Marcos Antônio Lopes
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Hobbes e a dessacralização
do absolutismo*
Marcos Antônio Lopes**
O sentido dessa parábola é que devemos aquiescer a tudo o que
disserem aqueles a quem constituímos como reis, dando-lhes autoridade sobre nós — senão estaremos preferindo ser consumidos pelo fogo
da guerra civil.
Thomas Hobbes (De Cive)
Ao reconstituir o percurso intelectual de Hobbes o filósofo
teuto-americano Leo Strauss demonstrou as diferentes fases pelas
quais passou o autor do De Cive. Em meio ao processo intelectual de
afirmação de seu sistema filosófico Strauss analisa as metamorfoses
de seu pensamento, desde o início de seu itinerário filosófico, por ele
identificado como o ‘período humanístico’. Segue-se a fase de ruptura com o aristotelismo, o engajamento de Hobbes com os ideais da
Revolução Científica, culminando com a radicalidade do Leviatã. Um
aspecto que chama a atenção no livro de Strauss é a diversificada
utilização que Hobbes fez das Sagradas Escrituras, ora utilizando os
textos bíblicos como peça de artilharia para uma defesa confiante de
seus argumentos ora refutando-os como fundamentos plausíveis para
a justificação de princípios políticos. A primeira tendência aparece
ainda muito nítida no De Cive. Já a segunda é peculiar ao Leviatã.
Naturalmente, e ainda que estes dois livros possam ser lidos como
*
**
Submetido ao Conselho Editorial em setembro de 2003 e logo indicado para publicação.
Doutor em História – Departamento de Ciências Sociais/UEL
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obras reflexivas — no sentido de que se remetem mutuamente —, a
tendência a uma clara secularização de seu pensamento político acentuou-se nitidamente de um texto para outro.
Mas este aspecto da exegese hobbesiana — tema específico e
por demais complexo — já foi devassado pelos especialistas, entre
eles Strauss, e não é o tema destas reflexões. Vai-se tentar aqui uma
abordagem acerca da contribuição do autor à ‘obra’ de secularização
do Estado moderno. Em seu Thomas Hobbes Norberto Bobbio recorda que o pensamento político do autor do Leviatã “representa um
momento decisivo no processo de secularização da política, por meio
do qual o Estado deixa de ser remedium peccati para converter-se na
disciplina mais firme e segura para as paixões”. (Bobbio 1995: 10).
No ensaio intitulado “Hobbes: o medo e a esperança” Renato Janine
Ribeiro aponta algumas razões para as numerosas más interpretações de Hobbes, as motivações muitas vezes preconceituosas que
culminaram em leituras defeituosas de sua filosofia política e que,
por extensão, fizeram dele a “besta negra do absolutismo”. (Cf. Ribeiro 1997: 77). Entre as consideráveis rupturas com a tradição absolutista — à qual ele pertenceu e quis amplificar —, a secularização
da política e, por extensão, da realeza sagrada, é uma das singularidades máximas do filósofo inglês.1
O texto que segue aborda este aspecto de suas idéias, na perspectiva de uma história contextual do pensamento político.2 O artigo foi concebido como análise que passa em revista o tema proposto
1
2
Na perspectiva de Reinhart Koselleck “Hobbes est un exemple instructif de la genèse de la théorie politique moderne née de la situation des guerres de religion. Il a déjà
renoncé aux arguments traditionnels, comme celui de l’analogie Dieu-roi; au contraire, il veut mettre en évidence les phénomènes dans leur réalité nue à la lumière
d’une méthode scientifique et a développé sa théorie politique à partir de la situation
historique de la guerre civile”. (Koselleck 1979: 19)
Não há espaço neste artigo para discorrer sobre questões de método. Entretanto, a
perspectiva de Richard Tuck resume bem o pressuposto central desta abordagem:
“Os comentadores de Hobbes tornaram-no a meu ver mais difícil e menos interessante do que ele é na verdade, e situá-lo com mais firmeza nos debates de sua própria
época acentua, em vez de reduzir, sua importância nos debates de nosso século”.
(Tuck 2001: 10).
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à luz de alguns comentadores autorizados. Então, será preciso indagar sobre a contribuição pretendida: focar um tema relevante de sua
obra freqüentemente subtraído das grandes análises. Ora, é conhecida a irrelevância que o monarquista Hobbes atribuía à teoria clássica das formas de governo, talvez a questão mais recorrente da história da teoria política. Neste sentido, o tema da monarquia — e de
seu núcleo vital, a realeza — se constituem na problemática central
deste texto.
No século XVII a instabilidade e a desordem são males comuns à maior parte das sociedades européias. Este período foi marcado por uma sucessão interminável de grandes conflitos senhoriais
que são desdobramentos da “Guerra dos Cem Anos”, da “Guerra
das Duas Rosas”, das “Guerras da Itália”, das “Guerras de Religião”,
da “Guerra dos Trinta Anos”, da revoltas camponesas contra os
desmandos e a exploração das diversas aristocracias. Estes confrontos armados são um traço marcante, sintomático mesmo, da relativa
fragilidade do poder e da luta encarniçada por ele: contra este clima
de desordem Hobbes escreveu o Leviatã, traçando em seu livro as
regras do poder político unitário e indivisível.3 Mesmo na Inglaterra
do século XVII não havia ainda formas de poder público ampla e
incontestavelmente reconhecidas num espaço territorial que ultrapassasse os domínios de pequenas comunidades e regiões restritas.
O tempo de Hobbes foi uma época conturbada, na qual o único
elemento universal era a religião cristã, que já havia perdido a sua
unidade, o que resultou na Reforma e nas Guerras de Religião do
século XVI, em relação às quais a Revolução Inglesa foi um desdo3
No campo de estudos hobbesianos a profusa recorrência do Leviatã é um dado incontornável. Contudo, seria razoável levar em conta dois argumentos acerca da reação à
ultradestacada posição deste livro no pensamento político do autor e da necessidade de
relativizá-la. Como demonstra Renato Janine Ribeiro, “Hoje, a maioria dos comentadores se concentra no Leviatã, o que nos dá, justamente, uma boa razão para ler Do
Cidadão”. (Ribeiro 2002: XXX). Para R. Tuck, “Ainda que o Leviatã seja notável em
muitos aspectos, Hobbes não pretendia que ele fosse o corpo principal de suas idéias
mesmo em questões políticas e morais, e nossa (compreensível) concentração exclusiva
nessa obra distorceu muito daquilo que ele se empenhava em fazer”. (Tuck 2001: 10).
