representadas as crises históricas que se quer pôr em
evidência pela ficção. No texto híbrido essas crises são tratadas indiretamente, buscando-se
ressaltar não o momento em si, mas as consequências e efeitos que essas transformações
causaram nos personagens. As crises mudam não só a história, mas também, e de maneira
profunda, os destinos pessoais, perpassando por relações entre pais e filhos, amantes e
amadas, enfim há um entrelaçamento entre o indivíduo e o momento histórico. Essa era,
talvez, a forma “crítica” que se ocultava nas profundas redes do romance histórico clássico, já
que nele não se buscava, de forma alguma, contestar as “verdades” cristalizadas pelo discurso
histórico sobre as personagens e suas ações realizadas no passado reconstituído na trama
ficcional. Pelo contrário, nessa primeira modalidade de romance histórico, a ficção se
irmanava com o discurso historiográfico.
Não obstante, por meio das obras Xicoténcatl (1826) e The Last of The Mohicans
(1826), mesmo ambas pertencendo ao gênero clássico, apresentam algumas divergências em
relação à este, conforme veremos na sequência.
1 XICOTÉNCATL (1826)
A obra foi escrita no México, publicada na Filadélfia, e possui autoria anônima.
Contudo, alguns críticos tentam desvendar a nacionalidade do autor. Um deles, Pedro
Henriquez Ureña (1928), diz o seguinte:
No cabe pensar que el autor de Jicoténcal sea otra cosa que
americano: las censuras a los conquistadores son demasiado fuertes
hasta para un español liberal de entonces. Y la especie de patriotismo
indígena que alienta en la obra hace pensar que el autor ha de ser
mexicano. (UREÑA, 1928, p. 243)
A América hispânica se revelou, com a publicação dessa narrativa, que apresenta a
lentidão e a elevação moral comum aos escritos do final do século XIII e começo do XIX,
conhecedora da modalidade romanesca tão explorada na Europa de então: o romance híbrido
de história e ficção. Um desenvolvimento calmo e um diálogo sensato colocam tal obra no
seio da literatura neoclássica tardia que foi predominante no período anterior ao advento do
Romantismo. Narra-se o encontro entre dois mundos: o dos conquistadores europeus e o das
civilizações americanas pré-colombianas (ANÓNIMO, 1826a). Dividem o espaço
protagônico da obra, de um lado, Hernán Cortés e Malinche – por meio da qual temos uma
temática da obra: a relação inter-racial: pois ela é uma mulher nativa que ajudou o europeu na
conquista. Porém, nesse caso de narração híbrida hispano-americana a união dos dois se
concretiza e dela se gera um filho, considerado o primeiro mestiço dessa região americana.
Além desse exemplo, temos outra tentativa de união inter-racial que se dá por meio da
tentativa de Cortés em “conquistar” Teutila, mulher de Xicoténcatl filho. Esta, contudo, não
resultou exitosa – e, de outro lado, o jovem Xicoténcatl, que atua de forma direta na
construção do discurso histórico, e toda a sua tribo Tlaxcalteca.
Pelo fato de tais personagens dividirem o espaço de destaque da obra, temos, assim, a
primeira ruptura em relação às características do romance histórico clássico, anteriormente
mostradas. Ocorre a ficcionalização de personagens históricos, ao contrário da fórmula de
Walter Scott, aprovada por Luckács, que se utilizava de personagens fictícios como
protagonistas. Ou seja, nessa obra, o fato histórico em si que, nos romances clássicos
anteriores constituía-se em pano de fundo, é tema central e único do romance, com um
ambiente histórico rigorosamente reconstruído, no qual figuras históricas ajudam a fixar a
época, agindo conforme a mentalidade de seu tempo e os personagens e fatos não são
inventados pelo autor, mas recriados sob outras perspectivas. Tais fatos e personagens
existiram na realidade da conquista do México. O fictício também está presente de modo
suficiente para conferir ao texto valor romanesco e não historiográfico, portanto, os elementos
fictícios e os históricos se fundem de forma harmoniosa.
