O COMEÇO DA ESCOLARIZAÇÃO EM CAICÓ, RN (1701 A 1750)
Franselma Fernandes de Figueiredo/UFRN
O começo da escolarização na atual cidade de Caicó remonta ao povoamento da
“região” do Seridó, na época Ribeira do Acauã, no final do século XVII, por meio de doações
de sesmarias, concedidas pelos capitães-mor da Capitania do Rio Grande.
Os primeiros povoadores do século XVIII, conforme atesta o historiador Santa Rosa,
Esforçaram-se por conservar no novo meio, como medida de união, os
hábitos de trabalho, o gosto pela instrução, as práticas religiosas, as
tradições, o modo de comportamento familiar, recebidas dos seus
antepassados lusitanos, adaptando-se às novas condições, especialmente
dedicando-se com interesse à criação de gados, sem deixar contudo as
atividades da pequena agricultura (SANTA ROSA, 1979, p. 119, grifos
nossos).
Partindo da noção de letramento de Soares (2003), compreendida como estado ou
condição de exercitamento do ato da leitura, com ou sem escrita, de acordo com as demandas
do indivíduo, do seu meio e do seu contexto social e cultural, observa-se que o começo da
escolarização em Caicó, a exemplo do que acontecia em outras capitanias, deu-se a partir da
instrução doméstica, tendo em vista a necessidade de inserção social da população na cultura
da oralidade e letrada.
Após algum tempo da ocupação inicial do sertão, o criatório de gado prosperava e
conseqüentemente a região ficava mais povoada, o que contribuiu para o crescimento da
crença religiosa. No intuito de melhor acomodar os devotos, acolhendo-os sob o teto de
templos católicos e sob a autoridade dos padres, os primeiros povoadores criadores de gado,
estalados, logo providenciaram o ergüimento de uma capela e com ela acontecia a ampliação
gradativa de sesmarias, resultando no Arraial do Queiquó (1700), depois elevada à Povoação
do Caicó (1735), conforme informa a Acta de Installação da Povoação do Caicó:
Aos sette dias do mez de julho de mil sette centos e trinta e sinco annos
do Nosso Senhor Jesus Christo, nesta Fazenda ‘Penêdo’, capitania do Rio
Grande do Norte, foi sollenemente às 7 horas da manhã, instalada a
Povoação do Caicó [...]. A assistência prorrompeu em vivas ao Rei de
Portugal Dom João V; ao Vice-Rei do Brazil Conde de Sabugosa; ao
Governador da Capitania João Teive Barreto Menezes, e ao Coronel Manuel
de Souza Forte, fundador de Caicó desde 1700 annos e hoje elevado o
Arraial a Povoado (ACTA DE INSTALLAÇÃO DA POVOAÇÃO DO
CAICÓ 1984, p. 149-150, grifos nossos).
No período delimitado para este estudo ņ 1701 a 1750 ņ na incapacidade do Estado
Português em conceber para os seus domínios lusitanos uma política escolar, que somente
aconteceu na colônia brasileira com a lei de 6 de novembro de 1772, a instrução doméstica
tornou-se a única modalidade de ensino e aprendizagem do ler, contar, rezar e um mínimo de
escrita, tendo em vista a predominância da cultura da oralidade sob a cultura da escrita.
O primeiro registro de um professor público em Caicó pode ser constatado na Acta de
Instalação da Povoação, em 07 de julho de 1735, na qual consta a assinatura do professor José
Feitosa, ao lado de criadores de gado, agricultores, militares e artesãos, provavelmente pessoas
de prestígio na época.
Em Portugal, da mesma maneira que pode ter acontecido nas colônias portuguesas, a
iniciativa da instrução das primeiras letras no século XVIII estava, porém, segundo Gomes
(1999), muito arraigada de que competia em primeiro lugar a família, a igreja e por último, ao
Estado português. Para o autor, isso não quer dizer que antes das reformas pombalinas de 1759
e de 1772, não tenha havido professores públicos de ler, escrever, rezar e contar, como é o
caso da presença do professor João Feitosa da Silva em Caicó, no ano de 1735.
