CARTA ABERTA de DOM TOMÁS BALDUÍNO AOS
BISPOS SOBRE CONSTRUÇÃO DE CATEDRAIS.
Goiânia, GO, 18 de julho de 2008.
Queridos Irmãos no episcopado, do Regional Centro-Oeste,
A paz do Senhor esteja com vocês!
Peço-lhes licença para colocar aqui umas reflexões que venho tendo
com outros colegas, inclusive dando a forma de carta. Trata-se da concepção de
igreja e, de modo especial, de igreja catedral. Fui motivado sobretudo pelo fato da
catedral de Goiânia ter de se mudar para uma obra que ficará próxima do atual Paço
municipal, em terreno doado por Lourival Lousa, dono do Flamboyant, porém do
outro lado da rodovia 153, em local de acesso difícil e distante do povão. Será então
uma catedral tipo monumento moderno, atualizado, tudo bem planejado, de
concepção semelhante à de Brasília, a mesma que vai se reproduzir futuramente
também em Palmas. Enquanto isso, por exemplo, as chamadas catedrais da Igreja
Universal do Reino de Deus, que não deixam de ser também portentosas
construções, ficam bem perto do povo e se enchem de gente. O que pensar, então, a
respeito de nossas igrejas? Isso também faz parte da nossa responsabilidade pastoral.
1. O sacramento do Templo na Bíblia
O Senhor nos deu um ensinamento bem preciso e nos evangelizou
sobre o templo. Enquanto as nações vizinhas do Povo de Israel tinham todas seu
templo, os profetas do Senhor diziam que Deus não quer templo. Deus quer acampar
com seu povo nômade. Construir um templo seria traição desse caminhar de Deus
com seu povo. Até mesmo quando o rei Davi quis levantar um templo, o Senhor
mandou o profeta Natan lhe dizer: “Desde que Deus tirou o seu povo do Egito,
sempre morou em tenda e nunca pediu templo”. (2 Sm 7,7).
Segundo Isaías (Is 66,1), Deus é aquele que o universo inteiro não
pode conter. Tem o céu por seu trono e a terra como escabelo de seus pés. Como
pode morar em uma casa edificada pelo homem? O problema é que, de fato, desde o
começo, até hoje, o templo tem servido de legitimação do poder dos reis e dos donos
do poder. Não é, pois, de graça que o rei e os poderosos dão todo apoio econômico à
sua construção suntuosa e em lugar privilegiado. Por isso, os profetas sempre
criticaram o templo e pediram que a fé se libertasse e fosse para além do templo.
Alguns profetas, como Isaias e Jeremias, tiveram que assumir o
templo como um fato consumado, mas tiraram partido dele como lugar do ensino da
Palavra, não como lugar de sacrifício. E Jesus retomou esta tradição profética. Na
hora da sua prisão declarou aos seus algozes: “Todos os dias eu ensinava no templo e
não me prendestes”. (Mc 14,49). O templo, com efeito, não era tradicionalmente
lugar de ensino, mas sim de sacrifício. Fazer daquele lugar um lugar de profecia foi
um ato crítico e subversivo.
Depois do exílio da Babilônia, os judeus fiéis se reuniam em
sinagogas (casas da comunidade). Começou, então, uma tensão entre o judaísmo da
sinagoga (baseado na Palavra) e o judaísmo do templo (baseado nos sacrifícios e no
culto). O Cristianismo surgiu no meio do judaísmo das sinagogas e não no do
templo. As reuniões dos primeiros cristãos, que marcaram a liturgia até hoje,
seguiram o esquema da sinagoga, não do templo. Das sinagogas para as casas. E, de
casa em casa, o Evangelho foi irradiando.
Na cena da limpeza do templo o zelo vigoroso demonstrado por Jesus
não foi em defesa daquela obra feita pela mão do homem. “Ele se referia ao templo
do seu corpo” (Jo 2,21) e também à morada de Deus, isto é “àquele que o ama e
cumpre sua palavra” (Jo 14,23) e sobretudo ao faminto, ao sedento, ao migrante, ao
nu, ao doente, ao preso, às vítimas da opressão e da exploração. (Cf. Mt 23). Jesus se
proclama maior do que o templo (Mt 12,6). Ele veio construir um templo não feito
por mão humana (Mc 14,58). Ao celebrar sua oblação perfeita ao Pai Ele optou por
fazê-la fora do templo e fora da cidade. O templo novo é o seu corpo ressuscitado (Jo
2,20). No Apocalipse, quando é anunciada a nova Jerusalém, o autor insiste que ela
não tem mais templo porque o próprio Deus é o seu templo (Ap 21,22).
2. Templos e catedrais na história da Igreja
Há um paradoxo e uma contradição no fato dos judeus, para os quais
o templo se tinha tornado o sacramento da presença divina, não terem querido
reconstruir o templo depois de sua destruição no ano 70, enquanto os cristãos, que
receberam tantas advertências de Jesus, multiplicaram os lugares de culto.
