UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI
FABIO SILVESTRE CARDOSO
O CINEMA DE TESE DE SÉRGIO BIANCHI:
O CASO DE “QUANTO VALE OU É POR QUILO?”
SÃO PAULO
2012
FABIO SILVESTRE CARDOSO
O CINEMA DE TESE DE SÉRGIO BIANCHI:
O CASO DE “QUANTO VALE OU É POR QUILO?”
Dissertação de Mestrado apresentada à Banca
Examinadora, como exigência parcial para a
obtenção do título de Mestre do Programa de
Mestrado
em
Comunicação,
área
de
concentração
em
Comunicação
Contemporânea da Universidade Anhembi
Morumbi, sob a orientação do Prof. Dr. Rogério
Ferraraz.
SÃO PAULO
2012
FABIO SILVESTRE CARDOSO
O CINEMA DE TESE DE SÉRGIO BIANCHI:
O CASO DE “QUANTO VALE OU É POR QUILO?”
Dissertação de Mestrado apresentado à Banca
Examinadora, como exigência parcial para a
obtenção do título de Mestre do Programa de
Mestrado
em
Comunicação,
área
de
concentração
em
Comunicação
Contemporânea da Universidade Anhembi
Morumbi, sob a orientação do Prof. Dr. Rogério
Ferraraz.
Aprovado em 19/12/2012
Prof. Dr. Rogério Ferraraz
Nome do orientador
Profa. Dra. Lúcia Nagib
Nome do(a) convidado(a)
Profa. Dra. Sheila Schvarzman
Nome do(a) convidado(a)
RESUMO
O presente trabalho, “O cinema de tese de Sérgio Bianchi: o caso de “Quanto Vale
ou É Por Quilo?”, desenvolve uma reflexão sobre a obra de Sérgio Bianchi, tomando
como principal referência para análise o penúltimo trabalho desse autor, “Quanto
Vale ou É Por Quilo?” (2005), cujo roteiro foi livremente inspirado no conto “Pai
Contra Mãe”, de Machado de Assis, sem deixar de observar as características de
seus filmes anteriores. O objetivo central é analisar como Bianchi concebe um
cinema de tese, tomando emprestado, para tanto, gêneros audiovisuais distintos.
Para realização dessa dissertação, além de uma breve revisão da obra de Bianchi,
buscou-se também a discussão do conceito de ironia, tendo em vista que se trata de
um recurso bastante utilizado pelo cineasta. E, por fim, a análise principal discorreu
sobre “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, com o propósito de identificar quais são os
elementos constitutivos do cinema de tese de Bianchi, que, no caso desse filme,
teve como alvo principal o chamado Terceiro Setor.
Palavras-chave: Cinema brasileiro. Sérgio Bianchi. Ironia. Distopia. Crítica. Análise
fílmica.
ABSTRACT
This essay, “O cinema de tese de Sérgio Bianchi: o caso de “Quanto Vale ou É Por
Quilo?”, reflects on the work of Sergio Bianchi, taking as main reference for analyzing
one of his last movies: "Quanto Vale ou É Por Quilo? "(2005), whose screenplay was
loosely inspired by the short story "Pai contra Mãe ", by Machado de Assis, while
observing the characteristics of his previous films. The main objective is to analyze
how Bianchi conceives a thesis film, borrowing, therefore, different audiovisual
genres. In order to accomplish this, first of all, there is a brief review of Bianchi’s
work, also sought to discuss the concept of irony, considering that it is a resource
commonly used by the filmmaker. And finally, the main analysis dwelt on "Quanto
Vale ou É Por Quilo?", in order to identify which are the main elements of the film
Bianchi thesis, which in this case had the Third Sector as the main target.
Keywords: Brazilian Cinema. Sérgio Bianchi. Irony. Distopia. Critic. Filmic analysis.
Agradecimentos
Direta ou indiretamente, muitas pessoas contribuíram para que este trabalho
fosse concluído.
Ao “grande” Ricardo Matsuzawa, um dos primeiros alunos do Programa de
Mestrado em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi, que sempre se
mostrava interessado por este trabalhao e desde o começo foi um grande
incentivador. Na mesma linha, aos amigos Paulo Vasconcellos, Chico Bicudo,
Cristina Almeida, Whaner Endo e Ricardo Senise (na última hora, Senise, o
empréstimo de livro foi seu!)
À Karina Menegaldo, ao Lucas Rodrigues e ao Martim Vasques da Cunha,
leitores criteriosos das primeiras versões de textos dessa dissertação.
Ao professor Rogério Ferraraz, cuja orientação, sempre objetiva e necessária,
foi elementar para a elaboração deste trabalho. Aos demais professores do
Programa de Mestrado em Comunicação, em especial Laura Cánepa, Luiz Vadico,
Sheila Schvarzman e André Gatti.
Aos meus pais, Geraldo Cardoso e Noeme Silvestre, e à minha irmã, Daniela
Silvestre, que sempre me apoiaram.
E à querida (e linda) Luciana Morais Borges, cujo carinho e afeto foram (e
são) decisivos. Você foi mais do que importante!
Dedico este trabalho à memória do meu avô, o
pioneiro Anselmo Silvestre (1917-2012)
SUMÁRIO
Introdução..........................................................................................................9
1. Sérgio Bianchi..............................................................................................12
1.1 .A propósito do Cinema Novo e o ocaso das utopias................................19
1.2 A anticelebração........................................................................................25
2. Quanto vale a ironia?..................................................................................34
3. Sérgio Bianchi e o cinema de tese..............................................................58
3.1. Sobre a pesquisa nível-médio e o cinema de Bianchi.............................61
3.2 Sobre a composição de Quanto Vale ou É Por Quilo?..............................68
3.3 O ressentimento como motor para o sucesso..........................................78
3.4. Relatos do Arquivo Nacional.....................................................................83
3.5. Entendendo a tese de Bianchi..................................................................87
3.6 Como se faz uma tese................................................................................90
4. Considerações finais...................................................................................95
5. Referências................................................................................................100
Introdução
Em “Pai contra Mãe”, o escritor Machado de Assis traz a história de
um homem, Candinho, e as inúmeras dificuldades para cuidar de seus filhos.
Como alternativa, o personagem decide incorporar um dos “ofícios de seu
tempo”, como assinala o narrador do conto. Resultado: Candinho se torna
capitão do Mato, ocupação cujo objetivo central era o de recuperar escravos
fugidos, como diz o texto. Com o término da escravidão, Candinho
novamente se vê na iminência de ficar sem dinheiro. Como consequência,
chega ao extremo de levar seu filho à Roda dos Enjeitados, local onde eram
deixados os filhos que não tinham futuro graças às parcas condições de
subsistência de seus pais. Esse era o caso de Candinho, até o momento que
vê Arminda, a escrava fugida que funciona como um bilhete premiado para o
capitão do mato. No desfecho da história, Candinho captura a escrava, que
suplica por sua vida, ressaltando que está grávida e que pode perder seu
filho. Candinho não titubeia: entrega a escrava, que, por sua vez, logo depois
de um tempo, aborta. Como recompensa, Candinho recebe a quantia de
cem-mil contos de réis. Ao final, constata numa afirmação fria e lapidar: “nem
todas as crianças vingam”.
O cineasta Sérgio Bianchi tomou emprestado o conto de Machado de
Assis e, livremente inspirado no texto, elaborou o filme “Quanto Vale ou É Por
Quilo?”. Bianchi lança um novo olhar sobre o conto, estabelecendo uma
relação de parentesco entre as práticas sub-repticiamente denunciadas
naquela história (as condições de vida dos escravos, que eram tratados como
9
mercadoria) e o atual Terceiro Setor (que usa como matéria-prima para suas
práticas a condição de vida empobrecida de uma camada considerável da
população que vive à margem do êxito nas grandes cidades).
A presente dissertação “Sérgio Bianchi, por um cinema de tese: o caso
de “Quanto Vale ou É Por Quilo?” tem como objetivo analisar como Sérgio
Bianchi, concebe sua obra, mais precisamente busca examinar quais são os
elementos centrais utilizados por esse autor para, de um lado, reafirmar sua
visão de mundo e, de outro, estabelecer uma peça cinematográfica que prima
pela enunciação de um discurso crítico, original e na contramão do consenso
de certa intelectualidade brasileira.
Para sua realização, este trabalho estabelece como recorte a
produção cinematográfica de longas-metragens de Sérgio Bianchi até o ano
de 20051. Com isso, já no primeiro capítulo, O Cinema de Sérgio Bianchi, o
texto dá conta de apresentar a obra do autor, comentando que características
são recorrentes, passando, assim, pelos filmes “Maldita Coincidência”, de
1979; “Romance”, de 1988; “A Causa Secreta”, de 1994; “Cronicamente
Inviável”, de 2000; e “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, de 2005.
No segundo capítulo, Quanto Vale a Ironia?, observa-se como esse
recurso é utilizado pelo diretor como estratégia de crítica aos temas
abordados em seus filmes. Assim, nesse segmento, num primeiro momento,
são estudados alguns teóricos que fundamentam o conceito de ironia. Na
esteira desse estudo, o conto de Machado de Assis, “Pai contra Mãe”, é
observado à luz desse debate. De maneira semelhante, o cinema de Bianchi
é também comentado de acordo com essa abordagem.
1
Em 2009, o diretor lançou o filme “Os Inquilinos”, que não foi analisado neste trabalho porque o tema e a forma da
obra obedecem à outra estrutura narrativa, uma vez que o diretor opta por uma encenação mais tradicional se
comparada a seus cinco filmes anteriores.
10
Por fim, no último capítulo, Sérgio Bianchi e o cinema de tese, o filme
“Quanto Vale ou É Por Quilo?” é analisado, a partir de uma perspectiva que
relaciona texto e contexto, forma e conteúdo, no sentido de observar de que
maneira o diretor concebe seu cinema de tese, atentando, especificamente,
para o filme em que o objeto da crítica são as ONGs. Assim, este trabalho
filia-se ao que David Bordwell (2004) chamou de “pesquisa nível-médio”, tão
cara aos estudos de cinema atualmente.
A presente dissertação não busca encerrar o debate sobre a obra de
Sérgio Bianchi; antes, pretende contribuir para tal debate ao ensaiar uma
reflexão sobre a crítica que o autor estabelece em seu discurso
cinematográfico.
11
1. Sérgio Bianchi
A obra do cineasta Sérgio Bianchi está, a um só tempo, na contramão
do projeto que fez parte do imaginário da cultura brasileira na década de
1960 – o Cinema Novo – e na direção oposta do Cinema da Retomada,
projeto que trouxe de volta para as telas a produção brasileira depois do
início da década de 1990. Cineasta nascido no Paraná, Bianchi já nos seus
primeiros filmes parece contar com uma agenda, singular e regular, capaz de
metabolizar as discussões de fundo sob uma forma mais provocativa,
enfrentando os temas a partir de um olhar questionador, e de certa forma
subversivo, sobre a sociedade. É o cineasta, em síntese, do “Cronicamente
Inviável”, filme de 2000, espécie de interpretação sobre o Brasil às avessas
na qual todos os envolvidos, cada qual à sua maneira, inviabilizam
cronicamente o País: tanto as elites, que ignoram as mazelas do Brasil onde
vivem, como as demais classes subalternas, que se movem graças ao
combustível do ressentimento 2 . Na percepção de Bianchi, e conforme a
observação atenta desse filme, os dois grupos corrompem o estado das
coisas no País, conforme a visão desencantada desse cineasta que começou
a fazer cinema na década de 1970.
Além de apresentar uma contextualização crítica necessária da obra
de Sérgio Bianchi, o propósito, neste capítulo, é observar o trabalho do
cineasta em perspectiva, tomando como referência alguns de seus
depoimentos, e, essencialmente, seus filmes, que, como se verá nos
capítulos a seguir, podem ser analisados em partes: de um lado, a partir da
2
Mais adiante, trataremos da questão do ressentimento na obra de Sérgio Bianchi.
12
chave da ironia (a ser desenvolvida no capítulo 2); de outro, com base na
correlação forma-conteúdo (a ser trabalhado no capítulo 3, observando
especificamente o caso do filme “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, de 2005).
Antes disso, voltemos a Sérgio Bianchi.
Em um livro publicado em meados da década de 1980, Luiz Nazário
(1983) apresenta a obra de Sérgio Bianchi de forma, a princípio, bastante
inusitada. Isso porque, de acordo com o crítico, o cineasta já nas primeiras
obras (“Omnibus” e “A Segunda Besta”, não analisados nessa dissertação)
de uma carreira semiclandestina consegue desenvolver uma espécie de
“estilo pessoal”, marca que seria percebida tanto nos curtas-metragens
quanto em seu primeiro longa, “Maldita Coincidência” (1979). Na avaliação de
Nazário, chama a atenção o uso do termo ironia para destacar esse estilo. O
inusitado aqui reside exatamente no fato de que o trabalho de Bianchi,
mesmo sendo relativamente pouco em número de filmes realizados, já
conseguia se estabelecer a partir do que podem ser consideradas
características autorais.
No trabalho “Brasis Imaginados: a experiência do cinema brasileiro
contemporâneo”, Pedro Vinícius Asterito Lapera (2007) disserta sobre a obra
de Bianchi, destacando os elementos-chave da produção cinematográfica do
autor. Acerca de “Maldita Coincidência”, é interessante observar que o autor
chama a atenção para o fato de, embora atualmente soe datado e sem contar
com elementos originais em sua estrutura, Sérgio Bianchi já dar mostras de
fazer um cinema sério e não-convencional.
A avaliação de Lapera, de alguma maneira, define o filme de Bianchi
– ecoando, em certa medida, a análise de Nazário ainda na década de 1980.
13
A obra se constitui de um mosaico de pequenas histórias que mais se
parecem esquetes nonsense, se forem percebidas separadamente. Em
conjunto, no entanto, o filme adianta boa parte da agenda do cineasta no
tocante ao tratamento dos temas polêmicos e à forma de expor essas
questões. Em texto considerado referência sobre o filme, Jean-Claude
Bernadet salienta os elementos centrais da obra, como se lê a seguir:
Através da fragmentação narrativa (situações dramáticas não
evoluem a partir de relações de causa e efeito, mudanças de
atitude e comportamento dos personagens não encontram
motivação lógica justificada pelo enredo), mudança de tons (o
filme altera vários registros distintos: farsesco, paródico,
patético, filosófico) e multiplicidade de vozes, letreiros invadem
a tela acrescentando comentário paralelo à imagem), Bianchi
tenta harmonizar o equilíbrio entre a rebeldia poética, a
experimentação formal e o engajamento político (BERNADET,
1983, p3) 3.