Como em Portugal e em suas colônias não havia edifícios públicos onde dar aula, o
professor Feitosa provavelmente ministrava suas aulas nas casas das fazendas, nas capelas ou
em sua própria residência. Assim, a exemplo deste professor público, outros professores
responsáveis pela instrução doméstica, deveriam também ministrar suas aulas nos mesmos
ambientes familiares.
Mediante o quadro de escolarização no qual a Povoação de Caicó estava inserida,
pergunta-se como didaticamente o professor Feitosa ministrava aulas de ler, escrever, rezar e
contar, nesses tempos coloniais? Geralmente o processo de ensino e aprendizagem realizavase por meio do ensino individual ou método individual de ensino. Tal método consistia em o
professor ensinar a cada aluno individual, mesmo tendo vários alunos. Este método era o mais
utilizado em Portugal, nos domínios lusitanos e na França do século XVIII, e início do século
XIX. Para Pierre Lesage,
O método individual é, de longe, o mais divulgado e propaga-se em
particular nas zonas rurais que têm o privilégio de dispor de uma escola.
Alguns aspectos característicos desse modo de ensino merecem ser
lembrados e sublinhados. O professor chama sucessivamente para perto de si
cada aluno e lhe dá atenção por alguns minutos. O estudo se resume
geralmente a uma única matéria de ensino – a leitura: cada aluno deve ler o
livro ou almanaque que trouxe. Depois, o aluno retorna a seu lugar e se
exercita em repetir e em compreender aquilo que o professor acabou de
mostrar-lhe (LESAGE, 1999, p. 10).
Na Capitania e na Província de Minas Gerais, por exemplo, o referido método
individual, juntamente com a educação doméstica, também era o que prevalecia e, segundo
Rosa (2003), o período de aula era de quatro horas, divido no horário da manhã (10h às 14h) e
no horário da tarde (14h às 16h).
No período Colonial aprendia-se primeiro a ler, para depois, aprender a escrever..
Nos lembra Andrade e Daves (2002, p. 78), a aprendizagem da escrita partia “primeiro [em]
memorizar as letras, para depois soletrá-las, para aí então começarem a ler fluentemente, para,
só então, iniciarem-se na arte de escrever... iniciava-se o trabalho de ‘decorar’ a tabuada.” A
tabuada geralmente era estudada, seguindo o método de pergunta e resposta
A Capitania do Rio Grande, a exemplo das demais, destacava-se, como antes frisado,
pelo predomínio da cultura oral sob a cultura escrita, o que favorecia a transmissão de saberes
elementares do ler, escrever, do contar e do rezar, para depois escrever. Na Povoação do
Caicó, os padres e pais foram os responsáveis foram os primeiros mestres na arte de desasnar
meninos e meninas sertanejas, utilizando o método individual. A propagação desses saberes
por esses mestres natos, motivou até certo ponto o
[...] apego da população local à educação, à cultura e às coisas do saber.
Enquanto os padres da ordem dos Carmelitas Reformados, dos Capuchinhos
e da Ordem dos Franciscanos, pelo recurso da ‘pedagogia da palavra,
responderam pela ação de evangelização (ARAÚJO, 2003, p. 09).
De todo modo, no começo da povoação nas Ribeiras do Seridó (hoje região do
Seridó), a educação doméstica ainda era pouco propagada entre seus habitantes, fato que pode
ser constatado nos testamentos e inventários post-mortem, por conterem assinalações
representadas geralmente pelo sinal da cruz, em substituição às assinaturas do próprio nome.
De acordo com Andrade e Daves (2002, p. 72), “estes sinais de cruz nos documentos
caracterizam, por si, índice de analfabetismo, vinculado o testador às práticas da oralidade,
recorrente à época.”
Nesse quadro de predominância do oral sob o escrito, os primeiros povoadores que
chegaram a Ribeira do Seridó, possuíam alguns rudimentos de gramática, aritmética e
passagens decoradas do latim litúrgico, faziam com que a instrução dos filhos fosse ministrada
no ambiente doméstico, “com a supervisão severa do patriarca, que, quando possuía algum
conhecimento, ensinava ele mesmo, auxiliado pela famigerada palmatória” (MACÊDO, 1998,
p. 77).