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bramento.4 Certamente que motivações religiosas desempenharam
importância considerável no processo político que levou à eclosão do
evento, como acentua Renato Janine Ribeiro. (Ribeiro 1997: 77).5
Em meio a estas crises está surgindo, na Europa de século XVII,
sobretudo na Inglaterra, a maior “invenção” do Ocidente: o Estado
moderno, a nova e singular forma de organização política sobre a
qual está estruturado o mundo contemporâneo. Como lembra o historiador alemão J.P. Mayer, “O Humanismo, o Renascimento e a
Reforma haviam destruído os fundamentos da unidade medieval e
traçado as linhas fundamentais de um mundo novo, legando ao século XVII a tarefa de completar a estrutura. (...) O mundo finalmente se havia feito mundano e a razão, situada numa nova dimensão, converteu-se em seu instrumento” (Mayer 1985: 103).
Assim é que o Estado moderno hobbesiano, que nunca se instituiu historicamente — apesar das investidas do autor para fazer de
seu sistema a base doutrinal de uma nova ordem —, pode ser definido da seguinte forma: uma entidade política autônoma à qual os
súditos devem obrigações e deveres como respeito, obediência e impostos. A idéia central expressa em sua concepção de poder é a da
soberania indivisível, pedra angular de seu sistema. No tempo de
Hobbes — que na concepção de Norberto Bobbio é o mais expressivo filósofo político da Época Moderna6 e que George Sabine consi4
5
6
“La guerra civil, de la que Hobbes había sido espectador aterrorizado, había sido
también guerra religiosa”. (Bobbio 1995:63). Naturalmente, houve sempre bem mais
do que um sentido confessional naqueles conflitos do início da Época Moderna, cada
lado do espectro religioso aplicando-se em purificar a comunidade cristã pela eliminação física do adversario em crença. Na análise sobre as Guerras de Religião na
França ao tempo de Montaigne, Peter Burke observa que “These wars also had a
political dimension. The great nobles, like the Guises and the Bourbons, did not
create the situation, but they did exploit it, in their natural conflict of interest with
a monarchy which had recently been pursuing policies of centralisation at their expense”. (Burke 1994: 30).
Na avaliação de Reinhart Koselleck, “L’État absolutiste meurt des séquelles non
surmontées de la guerre civile de religion, qui, dans une situation changée, remettront la revolution en marche”. (Koselleck 1979: 137).
“Hobbes é o maior filósofo político da Idade Moderna, até Hegel”. (Bobbio 1985:
107).
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dera como o mais expressivo filósofo político de língua inglesa em
todos os tempos7 —, as sociedades européias ainda são ordens hierárquicas. A posição social é definida pelo prestígio das ordens. As
posições hierárquicas na pirâmide social eram mais rígidas em fins
da Idade Média e início da Época Moderna. À medida que as relações econômicas se tornam mais complexas, as monarquias européias passam a necessitar de quadros mais capacitados, criando os ofícios vendidos aos burgueses, que assim se enobrecem. A compra de
um ofício no aparelho do Estado é, por assim dizer, a carta de nobreza da burguesia. Detalhe: num tempo em que o ethos se distingue
pelo fascínio da posição social no interior da sociedade de corte, em
que se encena o espetáculo da realeza, todos querem se enobrecer.
Trata-se de uma sociedade de privilegiados. E qual o sentido do privilégio nesta época? Naturalmente, viver em circunstâncias felizes e
socialmente reconhecidas e cobiçadas.
Foi a partir da filosofia das Luzes que o termo passou a ganhar
uma conotação negativa. E foi a Revolução Francesa o evento fundador da idéia de igualdade entre os homens; ou melhor, não da idéia,
que também era fruto do Iluminismo, mas de sua aplicação prática.8
No tempo das sociedades aristocráticas o conceito de privilégio significará bem outra coisa. É nada menos que “distinções, tanto úteis
quanto honrosas, conferidas a certos membros da sociedade e recusadas a outros”, segundo a narrativa de um testemunho do século
XVII. (Citado em Rémond 1986). Para gozar de privilégios específicos, é preciso pertencer a determinados grupos sociais. No tempo de
7
8
“... hay que considerar probablemente a Hobbes como el más grande de los escritores de filosofia política que han producido los pueblos de habla inglesa”. (Sabine
1994: 354).
Este tipo de perspectiva provocou efeito devastador acerca da imagem do príncipe e,
por conseqüência, sobre a concepção da realeza sagrada. Como demonstra Reinhart
Koselleck, “Les philosophes des Lumières réduisent le roi à la condition de l’homme,
et en tant qu’homme il ne peut être qu’un usurpateur. La critique enlève son importance au personnage historique. Ainsi privé de son élément, c’est-à-dire, de la politique, le roi devient un homme, et en tant que tel il est un homme qui use de la
violence, il est un tyran”. (Koselleck 1979: 101).
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Hobbes o privilégio pertence aos grupos hierárquicos, não aos indivíduos em particular, mas a estes como membros de uma rede de
clientelas. Há uma forte base hereditária nos privilégios, que é situação legal, reconhecida pelo Estado e pela sociedade. Assim é que a
idéia de privilégio não é algo repugnante até o século XVIII. Antes
pelo contrário: todos lutam por ele, em seus diferentes níveis. Há
uma crença, ou melhor, uma resignação diante das desigualdades
sociais, que pertence a uma cosmovisão de natureza teológico-religiosa: trata-se da denominada ideologia do eterno ontem, no dizer de
Ernst Cassirer, na qual as coisas são como estão porque sempre foram assim. A desigualdade entre as ordens, a sua hierarquização
social numa teia complexa marcada pela antigüidade da linhagem e
por outros elementos honoríficos, são traços distintivos entre as sociedades aristocráticas e as sociedades democráticas, nas quais os indivíduos, ao menos em tese, têm direito a iguais oportunidades e são
iguais perante a lei.