Com o deslocamento da ação principal, os elementos fictícios “serán mas bien
observaciones personales del novelista; suposiciones justificadas por el caráter omnisciente
del narrador; pequenísimas e intrascendentes alteraciones de elementos de la realidad
histórica.” (MÁRQUEZ RODRÍGUEZ, 1991, p. 39). Ou seja, no romance histórico clássico,
o narrador apresenta-se, geralmente, na terceira pessoa, fato que confere ao texto um maior
distanciamento e imparcialidade, já em Xicoténcatl, com o abandono de dois planos bem
definidos, cria-se a possibilidade de atuação de um narrador que terá mais liberdade, capaz de
revelar as vozes interiores dos personagens, seus fluxos de consciência, em primeira pessoa;
além de estabelecer diálogos com o narratário e expressar opiniões sobre personagens e ações
por elas efetuadas.
Na obra os nativos Tlaxcaltecas, assim como outras tribos da região mexicana, são
exaltados; e os conquistadores espanhóis, severamente denunciados – tema que seguirá
repetindo-se no romance histórico-latino americano – invertendo-se, assim, o discurso da
conquista do México a partir de um foco narrativo centrado na visão dos autóctones que
revela a hipocrisia e as intrigas das negociações feitas por Cortés para, finalmente, conquistar
a Cidade do México e derrotar todas as resistência a sua invasão. Esse discurso crítico em
relação à história oficial é uma das maiores rupturas desse romance de 1826 com a
modalidade clássica scottiana anterior. Ou seja, mesmo sendo esse o primeiro romance
histórico da América Latina, já é possível observar nele uma maior criticidade em relação aos
movimentos sócio-políticos, uma fuga do discurso pacificador da colonização da América,
uma clara posição anti-hispanista em relação ao discurso produzido pelo conquistador sobre
os eventos narrados na perspectiva eurocêntrica da história positivista.
No romance se descreve desde a chegada de Hernán Cortés e seu exército na
fronteira da república de Tlaxcala, no outono de 1519, e a resistência oferecida no início pelas
tribos autóctones, até a morte de Xicoténcatl filho, em 1521. As tribos, uma vez derrotadas,
fornecem a colaboração que ajudou o conquistador espanhol no seu avanço em direção a
Tenochtitlán. Essa trajetória culminou com a última derrota dos nativos e a conquista do
Império Asteca pelos espanhóis. Com a chegada de Cortés em território dos Tlaxcaltecas,
Xicoténcatl filho assume o poder. Ele propõe aos guerreiros nativos que lutem contra os
espanhóis invasores. Contudo, o influente nativo Magiscatzin, persuadido por Cortés, força o
jovem guerreiro pelas artimanhas realizadas no Senado a colaborar com o líder espanhol.
Xicoténcatl o pai, cuja configuração revela forças morais e qualidades que são diretamente
opostas aos defeitos e fraquezas morais de Cortés, respeita a resolução do Senado de Tlaxcala,
que apoia Magiscatzin, e induz seu filho mais rebelde a obedecer a essa decisão até que
possam encontrar outro meio de resistência. O jovem aceita o designío de seu pai, porém,
segue relutante e cheio de suspeitas.
O personagem, Xicoténcatl o filho, tem uma configuração idealizada na obra: é
decisivo e inteligente. Tem grande força de vontade, a personalidade forte, porém sensível.
Ele é um homem fiel, honesto e comprometido. Determinado, um jovem distinto, possuidor
de talentos militares, dons naturais e um grande amor pela sua nação. Ele possui uma voz
sonora e dignificante, é respeitoso, um homem de grandes virtudes. Ele oscila entre o
libertador e o bom selvagem, sábio e calmo em seu discurso. Xicoténcatl liderava seu povo de
maneira sem igual, atencioso, apaixonado e romântico. A descrição do personagem serve para
mostrar uma norma de conduta moralmente digna e politicamente correta, pondo em jogo o
poder que rege as palavras e as normas que regem a sociedade moderna.