Para além do fato de esse comentário representar uma espécie de
síntese do cinema de Bianchi, é correto assinalar que “Maldita Coincidência”
estabelece, pela primeira vez na obra do diretor, o retrato de um desencanto
de uma geração que havia acreditado nas possibilidades da utopia políticolibertária. Assim, no já citado mosaico em que vivem os personagens, existe
uma frustração manifestada na contradição evidente entre o discurso e a
imagem. Tal contraste também seria aprofundado em obras seguintes do
cineasta.
Ainda sobre o filme, Bernadet assinala que os mecanismos internos do
filme corroboram para essa percepção desencantada do mundo, enfatizando
o quanto esse cenário se vincula a um contexto político que exigia
envolvimento político emocional por parte dos personagens. Tão importante
O texto em questão se chama “Maldita Coincidência/Eles não usam Black Tie”. A crítica foi publicada na
revista Filme Cultura em 1983. O acesso ao texto se deu a partir da publicação no item Fortuna Crítica, do
DVD da coleção Sérgio Bianchi, editado pela Versátil em 2010.
3
14
quanto essa chave para o sentido da obra, Bernadet, citado por Lapera
(2007), observa na contramão dos textos que comentaram o filme à época,
que se trata de obra estruturada, ou seja, o crítico também observa as
características formais da obra cinematográfica em análise.
Esse mal-estar para com a causa política como grande narrativa,
espécie de tópico fundamental da poética da pós-modernidade 4 , marca
também a produção de “Romance”, filme de 1988. Diferentemente de
“Maldita Coincidência”, “Romance” se notabiliza pela existência de uma
narrativa menos experimental. O filme traz a história de uma investigação
sobre a morte de Antônio César, intelectual de esquerda e libertário. Às
vésperas de sua morte, ele preparava um livro no qual denunciava um
escândalo internacional em que estavam envolvidas autoridades políticas. A
jornalista Maria Regina sai à cata de informações que possam desvendar a
morte do amigo intelectual, funcionando, no filme, como espécie de fio
condutor da narrativa. Além dela, existem outros dois personagens, Fernanda
e André, que tentam superar a ausência de Antônio César, o que não será
fácil, pois, tão importante quanto o engajamento ideológico, existe, ainda, o
relacionamento afetivo nesse triângulo amoroso.
Sobre “Romance”, Nezi Heverton de Oliveira observa que:
Bianchi opta por uma estrutura narrativa mais clássica,
que incorpora elementos do gênero policial com alguns
elementos de ruptura em que os elementos já testados
em filmes anteriores são retomados: o discurso
paródico/sarcástico construído em grande parte às
custas do conflito entre imagem, narração e trilha
musical (o filme publicitário; o documentário sobre as
condições de vida dos habitantes que vivem à margem
De acordo com Linda Hutcheon, autora do livro “Poética do Pós-Modernismo” (Rio de Janeiro: Imago, 1991): “aquilo que
quero chamar de pós-modernismo é fundamentalmente contraditório, deliberadamente histórico e inevitavelmente
político” (p.20). O conceito se aplica ao cinema de Bianchi exatamente porque este se impõe por manifestar um olhar
crítico e estabelecer um diálogo irônico para com o passado, como se vê em filmes como “Romance”. A ideia de poética
aqui sinaliza características elementares que pontuam as obras que estão sob esse pressuposto.
4
15
da estrada que liga Curitiba a São Paulo) e o
questionamento entre o ilusionismo cinematográfico
através da intervenção inesperada do realizador na
diegése (a intromissão do diretor durante o transcorrer
de uma cena para criticar a má atuação de uma atriz)
(OLIVEIRA, 2006, p.46)
Ao observar as características do filme, o pesquisador atenta, mais
uma vez, para elementos que mais partes ajudariam a conceber a obra de
Bianchi em sua totalidade, como a estratégia de propor uma música que
destoa da cena que está sendo exibida; ou a sobreposição dos discursos,
assim como a intervenção do diretor na cena. Assim, embora em “Romance”
o diretor realize um filme com características mais próximas a um enredo
tradicional, suas marcas autorais permanecem em evidência.
A trama é marcada pela tenacidade com a qual a jornalista Maria
Regina investiga o caso na mesma medida que todos a sua volta parecem se
conformar com a corrupção e com o desengano das causas políticas. O tom
de desengano se apresenta aqui pelo fato de o discurso cinematográfico
apontar para um caminho que não prepara o terreno para a redenção. Em
vez disso, existe a percepção de que o caminho das utopias políticas não
apenas não faz mais sentido, como também pode ser trocado por uma visão
de mundo mais pragmática.
Nesta direção, uma cena do filme é emblemática. Maria Regina vai
atrás do político que mantinha vínculo com o jornalista Antônio César.
Quando se sente investigado,
o político não hesita e oferece a ela a
oportunidade de participar da criação de um instituto cultural que tem como
mote o nome de Antônio César, a fim de que seus textos sejam reunidos e
possam contribuir para o debate nacional. A cena é intrigante porque mostra
claramente como se dá a tentativa de cooptação pelo poder quando é
16
colocado em xeque. E mostra, de outra parte, como Sérgio Bianchi interpreta
a dinâmica existente com relação à crítica ao poder estabelecido no Brasil5.
Sobre isso, a análise de Nezi Heverton de Oliveira salienta que:
Bianchi investe na discussão da degeneração moral
que ele vê tomar conta do país, tendo como principal
sintoma a corrupção política generalizada. Velhosnovos temas vêm à tona: a destruição irresponsável da
natureza, degradando a qualidade de vida, e o
recrudescimento da liberação sexual diante do
fortalecimento de um neo-moralismo nos primeiros
tempos da Aids. (OLIVEIRA, 2006, p.47)
Em 1994, Sérgio Bianchi avança num filme que tem a referência
literária já no título. “A Causa Secreta”, baseado em um conto de Machado de
Assis6. A história apresentada por Bianchi dá conta do trabalho de campo de
uma companhia teatral cujo objetivo é montar uma peça a partir do conto de
Machado de Assis. Para tanto, esse grupo realiza uma pesquisa de campo a
fim de conhecer a realidade social do Brasil em filas de hospitais públicos e
nas ruas e encontram, cada vez mais, um sentimento de indiferença à dor e à
humilhação dos marginalizados. Em certa medida, os próprios atores são
acometidos por essa (falta de) reação perante as cenas que são expostas.
Como se verá mais detalhadamente no capítulo 2, dessa dissertação, essa
falta de sentimento é apresentada com requintes de ironia, o que ajuda a
realçar a contradição daqueles que deveriam demonstrar algum sentimento
para com a realidade à qual estão expostos.
Em vez disso, os personagens reagem como autômatos e cumprem
seu trabalho de forma ordinária e burocrática, fazendo eles próprios parte do
cenário que pretendem criticar. Em sua pesquisa sobre o filme de Bianchi,
5
Para que fique mais claro, as críticas que Antônio César fazia ao núcleo político davam conta do descaso com o
Meio Ambiente, provocado por desmandos relacionados àqueles que, em vez de proteger o patrimônio nacional, se
interessavam por colocá-lo à venda, sem se preocupar com o bem público.
6
O objetivo do presente trabalho não é comentar as nuances existentes entre os diversos níveis de adaptação
literária para o cinema, ainda que, em uma passagem ou outra, haja espaço para alguma menção a esse respeito.
17
Nezi Heverton de Oliveira atenta para o fato de que em “A Causa Secreta”
nota-se uma “primeira tentativa de síntese” do cinema de Sérgio Bianchi, uma
vez que o diretor condensa elementos existentes em obras anteriores, como
se lê a seguir:
Esse laboratório de horrores serve de pretextos para
que muitas das entranhas do País sejam cruelmente
dissecadas e temas já trabalhados em filmes
anteriores, retrabalhados de forma mais contundente e
virulenta: a insensibilidade das elites frente à miséria
urbana, as humilhações embutidas no jogo de poder, a
discriminação racial, a falta de solidariedade, a
burocracia dos gabinetes, a ausência de uma política
de saúde que garanta um atendimento com um mínimo
de dignidade, as falsas inviabilidades criadas pelos
funcionários públicos para justificar sua incompetência,
a omissão e a denúncia servindo como álibi que exime
toda a culpa e a ética perversa dos projetos científicos
que torturam animais em experimentos de vivissecção.
(OLIVEIRA, 2006, p.48)
O filme abre as portas para a identificação de um cinema cuja
proposta é o estabelecimento de uma agenda crítica que tem uma denúncia
mais contundente a ser feita, se comparado com outros filmes com temas
políticos ou propostas utópicas. Em verdade, é até mesmo possível observar
que, no caso de Bianchi, essa análise do estado de coisas na sociedade
brasileira encontra eco numa matriz antiutópica, uma vez que seu filme não
propõe uma conscientização que encontra saída ou solução na tomada de
poder. Antes, a abordagem se revela mais propensa a desacreditar esses
projetos políticos que têm a transformação social como esteio de suas
narrativas.
Assim, na melhor tradição pós-moderna, o cinema de Sérgio Bianchi,
conforme se observa em filmes como “Maldita Coincidência”, “Romance” e “A
Causa Secreta”, demostra um caráter que contrasta com as ideias forjadas
18
em um cinema político com agenda declaradamente utópica, como é o caso
do Cinema Novo tal qual pensado e idealizado por Glauber Rocha, para citar
um de seus artífices mais audaciosos. Dessa maneira, no item a seguir, a
partir de um resgate das ideias do projeto do Cinema Novo, pretende-se
mostrar suas dissonâncias em relação ao discurso elaborado pelo cinema de
Sérgio Bianchi, que, por sua vez, será retomado logo em seguida a partir do
filme “Cronicamente Inviável”, levado às telas no ano 2000.
1.1 A propósito do Cinema Novo e o ocaso das utopias
Pensar no Cinema Novo atualmente é levar em conta um projeto
estético importante para a cultura brasileira, que foi capaz de determinar o
debate e articular as mentalidades dos realizadores que viriam a seguir, tanto
a favor como em sinal de oposição, num processo que, de certa forma, até o
presente momento faz com que a crítica tenha a sua poética cultural como
referência quando se trata de analisar as produções contemporâneas
autorais ou de gênero (num movimento distante daquela proposta da década
de 1960). Em tempo: a expressão poética cultural pode ser definida aqui
como a ideia de arte e suas regras de composição, de leitura e de
visualização7.
Assim, tais peças contêm os elementos básicos que caracterizam
determinado movimento cultural, por exemplo.
No livro “A Utopia do cinema brasileiro – matrizes, nostalgia,
distopias”, Lúcia Nagib comenta a produção daquele período, tomando como
base um de seus principais artífices, Glauber Rocha. Desse modo, conforme
7 Este conceito foi definido pelo prof. Dr. Ivan Prado Teixeira na linha de pesquisa Literatura e Poética Cultural.
19
sugere a autora, Glauber Rocha fez um cinema de ideias, remontando uma
proposta que já havia sido aventada pelos primeiros cronistas do Brasil. Nas
palavras de Nagib:
A carta de Pero Vaz de Caminha, os livros de Jean de Lery e
André Thevet, as cartas dos padres jesuítas e muitos outros
documentos de europeus que visitaram o Brasil no século XVI
reiteram o mito do país edênico, que iria perpetuar-se no
imaginário brasileiro. Glauber soube tirar proveito desse
amálgama de lendas, corroboradas pela geografia específica
de um país de imensa costa e rios caudalosos, articulando-as,
em “Deus e o Diabo”, com histórias de rebeliões populares
ocorridas nos sertões, como os movimentos de Canudos e
Pedra Bonita (NAGIB, 2006, p.30-31)
Como se nota, para além de um trabalho com a imaginação, algo que
é parte integrante da natureza do cinema, o projeto do Cinema Novo,
representado aqui pela obra e pensamento de Glauber Rocha, tinha como
proposta a politização das narrativas que, a partir daquela corrente estética,
seriam levadas às telas. Para além disso, o que se nota, conforme a leitura
de Lúcia Nagib, é que essa proposta política se fundamenta num projeto
utópico. Sim, mais do que uma câmera na mão e uma ideia na cabeça (ou
exatamente por esse motivo), os cinemanovistas desejavam mudar o Brasil,
e essa mudança se baseava na matriz utópica que não havia nascido com o
cinema; antes, se originava nas interpretações idílicas que haviam sido feitas
sobre o Brasil. Numa proposta mais abrangente, não por acaso a partir da
década de 30 do século XX, autores do quilate de Sérgio Buarque de
Holanda, em “Visão do Paraíso” (1959), ou mesmo Stefan Zweig, em “Brasil:
país do futuro” (1941), ensaiaram reflexões sobre o País utilizando como
premissa esse imaginário idealizado, e por que não dizer utópico?, sobre o
Brasil. A diferença, agora no caso do Cinema Novo, é que esse projeto se
materializava em imagens e sons que não somente salientavam a “cor local”,
20
mas, essencialmente, que entronizavam o que ia às telas com um discurso
político inflamado, arrojado e progressista. Lúcia Nagib a esse respeito
assinala que:
(...) a obsessão pela “ilha” que move os personagens de
“Deus e o Diabo”, esta, como a Thomas More, significando um
projeto ao mesmo tempo prático e irrealizável – ou o melhor
lugar e o lugar nenhum, sugeridos no ambíguo termo “utopia”.
Dotados à semelhança dos mitos na sua origem, de força
fundadora, as imagens de Glauber oferecem um recurso
estético seguro aos cineastas da retomada em reconectar-se
à nação. (Idem, p.18)
Com efeito, o projeto do Cinema Novo, que ecoava a ideia de
imaginação no poder, até hoje marca o trabalho de realizadores e de quem
pensa cinema no Brasil, haja vista que, mesmo na retomada do cinema
nacional, em meados da década de 1990, essa proposta de reconexão com
País, conforme escreve Lúcia Nagib, permanece como agenda dos primeiros
filmes daquele período. É interessante observar, nesse sentido, que “Terra
Estrangeira” (1995), de Walter Salles e Daniela Thomas, e “Carlota Joaquina”
(1995), de Carla Camurati, são os filmes que reiniciam a relação da produção
cinematográfica com o público no País. Na percepção de Nagib, e esse é um
dos argumentos centrais do livro, essa retomada do cinema nacional também
bebe nas fontes dessa ideia de utopia. O que existe entre aquele período, na
década de 1960, e a retomada8, a partir dos anos 1990, é o desencanto que
se estabelece como sentimento nos anos subsequentes ao lançamento de
“Deus e o Diabo na Terra do Sol”.