No século XVII a noção de direitos individuais ainda não havia surgido, ao menos como a concebemos em nosso tempo. Isto
abre espaço para a escalada do arbítrio e da violência. É o tempo, na
França absolutista, das Lettres de cachet (ordens de prisão), mediante
as quais qualquer pessoa podia ser presa ou degredada, ou mesmo
condenada a trabalhos forçados, sem maiores protocolos, sem a instauração de um processo judicial com o correspondente direito de
defesa. Bastava apenas que um pai irado assim o quisesse, ou um
aristocrata, ou o rei. Na França, é célebre o caso de Voltaire, que
depois de espancado, ainda foi encarcerado na Bastilha.
A Inglaterra foi o primeiro Estado monárquico a se constituir
na Europa ocidental. O seu relativo isolamento geográfico da Europa continental, a sua condição de Estado insular distanciou-a dos
entraves provocados por uma série de particularismos regionais dos
demais reinos. Contrariamente à Inglaterra, unificada de um só golpe por Guilherme, o Conquistador (vitória na Batalha de Hastings,
1066), os reis franceses necessitaram de séculos para completar o
processo de unificação política e territorial. Desde a Idade Média, os
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reis ingleses tomaram por hábito político consultar os vários setores
da sociedade, o que com o tempo fez surgir um Parlamento nacional
representativo da sociedade inglesa. Na França, ao contrário, estes
parlamentos eram provinciais, e não era regular a convocação dos
Estados Gerais. Somente no século XVIII, com a Revolução Francesa, surgiu uma representação política de amplitude nacional. Ora,
isto significa que em termos de organização política, a Inglaterra de
Hobbes estava na dianteira do outro Estado mais importante da
Europa.
A Reforma, no século XVI, acelerou este processo de aperfeiçoamento das estruturas políticas na Inglaterra, porque atacou e
derrotou o maior obstáculo ao poder real, a Igreja. Entretanto, em
termos do exercício do poder, Inglaterra e França não diferiam muito até meados do século XVII. Eram monarquias absolutistas de
direito divino. A diferença histórica mais relevante que se produziu
liga-se à adoção do protestantismo na Inglaterra. A partir dos inícios
do século XVI ficou mais difícil apregoar a defesa do direito divino
como apanágio da realeza. Se qualquer súdito podia sacar a Bíblia e
interpretá-la livremente como o próprio rei, este espírito individualista nascente levou à superação de uma perspectiva orgânica da sociedade política sobre a qual se apoiara o poder monárquico na Idade
Média. (Cf. Crossman 1985).9
Na época do absolutismo o príncipe era comumente identificado ao Estado, e vice-versa, o que se denominou historicamente por
absolutismo patrimonial. O Estado era, em boa medida, um prolon9
Hobbes se utilizou com largueza desta margem de liberdade. Como observou Strauss,
“Exactly as Spinoza did later, Hobbes with double intention becomes an interpreter
of the Bible, in the first place in order to make use of the authority of the Scriptures
for his own theory, and next and particularly in order to shake the authority of
Scriptures themselves. Only gradually does the second intention become clearly predominant”. (Strauss 1984: 71). O livro De Cive está repleto do emprego das Escrituras
para os fins persuasivos de Hobbes, naquilo que se refere a tirar partido da Bíblia para
comprovar o “direito do rei”. (Cf. Hobbes 2002: 178). E nenhuma evidência documental é mais convincente em relação ao argumento de Strauss do que o intertítulo
6, do capítulo XI: “As passagens mais evidentes, do Novo e do Antigo Testamento,
provam a autoridade absoluta” (Hobbes 2002: 176).
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gamento da realeza. Entretanto, a Inglaterra de Hobbes estava passando da era do príncipe de Maquiavel, ou seja, do domínio de um
mando pessoal, para um regime político comandado por relações
institucionais, regime com o qual Maquiavel havia sonhado, não no
Príncipe, mas nos Discursos. Como veremos, Hobbes romperá com
este esquema sagrado e patrimonial. Em meados do século XVII ele
irá muito além de Maquiavel, identificando o absolutismo do príncipe com uma instância de ação jurídica e gendarme que passa a reconhecer como única linguagem legítima a força da lei, coadjuvada
pelo sabre. Seu Leviatã expressa um momento decisivo no processo
de secularização da política em que o Estado deixa de ser concebido
como um mal necessário rumo à salvação coletiva, idéia vinda da
Idade Média, para converter-se no único amparo seguro contra as
paixões individuais.
No dizer do historiador inglês R. Crossman, “Decidido a manter a soberania indivisível, Hobbes a despoja desse direito divino que
constitui sua única justificação”. (Crossman in Mayer 1985: 126).10
Com sua análise racional, identificando o exercício do poder com um
regime de força, ele simplesmente rompe com as tradições imemoriais da realeza. Ele promove, assim, um novo curto-circuito
maquiaveliano no século XVII.11 Neste sentido, o historiador norte10
Curiosamente, três décadas separam a publicação do Patriarca, de Robert Filmer, do
Leviatã, de Hobbes. Seu autor morrera em 1653, e a obra póstuma veio à luz em
1680, na tentativa de refundar a legitimidade de Carlos II, utilizando como âncora
teórica a doutrina do direito divino. Seu livro foi publicado no contexto da sucessão
de Carlos II e teve uma repercussão considerável, re-atualizando um antigo tema da
teoria política inglesa. (Cf. Chevallier 1982 e 1999; Prélot 1974).
11
Esta idéia de uma drástica ruptura é expressa por Leo Strauss: “I concluded that
Hobbes was the founder of modern political philosophy because he had expressed
the conviction that he had effected, in his capacity as a political philosopher, a radical break with all earlier political philosophy much clearly than Zeno of Citium,
Marsilius of Padua, Machiavelli, Bodin, and even Bacon had done”. (Strauss 1984:
XV-XVI). Louis Snyder explica a adesão de Hobbes ao absolutismo nos seguintes
termos: “Hobbes himself favored absolute monarchy, which he regarded as a political necessity, but he was dissastisfied with divine right as a basis for it”. (Snyder
1955: 65). E adiante: “Dissastified with the theory of divine right as a basis for
absolutism, Hobbes sought to construct a new science of politics to explain absolutism as a political necessity”. (Snyder 1955: 125).