Com relação a tal configuração do personagem, logo na introdução de Xicoténcatl
conseguimos apreender o propósito e importância da obra, na qual toda uma corrente de
oposição à imagem dos colonizadores está presente e o porquê da configuração do herói
anteposta àquela dos europeus:
[...] the author’s purpose in the writing of Xicoténcatl was not solely
to fictionalize historical events that were and continue to be
significant to Mexico and Spanish America as a whole. Had that been
his only purpose, they surely would have been little reason for him to
hide his identity. There are frequent allusion throughout the novel to
the effort that people must exert to attain the freedom from the tyranny
that oppresses them. The constant reference to the struggle between
the republics of the New World and the empire-building represented
by the conquering Spaniards is clearly analogous to the ongoing
conflict at the time of the novel’s publication between like forces in
Mexico immediately following the wars of independence begun in
1810 and ending in the early 1820s. (ANÔNIMO, 1999b, p. 5)
Ou seja, o autor de Xicoténcatl parecia ter o intuito de fazer com que os leitores
retomassem a noção de liberdade, não usando o romance como uma forma de dominação
intelectual de classes ou somente feito para ensinar a história, manipula, assim, artisticamente
trechos da história da conquista do México, conforme nos é informado no estudo introdutório
da obra, publicada pela University of Texas Press, cuja tradução ao Inglês foi feita por
Guilhermo I. Castillo-Feliú. O autor, conforme vemos nesse estudo, procede assim em sua
narrativa a fim de “To add credence and historicity to the events depicted here, the
anonymous author intersperses the narrative with generous extracts from Historia de la
conquista del Mexico, chronicles of the conquest written by Antonio de Solís (1610 – 1826)”
(ANÔNIMO, 1999b, p. 5).
Por meio da representação de Xicoténcatl filho, duas temáticas ficam evidentes na
obra: a mudança da ideia de família: Xicoténcatl filho é adotivo e também passa a adquirir
características do povo de Tlaxcala. Temos, assim, uma ideia de configuração familiar que
ultrapassa as fronteiras dos laços sanguíneos para promover, ainda que de forma implícita,
uma possível união entre diferentes culturas, buscando-se por um bem comum; e a outra é a
introdução do discurso do Colonizador no contexto histórico: Xicoténcatl filho, consegue
entender as consequências, nada boas, que estão por trás desse discurso e tenta convencer, de
forma falha, os demais nativos de suas percepções.
Contudo, outro lado da república também é mostrado por meio do personagem
Magiscatzin, cuja configuração malévola se opõe àquela de Xicoténcatl filho: Traidor da
causa de seu povo, mentiroso, manipulador, vingativo. Ele é inimigo da família dos
Xicoténcatl e se deixa levar por interesses pessoais, guiado ainda mais pela inveja, após a
eleição de Xicoténcatl. No entanto, apresenta, também, uma caracterização positiva, por ser,
em si, nativo; é um guerreiro talentoso e é valido lembrar-se de que tais características
negativas só aparecem após o seu contato com Cortés e seu exército, trazendo à tona a teoria
do bom selvagem, do Rousseau, em O Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens (1750), que diz que o homem por natureza é bom, nasce livre,
mas sua maldade advém da sociedade. Aqui, no caso do romance, ela nasce do contato com o
colonizador. O personagem nativo malévolo, contudo, ao enfrentar-se com a morte arrependese de toda a sua maldade e está consciente que, no passo seguinte, terá que pagar pelos
horrores que cometeu.
Sendo assim, ao mesmo tempo em que há exemplos de personagens que possuem e
mantêm características cavalheirescas do herói, mesmo em contato com novas culturas, há
também aqueles antagonistas, que possuem, sim, boas características, porém após o contato
que estes tiveram com os colonizadores, suas características boas foram anuladas. Estes vão
se tornando subordinados aos colonizadores, na esperança de que essa relação lhes seja
benéfica. Vale lembrar que isso não quer dizer que os colonizadores, em si, são maus e
transmitem tais características aos nativos, mas que tal contato pode tanto acarretar
consequências boas como ruins para ambos.
A aliança que o imperador Asteca, Cuauhtémoc propôs aos tlaxcaltecas para lutar
contra os invasores e que Xicoténcatl filho havia recomendado, é rejeitada sob a influência de
Magiscatzin. Conforme Cortés avança em direção à capital do império asteca, ele ordena o
enforcamento do jovem Xicoténcatl, pois suspeita que o mesmo tenha um plano para traí-lo.
Ao mesmo tempo, sabe-se que o espanhol está apaixonado pela beleza de Teutila, a esposa do
líder indígena Xicoténcatl, a quem o conquistador espanhol havia, anteriormente, tentado
seduzir. Teutila, contudo, mantém-se fiel, buscando, inclusive, vingar a morte do marido,
matando o conquistador, mas, por ironia do destino, o veneno tomado por ela faz efeito antes
de que possa levar seu propósito a cabo.