Na análise de Ismail Xavier, para o livro “The New Brazilian Cinema”,
organizado por Lúcia Nagib, a motivação havia se transformado:
8
É importante ressaltar que existe diferença entre o cinema da retomada e o cinema da pós-retomada, conforme
analisa Lúcia Nagib no livro “O cinema da retomada”. Na obra, a autora observa que o cinema da retomada se
circunscreve no período que vai de 1994 a 1998. E o período posterior a esse, de 1999 em diante, é classificado
como de pós-retomada por diversos autores.
21
We all know the ways of culture and politics in the past
decades, a period in which the filmmaker no longer has had
that convenction and has plunged him/herself into that
defensive stance typical of current art cinema in its relationship
to the social and the political. Looking back, one realizes how
the sense of loss – related to the legitimization of political
cinema through the idea of a popular mandate – had come to
the foreground already in the late 1960s, when Brazilian
filmmakers moved away from a utopian impulse, especially
after 1967, the year of Glauber Rocha`s Terra em transe.
Since this example of exasperated drama of disenchantment, it
has become impossible to insist on pedagogical art akin to
populism, and the years 1968-69 brought blatant opposition to
that sense of popular mandate, whether from Cinema Novo or
the so-called Cinema Marginal, as Brazilians saw the rise of a
cultural dissidence that refused any social teleology of
redemption. The model of the enlightened intelectual willing to
raise a new popular consciouness prepared for national
liberation faded. In the early 1970s, film practice was
contaminated by a sense of impotence that the film critic and
writer Paulo Emílio Salles Gomes, in 1973, turned into a
formula: in terms of film, underdevelopment is not a stage with
a progressive direction, it is a state of being. The best brazilian
cinema in the 1970s turned around this bitter conviction,
exploring Family dramas, experiences of decadence, acute
crises lived by frustrated characters who failed in their
endeavours, or catastrophic peregrinations, of poor and rich
alike, that enden in misfortune (XAVIER, 2003, p.41)9
Já na avaliação de Lúcia Nagib, esse sentimento de desencanto surgiu
mesmo depois do Golpe de 1964, nos anos subsequentes ao lançamento de
“Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Conforme comenta a pesquisadora:
Terra em Transe, feito após o golpe de 1964, no qual se
especula sobre os erros que levaram ao fracasso do projeto
revolucionário no Brasil, é um filme pós-utópico, que lança
9
Na livre tradução do autor deste texto, segue: Nós todos conhecemos as formas de cultura e política nas últimas
décadas, um período em que o cineasta não teve a mesma convicção tendo mergulhado em uma postura defensiva
típica do cinema de arte atual em sua relação com o social e o político. Olhando para trás, percebe-se como o
sentimento de perda - relacionado com a legitimação do cinema político através da idéia de um mandato popular veio para o primeiro plano já na década de 1960, quando os cineastas brasileiros se afastaram de um impulso
utópico, especialmente depois de 1967, o ano do lançamento do filme “Terra em Transe”, de Glauber Rocha. Como
este exemplo de drama exasperado do desencanto, tornou-se impossível insistir sobre a arte pedagógica
semelhante ao populismo, e os anos 1968-69 trouxeram oposição flagrante de que o senso de mandato popular,
seja do Cinema Novo ou do chamado Cinema Marginal, e os brasileiros viram o surgimento de uma dissidência
cultural que recusou qualquer teleologia social da redenção. O modelo do intelectual disposto a elevar a consciência
popular preparado para a libertação nacional desapareceu. No início dos anos 1970, a prática cinematográfica foi
contaminada por um sentimento de impotência que o crítico de cinema e escritor Paulo Emílio Salles Gomes, em
1973, transformou em uma fórmula: em termos de cinema, o subdesenvolvimento não é uma etapa com um sentido
progressista, é um estado de ser. O melhor do cinema brasileiro na década de 1970 voltou-se para esta convicção
amarga, explorando dramas familiares, as experiências de decadência, crises agudas vividas por personagens
frustrados que não conseguiram em seus esforços, ou peregrinações catastróficas, de pobres e ricos, que
terminaram no infortúnio.
22
sobre os formuladores do mito edênico brasileiro
responsabilidade por seu fracasso (NAGIB, 2006, p.39)
a
Esse debate acerca das visões do Brasil, entre a utopia e o seu
inverso (o desencanto ou distopia), é interessante porque a obra do cineasta
Sérgio Bianchi trava relação permanente com essas questões – em especial
com a visão política mais cética e desencantada. Desse modo, talvez seja
correto assinalar que Bianchi “problematiza” os temas e as representações
desse cinema que se pretende utópico. Em sua obra, o cineasta efetivamente
estabelece uma agenda com a premissa de abordar as histórias que
caminham na contramão do consenso tanto do ponto de vista das temáticas
abordadas quanto da maneira como esses filmes são concebidos; para ser
mais exato, da forma dos filmes (e aqui vale a pena reforçar a ideia de
elaboração de uma espécie de agenda no cinema de Sérgio Bianchi).
Se, nos filmes já observados, elementos em comum aparecem para
dar um efeito de unidade ao cinema de Bianchi, como são os casos da
postura crítica de seus personagens quanto a questões polêmicas e de sua
visão de mundo desencantada, na contramão de propostas cinematográficas
que idealizam o Brasil, essa posição se torna ainda mais acentuada em
filmes mais recentes, como “Cronicamente Inviável”, de 2000, e “Quanto Vale
ou É Por Quilo?”, de 2005. Nestes, a unidade do cinema de Sérgio Bianchi se
apresenta de forma mais enfática. A análise desses dois filmes mostra como,
aparentemente distintos em seus temas, as obras se complementam e
abordam questões de fundo, concedendo um sentido mais consistente
quando se olha a obra do cineasta desde o seu início.
23
Assim, a obra de Bianchi pode ser percebida a partir da unidade de
seu conjunto. Isto é, os filmes como que se complementam, tais como peças
de um quebra-cabeça. O paralelo pode soar esdrúxulo, sobretudo porque os
filmes não contam com declarada proposta de continuidade. Ainda assim, é
possível encontrar marcas autorais do cineasta na obra, de maneira que seus
filmes acabam por obedecer a uma ideia de unidade, sem que isso signifique
repetição (haja vista que as temáticas são distintas). Do já citado “Mato
Eles?” ao recente “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, passando por “Maldita
Coincidência” e “A Causa Secreta”, é bastante possível encontrar elementos
que servem como denominadores comuns do cinema de Bianchi: o olhar
enviesado a propósito da sociedade brasileira; o discurso irônico e amoral de
alguns de seus personagens; a intervenção do diretor em determinadas
cenas dos filmes 10 ; e a contundente crítica social ou visão do mundo
distópica (que se confunde com uma visão niilista, como se verá ao final do
capítulo) que o autor defende em seus filmes.
Para dar forma mais evidente a essa análise, nas páginas a seguir,
este trabalho dá conta da articulação estética e da proximidade crítica desses
dois filmes recentes de Sérgio Bianchi11, ambos realizados após o período da
retomada do cinema brasileiro: “Cronicamente Inviável”, de 2000; e “Quanto
Vale ou É Por Quilo?”, de 2005.
10
Cito aqui especificamente o caso de dois filmes: em “Maldita Coincidência”, de 1979, e “Romance”, de 1988,
Sérgio Bianchi aparece e participa da cena. No primeiro exemplo, ao final do filme, comentando as ilusões perdidas
com os sonhos de uma geração; no segundo exemplo, o diretor interrompe a fala da atriz, corrompendo a
encenação pedindo para a atriz repetir a cena, enfatizando que ela não soube reproduzir a fala corretamente. Em
“Quanto Vale ou É Por Quilo?”, Bianchi não aparece, mas em uma das cenas vemos os bastidores da própria
realização audiovisual. Como observa João Luiz Vieira temos aqui o questionamento das formas tradicionais no
próprio cinema de Sérgio Bianchi.
11
Depois de “Quanto Vale ou É Por Quilo”, Sérgio Bianchi realizou outro filme, “Os Inquilinos”, de 2009, que não
entrou como objeto de análise porque 1) o propósito primeiro do trabalho era tomar como referência “Quanto Vale
ou É Por Quilo?” e 2) “Os Inquilinos” apresenta uma proposta diferente como narrativa, distante, portanto, da que
havia sido estabelecida até aqui pelo cineasta.
24
1.2 A anticelebração
No ano de 2000, o Brasil viveu um período de grande comoção em
torno das comemorações dos 500 anos de Descobrimento. Celebrações
oficiais foram marcadas, assim como exposições e mostras que davam
conta, entre outros temas, da riquíssima diversidade cultural do País ao longo
de sua trajetória. O tom oficial do discurso não alardeava as cores locais, as
virtudes dos artistas nacionais e, por fim, o significado disso para a formação
do povo brasileiro. Em meio a tantas comemorações, surgiu o filme de Sérgio
Bianchi, o polêmico “Cronicamente Inviável”.
A obra pode ser entendida como um falso-documentário 12 sobre a
identidade nacional e, ao mesmo tempo, apresenta a visão desencantada e
ressentida de uma certa elite baseada na cidade de São Paulo. É
interessante observar que, no caso do falso-documentário sobre a identidade
nacional, o personagem Alfredo Bur, interpretado por Umberto Magnani, viaja
pelo país apontando, sempre com altas doses de ironia, as várias formas de
dominação (na contramão do consenso sobre o apaziguamento dos conflitos
sociais no Brasil); na outra ponta, como que marcando território, o filme
mostra alguns personagens em volta da mesa (interpretados por Cecil Thiré,
Daniel Dantas, Betty Gofman e Dira Paes) em volta de uma mesa,
comentando cinicamente o estado de coisas no País.
Numa análise mais detalhada sobre o filme, Nezi Heverton de Oliveira
destacou o papel dos personagens para o substancial efeito de sentido
provocado pelo filme. Assim, nas palavras do pesquisador:
12
A expressão falso-documentário consta na resenha-crítica do filme, assinada por Reinaldo Azevedo, e publicada
na revista “Primeira Leitura”, em maio de 2000. Esse texto está coligido na fortuna crítica do filme, disponível nos
extras da versão em DVD do filme, na coleção Sérgio Bianchi, editada pela Versátil, em 2010.
25
Esses personagens encaram a condição de brasileiros
como uma espécie de dever patriótico, vivido com
pesar. Permanecem aqui, quase que por obrigação. O
sonho maior, ser e estar no primeiro mundo, anunciada
direta ou indiretamente ao longo das conversas, nega
essa ideologia do sacrifício. A válvula de escape para
permanecer nesse caos social e urbano é o cinismo: a
convicção de que a realidade social é imutável, por
mais dolorosa e condenável que seja, mas que é
necessário dominar as regras do jogo para sobreviver
e atuar em benefício próprio ou ainda inventar álibis
para outros e para si mesmo como forma para justificar
sua inércia e transformá-la. (OLIVEIRA, 2006, p.144)
Sérgio Bianchi produz, em “Cronicamente inviável”, um tipo de leitura
crítica acerca da sociedade brasileira que, a um só tempo, reproduz
parodicamente os discursos totalizantes dos grandes intérpretes do Brasil
(num recurso tipicamente pós-moderno, conforme apreciação de Linda
Hutcheon em livro sobre o assunto13) e também atualiza seu alvo: desde já,
não é somente o brasileiro médio que é confrontado nesse debate; mas
também a elite supostamente esclarecida se transforma em alvo preferencial,
e aqui Bianchi não poupa sequer Alfredo Bur, o narrador das crônicas
sociológicas desse Brasil contemporâneo: ao final, trata-se de um
personagem que coaduna com a prática aviltante, imoral e ilegal do tráfego
de órgãos. As duas narrativas que caminham em paralelo, ao final do filme,
se encontram e concretizam a visão mais corrosiva e distópica desse Brasil,
à época 500 anos depois de seu descobrimento: a corrosão do caráter é
prática constante mesmo daqueles que possuem uma visão de mundo mais
crítica (e, por extensão, supostamente privilegiada por ser mais informada),
daqueles que entendem por que é que o Brasil não funciona.
13
Linda Hutcheon desenvolve esse postulado no livro “Poética do Pós-Modernismo” (1991), no qual escreve acerca
das características básicas da paródia, associando-as à estética da pós-modernidade. Para a autora, “na pósmodernidade (...), o resultado dessa deliberada recusa em resolver as contradições é uma constatação daquilo que
Lyotard chama de narrativas totalizantes de nossa cultura, aquele sistema por cujo intermédio costumamos unificar
e organizar (e atenuar) quaisquer contradições a fim de coaduná-las”.
26
“Cronicamente Inviável”, para além de estudos acadêmicos e grande
repercussão na imprensa14, provocou também a contestação de um discurso
conformista sobre o País naquele ano comemorativo, com destaque para
exposições sobre a arte brasileira no Pavilhão da Bienal e reavaliações sobre
o papel do Brasil no mundo. Ainda com relação à repercussão do filme, vale
a pena resgatar o texto inicial do livro organizado por Daniel Caetano (2005),
“Cinema Brasileiro: 1995-2005 – ensaios sobre uma década”.
No texto de apresentação do referido livro, aborda-se um contexto no
qual o cinema brasileiro é promovido pelo Estado e não precisa do público.