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americano George Sabine observa que “É fácil conjeturar que, na
visão de Hobbes, a religião não era coisa de importância vital. Atribui a ela menor peso moral que Maquiavel”. (Sabine 1994: 366).12
De forma análoga, o Estado propugnado por Locke também
inverte a lógica do absolutismo teocrático (de direito divino), pela
qual o direito de reger não implicava em reger direito, porque um
mau príncipe pode ser um castigo divino a maus súditos, se assim
deseja a Providência. A doutrina do direito divino de Filmer reivindicava privilégios inconcebíveis aos homens comuns, e os negava
terminantemente à sociedade, daí a antipatia de Locke pelos católicos. O direito natural substitui a transcendência divina como justificação do poder. Coloca em seu lugar os valores humanos mais caros
(vida, liberdade, propriedade), completamente independentes. E não
que Locke tenha sido incrédulo. O poder dos reis tradicionais apelava às tradições imemoriais como fonte de sua legitimidade. Locke
apela apenas para a sua eficácia à proteção do direito natural. E não
haverá nenhuma necessidade de que o governante tenha relações
profundas com os seus súditos, caso de Guilherme III de Orange. O
primeiro livro dos Dois Tratados sobre o Governo é uma crítica à teoria
do patriarcalismo de Robert Filmer, que afirmava ser a autoridade
dos reis a mais legítima, por ser oriunda diretamente de Adão. Filmer
era o Bossuet inglês, e Locke não o refutou por capricho intelectual,
mas porque sua obra possuía grande apelo nos fins do século XVII.
Ele não aceita a tese de que Adão recebera de Deus uma autoridade
absoluta sobre seus filhos. E que esta autoridade foi transmitida hereditariamente aos reis. Isto faz dos reis o último elo de uma cadeia
que os liga aos primeiros homens, os pais da humanidade. Então, o
poder não deriva nem da eleição nem da conquista, mas de uma
12
Como demonstra o historiador teuto-americano Eric Voegelin, “Hobbes saw herself
in the paper of Plato, to a king’s search that adopted the new truth and it inculcated
it in the people. (...) Hobbes didn’t count with the government’s force to suppress
the religious movements. (...) However, for his idea of abolishing the tensions of the
history for the popularization of a new truth, Hobbes reveals their own gnostiques
intentions”. (Voegelin 1952: 63).
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paternidade consentida por Deus, aliás, o mais natural dos vínculos
sociais. Ora, esta idéia era muito cara às pessoas comuns e o “Primeiro Tratado” fez um grande esforço por desbaratá-la.13
Os quase cinqüenta anos de conflito, que se prolongam com
algumas pausas de 1642 a 1688, demonstram a dinâmica social inglesa, e a emergência de novos segmentos sociais, que se erguem
contra a aristocracia feudal, aquela “coligação” de barões que se juntaram à monarquia para fazer a Guerra dos Cem Anos e a Guerra
das Duas Rosas, a qual terminou em 1585, com a ascensão da linhagem Tudor. Estes setores emergentes defendem interesses econômicos diferentes dos segmentos conservadores da ordem social, e os
fazem representar no Parlamento, contra o absolutismo dos Stuarts
e da grande nobreza. A baixa aristocracia e a burguesia passam a se
opor à tradição caduca representada pelo autoritarismo régio, agora
personificada pela dinastia escocesa Stuart. Estes segmentos sociais
emergentes, num quadro econômico em rápida transformação, lutam por incentivo à produção da indústria têxtil e por vantagens
para o comércio internacional.
A Revolução Inglesa opôs antagonismos de dois mundos, de
duas concepções divergentes em relação à forma de organização da
sociedade política na Inglaterra do século XVII. Não havendo acordo acerca da possibilidade de conciliar interesses, como de fato não
houve ao longo de meio século, uma concepção teria que suplantar a
outra pela força. Os novos setores sairiam vitoriosos, basicamente
porque faltavam ao rei e à nobreza guerreira, a necessária base social
para continuar exercendo uma forma anacrônica de poder para a
Inglaterra do século XVII, que havia desenvolvido consideravelmente
desde o fim da Idade Média, no plano de suas forças econômicas. A
Inglaterra evoluíra e a realeza perdera o “tempo da história”, ou seja,
o compasso da realidade. O sistema feudal baseado na economia de
13
Uma oportuna tradução em português é a de Júlio Fischer, para a excelente coleção
“Clássicos”, da editora Martins Fontes. (Cf. Locke 2002, com introdução de Peter
Laslett).
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troca havia sido minado por fatores econômicos novos com o advento de uma economia monetária, comandada por burgueses ricos e
pela pequena aristocracia denominada Gentry (setores da baixa nobreza ligados à produção e ao comércio da lã). O século XVI foi a
época dos cercamentos (enclousures) que fizeram da Inglaterra, no
dizer do humanista cristão Thomas Morus, “uma terra na qual carneiros devoram homens”. Esta é também a época do advento do
mercantilismo, em que o Estado transferiu da Igreja para si o papel
diretivo da economia, liberando-a de entraves morais que a estancavam. Mas, paradoxalmente, o liberalismo britânico e a democracia
norte-americana, no dizer de Crossman, basearam-se, desde seus
primórdios, em convicções morais e numa consciência religiosa, bem
ao estilo da ética protestante descrita por Weber.
O curso dos acontecimentos demonstrou que os Stuarts não
tinham recursos econômicos para fazer frente às forças internas rivais, como dispunham o rei da Espanha (império colonial) e o rei da
França (impostos e patrimônio pessoal). Em 1688 a chamada Revolução Gloriosa (revolução sem sangue porque surgida do acordo entre os setores já exaustos em luta) criou a nova realidade política e
constitucional que iria “libertar” as forças produtivas rumo à chamada Revolução Industrial do século XVIII. A Revolução Inglesa do
século XVII deu origem ao primeiro regime político constitucional
moderno, um regime baseado na letra da lei e nos valores do liberalismo nascente. O filósofo Locke foi o seu idealizador, a despeito da
filosofia política de Hobbes ter pretendido ser o ideário de uma nova
ordem. O resultado da Revolução Inglesa do século XVII foi o triunfo da tolerância sobre duas partes até então intolerantes.
Como Maquiavel, Hobbes é outra criatura maldita da história
da teoria política. Mas ultrapassou Maquiavel no campo da justificação do poder, pois constituiu um sistema filosófico muito mais complexo, mais sutil e mais racional. Hobbes vai além de Maquiavel
porque promove uma operação intelectual de suma importância: ele
despersonaliza o Estado, que não é mais identificado com a figura do
soberano, da forma como o historiador de Florença propõe no livro O
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Príncipe. Trata-se de um regime político institucional, baseado num
pacto social que é, em sua essência, um regime jurídico fundado por
um contrato irrevogável, contra o qual ninguém pode se insurgir.