O ponto crucialmente dramático para Xicoténcalt filho ao longo da narrativa é sua
fatal incapacidade de convencer seu pai e o Senado todo de que a rivalidade entre Tlaxcala e
Tenochtitlán é muito menos perigosa e significante que a rendição aos espanhóis e uma
organizada colaboração contra os Astecas. O jovem Xicoténcatl se destaca como uma
exposição idealizada do “Novo Mundo” prestes a sofrer irreversíveis mudanças devido à
conquista espanhola.
Todo o processo de conquista do México muda de perspectiva nesse romance, uma
vez que os fatos são apresentados pela perspectiva dos nativos, em especial a de Xicoténcatl
filho; ou seja, há um deslocamento do locus de enunciação, transferindo-o do homem europeu
para o nativo. É a primeira vez que isto ocorre em um romance histórico. Pelo discurso
ficcional, os nativos são enaltecidos e os conquistadores, sempre heroicizados pelo discurso
historiográfico, são denunciados como hipócritas, falsos, inescrupulosos e gananciosos.
Além disso, vale ressaltar que, na literatura hispano-americana desse período,
exemplos laudatórios das ações dos europeus no “Novo Mundo”, como Colombo ou qualquer
outro espanhol da fase do “descobrimento” e conquista, submetidos aos parâmetros
scottianos, voltados à recriação ficcional da história da América, são praticamente
inexistentes.
Os nativos, nomeados de Americanos na obra, são nobres e moralmente corretos,
com um caráter: “belicoso, sufrido, franco, poco afecto al fausto y enemigo de la
afeminación” (ANÓNIMO, 1826a, p. 80). Apenas Magiscatzin, como já mencionado,
membro do Senado Tlaxcalteca, é exceção: ele é um traidor da causa de seu povo,
inicialmente por abusar de uma moça da tribo vizinha, deixando-a com marcas; e por se
subordinar a Hernán Cortés e se aliar à causa espanhola.
Silvia Benso (1988, p. 113), em um artigo sobre a obra, descreve o estado de
Tlaxcala, como uma espécie de civilização ideal, utópica: “incontaminado, cerrado al
comercio del oro y de la plata, famoso por la rectitud de sus gentes, por la justicia de su
senado”. E, conforme afirma Brushwood (1973, p. 87), em Xicoténcatl (1826): “se siente un
respeto ilimitado por la bondad del hombre en su estado natural y se pone en tela de duda el
valor de las instituciones sociales que niegan el origen común y la igualdad de los hombres”.
Esse é, pois, o conflito que vive o jovem guerreiro: seguir seus próprios impulsos de justiça e
retidão, ou submeter-se aos desígnios coletivos (manipulados e negociados) do senado de sua
república.
Como última temática, podemos citar a morte: nesse romance, tal temática, como
uma forma de submissão mesma, é tratada de forma vinculada à crítica ao sistema dominador
e revela a perda da resistência, o produto do processo de imposição sofrido pelos nativos do
continente, pois a morte do herói, Xicoténcatl filho, condenado à forca por razões políticas,
serve como forma de mostrar a quebra da resistência, a impossibilidade da continuação de
uma união que poderia gerar frutos conscientes da situação do autóctone frente ao invasor
europeu.
2 THE LAST OF THE MOHICANS (1826)
A segunda obra, The Last of the Mohicans (1826), é considerada a obra de maior
importância do norte-americano James Fenimore Cooper (1789–1851). Ela fez com que
ganhasse fama internacional e, atualmente, tal romance é considerado um clássico mundial.
Cooper, devido a sua criação em New Jersey, em região praticamente inexplorada na época,
conviveu com desbravadores e nativos, e com a natureza. Fato esse que o fez gostar de narrar
aventuras baseadas nas histórias dos mais velhos. Aventura, poesia, violência, imaginação e
história são alguns dos elementos que estão à disposição do leitor. Entre os elementos que
qualificam tal obra destaca-se o seu teor histórico que fornece dados para o entendimento do
processo de colonização norte-americana, ou melhor, de uma fase marcante desse processo.
Além do conflito entre os brancos, oriundos das duas grandes potências europeias, Inglaterra e
França, está representada na obra, também, a disputa entre brancos e nativos e entre nativos
de tribos diferentes, pois os ingleses tinham, também, seus aliados de pele vermelha. Os
moicanos – povo nativo que habitava as proximidades do lago George e que foi arrancado de
suas terras com a chegada dos brancos – exemplificam a luta pela sobrevivência, já que eles
foram algumas vítimas do processo de colonização.