Nesse cenário, coincidência ou não, são poucas as obras que anseiam por
esboçar uma crítica efetivamente contundente ao país. O resultado é que a
obra de Bianchi nesse ambiente se destaca também por apontar a existência
dessas características tão peculiares. Conforme apontam os autores:
(...) Mas o caso muito mais curioso foi o de
Cronicamente Inviável, de Sérgio Bianchi: muito
badalado na época de seu lançamento, em 2000, foi
prestigiado de forma parodicamente autocrítica pelo
público intelectualizado de classe média (e toda a
polêmica ao seu redor tinha mesmo um quê de
inusitado). No entanto, pode-se dizer que, de certo
modo, tratava-se de um filme sobre fazer cinema no
Brasil15, apenas disfarçado em painel sobre a situação
nacional, o que o tornava tão mais equivocado como
testemunho de nação – e tão mais coerente como
relatório resignado sobre o fazer cinematográfico neste
país. Não por acaso, tanto sua recepção favorável
quanto suas críticas negativas foram diretamente
proporcionais à proximidade das fontes em relação ao
círculo do cinema brasileiro. (CAETANO et. al., 2005,
p. 20)
14
De acordo com a pesquisa de Nezi Heverton de Oliveira, somente na “Folha de S.Paulo”, foram mais de dez
artigos publicados, sem contar as exibições, seguidas de debates, na Universidade de São Paulo e na PUC-SP.
15
Daniel Caetano et. al, no ensaio de apresentação do livro “Cinema Brasileiro – ensaios de uma década”, vinculam
o filme “Cronicamente Inviável” como obra que relaciona o cinema com o Estado Brasileiro. Nessa abordagem, os
autores supõem como legítima a crítica de Bianchi à relação política cultural do Estado, mas rejeita sua visão
política distópica.
27
Embora esse fragmento represente um contraponto à proposta
cinematográfica de Sérgio Bianchi, é possível assinalar que também anuncia
as suas características autorais, uma espécie de marca que o cineasta
consolidou ao longo de toda a sua trajetória. Afinal, embora tenha sido
coincidência que “Cronicamente Inviável” tenha chegado às telas em 2000, a
força de seus argumentos e sua constituição anárquica já são parte do que
qualificou-se neste trabalho de agenda do autor, como se fosse um detalhe
de sua assinatura. Não por acaso, já nesse filme, é possível observar uma
espécie de embrião da sua obra seguinte, “Quanto Vale ou É Por Quilo?”,
cujo lançamento aconteceu em 2005. O elemento comum está presente na
personagem Maria Alice, interpretada pela atriz Betty Gofman.
A burguesa-caridosa16 é refém de uma espécie de culpa por viver em
melhores condições de vida que a média dos moradores de sua cidade. Para
aplacar esse sentimento, Maria Alice não hesita em distribuir brinquedos ou
prestar caridade às crianças que, nas ruas, se entorpecem com crack e cola
de sapateiro. Aparentemente, seu discurso ecoa a fala ingênua de certa
esquerda que tem problemas para conviver com seus padrões de riqueza ou
mesmo de classe média, uma vez que, de acordo com Nezi Heverton de
Oliveira, também Maria Alice teme a violência urbana e assume um tom
paternalista ao conversar com a sua empregada doméstica. Todavia, a certa
altura, numa fala contundente, agora em off, ela assume que não há
problema algum em oferecer caridade e que o Estado deveria dar crack para
as crianças de rua – afinal, já que elas iriam morrer, que morressem
entorpecidas e felizes.
16
Em seu trabalho de pesquisa, Nezi Heverton de Oliveira tipificou as personagens do filme “Cronicamente Inviável”
a partir de suas características e de suas reações ao longo do filme. Nesse sentido, temos, além da burguesacaridosa, o intelectual-vigarista, o contestador-anárquico, e o estrategista da inviabilidade.
28
De certa forma, a visão de mundo ingênua e condescendente de Maria
Alice é reelaborada no filme “Quanto Vale ou É Por Quilo?”. Aqui, o cerne da
questão, o alvo de Sérgio Bianchi, é a classe média-alta que traveste seu
cinismo e seu descaso para com os mais pobres com base no trabalho do
Terceiro Setor17.
Esse filme de Bianchi traz duas histórias em paralelo. Na primeira, que
se passa no século XVIII, o espectador vê fragmentos extraídos do Arquivo
Nacional que dão conta da relação entre os escravos e seus negociadores.
Na segunda, que se passa no século XXI, o público assiste a uma trama mais
encadeada em torno das Organizações Não-Governamentais, as ONGs, e
sua agenda oculta para além do interesse declarado em ajudar os mais
necessitados. Já em seu cartaz promocional, a obra se destaca pelo uso do
recurso da ironia: “Mais valem pobres na mão do que pobres roubando18”.
A princípio, as duas narrativas paralelas caminham de forma
independente ao longo do filme. O seu cruzamento se dá graças aos
personagens. Isso porque Sérgio Bianchi, adaptando livremente o conto de
Machado de Assis, “Pai contra Mãe”, toma emprestado o núcleo central do
conto daquele texto. Assim, embora esse núcleo não apareça no segmento
da narrativa do século XVIII, a figura do capitão do mato encontra uma
espécie de duplo no segmento do século XXI, representado por Candinho,
interpretado pelo ator Silvio Guindane. É a partir dele que as histórias
estabelecem um elo entre si.
17
Terceiro Setor aqui representa o trabalho desenvolvido por institutos, associações e sobretudo Organizações NãoGovernamentais, as ONGs, que, no Brasil, têm sido auxiliados pelo Governo com incentivos fiscais. As empresas,
nesse caso, oferecem apoio e subsídio às ONGs com o compromisso de abatimento de impostos. A crítica feita por
Bianchi reside no fato de que as ONGs, criadas com o propósito de assistir os desassistidos, têm agora um fim em
si mesmas.
18
Esse slogan aparece na capa do DVD de “Quanto Vale ou É Por Quilo”, distribuído pela Versátil. O slogan, em
certa medida, parodia o ditado popular: “é melhor um pássaro na mão do que dois voando”.
29
Antes desse entrelaçamento, que se dá no desfecho do filme, o filme
se desenvolve, como já foi dito, de maneira independente. Assim, de um
lado, o espectador conhece pouco a pouco o contexto das negociações dos
escravos, com base em documentos de época. De outro, observa como são
os bastidores das relações entre aqueles que trabalham com o Terceiro
Setor. Por trás do discurso, o filme de Bianchi identifica uma prática perversa
na busca por dinheiro em nome do trabalho dos pobres.
Conhecemos, nesse núcleo, a história de Noêmia (vivida por Ana
Lúcia Torre), uma empresária do setor, que age sem quaisquer escrúpulos
não apenas para ocupar os espaços de oferta assistencialista, como também
para conquistar mais investimentos de parceiros (empresas) interessados em
manter a associação em funcionamento. A associação de Noêmia conta com
a ajuda de duas funcionárias, que dependem do favor da patroa para que
possam continuar em suas respectivas funções. O filme mostra também o
desenvolvimento de ambas. A principal delas é Mônica, interpretada por
Cláudia Mello – que, no filme, estabelecerá um vínculo familiar com
Candinho. É à Mônica que Noêmia faz uma oferta (em dinheiro para a festa
de casamento de Candinho e Clara, interpretada pela atriz Leona Cavalli)
irrecusável em troca de seu aceite em trabalhar na associação em tempo
integral. Mônica aceita, mas quando Noêmia vai lhe cobrar o favor, não
consegue agir de outra maneira a não ser oferecendo a mão de obra de uma
garota pobre e órfã, que vive naquela família como que de favor.
Além da associação de Noêmia, o filme traz, ainda, a Stiner, empresa
de captação de recursos comandado por Marco Aurélio, vivido pelo ator
Herson Capri, e Ricardo, interpretado por Caco Ciocler, dois empresários
30
resolutos e ambiciosos, interessados em arrebanhar novos clientes, sempre
em nome da prática social. No filme, chama a atenção o contraste existente
entre o discurso da Stiner e a maneira como a empresa lida com seus
funcionários e com quem questiona seu modus operandi19.
Influente, a Stiner também tem seus laços na política. Um vereador,
interpretado por Umberto Magnani (o mesmo ator de “Cronicamente
Inviável”20), estabelece a ponte do Estado para com a iniciativa privada, a fim
não apenas de garantir mais votos de uma determinada comunidade, mas
também para fazer com que os empresários conquistem contratos do
governo sem licitação. Quando essa trama é descoberta por Arminda, ela
parte para denunciar o ocorrido, e a solução encontrada para silenciá-la é o
seu assassinato, ato que vai ser cometido por Candinho, o capitão do mato,
que na versão do século XXI (na visão Sérgio Bianchi), é o matador de
aluguel.
No meio dessa história sobre as Ongs, Sérgio Bianchi insere um
fragmento de violência urbana que remonta à ideia de ressentimento, como
será elaborado conceitualmente por Maria Rita Kehl no comentário que
acompanha os extras do filme. No terceiro capítulo da presente dissertação,
escrevo mais acerca dessa ideia de ressentimento a partir dessa cena. O
crítico e teórico Ismail Xavier, em dois ensaios, elabora uma reflexão
semelhante, tratando especificamente da questão do ressentimento a
propósito do cinema de Sérgio Bianchi. Os dois artigos tomam como
referência para tanto o filme “Cronicamente Inviável”. É possível, baseado
19
Em pelo menos duas cenas, os personagens que representam a Stiner tratam seus subordinados como serviçais
e lacaios. Na primeira cena, a responsável pela limpeza é desprezada porque está na entrada social; em outra
passagem, Ricardo, personagem de Caco Ciocler, escorraça e ameaça Arminda, vivida por Ana Carbatti, porque ela
estaria questionando a entrega de computadores para a comunidade representada por Arminda.
20
Sérgio Bianchi se notabiliza por trabalhar com um núcleo de atores que segue em suas produções de forma
regular. Assim como Magnani, Cláudia Mello e Zezé Motta já estiveram em filmes anteriores do cineasta.
31
nisso, sugerir que o cinema de Bianchi enfrenta o tema do ressentimento,
revelando essa característica inconfessável nas classes mais baixas da
maneira como única reação viável à sua condição de vida.
Talvez mais do que nas obras anteriores, nesse filme Bianchi
consegue atacar um tema que há tempos se tornara um tipo de consenso do
bem. Isso porque, ironicamente, o trabalho voluntário se transformou num
tipo de atividade quase obrigatória hoje em dia. No entanto, a crítica que
Sérgio Bianchi esboça a propósito desse tema possui um sentido mais
político do que meramente comportamental. E isso se torna mais evidente se
tomarmos como referência um depoimento que o cineasta concedeu anos
antes de o filme ser realizado. Bianchi apontava o interesse em produzir um
filme com as características de “Quanto Vale ou É Por Quilo ?”, sobretudo no
que tange à abordagem crítica que o autor pretendia fazer ao Estado. No
trecho a seguir, extraído do livro “O Cinema da Retomada – Depoimentos de
90 cineastas dos anos 90”, de Lúcia Nagib (2002), Bianchi revela que:
Agora vou fazer um documentário chamado Quanto Vale ou É
Por Quilo?. É uma ideia ótima, e será inteiramente ficcional.
Quero saber, por exemplo, se os objetos de tortura de um
torturador no DEIC, que é funcionário público, foram
comprados com licitação. Quero saber quantas pessoas ele
tortura por dia. Quero saber o valor de três pobres sendo
torturados porque assaltaram um banco ou roubaram um
televisor. Ou então um burguês que falou contra o Estado.
Quero saber o valor. Se é por quilo, 2 kg de burguês torturado
valem 400kg de pobre triturado? (NAGIB, 2002, p.119.)
Como se veria anos depois, o filme de Bianchi enfrentaria a questão
política tomando as ONGs como esses instrumentos que seriam operados
pelo Estado, sendo, com isso, manipulados a partir dos interesses das
classes dominantes. Aos pobres, restava uma condição não somente
subalterna, mas, também, de dependência – a não ser que tentassem
32
escapar pelo método da violência, o que não deixa de ser uma estratégia
política.
Tão curioso quanto isso é o fato de o autor enfatizar, nesse
depoimento, na forma: “documentário que será inteiramente ficcional”, um
gênero que é transformado já na origem porque, como se verá no terceiro
capítulo, o diretor altera as características supostamente intocáveis desses
gêneros.
Enquanto o espectador aprende como acontece essa mecânica de
manutenção do poder, Sérgio Bianchi também investe numa narrativa que dá
conta dos eventos históricos sobre a escravidão (outra forma de
dominação21). Explica-se: ao lado da história sobre as ONGs e o cinismo dos
seus principais operadores, o cineasta compõe, em paralelo, uma narrativa
sobre o período da escravidão. O tom dessa outra história assume, à falta de
expressão mais precisa, o de um relato protodocumental, uma vez que temos
a narração over, personagens caracterizados com as indumentárias da
época, e histórias, segundo o narrador, extraídas do Arquivo Nacional. A
estratégia do autor nesse caso é utilizar um formato consagrado e,
dominando-o, instrumentalizá-lo com vistas a alcançar seu objetivo final, a
defesa de uma tese sobre as sutis formas de dominação de antes e de agora
na sociedade brasileira.
No intuito de manifestar essa tese, Bianchi não utilizará uma
linguagem direta. Preferirá usar e abusar da ironia, conceito que será
explicado e analisado no capítulo a seguir.
21
A expressão “outra forma de dominação” é utilizada pelo narrador-personagem de “Cronicamente Inviável”. Nesse
caso, o que se tem é a ideia de dominação assumindo um caráter mais híbrido, porém não menos perverso.
Adiante, a proposta do presente trabalho é articular essa estratégia fundamentando seus pressupostos no conceito
de ironia.
33
2. Quanto vale a ironia?
A definição de ironia nem sempre é elaborada de forma adequada.
Frequentemente, costuma-se definir esse conceito à luz não do significado
teórico, mas, essencialmente, a partir de exemplos e ilustrações que muitas
vezes
demonstram
as
possibilidades
desse
recurso
retórico,
sem
necessariamente atacar o seu problema conceitual – de que maneira esse
postulado foi pensado pelos estudiosos ao longo do tempo; como é que se
chegou à conclusão do que significa a ironia.
Nesse sentido, o objetivo do capítulo que segue é estabelecer uma
análise mais consistente e aprofundada da questão da ironia com base em
revisão bibliográfica e de seus respectivos formuladores, sem deixar de lado
a utilização específica da ironia na obra do cineasta brasileiro Sérgio Bianchi,
tomando como eixo elementar para análise o filme “Quanto Vale Ou É Por
Quilo?”.