Os problemas da teoria política hobbesiana giram em torno da necessidade do estabelecimento de uma ordem pública inquebrantável, inquestionável, rigorosa e dura, sem qualquer margem para a
expressão de conflitos, como Maquiavel apregoa em seus Discursos.
Para se ter uma idéia da distância teórica que separa estas duas criaturas “diabólicas” da filosofia política basta dizer que, em Hobbes, a
figura da realeza heróica não possui nenhum espaço para ação, por
mais milimétrico que seja, até porque esta figura não possui existência no universo hobbesiano. A política em Hobbes não é uma esfera
dinâmica como o é em Maquiavel — espécie de dança ininterrupta
sob a espada de Dâmocles —, submetida ao império das ações espetaculares de príncipes em contínua carreira pela conquista de um
equilíbrio sempre precário. Isto equivale a dizer que o mundo histórico e real de Maquiavel equivale, mutatis mutandis, ao estado de natureza de Maquiavel. Ora, a soberania sem partilha de qualquer espécie foi instaurada e legitimada por um pacto inquebrantável.
No sistema político de Hobbes, produzido em um outro contexto, muito distante das preocupações regionais de Maquiavel, não
há qualquer referência a conceitos humanistas como virtù e fortuna,
que haviam sido tão caros ao historiador de Florença. Se Hobbes não
fundou ou inventou o contratualismo, esta corrente de pensamento
político tornou-se mais conhecida com ele.14 Em que consiste esta
doutrina, na configuração que Hobbes deu a ela? Consiste num pac14
Referindo-se à Grécia antiga o historiador alemão Walter Theimer afirma: “O direito natural e a teoria do contrato foram amplamente discutidos no século V a.C.”.
(Theimer 1970: 15). Para Gaetano Mosca, “A idéia de um estado de natureza, anterior à vida social e organizada do ponto de vista político, não era nova. Os monarcômacos já a haviam formulado, e a idéia não era mesmo de todo desconhecida dos
escritores da Antigüidade clássica; mas os monarcômacos, com o fim de limitar a
autoridade real, e admitindo fundamentalmente que houvesse existido um estado de
natureza, tinham sustentado que os homens, no pacto que os ligava ao Estado, haviam reservado uma parte de seus direitos”. (Mosca e Bouthoul 1987: 190).
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to entre todos os indivíduos que, para sair do estado de natureza, em
que todos têm direito a tudo e, portanto, ninguém tem direito a
nada, concordam em ceder por completo a sua liberdade a um só. E
por que agem assim? Por medo de que ocorra o que há de pior na
existência humana: a morte prematura e violenta. Na análise de
Crossman, “O Leviatã é a primeira grande justificação da ditadura,
mas nenhum ditador pode aceitar sua doutrina. Em resumo, é uma
defesa democrática da ditadura e, como tal, apesar do rigor de sua
lógica, baseia-se numa contradição fundamental. Como diz Locke,
‘é como se os homens, ao saírem do estado de natureza e entrar em
sociedade, aceitassem que todos, exceto um, deveriam submeter-se
às leis; (...) isto é pensar que os homens são tão estúpidos que se
preocupam em evitar os prejuízos que podem lhes causar as doninhas
e as raposas, mas que se conformam, porque assim lhes parece mais
seguro, em deixar-se devorar pelos leões’”. (Crossman In: Mayer 1985:
127). O que parece incomodar a Locke no argumento hobbesiano é
o fato de que alguém preservou toda a sua liberdade quando da vida
no estado de natureza. E ainda mais incômodo para ele é o fato de tal
liberdade ter-se amplificado no estado civil e de o dirigente político
gozar ainda da legalidade de seu livre arbítrio — que pode ser inclusive arbitrário — e tudo o mais.
No regime hobbesiano o príncipe (ou uma assembléia aristocrática ou democrática, não importa o número) possui poderes absolutos — absolutíssimos, se o termo comportasse grau superlativo,
no dizer de Bobbio. Então, não tem tempestade, não tem geada, não
tem cara feia, não tem Judiciário nem Parlamento que possa obstruir, por mais leve que sejam tais intervenções, a vontade soberana
do Estado. Em síntese, estamos diante de um regime político que vai
ao fundo do mais completo autoritarismo e que não pode e não deve
consentir nenhuma forma de limitação de seu poder, sob pena de
perder a legitimidade instituída pelo pacto.
Na visão de Hobbes o absolutismo era um regime político inevitável, consubstanciado ou não na forma monárquica de governo.
De acordo com Strauss, a gênese da filosofia política de Hobbes é
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caracterizada, entre outros elementos, por uma firme aposta na monarquia como a forma de governo mais natural das sociedades históricas e, ainda, como a mais perfeita entre os Estados artificiais, ou
seja, aqueles gerados pelo pacto.15 No intertítulo 13 do Capítulo
VII do De Cive, no qual se lê que “A monarquia é sempre o governo
mais prontamente capacitado a exercer todos aqueles atos que são
requisito para o bom governo” Hobbes demonstra a sua insofismável
predileção pela monarquia. (Hobbes 2002: 127). O elemento de
diferenciação que alça esta forma de governo a uma categoria superior é a “pessoa natural” do rei, que transfere agilidade às decisões
distinguindo, deste modo, a maior eficiência do poder régio.16 Ele
quis dizer que a aristocracia e a democracia, sendo “pessoas artificiais”,
possuíam menor mobilidade da esfera da ação política.
Mas por que Hobbes prescreve o absolutismo, na sua linhagem mais pura e dura? As suas idiossincrasias pessoais ajudam a
explicar a sua teoria política. De fato, o que dizer das idéias políticas
de um homem que se dizia “gêmeo do medo”, do qual se conta que
havia nascido antes do tempo (um quase aborto!) vítima do medo
que sua mãe sentiu quando da aproximação da Invencível Armada
espanhola, que o rei ultracatólico Filipe II enviou para a tomada da
herética Inglaterra? O próprio Hobbes diz que o terror inconsciente
sentido no ventre materno iria persegui-lo por toda a sua longa existência (91 anos!). Aos sessenta anos ele já havia assistido a inúmeras
crises e conflitos militares. Antes que a revolução Inglesa iniciasse,
ele tinha se refugiado na França.