O pano de fundo do romance é a Guerra dos Sete Anos (1756-1763), na qual Ingleses
e Franceses se confrontaram em solo americano, e se utilizaram da destreza indígena para
conquistarem as terras da região. Além de a obra mostrar a manipulação do nativo pelo
colonizador, ela trata de um dos principais antecedentes do processo de independência dos
Estados Unidos. A narrativa contextualiza os eventos do passado e mostra ao leitor aspectos a
respeito do processo de colonização norte-americana, com lugares e personagens
cuidadosamente retratados. O romance, por se tratar de um gênero híbrido, obviamente,
mistura ficção e realidade para nos fornece uma configuração do tempo, do espaço e do
comportamento das pessoas que viveram em tal época, com uma mistura de suspense, ação,
drama e romance.
Resumidamente, a obra trata da história de duas irmãs, Cora e Alice Munro, filhas do
general Munro. Elas estão tentando encontrar seu pai e nessa busca são guiadas até um forte,
no qual o general se encontra, por um exército, pelo Oficial Duncan Heyward e por Magua,
um nativo da tribo Huron. Nessa trajetória eles encontram Hawkeye, homem branco criado
pelos nativos, e seus amigos Moicanos, Chingachgook e Uncas - por meio destes, temos uma
das temáticas da obra: a mudança da ideia de família: uma vez que, quando o pai de Uncas
desaparece, Hawkeye se torna seu pai simbólico. Uncas, ao longo da obra, passa a adquirir
algumas de suas características, isto além de representar uma família não formada por sangue,
representa uma de raças diferentes, fato que Cora e Uncas, conforme veremos na sequência,
não conseguiram constituir. - Após o encontro, Magua é então revelado como traídor por
Hawkeye por estar guiando as filhas de Muron ao caminho errado. Após isso Magua foge,
porém consegue capturar as Murons na manhã seguinte. Os nativos de pele vermelha são
descritos no romance como temíveis, selvagens, especialmente os Hurons. Os Moicanos, no
entanto, se mantêm acima das demais tribos. Após uma série de conflitos e tentativas de
conciliação, somente Alice se salva, sendo Cora morta por um Huron. Uncas tenta se vingar,
porém, é morto por uma facada de Magua, que também morre, logo em seguida, por um tiro
de Hawkeye. Ocorre, então, a morte de Uncas, o último grande guerreiro com sangue
moicano.
Em relação à configuração os personagens, podemos ver que, ao mesmo tempo em
que Cooper idealizada certos personagens – como Chingachook e Uncas, por suas falas
figurativas e metafóricas, suas descrições físicas refletirem noções de nobreza, e suas ações
são sempre altruístas, generosas e puras – ele configura outros de forma malévola, como
Magua e outros Hurons, por exibirem tendências sub-humanas, uma disposição antinatural
para violência e o hábito de comer carne crua. Essa dicotomia entre idealização e maldade
levará ao eventual triunfo que representará a imagem do Nativo americano para a Cultura
americana. Porém, há, ainda hoje, controvérsias sobre tais representações.
Ao lermos Romancing the Indian, An Introduction criado pelo grupo de pesquisa do
professor Henry Nash Smith, temos a explicação de alguns dos motivos que levaram Cooper a
configurar os nativos de tais formas:
Not all stereotypes in nineteenth-century literature depicted American
Indians as villains; some portrayed them as naturalistic saints. These
polarities, demonizing and idealizing, are different forms of
romanticizing: idealization romanticizes the positive, and
demonization romanticizes the negative. Both terms are expressions of
extravagance: the former is extravagant praise, and the latter is
extravagant criticism. Neither courts reality more than the other; both
equally ignore it.
Em The Last of the Mohicans o próprio título simboliza a morte da cultura indígena e
o início da dominação Europeia. Na obra percebemos a presença de um discurso apologético,
que privilegia a visão dos vencidos, e críticas, em relação à colonização, que são trazidas de
forma implícita. Em The Last of the Mohicans o pano de fundo é o ambiente histórico da
Guerra dos Sete Anos, em que figuras históricas ajudam a fixar tal época. Esse pano de fundo
força os personagens a terem tais ações, uma vez que o que eles vivem está atrelado à guerra.
Não se relata a guerra em si, mas sim as consequências dela. Sobre esse pano de fundo
histórico há uma trama fictícia, com personagens e fatos criados pelo escritor: Coronel
Munro, Marquis de Montcalm, the Indian nations, e o massacre do Fort William Henry, todos
encontram sua base na realidade, porém são significativamente alterados, uma vez que são
ficcionalizados.