Para que se possa compreender melhor o significado de ironia, vale a
pena resgatar a história desse conceito. De acordo com o “Dicionário
Filosófico” organizado por Nicola Abbagnano (2012), é correto assinalar que
existem duas formas fundamentais de ironia, a saber: a que se origina nos
postulados socráticos e aquela que se baseia na poética romântica.
Em Sócrates, conforme sinaliza o verbete, a ideia de ironia pode ser
percebida nas entrelinhas dos diálogos socráticos. Nesse ponto, a estratégia
era, num debate, propositadamente se diminuir a fim de refutar a tese do
adversário. E, como que para arrematar a discussão, o pensador grego dizia
34
exatamente o contrário do que pensava. A ironia aparece aqui como
simulação, estratagema ordinariamente utilizado nos embates retóricos.
Ainda segundo o mesmo “Dicionário de Filosofia”, o sentido de ironia
tal qual formulado pelos românticos fundamentava-se no primado da
atividade criadora; isto é, de acordo com essa premissa, o pensador
romântico concebe a “realidade concreta” como uma espécie de “jogo do Eu”,
tendendo a relativizar a importância da realidade, não a assumindo como
uma determinação tão séria. O autor essencial no quesito ironia para os
românticos é o filósofo alemão Friedrich Schlegel, para quem a ironia seria a
maior manifestação da liberdade absoluta.
Com efeito, Schlegel foi um pensador que esboçou uma reflexão de
forma consistente sobre o princípio da ironia. Isso porque, interessado que
estava no estudo da literatura e dos gêneros literários, o filósofo romântico
discorreu de forma sofisticada que a ironia funcionava como uma espécie de
beleza lógica, advertindo ainda que, para quem não a possuía, ela
permanecia como enigma, como explica o filósofo dinamarquês Soren
Kierkegaard.
A propósito, em que pese a avaliação de Schlegel, é fundamental aqui
esboçar uma reflexão sobre o que Kierkegaard dissertou sobre o conceito de
ironia. É o autor de “Tremor e temor”, com efeito, enfrenta o tema resgatando
os vários sentidos da expressão, incluindo, aí, um comentário crítico que se
torna até o presente momento referência elementar no quesito de definir a
ironia. Investe, nesse sentido, numa espécie de inventário do significado do
termo, observando em seu livro “O Conceito de Ironia”
35
É o que se lê, por exemplo, quando, concordando com o que escreveu
Schlegel, Kierkegaard observa que:
A ironia possui portanto uma liberdade absoluta. Livre
das preocupações da realidade, ela é-o também de
suas alegrias e da sua felicidade; porque por não
reconhecer nenhum valor mais elevado que ela
própria, não está mais nas condições requeridas para
receber a felicidade, esse dom pelo qual um ser
superior satisfaz as aspirações de um ser inferior
(KIERKGAARD, 1991, p.213)
Embora muitas vezes o senso comum identifique a ironia apenas
como uma manifestação do humor, a análise de Kierkegaard leva em
consideração o potencial crítico desse conceito. Há, de acordo com o filósofo,
na utilização da ironia uma atitude crítica, aparentemente protegida pelo que
se entende de mal-entendido para com a realidade. Com o subterfúgio da
ironia, portanto, fica velado um subtexto cujo sentido, exatamente sob a
carapuça do humor, tem um alvo que muitas vezes não é identificado à
primeira vista.
A consequência disso é que, de um modo geral, o entendimento do
uso da ironia fica marcado pela suposta leveza de seu conteúdo em
detrimento de uma forma que, na verdade, é consideravelmente relevante.
Vale a pena ressaltar que o humor, nesse caso, existe como método de
correção de costumes, sobretudo se ecoarmos aqui a expressão latina
Ridendo Castigat Mores (rindo, corrigem-se os costumes). Nesse ponto,
talvez seja interessante apresentar o conceito e as características da ironia,
segundo Kierkegaard:
Assim, ocorre no discurso retórico frequentemente uma figura
que traz o nome de ironia; e cuja característica está em se
dizer o contrário do que se pensa. Aí já temos uma definição
que percorre toda ironia, ou seja, que o fenômeno não é a
36
essência, e sim o conteúdo da essência. Na medida que eu
falo, o pensamento, o sentimento mortal, é a essência, a
palavra é o fenômeno. Estes dois momentos são
absolutamente necessários, e é neste sentido que Platão
observou que todo pensar é um falar. (KIERKEGAARD,
1991, p.215)
O filósofo dinamarquês observa, ainda, que é possível perceber uma
espécie de linguagem irônica, a partir da qual se processa um jogo entre os
ouvintes que a compreendem e os falantes que a enunciam. Nesse caso,
caberá ao ouvinte, ao receptor da mensagem, a descoberta de que se trata
de um recurso irônico. Já que, se houver mal-entendido na compreensão da
mensagem, a responsabilidade pelo não-entendimento da linguagem ou
mesmo da ironia não é do falante. Em contrapartida, o autor concede que a
linguagem irônica está aliada a um princípio de nobreza, que, ao mesmo
tempo em que deseja ser compreendida, não anseia que isso seja alcançado
muito rapidamente.
Essa linguagem irônica da qual fala Kierkegaard pode ser sintetizada
num exemplo trazido no livro “O Conceito de Ironia”. Tayllerand22, o famoso
diplomata francês do período de Napoleão Bonaparte, afirmou que “a
linguagem não foi criada para manifestar pensamento, mas, sim, para ocultálos”. Na afirmação, percebe-se exatamente o jogo que se estabelece entre a
expressão e o sentido, isto é, a forma que está sendo negada pelo conteúdo.
Kierkegaard prossegue ao dissertar sobre os mecanismos internos do que
representa lançar mão dos recursos da linguagem irônica, uma vez que,
quando o enunciado não corresponde ao que efetivamente está sendo dito,
22
O diplomata Tayllerand é citado em um dos livros mais estudados sobre política internacional nos últimos anos:
“Diplomacia”, escrito pelo ex-secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger. Publicado pela primeira vez em
1994, a última edição da obra no Brasil data de 2012, editado pela Saraiva.
37
então, o autor desse enunciado pode, enfim, estar liberto de qualquer
compromisso, seja com os outros, seja consigo mesmo.
Em Kierkegaard, a ideia de que a ironia somente serve ao humor logo
é superada por uma leitura e interpretação que advoga a tese de que a ironia
pertence a um universo mais elaborado, associado a um território mais
subjetivo:
A ironia situa-se num terreno metafísico, e ao irônico só
interessa parecer diferente do que é realmente; de modo
que, assim como o irônico esconde sua brincadeira na
seriedade, sua seriedade na brincadeira, assim também pode
ocorrer-lhe a ideia de parecer mau, embora seja bom. Só que
temos de lembrar que as determinações morais são, a rigor,
demasiado concretas para a ironia (IDEM, 1991, p.223)
O conceito de ironia em Kierkegaard, portanto, alcança, do ponto de
vista da teoria, um estatuto de reflexão mais elaborada, segundo a qual estão
em jogo elementos teóricos mais consistentes, como a dimensão filosófica da
metafísica e a proposição de uma visão de mundo onde emana a
subjetividade.
O crítico cultural Arthur Nestrovski também recorreu à filosofia para
discorrer sobre o conceito de ironia na apresentação de um de seus primeiros
livros, “Ironias da Modernidade” (1996). Conforme ensina Nestrovski, o termo
“ironia” vem do grego eironeia e quer dizer “dissimulação”. O autor explica
que a estratégia da dissimulação é utilizada por Sócrates, de acordo com os
diálogos de Platão, o que permite hoje dizer ironia socrática. A análise de
Nestrovski é importante porque pontua esse conceito numa perspectiva
contemporânea, como veremos a seguir:
(...) No período moderno, essa ironia ganha outras
conotações, tanto linguísticas quanto teológicas. O escritor
irônico é autenticamente dissimulado, se é que isto faz
sentido. Numa cultura tão tardia, o peso da linguagem parece
cada vez maior e todo poeta luta, sem esperança, para
38
conciliar sua experiência da linguagem com a existência
empírica. A luta é sem esperança porque, no mesmo
movimento que cancela a mistificação do homem comum, o
escritor só alcança, afinal, o conhecimento desta mistificação.
A linguagem irônica divide o sujeito em homem autêntico e
um outro homem, cuja existência só se dá pela linguagem –
uma linguagem, porém, que reconhece sua própria
inautenticidade. (NESTROVSKI, 1996, p.11.)
Outro autor que investiga o conceito de ironia é Douglas C. Muecke,
cuja obra “A Ironia e o Irônico” (1995) se propõe a compreender as
aplicações confusas e até mesmo contraditórias do termo. Ecoando o
trabalho de Kierkegaard, o pensador observa que, para destacar a
importância do conceito para a literatura, basta tão somente enumerar os
vários escritores cuja obra está permeada significativamente de ironia: do já
citado filósofo Platão ao dramaturgo Bertold Bretch, passando, ainda, por
nomes como Voltaire, Dostoievski, Kafka, Musil – e, cumpre aqui acrescentar,
no caso brasileiro, o escritor Machado de Assis.
Em Muecke (1995), a menção a esses autores cumpre um papel não
somente referencial ou para buscar argumentos de autoridade, mas serve
principalmente para que o pensador possa ecoá-los em vários momentos ao
longo do texto, quando há necessidade mais específica, quando, por
exemplo, da definição do conceito de ironia.
Assim, na obra, Muecke investiga, num primeiro momento, as
diferenças entre o irônico e o não-irônico, apontando que são opostos
complementares, de maneira que, em vez de excludentes, ambas são
necessárias para as necessidades humanas. Aqui, mais uma vez, a menção
a Kierkegaard aparece, quando Muecke salienta a provocação do pensador
dinamarquês: “não é possível a vida humana autêntica sem a ironia.”
39
Ao apresentar os conceitos iniciais de ironia, Muecke articula a crítica
literária e o pensamento dos filósofos gregos, de modo a buscar um sentido
ao propósito da ironia. Dessa maneira, o autor observa que o narrador irônico
é forjado pela experiência da literatura, da mesma maneira que as suas
características elementares são primeiramente concebidas na obra de
autores como Sócrates e Aristóteles:
Aristóteles, contudo, talvez porque tivesse Sócrates em
mente, considerava a Eironeia, no sentido de dissimulação
autodepreciativa, superior a seu posto, a alazoneia, ou
dissimulação jactanciosa; a modéstia, ainda que apenas
dissimulada, pelo menos parece melhor que a ostentação.
Mais ou menos na mesma época, a palavra que a princípio
denotava um modo de comportamento, chegou também a ser
aplicada em uso de linguagem; eironeia é atualmente uma
figura de retórica: censurar por meio de um elogio irônico ou
elogiar mediante uma censura irônica (MUECKE, 1995, p.31)
O ponto alto da argumentação de Muecke, no entanto, está no trecho
em que o autor se propõe a estabelecer uma anatomia da ironia. Surge ali
uma análise que serve de referência consistente para o presente trabalho,
uma vez que as passagens extraídas de romances ajudam a sustentar o
argumento em torno do uso da linguagem irônica. Assim é quando o
pensador sustenta que o traço básico da ironia é um contraste existente entre
a realidade e a aparência. Nesse sentido, pode-se citar como exemplo o
conto “Pai contra mãe”, no qual o narrador de Machado de Assis pontua logo
no primeiro parágrafo uma frase singular: “Não cuidemos de máscaras”23.
Tomando o repertório oferecido por Muecke para a análise, observaque a frase do narrador de Machado de Assis confere à afirmação um caráter
irônico, haja vista que as máscaras às quais o narrador se refere no
23
Importante frisar, aqui, que Muecke não cita o texto de Machado de Assis como exemplo. Todavia, a análise
desse teórico pode ser aplicada na abordagem do conto machadiano, no que tange a questão da ironia como
recurso de crítica. Outros autores, como os críticos literários Ivan Teixeira e Alfredo Bosi, destacam a presença da
ironia na obra do escritor brasileiro.
40
enunciado são, em verdade, instrumentos de opressão que simbolizam um
período de exceção no Brasil. Assim, no primeiro parágrafo o narrador
destaca que:
A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá
sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns
aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o
ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a
máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício
da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só
três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada
atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber,
perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos
vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e
aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a
honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem
social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e
alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à
venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de
máscaras.(MACHADO DE ASSIS, 2007, p.203.)
O que se observa no excerto acima é a descrição detalhada, e a
princípio objetiva, de determinados materiais – as máscaras – que serviam
de instrumentos de auxílio ao controle dos escravos durante aquele período.
Adotando um tom que será norteador ao longo de toda a narrativa, observase já neste primeiro parágrafo uma espécie de lógica compensatória – que,
em verdade, pode ser traduzida como a linguagem da ironia – pois, mesmo
quando o narrador assume que tal máscara era grotesca, existe a conclusão
de que não se alcança a ordem social sem apelar ao “grotesco e ao cruel”. O
mecanismo da ironia aqui é exposto no momento em que o texto salienta a
brutalidade, mas tenta diminuir o seu caráter reprovável ao mostrar que
existe um fim que justifica esse meio.
Em certa medida, o excerto de Machado de Assis pode ser justificado
no texto de D.C. Muecke, pois este pensador destaca a existência de uma
ironia que se dá pela justaposição. Nas palavras de Muecke:
41
Um sentido de ironia implica não só a capacidade de ver
contrastes irônicos, mas também o poder de moldá-los na
mente de alguém. Inclui a capacidade, quando confrontada
de algum modo com alguma coisa, de imaginar ou lembrar
ou observar alguma coisa que formaria o contraste irônico
(MUECKE, 1995, p.62.)
Essa permanência do contraste ainda se mostra notável na
composição das personagens ao longo do texto, uma vez que, num conto
que trata sobre escravidão, lê-se que os protagonistas da história são
Candido Neves e Clara. Chama a atenção a esse respeito a leitura atenta do
crítico Alfredo Bosi (2007, p.121) a esse respeito: “Cândido Neves, pobre
mas branquíssimo até no nome, casa-se com Clara e, para sobreviver, ‘cede
à pobreza’, tornando-se capturador de negros que reconduz aos senhores
mediante boa gratificação”. A dinâmica dos nomes é dessas sutilezas que,
numa leitura desatenta, passa sem ser notada pelos leitores. Não cabe aqui
especular se havia ou não intenção por parte do autor, mas é certo que o
efeito de sentido provocado foi captado pelos leitores mais argutos, do
mesmo modo como o eixo perverso que predomina na história de “Pai contra
Mãe”.