O seu contexto conturbado ajuda a explicar o universo temático
hobbesiano, a sua preocupação com a preservação do corpo físico e,
15
“At all stages in his development Hobbes considered hereditary absolute monarchy
as the best form of State. (…) monarchy is the only natural, i.e original form of
authority, the only form which corresponds to nature’s original order, whereas aristocracy and democracy are artificially produced by man, merely ‘cemented by human wit’”. (Strauss 1984: 56. Cf. também p. 129).
16
“O monarca, que por natureza é uno, sempre está atualmente capacitado a executar
sua autoridade”. (Hobbes 2002: 128).
Comunicação&política, n.s., v.X, n.3, p.155-089
Marcos Antônio Lopes
156
naturalmente, do corpo político. Isto para dizer que o teórico da
soberania indivisível elege o medo como o centro de gravidade de
seu pensamento, sobretudo o medo da guerra e da morte.17 Quando
ele afirma no Leviatã que é preciso procurar a paz, enquanto se tem
esperança de encontrá-la, está justificando o poder sem limites, sem
entraves, único agente capaz de coibir os conflitos produzidos por
uma natureza egoísta e perversa. (Cf Hobbes 1974). O medo para
ele é uma verdadeira “paixão civilizadora”, capaz de forjar a paz,
mesmo sobre as maiores dificuldades.18
O corolário natural do argumento de Hobbes pode ser o seguinte: não haverá possibilidade de paz se existirem possibilidades
de resistência ao poder e, muito mais ainda, se a política e a religião
transpuserem os seus “territórios naturais”, tentando exercer influência em áreas situadas além de suas respectivas alçadas. Hobbes
apregoa uma monarquia secularizada e um Estado laico, porque estas duas “paixões” (a religião e a política), quando colocadas em
movimento sem controle, desencadeiam sentimentos irreprimíveis e
destrutivos.19 Em sua concepção, as razões da sociabilidade humana
encontram-se no egoísmo e não num suposto ideal aristotélico de
busca da felicidade. Segundo Aristóteles, os homens fundavam a sociedade política por um instinto natural, em busca da felicidade.
Para Hobbes não é nada disso. Trata-se de um impulso rigorosamente calculado, pela pura satisfação dos interesses pessoais. A
sociedade política nasce do temor mútuo existente entre os homens.
17
“This fear is a mutual fear, i.e. it is the fear each man has of every other man as his
potential murderer”. (Strauss 1984: 17).
18
A moral que leva à construção do Estado em Hobbes é a moral do medo, a “eterna
moralidade” hobbesiana. Como afirma Strauss, “Hobbe’s political philosophy rests
not on the illusion of an amoral morality, but on a new morality, or, to speak according to Hobbe’s intention, on a new grouding of the one eternal morality”. (Strauss
1984: 15).
19
Demonstrando a necessidade de se separar religião e política em esferas distintas
Hobbes afirma, no De Cive, que “... as leis são baixadas e outorgadas com respeito a
ações que dependem de nossa vontade, e não relativamente a nossas opiniões e crenças,
que, estando fora de nosso poder, não seguem a vontade”. (Hobbes 2002: 87).
Hobbes e a dessacralização do absolutismo
157
No estado de natureza, portanto no regime pré-sociedade política, a
guerra dá a qualquer um direito sobre todas as coisas. É a velha lei
da selva, do mais forte, em que “o homem é o lobo do homem”. A
vida no estado civil passou pelo princípio da disputa para ver quem
decide, quem terá a prerrogativa do mando. Disso deriva a sociedade civil não ser natural, mas um artifício, para instituir uma realidade sobre outra. Mas só leis muito severas garantem a unidade de um
agregado que era até então o próprio caos. A lei e a força são as bases
desta unidade, porque de nada vale boa legislação sem uma espada
muito afiada; todo o resto é conversa fiada, para rimar sword com words,
nas palavras do próprio Hobbes. Aqui estamos bem próximos de
Maquiavel, e dos ditos profetas desarmados. Não basta ao governante
ser amado. Ele precisa estar armado, ter a seu favor a “ultima ratio
regum”, quando não mais se crê nele, e na fé que ele representa.
Assim é que, para Hobbes, o único interesse racional é a passagem do estado de natureza para o estado civil. Mas há um preço para
a preservação do corpo e da vida: a liberdade, bem como todos os
demais princípios que dela derivam. Em contrapartida há também
vantagens porque somente o Estado civil soberano fundará a realidade
efetiva do que é próprio e do que é alheio, constrangendo os indivíduos a respeitar a integridade do corpo (o direito à vida) e o direito de
propriedade. A teoria do “individualismo possessivo” explora esta noção hobbesiana e afirma ser a doutrina de Hobbes uma arma de
defesa do liberalismo e da burguesia. Por este ângulo, o absolutismo
avassalador de Hobbes seria prescrito somente para aquele contexto
específico da Revolução Inglesa, regime necessário apenas a uma
época de crise e de afirmação de uma nova ordem social. A história
efetiva desmente esta abordagem da obra hobbesiana tornando-a
em mais uma daquelas “leituras defeituosas”, haja vista que deformam o pensamento de um autor, que traem as suas reais intenções.
No contratualismo hobbesiano, o Estado é um triunfo histórico porque é capaz de garantir a unidade do corpo político e, portanto, a paz. Desta forma, ele obriga ao respeito à integridade do corpo,
porque impõe punições muito severas às transgressões. Após celeComunicação&política, n.s., v.X, n.3, p.157-087
Marcos Antônio Lopes
158
brado o pacto (o contrato social) ele é irrevogável. Nenhuma das
duas partes poderá quebrá-lo sob nenhuma hipótese. No regime
hobbesiano não há espaço para noções do bem e do mal. A doutrina
política deste autor não trabalha na escala da ética. A sua filosofia
política é de um positivismo jurídico radical porque os valores éticos
inexistem ao nível das relações entre Estado e sociedade. Estamos
sob o império impassível da lei do Estado.