Cooper trata também do papel da religião na selva ao expor que o personagem David
Gamut, com seu calvinismo intenso, simboliza a entrada de um modelo europeu de religião no
Novo Mundo. Ele tenta evangelizar os nativos por meio de seus salmos, ao pensar que seria
uma tarefa fácil, assim como pensou Cristovão Colombo que, em seu relato primeiro sobre
nossas terras, afirma: “[...] y creo que ligeramente se harían cristianos. (VARELA, 1983 p.
62-63). Porém, percebe-se um escárnio frequente de Hawkeye sobre a salmodia de Gamut,
sugerindo que a religião institucional não deve tentar penetrar na selva e converter seus
habitantes. Na obra se percebe um posicionamento de repulsa do narrador em relação à
religião, que muito mais do que salvar, destruirá.
O romance de Cooper é mais facilmente entendido por meio de uma análise de
oposições. A narrativa ganha seu impulso a partir da justaposição de elementos opostos como
os Franceses e Ingleses, o Nativo e o Branco, e de justaposições mais particularizados de
personagens tipos. A complexidade da estrutura do romance é sugerida pela densidade de tais
contrastes, que não só fornecem comparações entre o Velho e o Novo Mundo, mas, também,
refletem esses mundos em si mesmos, eliminando a possibilidade de avaliações simplistas.
Na obra de Cooper, Uncas e Magua, ambos chefes sem uma tribo, estão em contraste
com os outros e com os europeus presentes na obra, provocando uma negociação mais
complexa de culturas. Uncas é bonito, forte, e sem marcas, Magua é "um selvagem" na
aparência, pintado e marcado pelos costumes, pela guerra, e punição. Assim, enquanto Uncas
é um nativo "puro", não contaminado pelo contato com os europeus corruptos, por isso ele é
"intocável" na aparência, um nobre selvagem, a corrupção crescente de Magua está
literalmente inscrita em sua carne. Uncas, por sua vez, reflete o Major Heyward, ambos
apaixonados por uma das irmãs de Munro, sendo apenas Heyward capaz de defendê-la
adequadamente. Além dessas, a relação entre os personagens: Webb/Munro, Munro/de
Montcalm, e Heyward/Gamut fornece uma comparação sobre a visão de mundo europeia. Ou
seja, Cooper fez com que todas estas representações: nativo-nativo, europeu-europeu e nativoeuropeu estivessem presentes em sua obra.
Por meio dos personagens Uncas e Heyward, encontramos uma das temática
presentes na obra: a união inter-racial. Essa menção ocorre no relato que descreve a relação
entre Uncas e Cora. Cooper retrata isso de forma ambígua, pois, ele nega o estereótipo do
século XIX, de relações inter-raciais, no qual este tipo de romance é considerado pecado, mas
não projeta, no nível da narração, uma verdadeira união inter-racial. O romance entre Alice e
o Major Duncan Heyward, projeta a formação incipiente de um povo euro-americano. Por
outro lado, a atração do chefe Huron Magua por Cora representa uma ameaça nacional de
miscigenação e, por mais que Cooper também sugere que Uncas, um herói digno, filho de
Chingachgook, secretamente ame Cora, ele descarta a possibilidade da relação inter-racial ao
optar pela morte dos três personagens em luta no clímax do romance. Para explicar a atração
de dois nativos por Cora, o autor revela que a filha mais velha de Coronel Munro foi o
produto de seu primeiro casamento, nas Índias Ocidentais, com uma mulher de sangue branco
e Africano. Assim, apesar de Cooper, por meio de Munro, lamentar a escravidão e, por meio
de Magua, descrever as múltiplas injustiças sofridas pelos povos nativos e que eram
promovidas pelos colonizadores, ele encontra uma forma de evitar uma futura nação
americana com descendentes de Cora e Uncas.