Na avaliação do crítico Alfredo Bosi (2007), nota-se que o eixo de
contos como “O Caso da Vara”, “A causa secreta” e em “Pai contra Mãe” se
localiza exatamente em como essas histórias são articuladas pela
manifestação do mal, justificado, no caso desta última história, numa lógica
extremada de sobrevivência e autopreservação. Bosi analisa e compara dois
desses textos, observando que:
O caso da vara e Pai contra mãe dão testemunho tanto da
vilania dos protagonistas quanto da lógica que rege seus
42
atos. As tendências da alma e os cálculos da vida somam-se
na luta pela autoconservação. Ambos têm em comum a
situação do homem juridicamente livre, mas pobre e
dependente, que está a um degrau, mas só um degrau, do
escravo. A essa condição ainda lhe resta usar do escravo,
não diretamente, pois não pode comprá-lo, mas por vias
transversas, entregando-o à fúria do senhor, delatando-o ou
capturando-o quando se rebela e foge. O poder do senhor
desdobra-se em duas frentes: ele não é só dono do cativo, é
também dono do pobre livre na medida em que o reduz à
polícia de escravo. (IDEM, 2007, p. 120.)
Outros autores, estudiosos da obra de Machado de Assis, apontam
para a questão da ironia na obra do escritor brasileiro levando em
consideração as características estilísticas do autor, como é o caso do crítico
literário Ivan Teixeira (1988), para quem a ironia em Machado de Assis
obedece à lógica da ambivalência. Teixeira define a ironia na obra do autor
de “Pai contra Mãe” como a “inadequação entre a forma e o conteúdo de um
enunciado, isto é, um contraste entre a aparência e a essência do que se diz
(...).Em sentido amplo, ironia é toda frase que provoca o riso pela fineza e
acuidade da observação.” O crítico aponta, ainda, um desdobramento na
ironia machadiana: “Outra forma de ambivalência elementar nesse autor
encontra-se no sarcasmo, ou seja, a ironia que contém uma denúncia radical
de um indivíduo ou da condição humana”.
Como observado pela crítica especializada, a obra de Machado de
Assis é permeada pelo uso da ironia como recurso – e, nesse caso, não
como elemento supostamente frívolo para o humor; antes, trata-se de um
elemento central para que o autor estabeleça sua crítica e apresente sua
visão de mundo. Tomando como ponto de vista a ironia, a obra machadiana,
sobretudo alguns contos, terminam por constituir uma teoria acerca do
43
universo que o cerca. Alfredo Bosi vê nisso a consolidação dos contos-teoria,
como se vê no trecho a seguir:
Vejo nos contos maduros de Machado, escritos depois de
franqueada a casa dos quarenta anos, o risco arabesco de
“teorias”, bizarras e paradoxais teorias, que, afinal, revelam o
sentido das relações sociais mais comuns e atingem alguma
coisa como a estrutura profunda das instituições.(...) O tom
que penetra o conto-teoria não é o sarcasmo aberto ao
satírico, nem a indignação, a santa ira do moralista, nem a
impaciência do utópico. Diria, antes, que é o humor de quem
observa a força de uma necessidade objetiva que prende a
alma frouxa e velitária de cada homem ao corpo uno, sólido e
manifesto das formas instituídas. (BOSI, 2007, p.122)
Assim como em Machado de Assis, a obra do cineasta Sérgio Bianchi
se utiliza do recurso da ironia de maneira bastante perceptível. Tal
constatação poderia parecer óbvia, se fosse levado em consideração o fato
de Bianchi se utilizar da obra machadiana na composição de seus filmes. O
uso da ironia, nesse caso, está além da questão específica da adaptação –
que, ademais, não está no escopo deste trabalho. O diretor de “Quanto Vale
ou É Por Quilo” tem no recurso da ironia um dos instrumentos mais caros
para a crítica que imprime em suas obras, a ponto de servir como uma
espécie de marca autoral do cinema bianchiano. Nas páginas a seguir, este
trabalho pretende identificar como a ironia se apresenta no cinema de Bianchi
em geral, e em “Quanto Vale É Por Quilo?” em particular.
Nas referências conceituais já citadas, nota-se que muito do que
Bianchi concebe como discurso audiovisual da ironia também se articula aos
autores estudados. De Kierkegaard, por exemplo, é possível tomar
emprestado a ideia de que a linguagem irônica se estabelece como uma
avaliação um tom acima, desejando ser percebida, mas não de maneira
44
escancarada, talvez, para utilizar aqui uma ilustração, como um olhar de
soslaio, ou mesmo uma piscadela durante uma afirmação supostamente
grave. Nos filmes de Bianchi, esse olhar de soslaio está presente em muitas
cenas.
No filme “Romance”, de 1982, a jornalista Maria Regina, interpretada
pela atriz Imara Reis, que sai à procura de informações que desvendem um
escândalo político, é recebida com desdém por sua amiga, Márcia, vivida
pela atriz Cristina Mutarelli, quando vai visitá-la em uma galeria de arte.
Regina pede dinheiro à Márcia, que, não contente em recusar, é firme em
assinalar que não pretende servir de “fundo de auxílio ao intelectual
desamparado”. A jornalista insiste, pedindo, então, que a amiga lhe dê
dinheiro para o ônibus. É nesse momento que Márcia dá o golpe final,
respondendo assim:
-
Nem que eu quisesse. Só tenho cheque. Agora, se você quiser, posso
bater na sala do Paulinho. Ele está numa reunião importantíssima com
o pessoal da Tate Gallery. Pedir para ele um dinheirinho para minha
amiga pobrezinha voltar de ônibus para casa. Quer?
Algumas cenas adiante, a mesma Maria Regina assiste a um trecho de
filme publicitário que resume bem a estratégia da ironia em Sérgio Bianchi.
Na peça publicitária, uma mansão é exibida, sendo apresentada por uma
vendedora que anuncia as condições de vida da proprietária.
45
- Esta é a luxuosa mansão de dona Cecília. Ela nasceu aqui, cresceu
aqui, cercada de conforto e tradição. Estes belíssimos gramados permearam
de verde a sua vida. Dona Cecília jamais precisou trabalhar. Há 400 anos a
família de Dona Cecília jamais precisou trabalhar. Ora, dona Cecília não sabe
trabalhar. Seria perigoso, e até mesmo uma leviandade, forçar agora um
trabalho para dona Cecília. Ela precisa continuar a viver de rendas! Portanto,
Vivendas Verticais vão se alastrar por esses jardins. Elas recriam com
fidelidade o velho, mas sempre novo estilo de dona Cecília: dignidade e
nobreza. Venha você também tirar uma vantagem.
Essa cena merece ser observada tanto pelo discurso da personagem,
algo que seria um clássico das pérolas da retórica supostamente
conservadora-reacionária, mas essencialmente pela utilização de outro
recurso na sua apresentação: a paródia de um anúncio publicitário. À sua
maneira, Sérgio Bianchi se apropria da estética dos filmes publicitários que
vendem condomínios e imóveis de alto padrão. Nesse caso, no entanto, o
autor emprega um tom paródico exatamente ao ironizar o discurso
edulcorado de felicidade do consumo ao enunciar ali um texto provocativo e
singular que rejeita a ética do trabalho ao abraçar o privilégio de alguns
poucos em detrimento do sofrimento da maioria. Ao final, o autor encerra com
as palavras: dignidade e nobreza, sem mencionar a alusão à lei de Gérson24.
Funcionando como um tipo de atestado de sua assinatura, Sérgio
Bianchi adota a ironia em seu cinema, aproveitando, para tanto, uma visão
desencantada e desenganada da vida política nacional. Esse é um
componente central do cinema desse autor em suas demais obras, conforme
24
Praticamente um clássico para análise sociológica do Brasil, a lei de Gérson, em verdade, se origina não na física,
mas no truísmo, defendido num anúncio publicitário de cigarros, segundo o qual o brasileiro quer levar vantagem em
tudo. O protagonista do anúncio é o ex-jogador da seleção brasileira Gérson.
46
se vê no filme “A Causa Secreta”, obra de 1994.
Baseado no conto de
mesmo nome do escritor Machado de Assis, Bianchi explora, em “A Causa
Secreta”, a indiferença e a humilhação como condições elementares na vida
de uma grande cidade. No primeiro caso, as pessoas parecem infensas à
dor, não se importando com o que acontece com o outro, a não ser quando
isso envolve uma questão de interesse imediato. É um retrato desencantado
do fim da solidariedade como discurso político. Já no tocante à humilhação,
de modo semelhante, nota-se certo prazer em tratar o outro com desdém,
não se importando com as condições sociais, ainda que esse discurso seja
levando em consideração como relevante nas vozes dos personagens.
Em “A Causa Secreta”, o desencanto é percebido logo nas primeiras
cenas do filme, quando um grupo de teatro se prepara para encenar uma
peça – no caso, “A Causa Secreta”, o conto de Machado de Assis. Para
tanto, o diretor
da peça, interpretado por Renato Borghi, salienta a
necessidade desse grupo experimentar um método de preparação e vivência,
percebendo os elementos ligados à temática da peça que acontecem no
cotidiano. Numa sequência de eventos aparentemente dispersa, mas
bastante encadeada, os atores se portam como mesquinhos, intolerantes e
mesmo rabugentos, ainda que, do ponto de vista do discurso, mantenham um
tom nobre a seu próprio respeito. Exemplo disso se percebe quando, num
bar, um dos atores, interpretado por Luiz Ramalho, comenta acerca de seus
projetos sociais e é interpelado por uma criança pedindo esmola. Num
primeiro momento, o ator, embevecido com a própria voz, sequer nota a
criança; depois, a partir do momento em que sua presença é inevitável, o ator
47
não hesita em escorraçar a criança de sua frente, conforme reproduzido a
seguir:
O tio tá falando, você não tá vendo? Espera só um pouquinho, tá?
O mesmo sujeito que, querendo impressionar a atriz com quem
conversa comenta sobre seu trabalho numa comunidade da periferia, ignora
o pedido de uma criança com fome. A ironia por justaposição ou por
contraste está visível nessa cena do filme de Sérgio Bianchi. De modo
semelhante, logo em seguida, desta vez num restaurante, dois atores da
peça (respectivamente vividos por Claudia Mello e Renato Santiago)
conversam sobre a necessidade de buscar uma forma de fase de sua vida,
baseada na gentileza, no que realmente importa. De repente, duas crianças
de rua aparecem ao lado da mesa
-
Menino de rua: Tia, a senhora não poderia me dar um pãozinho com
patê, não?
-
Atriz: O que você quer?
-
Menino de rua: Um pãozinho com patê...
-
Ator: Você não está vendo o que ele quer?
-
Atriz: Ah, mas poxa vida, né? Que situação...Nem acabamos de
sentar. Olha aqui, dois pães para vocês dividirem...
-
Menino de rua: A senhora não poderia arrumar também, o seu patê?
Ator: Dá uma azeitona...
48
Atriz: Humpf. É demais, né? Não tem nem o que comer, vão ficar
escolhendo? É problema de nutrição básica ou de couvert?
No livro “Contingência, ironia e solidariedade”, o filósofo norteamericano Richard Rorty (2007) dedica todo um capítulo para comentar os
aspectos conceituais da ironia na contemporaneidade, com vistas a
relacionar esse recurso com a política, por exemplo. A apreciação de Richard
Rorty direciona-se claramente contrária à visão de mundo neoliberal,
direcionando a discussão, nesse caso, para o ambiente de guerra cultural
vivido nos Estados Unidos nos últimos 30 anos25. Ainda assim, a observação
que este pensador faz acerca da questão da ironia se relaciona com a
maneira como Bianchi emprega esse recurso, como se nota pelo trecho a
seguir:
O ironista lhes diz que a linguagem que falam está
aí para ser posta em questão por ele e por outros
como ele. Há nessa afirmação algo de
potencialmente muito cruel. É que a melhor
maneira de causar um sofrimento duradouro às
pessoas é humilhá-las, fazendo com que as
coisas que lhes parecem mais importantes se
afigurem fúteis, obsoletas e impotentes. (RORTY,
2007, p.159)
A questão da ironia em Sérgio Bianchi passa a ser reconhecida como
marca definitiva
em 2000, quando o diretor lança o longa-metragem
25
Os principais analistas políticos e críticos culturais dos EUA acusam, há anos, uma reação conservadora baseada
no surgimento, entre outros, de autores como Irving Kristol, cujo texto apontava para a retomada de princípios
morais e na defesa política mais próxima à linhagem do Partido Republicano. Autores como Richard Rorty e Fredric
Jameson, assim como mais recentemente Slavoj Zizek, se posicionam na contracorrente dessa ação conservadora.
Daí o termo guerra cultural.
49
“Cronicamente Inviável26”. Bianchi aposta num gênero que se amarra a outro,
tomando emprestado diversas referências estéticas e conceituais para
construir um filme-ensaio sobre o Brasil. Aqui, vale a pena ressaltar a análise
de autores como Ismail Xavier, para quem a obra apresenta um cinema de
ressentimento, conforme visto no primeiro capítulo do presente trabalho.
Bianchi
(2002)
concebe
“Cronicamente
Inviável”
fundamentando-se,
novamente, na matriz da ironia, investindo numa proposta que não enxerga o
futuro como algo viável. Nesse filme, a ironia, para além de provocar um riso
amargo e melancólico, desemboca numa visão distópica sobre o Brasil 27 e
sobre o futuro deste país. O personagem que serve de âncora para a obra, o
intelectual Alfredo Bur, vivido pelo ator Umberto Magnani, é a mais perfeita
tradução de um homem de ideias subaproveitado cuja causa, a de explicar o
Brasil, incorre numa perspectiva perversamente crítica sobre o seu objeto de
estudo e, por fim, sobre si mesmo.