O Estado é obra humana, portanto mortal. Ele não nasce num
estágio primitivo da vida social. Ele deve nascer em qualquer lugar
em que ainda não surgiu o estado civil: a Inglaterra do século XVII,
por exemplo, ao tempo da guerra. Como nos mostra J.P. Mayer, por
estado de natureza na filosofia política hobbesiana não se deve compreender um ponto de partida pré-determinado na história. Isto
porque tal estado pode surgir em qualquer momento, com uma guerra
entre nações, por exemplo. (Cf. Mayer 1985: 114). Na análise de
George Sabine, parece que para Hobbes a vida entre os selvagens se
aproximava do referido estado de natureza. Contudo, ele não se preocupava com a exatidão histórica de uma tal descrição. (Cf. Sabine
1994: 359). O próprio Hobbes indica, no Leviatã, que os acontecimentos do passado são quase tão incertos quanto os do futuro, porque o conhecimento baseado na experiência não é grande coisa. Disso deriva a evidência — bem assinalada por Leo Strauss na referida
passagem da obra de Hobbes —, da “... natureza problemática de
todo conhecimento político que toma a história como seu fundamento...”. (Strauss 1984: 96).20
O Leviatã nasce de um duplo contrato: dos indivíduos entre si
e com o soberano, ao qual delegam o poder. Na verdade, o contrato
duplo se resume a um único contrato, porque o soberano não participou do acordo. Ele apenas o ratificou. O Estado forma uma pessoa
distinta de todos os indivíduos que se uniram para formá-lo e que ele
20
E este mesmo autor complementa: “To this extent it is true to say that Hobbe’s
political philosophy is ‘unhistorical’. (…) The state of nature is thus for Hobbes not
an historical fact, but a necessary construction”. (Strauss 1984: 102-04).
Hobbes e a dessacralização do absolutismo
159
reúne em si. A forma escamosa de um monstro marinho é a metáfora que Hobbes encontrou para materializar esta imagem do Estado:
a fusão completa de indivíduos microscópicos resulta num monstro
que concentra em suas mãos a espada secular e o báculo episcopal, o
que significa que nem mesmo a religião, e muito menos ela, escapa à
tutela do Estado soberano.
Para Hobbes, vale a máxima de Voltaire, ao refletir sobre a
existência de Deus: se o Estado não existisse (e para ele efetivamente
ainda não existe na Inglaterra de seu tempo), seria preciso inventálo. Hobbes quer inventar uma forma de Estado que tire os homens
da barbárie das relações de força para introduzi-los num plano de
relações jurídicas. Ele pretende transformar o indivíduo em súdito,
cujo dever primeiro é a obediência passiva à lei e às sanções a que
tem direito de lhe impor o Leviatã. O Estado hobbesiano é algo
assim como o agente civilizador dos costumes analisado por Norbert
Elias, e o medo e a coerção são os seus agentes catalisadores, rumo ao
estabelecimento da ordem pública. Agente civilizador dos costumes
parece ser mesmo uma expressão adequada para caracterizar o Estado hobbesiano, porque a partir de sua instituição nenhum indivíduo
poderá mais “pular na garganta” de outro, como expediente de resolução de uma controvérsia ou disputa de qualquer ordem. Não haverá espaço nem mesmo para as vinganças privadas de crimes hediondos. Apenas ao Estado cabe coibir os abusos e as transgressões.
Como ocorreu com Maquiavel, a filosofia política de Hobbes
causou apreensão horrorizando até mesmo àqueles a quem tencionava defender. Os absolutistas ingleses se afastaram dele e os revolucionários, naturalmente, se opuseram com vigor às suas idéias.21 E
isto principalmente pela evidência de que, na filosofia política de
Hobbes, não há bom ou mal soberano, do mesmo modo que também não existem formas boas ou más de governo. De fato, não existe nenhuma diferença entre o rei e o tirano. Quem é o tirano, indaga
21
“His political writings caused much comment in his own day, but it was said that his
opponents were more conspicuous than his disciples”. (Snyder 1955: 125).
Comunicação&política, n.s., v.X, n.3, p.159-085
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160
Hobbes, e quem é o rei? Ora, o tirano é o rei que não aprovamos, e
o rei pode muito bem ser precisamente o contrário. A ironia da coisa
está na subjetividade do julgamento que, pela lógica do autor, invalida qualquer critério racional para estabelecer uma definição objetiva capaz de diferenciar um do outro. A diferença está apenas na
natureza da soberania.22 Se é absoluta, é positiva, se não, não. Não
há formas mistas de governo. Há apenas soberania indivisível e poder absoluto, seja do príncipe seja da assembléia, formada por muitos ou por poucos que, ao fim e ao cabo, deve ser um bloco monolítico.
Diferentemente de Maquiavel, qualquer indício de conflito entre classes é agente de divisão do poder.
Assim é que, um monumento à razão política, o Leviatã não
gerou qualquer efeito histórico, conforme os anseios do autor. Esta
obra de circunstância,23 escrita para servir de corretivo a um tempo
marcado pelos horrores das guerras civis, não foi acolhida nem na
Inglaterra nem em nenhum outro lugar: “Como teoria de ação prática morreu ao nascer, enquanto os textos de Locke, ao estarem adaptados ao espírito da época, se converteram em justificação típica tanto da ação dos whigs ingleses quanto dos revolucionários norte-americanos”. (Crossman in Mayer 1985: 129). Hobbes havia errado em
seus prognósticos. E a história efetiva desmentiu as razões de Hobbes,
porque a vitória dos ideais liberais-burgueses não gerou o estado de
natureza que ele previra em seu livro. A história deu razão a Locke.
Por isto mesmo Hobbes é visto como o último grande pensador de
extração renascentista, por seu vigoroso sistema filosófico e por sua
aposta num poder sem limites, mas fora de tempo e de lugar. Locke
é concebido por muitos como a primeira expressão do Iluminismo,
pela possibilidade de conversão de sua filosofia política no ideário da
sociedade liberal emergente.
22
A natureza desta soberania é expressa por Koselleck: “Le monarque est au-dessus du
droit et en même temps il est la source de celui-ci, il décide de ce qui est juste ou
injuste, il est législateur et juge tout à la fois”. (Koselleck 1979: 25).
23
“Los escritos políticos de Hobbes fueron motivados por las guerras civiles y con la
intención de ejercer influencia del lado del rey”. (Sabine 1994: 353).