A morte dos personagens, outra temática, romântica, surge na obra como solução à
problemática do relacionamento inter-racial, o qual a sociedade não queria enfrentar. A morte
atua, assim, como uma eventual realização dessa impossibilidade social da época, uma vez
que, assim como menciona Barros (2003, p. 20-21), “no apogeu do racismo científico (século
XIX), momento em que as interpretações poligenistas ganham maior destaque, observa-se
uma condenação impiedosa ao que seria o relacionamento indesejável entre seres de
“espécies” diferentes”. Alômia Abrantes, em seu resumo sobre a obra de Cooper, afirma que:
“a morte, como todas as emoções e crenças que suscita, é o que fica mais forte da leitura de
The last of the Mohicans. Ela sintetiza a complexidade do sistema de dominação escolhido e
praticado pelos homens, nessa e em outras fases da história mundial.” (ABRANTES, s.d, p.
150).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tais romances servem de amparo para se apreender as configurações que o romance
histórico tomou em diferentes regiões da América, em um curto espaço de tempo, porém
dentro do mesmo gênero – o clássico. Embora sejam obras do mesmo ano (1826), sobre a
mesma temática (colonização), a hispano-americana é muito mais um modelo de ruptura do
clássico, do que um exemplo dele. Por mais diversas que sejam as diferenças estruturais entre
as obras, com relação às caracterizações, tanto Cooper quanto o autor anônimo representaram
de forma semelhante os nativos e os colonizadores, dando mais voz aos primeiros. Nestes, o
processo de colonização é denunciado, tem-se a falta de liberdade acarretando em uma
dominação forçada, o que gera em uma mudança na forma como o colonizador e o nativo
passam a tratar um ao outro, assim como os demais dentro de suas próprias instituições.
Enfatizamos, neste trabalho, o primeiro romance histórico hispano-americano, tendo
em vista que este apresenta uma maior ruptura com o modelo clássico scottiano, uma vez que
os fatos históricos são o cerne mesmo do romance. Temos, assim, na construção do romance,
uma perspectiva de um evento histórico que atua no centro da narrativa, diferentemente do
modelo clássico scottiano, cujo primeiro plano é constituído por uma diegese puramente
ficcional. A construção do romance aborda de forma diferente o processo de conquista do
México, diferindo, contudo, pela perspectiva eleita daquela apresentada na historiografia
original, cujos registros mais significativos são aqueles feitos por Hernán Cortés, nas Cartas
de Relación (1519, 1520, 1522, 1524, 1526), e seu cronista Bernal Díaz del Castillo, em sua
obra Historia verdadera de la conquista de la Nueva España (1568).
REFERÊNCIAS
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s/d
ANÓNIMO. Xicoténcatl. Imprenta de Guillermo Stavely. Filadelfia, 1ª ed. 1826a.
ANÔNIMO. [Jicoténcal. English] Xicoténcatl: an anonymous historical novel about the
events leading up to the conquest of the Aztec Empire/Translated by Guillermo I.
CastilloFeliú. Texas: University of Texas Press. First edition. 1999b.
BARROS, Z. dos S. Casais inter-raciais e suas representações acerca de raça (Dissertação
de Mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2003. 204 p.
BENSO, Silvia. Xicoténcatl: para una representación del pasado tlaxcalteca. Romanticismo 34: Atti del IV congresso sul romanticismo spagnolo e ispanoamericano (Bordighera, 9-11
aprile 1987): la narrative romantica. Genova: Facolta’ di magistero dell’ universita’ de
Genova, Istituto di lingue e letterature straniere, Centro di studi sul romanticismo iberico,
1988.
BRUSHWOOD, J. S., México en su Novela, Fondo de Cultura Económica, México 1973
LOPES, R. S. Configuração dos Nativos em Romances Românticos Americanos – Xicoténcatl
(1826) E The Last Of The Mohicans (1826). 2012. 50f. (Trabalho de Conclusão de Curso) –
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LUKÁCS, G. La novela histórica. Trad. Jasmin Reuter. 3. ed. México: Editora Era, 1977.
MATA INDURAÍN, C. Retrospectiva sobre la evolución de la novela histórica. In:
MENTON, S. La Nueva Novela Histórica de la América Latina: 1979-1992. México: Editora
do Fondo de Cultura Económica, 1993.
SMITH, N. H. Romancing the Indian: An introduction. Disponível
<http://xroads.virginia.edu/~hyper/hns/indians/intro2.html> acesso: 25 nov. 2013.
em:
UREÑA, P. H. Las Corrientes Literarias en la América Hispánica. Ed. Fondo de Cultura
Económica, México, 1949.
VARELA, C. Cristóbal Colón: Los cuatro viajes. Testamento. Madrid: Alianza, 1986
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O entrelaçar da história e da ficção em Memorial do convento e Os