De
“Cronicamente
Inviável”,
diversas
cenas
poderiam
ser
mencionadas como asserções irônicas sobre a realidade, tomando
emprestado aqui a tese do teórico Fernão Pessoa Ramos sobre o cinema
documentário. Num primeiro momento, vale a pena chamar a atenção para a
justaposição das formas, ora documentário, ora relato ficcional. O espectador
não tem claro quando um e outro estão em curso. Como que
propositalmente, sem querer aqui esboçar uma análise com vistas a
interpretar as intenções do autor, Sérgio Bianchi mistura os gêneros, criando
26
Embora tenha sido um filme que estreou em poucas salas de cinema do País, “Cronicamente Inviável” gerou
diversos debates e polêmicas nos suplementos culturais no período de seu lançamento. Na mesma época, o diretor
foi convidado para debates em universidades, e o filme se tornou uma espécie de evento cult da cena cultural
paulistana. Só no jornal Folha de S.Paulo foram doze textos a respeito do filme.
27
No ensaio “O cinema da distopia brasileira”, publicado pela revista Contracampo, o crítico Cléber Eduardo aponta
“Cronicamente Inviável” como um exemplo de filmes em que “não há possibilidade de final feliz”. Para Cléber
Eduardo, cineastas como Bianchi não enxergam razão para conceber o Brasil como país do futuro.
http://www.contracampo.com.br/52/distopia.htm. Acesso em 29 de novembro de 2012.
50
uma espécie de tempestade, como se verá no capítulo a seguir, exatamente
porque pretende lançar mão desse recurso irônico sobre a realidade. Dessa
maneira, nota-se a presença do intelectual, a princípio viajando pelos
diversos cantos do Brasil a fim de discorrer sobre a questão da “identidade
nacional”. As cenas mostram imagens típicas desses lugares (como Bahia,
Rio de Janeiro, Santa Catarina e Mato Grosso), notadamente atreladas ao
consenso audiovisual que o público possui dessas regiões.
A presença da ironia se faz notar quando, logo após exibir essas
imagens, a voz over do narrador começa a tecer considerações poucoabonadoras e bastante críticas sobre situações e condições do Brasil. Um
bom exemplo disso se dá quando Alfredo Bur vai à praia do Arpoador no Rio
de Janeiro. Lá, encontra um ongueiro, interpretado pelo ator Petrônio Gontijo.
Ele diz:
- Tem gente que me critica. Quero ver o que os outros fazem. Tirei
essa moçadinha aí da rua, rapaz. Tô falando de dignidade, tá entendendo?
Arrumei um emprego digno pra todos eles. A gente vai viajar muito, fazer
muito show, ganhar muito dinheiro. O senhor acha que isso é ruim, né?
Em seguida, um grupo de jovens começa a tocar instrumentos de
percussão no palco improvisado na praia. A plateia se agita e começa a
dançar junto. O ongueiro parece exultante:
- Olha só, olha só! É só dar uma chance pra essa moçadinha que eles
vão longe, rapaz!
51
Quando diz isso, tenta abraçar Alfredo Bur, que, contrariado, escapa
do cumprimento. E o ongueiro prossegue:
- Por que não tentar levar eles para Nova York? O Brasil realmente
tem muito o que mostrar, viu! O senhor não acha?
O ongueiro se vira para ouvir a reação de Alfredo Bur, mas ele não
está mais ali. Alguns instantes depois, Bur saca o gravador e analisa o que
acaba de ver:
- Explorar a miséria como atração turística deve ser no mínimo
perigoso. Assim, a miséria que deveria ser um problema passa a ser
desejável, educativa. Se a criança não tem educação, você dá uma lata para
ela bater. Melhor do que elas serem exterminadas. Estamos progredindo: da
seleção natural da rua para a seleção do mercado.
Enquanto termina seu discurso, Alfredo Bur passa por uma batida de
policiais em que estes abusam do poder contra menores de rua. Adiante, em
outra passagem da obra, logo após a ver seu filho ter sido vítima de um
assalto, a mãe (a personagem de Betty Gofman), atônita, reage quando
percebe que o ladrão está sendo espancado por banhistas na praia. Com
algum remorso, ela implora para que eles parem com a violência. Numa
reviravolta dos acontecimentos, o garoto começa a bater na própria mãe,
afirmando que tinha sido assaltado e que, sim, ele (o filho) a detesta. Mais
52
uma vez, essa cena chama a atenção não somente pelos diálogos dos
personagens, em si, notáveis pela presença da ironia. O que nos interessa
nesse quesito é o fato de que Bianchi articula a imagem da praia, geralmente
associada, no Rio de Janeiro, à bossa nova, à violência forjada no
ressentimento e no complexo de culpa. Ademais, é importante destacar que o
diretor produz essa cena com fundo musical que remete à bossa nova. Mais
uma vez, um contraponto, como que sublinhando à questão da ironia.
Já no filme “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, de 2005, a ironia se faz
presente de maneira ainda mais corrosiva e cáustica, muito embora a
recepção da crítica tenha sido abaixo do que se viu cinco anos antes, por
ocasião da obra “Cronicamente Inviável”. Não cabe aqui especular as
(des)motivações para tanto. Isso porque “Quanto Vale ou É Por Quilo?”
obedece precisamente ao projeto estético do autor, sobretudo porque esse
elemento da ironia, tal qual visto ao longo do presente capítulo, não apenas
se faz presente, como também é a tônica dominante do filme. Antes de tratar
desse aspecto objetivamente, vale a pena discorrer sobre os elementos
centrais desse filme de Sérgio Bianchi.
O argumento do filme, como vimos no primeiro capítulo, baseia-se
numa narrativa em paralelo sobre os instrumentos de manutenção de poder.
De um lado, o diretor apresenta pequenos relatos sobre o período da
escravidão, aparentemente documentados e registrados conforme o Arquivo
Nacional. De outro, Bianchi traz a história ficcional, na qual uma empresa
oferece
suporte
técnico
para
as Organizações Não-Governamentais
desenvolverem seus projetos e, de quebra, obterem financiamento do Estado
para a existência de suas instituições. Com altas doses de ironia, o filme de
53
Bianchi ataca as ONGs não somente por ocuparem um espaço que deveria
ser preenchido pelo Estado (e, nesse caso, o Terceiro Setor não é o alvo
prioritário, mas, sim, a administração pública que largou mão de suas
atividades), como também porque têm como principal objetivo sua
sobrevivência financeira a médio e longo prazo. A ironia de Bianchi tem
como alvo o fato de as ONGs não servirem como modelo político do Estado,
mas como escapadela para gestões que podem ser corruptas e fraudulentas.
É dessa maneira que o espectador vê a Stinner, a empresa
responsável por preparar os projetos das ONGs para a captação de recursos
públicos e investimentos oriundos de grupos estrangeiros. Bianchi cria
personagens que mais se assemelham a homens de negócio e não a
pessoas ligadas a atividades sem fins lucrativos. Em dado momento do filme,
um dos personagens (Ricardo, vivido por Caco Ciocler), responsável pela
realização de projetos sociais, rechaça o pedido de uma agente social
(Arminda, vivida por Ana Carbatti), enfatizando que o objetivo central da
Stinner é o lucro. Cria-se, assim, o paradoxo: o grupo responsável pelos
projetos das ONGs tem objetivos e interesses como uma empresa qualquer,
sem perceber aí qualquer conflito de interesses nesse sentido.
Já em outra passagem do filme, agora no segmento histórico da
narrativa, Bianchi investe numa apresentação, em tese, isenta daqueles
acontecimentos do Vice-Reinado. Ocorre que, nas entrelinhas do texto oficial,
nota-se a lógica perversa que sustenta as relações entre os homens livres e
os escravos. Extravasando o texto de base original, o já citado conto “Pai
contra Mãe”, o cineasta reconstitui as negociações entre os escravos e os
senhores. Estes buscavam comprar escravos e “recuperar o investimento”;
54
aqueles desejavam comprar sua liberdade. Bianchi mostra como essa
relação entre as partes se baseava, para além da lógica do dinheiro, no
instrumentalização do favor. Se o favor era a concessão de um pedido
baseado no território da amizade, em Bianchi, ecoando Machado de Assis, o
favor se transformaria numa moeda de troca tão ou mais valiosa, porque cria
a dependência e sustenta a manutenção do poder, servindo, portanto, aos
interesses de quem está em vantagem – e, no limite, de quem está no poder.
E o favor, com efeito, é outro elemento que cimenta as duas histórias,
sem esquecer aqui do texto de base que serve, inclusive, para nomear
determinado núcleo de personagens da segunda história. Exceto por Mônica,
personagem interpretada por Claudia Mello, este núcleo está à margem do
universo das ONGs, isto é, não faz parte daquele grupo que é atendido por
quem deseja fazer o bem. É importante frisar, no entanto, que a
instrumentalização do favor, no filme de Bianchi, é mascarada pela utilização
da ironia. Explica-se: a oferta de favores é manipulada, pelos gestos e pelo
discurso, transformando-se numa doação legítima e com as melhores
intenções possíveis. Só que, muitas vezes, esses mesmos gestos traem
aqueles que prestam ajuda, mostrando as segundas intenções daqueles que
oferecem favor. Em “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, o cineasta denuncia isso,
articulando as duas narrativas: de um lado, no caso do relato baseado em
documentos históricos, as negociações que envolviam os escravos que
desejavam ser livres e os mercadores de escravos tinham como objetivo
central garantir dinheiro aos últimos, numa legítima ação comercial – dentro
do que estava permitido pela lei. A narrativa contemporânea, por sua vez,
mostra que as ONGs, embora defendam no plano do discurso a ação que
55
servirá de anteparo às classes desassistidas – oferecendo, entre outros,
projetos de inclusão social e a possiblidade de realizar um último desejo, no
caso de famílias com portadores de doenças terminais – , têm como grande
causa a sua própria agenda, isto é, conquistar mais espaço e mais
investimentos para expandir seus negócios e seus domínios. A certa altura, o
filme de Bianchi chega mesmo a mostrar as ONGs como nova oportunidade
de negócio, com direito a cursos de capacitação e discurso pré-elaborado a
esse respeito.
De volta à questão da ironia, vale a pena salientar que o filme de
Sérgio Bianchi apresenta essa história como uma espécie de paródia do texto
original. Aqui, é importante destacar que a paródia não é do texto de
Machado de Assis, que serve de referência apenas para uma das histórias do
filme; a paródia em questão é para com o discurso politicamente correto das
Organizações Não-Governamentais, de suas boas intenções e de suas
práticas cujo valor está acima de qualquer suspeita. A crítica de Bianchi às
ONGs se constitui sob o signo da ironia, rejeitando o consenso existente
sobre essas organizações e desacreditando seus princípios.
Nesse ponto, a análise de Richard Rorty sobre o ironista pode servir
como fundamento para a identificação dessa agenda crítica em Sérgio
Bianchi:
O ironista é o típico intelectual moderno, e as únicas
sociedades que lhe dão a liberdade de articular sua
alienação são as liberais. Assim, é tentador inferir que os
ironistas são naturalmente antiliberais. Uma porção de
pessoas, de Julien Benda a C.P. Snow, considerou quase
evidente a ligação entre o ironismo e o antiliberalismo. Hoje
em dia, muitos presumem que o gosto pela “desconstrução”
– uma das atuais palavras de ordem dos ironistas – é um
bom sinal de falta de responsabilidade moral. Presumem que
a marca do intelectual moralmente fidedigno é uma espécie
de prosa direta, desenvolta e transparente – exatamente o
56
tipo de prosa que nenhum ironista criador de si mesmo quer
escrever. (RORTY, 2007, p.159)
Ao apresentar um cinema deliberadamente irônico e contracorrente,
Sérgio Bianchi se pauta por uma agenda temática que ora se confunde com
seu projeto estético, tema a ser mais elaborado no capítulo seguinte, quando
se refletirá mais e melhor a esse respeito. Por enquanto, o que se nota é a
conformação da obra do cineasta à lógica da ironia, apropriando-se de outros
textos e mesmo da obra de Machado de Assis para dar vazão à crítica que
está contida na linguagem irônica, como escreveu Kierkegaard. Assim, mais
do que a retórica ou sacada humorística, o recurso da ironia serve como um
contundente instrumento de crítica social desse cineasta político.
57
3. Sérgio Bianchi e o cinema de tese
Nos capítulos anteriores, a presente pesquisa trouxe, na primeira
parte, uma visão panorâmica do cinema de Sérgio Bianchi e, na segunda,
uma observação mais aprofundada sobre o conceito de ironia, recurso
bastante utilizado pelo diretor em seus filmes. Com isso, esses dois capítulos
forneceram as bases para que agora seja feita a análise mais consistente da
obra que serve como objeto-referência para esse estudo, o filme “Quanto
Vale ou É Por Quilo?”, de 2005. Assim, de maneira a dar prosseguimento ao
estudo, a proposta deste capítulo é discorrer sobre a maneira como o
cineasta, para além de apresentar uma história, concebe uma tese a
propósito do tema de seus filmes. O fato de ser um cineasta político,
conforme visto no primeiro capítulo, ajuda a pensar Sérgio Bianchi como um
autor com uma agenda que é trabalhada ao longo de sua obra, porém nem
sempre perceptível à primeira vista, dada a forma pouco convencional como
o diretor estrutura seus filmes. É por esse motivo que neste capítulo
pretende-se mostrar como essa tese é construída tanto no âmbito do
conteúdo quanto no aspecto formal.
Para tanto, utiliza-se como referência o texto de David Bordwell, cujo
título é “Estudos de cinema hoje e as vicissitudes da grande teoria”. O ensaio
é parte integrante do primeiro volume do livro “Teoria Contemporânea do
Cinema”, organizado por Fernão Pessoa Ramos. Assim, o cinema pouco
convencional de Bianchi será enfrentado não somente a partir da temática
abordada pela obra, mas, essencialmente, pela maneira como o diretor se
58
utiliza de uma bricolagem de formas narrativas para defender o argumentochave em suas histórias. Em “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, essa
observação parece chave quando se nota a complexidade traduzida em
imagens e sons que fazem escapar ao espectador a identificação sobre o
gênero ao qual pertence aquela obra – voltaremos a esse assunto daqui a
algumas páginas.