À medida que a Igreja se incorporou ao Império e se tornou uma
Igreja Cristandade, ocupou os antigos templos pagãos e os transformou em templos
da nova religião oficial que era a Igreja cristã. Da Idade Média até os nossos dias, as
catedrais, construídas nas praças centrais e ao lado do poder político se tornaram
símbolos de uma Igreja que o Concílio Vaticano II procurou superar. Segundo a
Lúmen Gentium, “Assim como o Cristo consumou a obra da redenção na pobreza e
na perseguição, assim a Igreja é chamada a seguir o mesmo caminho. Cristo foi
enviado pelo Pai para ‘evangelizar os pobres, sanar os contritos de coração’ (Lc
4,18), semelhantemente a Igreja cerca de amor todos os afligidos pela fraqueza
humana, reconhece mesmo nos pobres e sofredores a imagem do seu Fundador pobre
e sofredor” (LG nº 8). Dom Hélder Câmara, por exemplo, fiel a este novo espírito,
foi na direção da periferia. Escolheu “a igreja das fronteiras” e fez das comunidades
de periferia o lugar da cátedra do pastor. Dom Paulo Evaristo Arns, em 1973, vendeu
o palácio episcopal e com o dinheiro construiu inúmeros centros comunitários na
periferia de São Paulo, onde as Comunidades Eclesiais de Base passaram a se reunir
para círculos bíblicos, celebrações da Palavra e da vida e lutar pelos direitos
humanos. Mesmo em plena Cristandade , pastores como João Crisóstomo, Basílio e,
no Ocidente, Ambrósio e Agostinho insistem que o verdadeiro templo de Deus e a
glória da Igreja são os pobres. E João Crisóstomo fazia os pobres sentarem em sua
cátedra na Igreja de Constantinopla.
A celebração dos sacramentos polarizada pelo altar, assim como a
devoção e o culto dos santos polarizados pelo santuário, tornaram-se, durante
séculos, a marca característica das igrejas católicas, infelizmente esvaziadas da
Palavra. Inversamente, as igrejas da Reforma protestante deram um lugar primordial
ao púlpito e à Bíblia, lida e assumida, com muito empenho, por todos os membros da
comunidade. Foi o Concílio Vaticano II que, através das Constituições Dei Verbum e
Sacrosanctum Concilium, restabeleceu o equilíbrio original entre o altar e o púlpito,
valorizando a Palavra, que passou a integrar as celebrações dos sacramentos e
readquiriu o lugar que ela tinha na vida da primitiva Igreja dos Apóstolos e dos
mártires. Na construção das novas igrejas começaram até a aparecer soluções
arquitetônicas criativas preocupadas em garantir a boa acústica, que favoreça a
audição clara, para todos os participantes, de tudo o que é proclamado na liturgia.
As comunidades precisam sim de lugares para se reunirem e terem
seu culto. Elas gostam que estes lugares sejam belos, dignos e venerados. Entretanto,
é importante esclarecer que o templo é símbolo e sacramento da comunidade viva e
deve ser o lugar da comunidade e não o instrumento do poder clerical ou episcopal,
construído nos mesmos critérios dos templos que antigamente legitimavam o
domínio dos poderosos do mundo.
“Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro (Mamon)”, disse
Jesus. (Mt 6,24). O termo “servir” refere-se ao culto e o nome “Dinheiro” é
sinônimo de “Mamon”, o ídolo. O povo de Deus, povo sacerdotal, ao mesmo tempo
que no templo ou fora do templo, isto é, na vida prática, cultua o Senhor, deve ser
uma clara denúncia da monstruosa idolatria que domina no mundo. Em l989, para
preparar a conferência do Conselho Mundial de Igrejas sobre “Justiça, Paz e Defesa
da Criação”, Ulrich Ducrow escrevia: “Quando vemos os mecanismos de um sistema
econômico que, ano após ano, cria milhões de vítimas da fome e milhões de
desempregados, quando vemos as florestas morrerem para permitir o lucro das
empresas e vemos as superpotências continuarem a louca corrida armamentista,
devemos admitir que estamos diante de um monstro demoníaco. De fato, os capítulos
13 a 18 do Apocalipse, com a sua descrição da Fera que sobe do abismo, são ainda a
melhor descrição do atual sistema econômico, político e de seus meios de
comunicação”. Pois bem, esta terrível idolatria tem seus “Templos”. Os bancos
centrais superam em visibilidade arquitetônica qualquer catedral de qualquer parte
do mundo. Eles são Templos. Têm seus sacerdotes, seu santo dos santos, seus
sacrários de segurança máxima, acessíveis a poucos e onde guardam seu deus.
Vamos nos contrapor a isso usando os mesmos critérios de grandiosidade e de poder
ou seguiremos os caminhos da pequenez e do não-poder apontados por Jesus como
força imbatível na construção do Reino de Deus?
Eram estas reflexões, Irmãos, que queria lhes comunicar, com
simplicidade, na certeza de que podem surtir algum efeito prático. Do meu lado fico
à disposição de vocês para qualquer reação a isto que não deixa de ser uma fraterna
provocação.
Saúdo-os com fraterna amizade no Senhor Jesus, nosso Templo vivo.
Dom Tomás Balduino
Bispo emérito de Goiás
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Carta Aberta aos Bispos sobre a Construção de Catedrais.