Na maioria das vezes, era privilegiada a educação dos meninos, que iniciavam-se nas
primeiras letras por volta dos 12 anos. Entretanto, no tocante à educação das mulheres do
Caicó antigo, consta na historiografia que elas não tiveram a mesma atenção dada aos homens,
pois voltava-se para elas um cuidado especial somente das prendas domésticas, ficando a
aprendizagem dos saberes escolares em segunda instância. Destarte, as meninas caicoenses do
início do século XVIII que chegaram a ser escolarizadas, aconteceu no ambiente doméstico
pelas próprias mães ou por algum padre amigo da família.
Convém saber, quais eram os alunos do professor Feitosa, dos padres e dos primeiros
mestres? Levando-se em consideração os assinantes da Acta de Installação da Povoação de
Caicó, acredita-se que estes alunos seriam os filhos daquela composição social embrionária:
criadores de gado, agricultores, militares e artesãos, conforme dito, provavelmente pessoas de
prestígio nessa época.
Por a Igreja Católica no século XVIII controlar os ensinamentos transmitidos aos
seridoenses, interferiu na formação dos hábitos de trabalho e costumes religiosos e educativos
dos primeiros habitantes caicoenses, e embora a cultura oral tivesse predominância sobre a
cultura escrita, já apresentava-se, em 1746, uma certa preocupação da inserção desse povo no
ambiente da palavra escrita, das regras gramaticais, da aritmética e da fé religiosa.
A educação doméstica como uma maneira de sociabilidade, ao lado das práticas
religiosas, exigia como antes dito, a princípio o aprendizado da leitura. Nesse sentido, há de se
perguntar, em que livros o caicoense aprendeu a ler?
Diferente dos tempos atuais, o caicoense aprendia a ler na carta de ABC, no
catecismo, no missal, na Bíblia, na poesia de cordel, na fábula, no romance de cavalaria,
especialmente História do Imperador Carlos Magno e os doze pares da França, no livro
literatura infanto-juvenil de Gonçalo Fernandes Trancoso (histórias de proveito e exemplo) e
cartilhas manuscritas feitas pelo próprio professor.
A iniciação da cultura do ler em diversos dispositivos textuais levou aos poucos o
caicoense a tomar conhecimento da cultura do escrever, pelo menos a partir da Acta de
Instalação da povoação de Caicó. As competências do ler e do escrever estavam, sobretudo,
atreladas à economia pecuarista e expansiva à algodoeira, própria da região do Seridó. tendo
em vista que,
O fato de os fazendeiros notabilizados fazerem doações de gado vacum e
cavalar e de terras para a Fazenda do Santíssimo Sacramento, a necessidade
de escrituração de toda e qualquer doação no cartório da matriz de San’Ana,
o testemunho por escrito de qualquer ato dessa natureza, a demarcação de
terras, a troca de missivas pessoais, as correspondências endereçadas às
autoridades religiosas e políticas, as petições para a construção de capelas, os
pedidos para a benção de imagens de Santos e a confecção de inventários
apontam para a extrema necessidade da intensificação da escrita e
simultaneamente do ato de ler, no seio de uma vida comunitária em
ordenamento (ARAÚJO, 2003, p.09, grifos nossos).
A história do começo da escolarização em Caicó (1701 a 1750), requereu com base
na noção de letramento desenvolvida por Magda Soares (2003), reconstituir formas de
sociabilidades e modalidades escolares marcadas por um tempo e um espaço em que a Igreja
Católica tinha o domínio sobre os ensinamentos das primeiras letras. A partir dessa noção de
letramento compreendeu-se como se processaram as modalidades de ensino (educação
doméstica), de leituras (dispositivos diversos), de escrita (em função das demandas imediatas)
e de método adotado na escolarização (individual). Esse processo educativo anterior a
escolarização coletiva e em classes, visava muito mais “a transmissão de capacidades e de
destrezas, com vista a uma maior eficácia na ação do cotidiano” (MAGALHÃES, 1966, p. 10).
Todavia, atenta-se para o fato de que, ao tornar-se capaz de exercitar a leitura, o
indivíduo, com ou sem a habilidade da escrita, atendia as demandas sociais e culturais da
época, tendo em vista que se tornava apto a conhecer a literatura que circulava em meio aos
estratos sociais.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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