Hobbes e a dessacralização do absolutismo
161
Nos meados do século XX alguns comentadores de Hobbes
tentaram identificar o seu absolutismo aos regimes totalitários (nazismo e fascismo), em vista do autoritarismo avassalador expresso no
Leviatã. Estes foram contestados por outros comentadores, que julgaram tal análise anacrônica, desprovida de sentido histórico, uma
vez que os apelos de Hobbes foram muito diferentes daqueles do
Estado totalitário.24 E isto porque, entre outros motivos, o pensamento de Hobbes é racionalista até a medula, de uma razão fria,
calculista, cartesiana mesmo.25 Ele não busca nenhum amparo na
emoção coletiva, em apelos às tradições culturais comuns do povo
inglês, como o fizeram fascismo e nazismo no século XX, que invocaram as culminâncias de suas tradições históricas, culturais e étnicas para legitimar as prerrogativas de hegemonia sobre outros povos, ou até mesmo o direito de decidir a sua extinção. Antes pelo
contrário, o autor quer romper o que considera os grilhões da tradição, atividade que aterrorizou os monarquistas de seu tempo.
A concepção do Estado nazista foi organicista e mística. Em
Hobbes não há traços de união orgânica dos segmentos sociais devido às características marcantes de seu individualismo, que repercute
um ideal do Renascimento. Como acentua François Châtelet, resolvendo a questão da forma de governo segundo sua lógica peculiar, o
projeto hobbesiano “... deixaria aos indivíduos o cuidado de regular
suas vidas privadas e de usar livremente as próprias capacidades”.
(Châtelet 2000: 54). Qualquer espaço ao misticismo identificado no
pensamento político do autor é um atentado contra a sua lógica
24
Acerca particularmente deste equívoco Reinhart Koselleck demonstra a essência da
diferença de matrizes no plano da área de abrangência das diferentes formas de poder
autoritário: “La dictature se distingue de l’absolutisme dans la mesure où elle veut
intégrer l’interieur du particular que Hobbes avait retranché de l’État”. (Koselleck
1979:137).
25
Leo Strauss relativiza o grau de comprometimento do pensamento de Hobbes com a
ciência moderna, que emerge com enorme vigor no século XVII. Como assinalou
Strauss, “It is true that every reader of Hobbes is struck by the clarity, rigour, and
decision of his thougth. But every student of Hobbes is also amazed by the numerous
contradictions which occur in his writings”. (Strauss 1984: X).
Comunicação&política, n.s., v.X, n.3, p.161-083
Marcos Antônio Lopes
162
matemática. Mas o método de Hobbes é falho sobretudo porque
quis aplicar a lógica das ciências exatas ao domínio do empírico, ao
terreno das ações humanas, uma perspectiva tão dura como empregar as leis da física no processo de compreensão da psicologia: “A
natureza em geral e a natureza humana em particular eram para ele
apenas sistemas de causas e efeitos”. (Sabine 1994: 356).26 A Cidade
de Hobbes é fria, individualista, racional. A Cidade do nazismo é
quente, coletivista, emocional. Neste ponto, estamos diante de concepções em que a razão e o sentimento são forças contrastantes e
irreconciliáveis. A fortuna crítica que teve e de que goza até hoje, em
especial no campo da pesquisa filosófica no Brasil, demonstra o vigor de seu pensamento, prova incontestável de que é autor de relevo
para a compreensão das relações entre Estado e sociedade.
Em síntese, a secularização da realeza sagrada, essência do absolutismo monárquico, foi operação intelectual de suma importância perpetrada pelo autor do Leviatã. Seu livro foi pensado numa
abordagem muito avançada, ainda que tenha preservado um objeto
em ruínas. John Locke e os philosophes do século XVIII foram leitores
atentos de Hobbes.27 Eles repudiaram seus princípios políticos. Mas
extraíram deles alguns efeitos muito positivos na luta contra o arcaísmo teológico e a tradição autoritária que fazia do exercício do poder um bem para ser gozado solitariamente pelo príncipe. Sob este
aspecto, o racionalismo, o individualismo e o materialismo de Hobbes
serviu à obra devastadora de Locke, como uma espécie de punhal
envenenado que não somente ele, mas também os filósofos do
26
Acrescentando o aspecto do ceticismo hobbesiano, um historiador inglês expressa
uma avaliação análoga: “Descartando tudo o que lhe parecia duvidoso, ele se viu com
um cru materialismo a priori de acordo com o qual o universo deve consistir de objetos materiais que interagem causalmente uns com os outros, sendo porém incognoscível o real caráter desses objetos e de suas interações”. (Tuck 2001: 142).
27
E não apenas os filósofos do Iluminismo. Muito antes disso, o autor já possuía os seus
leitores na França. É o caso do escritor calvinista Pierre Bayle em fins do século XVII
e mais particularmente do rei, Luís XIV: “Il garde, en effect, chez lui Les Éléments de
la politique de Thomas Hobbes”. (Bluche 1986: 707). Aliás, seria muito interessante
imaginar as reações de um soberano tão convicto da sacralidade da realeza e de seu
direito divino para governar quando diante de um texto de Hobbes.
Hobbes e a dessacralização do absolutismo
163
Iluminismo,28 empunharam para cravar nas entranhas do clero e da
monarquia absolutista. Locke e os Iluministas renegaram o absolutismo hobbesiano, mas extraíram de sua obra uma representação
secular do Estado, do poder e da sociedade, além da sua crença na
ciência como libertadora da humanidade. Mas, para todos os efeitos,
o pensamento político liberal clássico fez da teoria do poder de Hobbes
uma tendência destinada ao abandono, à marginalidade própria das
idéias que não mais encontram campo fértil para medrar, querendose dizer com isto que encontram uma sociedade já fechada e bastante hostil à aplicação de seus princípios.
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28
“He exerced a strong influence on Diderot, Spinoza, Leibniz and Rousseau”. (Snyder
1955: 125). Mas, se ele exerceu uma poderosa influência, as conclusões podem ser paradoxais. No caso de Rousseau Koselleck observa o seguinte: “Rousseau se réfère expressément à la peur de la mort qui, comme chez Hobbes, domine l´homme. La nature, dit’il,
commande à l’homme de se servir de tous les moyens s’il peut par là échapper à la mort.
De ce commandement naturel qui a son origine dans la peur de la mort, Rousseau ne tire
plus, comme Hobbes, le devoir de se réfugier dans l’État. Au contraire, il constate que le
danger mortel vient de l’État lui-même”. (Koselleck 1979: 141).
Comunicação&política, n.s., v.X, n.3, p.163-081
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