À primeira vista, no entanto, a obra de Bianchi, em geral, e o filme
“Quanto Vale ou É Por Quilo?”, em particular, obedeceriam às tendências
estéticas da pós-modernidade. E tudo isso graças não só à sua forma
fragmentada – articulada a partir de fragmentos que ora se contradizem, ora
se complementam –, mas, principalmente, por apresentar um olhar
desconfiado às causas da política, dos costumes e do comportamento. Os
exemplos que comprovam essa hipótese são visíveis quando, de um lado, as
histórias questionam determinado consenso – como é o caso das ONGs e do
assistencialismo em filmes como “Cronicamente Inviável” e “Quanto Vale ou
É Por Quilo?” – e também, de outro lado, quando os desfechos das obras
indicam um cenário temerário e distópico – como é o caso de “Maldita
Coincidência” (quando o personagem interpretado por Sérgio Mamberti
ensina a fazer coquetel molotov) ou, ainda, em “Cronicamente Inviável” em
que o intelectual que funciona como fio condutor da obra, interpretado pelo
ator Umberto Magnani, é parte integrante do mesmo cenário corrupto que é
acusado pelo filme – afinal, o professor pertence ao grupo que promove
tráfico de órgãos.
A possibilidade de um cinema concebido sob a noção de estética da
pós-modernidade faz sentido aqui justamente porque Bianchi se afasta das
59
grandes narrativas propostas pela modernidade. Ou, por outra, nem a
transformação pela política, nem o desejo absoluto em transformar a
realidade, parecem atrair a obra do cineasta que se mostra, antes,
empolgado em expor o incômodo desencanto e constante desengano das
gerações. Em relação aos temas abordados, isso fica evidente quando o
espectador passa em revista os temas trabalhados pelo cineasta: o caos
provocado pela desigualdade social, a denúncia da fissura das relações
humanas, o ressentimento da classe subalterna para com os desmandos da
elite, que, por sua vez, não mostra capacidade para conduzir o país rumo a
um projeto de sociedade mais sofisticado. Essas características estão
expostas ao longo da obra de Bianchi, com destaque específico para
“Cronicamente Inviável” e “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, entre outros
motivos, conforme visto anteriormente, porque esses filmes reúnem
elementos trabalhados nas obras anteriores. Essas denúncias, no entanto,
não possuem o efeito de indignação exatamente porque contêm a marca da
ironia como marca definitiva, o que altera profundamente o seu sentido.
Assim, o que seria indignação se transforma numa sátira de indignação, e o
alvo da crítica com esse recurso passa a ser aqueles que detêm
supostamente o discurso mais politizado e engajado, com vistas a salvar o
restante da sociedade. O cinema de Bianchi desconfia desse “projeto”,
operando, em verdade, como um anteprojeto, que é o de ridicularizar esse
consenso utópico com uma abordagem paródica desse discurso engajado.
Como referência teórica, a pós-modernidade, conforme explicam
seus teóricos mais conceituados, como Fredric Jameson (1991), entre outros,
atenta para o fato de que as grandes narrativas já não servem mais como
60
postulados absolutos. Nesse sentido, a política já não teria mais como
resolver a dissolução e os conflitos existentes na sociedade. Em vez disso,
existe uma desconfiança de que esses projetos possam efetivamente
resolver tais problemas. O cinema de Bianchi, por sua vez, funciona como
produto dessa ausência de sentido causada pela pós-modernidade. E é a
partir dessa questão que podemos passar à análise específica de “Quanto
Vale ou É Por Quilo?”.
3.1 Sobre a pesquisa nível-médio e o cinema de Bianchi
Como foi visto ao longo do primeiro capítulo, o filme trabalha com a
proposta de estabelecer um paralelo pouco ortodoxo: as relações sociais
existentes durante o período da escravidão e os mecanismos de dominação
subjacentes ao trabalho voluntário praticado pelo terceiro setor atualmente.
De acordo com esse paralelo, a prática do terceiro setor guarda conexão
perversa com a escravidão, pois enquanto esta operava com a mão-de-obra
escrava para se fazer perpetuar no poder, aquela lida com o instrumento do
favor para manter o status quo. A perversidade reside no fato de que, tal
como naquela época o trabalho escravo era considerado algo natural, o
voluntariado se exibe como uma saída legítima, a fim de dirimir as
desigualdades e os possíveis conflitos que possam continuar a existir.
Ocorre que o cinema de Sérgio Bianchi desconfia desses bons
sentimentos. Assim, o autor lança mão da ironia para satirizar essa prática
que se enquadra no discurso apaziguador e politicamente correto. Como já
havia feito em “Cronicamente Inviável”, o polêmico filme de 2000, desta vez o
cineasta aponta a crítica para aqueles que teoricamente estariam do lado de
61
quem está praticando o bem. A explicação dessa tese subjacente do filme
parece óbvia a partir apenas dos diálogos ou, por outra, de uma interpretação
de uma mensagem que seria revelada no desfecho da narrativa. Chama a
atenção, no entanto, o fato de que essa tese em Bianchi esteja concebida
não somente no conteúdo, mas, também, na forma, como se pretende
demonstrar a seguir.
Ao comentar o estado da arte dos estudos de cinema hoje, David
Bordwell (2005) repara que a dicotomia entre as teorias da posição-subjetiva
e o culturalismo, de alguma maneira, representou um impasse a partir do
qual o cinema só poderia ser entendido graças a essas explicações. O autor,
todavia, esboça uma alternativa a esses territórios pré-definidos quando
lança a hipótese da pesquisa “nível-médio”. No trecho a seguir, Bordwell
reflete a esse respeito:
A teoria da posição subjetiva e o culturalismo são
ambos “grandes teorias”, no sentido de que suas
reflexões sobre o cinema são produzidas dentro de
marcos teóricos que têm como objetivo a descrição ou
a explicação de aspectos bastante amplos da
sociedade, da história, da linguagem e da psique. Em
contraste com essas correntes, aparece uma terceira,
mais
modesta,
que
investiga
questões
cinematográficas mais pontuais, sem se entregar a
comprometimentos teóricos tão abrangentes. Eu
concluo este ensaio com uma discussão desta
pesquisa “nível-médio”. (BORDWELL, 2005, p.26)
Com efeito, ao longo do texto Bordwell não só explicita o que chama
de “doutrinas” dessas grandes teorias, como, mais ao final do artigo,
desenvolve essa espécie de terceira via da linhagem analítica. Nas palavras
do autor, a pesquisa nível-médio pode ser definida como uma abordagem
que possui lastro tanto na perspectiva empírica quanto na linhagem teórica.
Conforme observa Bordwell, essa leitura nível-médio é pautada por
62
problemas, e não por doutrinas, o que acaba tornando suas possibilidades
mais amplas, uma vez que redimensionam os limites outrora estabelecidos
entre “estética, instituições e recepção cinematográfica”.
A proposta teórica oferecida por Bordwell, exatamente por não tomar
de forma absoluta os elementos da posição-subjetiva e do culturalismo,
consegue tornar mais viável a análise do cinema atípico de Bianchi, mais
especificamente para compreender a forma com que o autor desenvolve seu
cinema de tese no filme “Quanto Vale ou É Por Quilo?”. Em outras palavras,
a pesquisa nível-médio ajuda a investigar e a decifrar o sentido do cinema de
Sérgio Bianchi recuperando os elementos-chave de sua obra e, dessa
maneira, atacando o seu eixo fundamental, a saber: o filme que o autor
elabora ao justapor as imagens e ao conceber um discurso irônico, uma
contra-interpretação, acerca dos fenômenos sociais no País. Passemos,
então, à análise.
No conto “Pai contra Mãe”, o escritor Machado de Assis apresenta em
forma de dilema moral o problema da escravidão no Brasil. A narrativa dá
conta da história de Candinho (interpretado no filme pelo ator Silvio
Guindane), um remediado que vive sem dinheiro e às custas de pequenos
trabalhos. O personagem tem dificuldade em encontrar ocupação fixa, de
maneira que acaba por se encontrar apenas em trabalhos temporários ou de
baixos prestígios. Essa condição muda quando Candinho se torna capitão do
mato, ocupação que, nas palavras do narrador do conto, é um ofício daquele
tempo (assim como as máscaras que impediam os escravos de beber e
demais instrumentos que faziam parte do aparato do período da escravidão).
Como capitão do mato, Candinho consegue sustentar sua família –
63
composta, basicamente, pela esposa, Clara (interpretada no filme pela atriz
Leona Cavalli), e por Mônica (interpretada no filme pela atriz Cláudia Mello), a
tia de Clara.
A condição de vida de Candinho, que a certa altura do conto parece
estável, muda de perspectiva à medida que a escravidão vai perdendo o
fôlego (em verdade, o autor articula os dados históricos do período, como o
fim do tráfico negreiro e a lei do ventre livre, e, com isso, acaba por tensionar
as
possibilidades
de
subsistência
daquele
personagem).
Como
consequência, à medida que o tempo passa, o dinheiro passa a rarear e, com
isso, o protagonista se vê na iminência de ter de entregar o filho à roda dos
enjeitados, a fim de que não seja criado em condições precárias. Resignado,
toma o filho nos braços e segue para o que parece ser o destino trágico (ou
desfecho infeliz). O salto da narrativa se dá, no entanto, quando Candinho
encontra no caminho uma escrava-fugida, Arminda (interpretada no filme pela
atriz Ana Carbatti). Ele não hesita. Entrega o filho a um farmacêutico e parte
para capturar a escrava. Ao encontrá-la, ela suplica para que ele não a
entregue, argumentando que está grávida. Nesse embate pai contra mãe,
Candinho não hesita e entrega Arminda para o senhor do escravo, que lhe dá
retribuição necessária para que ele possa manter o filho longe das rodas dos
enjeitados. No comentário que traz o desfecho do conto, o personagem
criado por Machado de Assis afirma: “Nem todas as crianças vingam, bateulhe o coração”.
Em “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, Sérgio Bianchi toma emprestado
alguns elementos da narrativa machadiana para defender sua tese sobre o
papel atual do terceiro setor na lógica da manutenção de poder. Como já dito
64
tanto na introdução quanto no capítulo inicial dessa dissertação, o filme de
Bianchi não é uma adaptação que trabalha com os mesmos elementos do
livro de Machado de Assis, tampouco se objetiva aqui estabelecer um estudo
de modo a perceber quais os recursos utilizados pelo diretor na transposição
ou transcriação do texto do escritor brasileiro. Ainda assim, a menção é
importante porque permite enfatizar a maneira como o cineasta se apropria
de um texto de matriz literária para acusar outro problema tão grave quanto a
ausência de solidariedade entre aquele remediado e a escrava fugida. Tudo
está no seu lugar exato. Bianchi precisa do conto a fim de construir um
paralelo que, à primeira vista, poderá parecer esdrúxulo ou mesmo sem
sentido, porém que está perfeitamente adequado quando se entende a
natureza dessa tese.
Sobre isso, é importante destacar o já citado estudo de Pedro Vinícius
Asterito Lapera (2007) “Brasis imaginados: a experiência do cinema brasileiro
contemporâneo”. No trabalho, o autor aborda a ilação estabelecida de
Bianchi sobre a escravidão e o trabalho voluntário, como no trecho que
segue:
Finalmente, em 2005, ‘Quanto Vale ou É Por Quilo?’ é lançado
comercialmente e exibido em vários festivais. Reiterando sua
posição como agente formulador de contra-narrativas às
representações de Brasil, Bianchi se insere na disputa pelo
capital simbólico através de mais uma ficção recorrente à
ironia e ao trágico. No entanto, dessa vez o embate crítico
reforçará a ligação estabelecida na diegese entre passado e
presente e a crítica ao papel das ONGs. (LAPERA, 2007,
p.91)
Para que se possa entender o efeito de sentido provocado pela
apropriação de Bianchi do conto machadiano, vale a pena observar, antes,
como o próprio Machado de Assis fez de um relato aparentemente banal
65
sobre a escravidão em um drama com um dilema moral bastante agudo.
Como indica Sidney Chalhoub, no livro “Machado de Assis, historiador”:
Ao contar suas histórias, Machado de Assis escreveu e
reescreveu a história do Brasil no século XIX. Essa
hipótese vem sendo defendida, a meu ver de forma
bastante convincente, por críticos literários como
Roberto Schwarz e John Gledson, e tem se revelado
importante para desvendar e potencializar significados
nos textos machadianos. (CHALHOUB, 2003, p.17)
Ocorre que, para determinados temas, é certo que Machado de Assis
desenvolveu uma técnica que era importante não apenas pela sofisticação de
estilo, mas também porque se fazia necessário
tratar dos temas mais
espinhosos com uma abordagem não tão direta. E esse parece ser o caso de
“Pai contra Mãe”, que, curiosamente, só foi aparecer como conto publicado
em livro de Machado de Assis em 1906, segundo informa John Gledson
(2007) no prefácio da coletânea “50 contos de Machado de Assis”. É nesse
texto, importante para que se possa compreender o contexto de alguns
contos do escritor, que Gledson revela as motivações de algumas escolhas
do escritor brasileiro para a sua obra, como fica evidente no trecho a seguir:
Uma coisa é certa: a expansão do material possível de
Machado e o tom, o distanciamento irônico que ele adota, são
completamente inseparáveis. Digamos assim: se ele não
houvesse encontrado modos dos mais variados (irônicos,
sarcásticos, mas sempre semiocultos) de se expressar a
respeito de coisas sobre as quais não deveria falar, ou às
quais só podia se referir de soslaio, tais histórias jamais teriam
existido; podemos sentir sua satisfação quando se aproxima
de outra questão espinhosa e acaba encontrando novas
maneiras de falar sobre coisas demasiado embaraçosas para
mencionar diretamente. Na minha opinião, isso ajuda a
explicar o êxito desses contos – Machado caminhava no fio da
navalha, o que lhe deve ter dado, e a seus leitores, uma
espécie de excitação; algo que, por incrível que pareça,
podemos sentir num mundo bem diverso, o nosso, pois essa
sensação está aqui, na linguagem e suas negaças, nos
pormenores, nos atos, nas situações e nos personagens.
(GLEDSON, 2007, p.13)
66
Como indica o crítico literário, portanto, quando tratava de assuntos
mais delicados, Machado não hesitava em utilizar como recurso a máscara
da ironia, não apenas por um detalhe de estilo, mas também por se tratar de
uma necessidade, uma vez que determinadas questões poderiam soar por
demais contundentes. Desse modo, é correto afirmar que Machado de Assis
manipulava a chave da ironia para estabelecer uma crítica – tomando como
referência o conceito estudado no capítulo anterior.
De sua parte, Sérgio Bianchi na sua adaptação também se utiliza do
recurso da ironia, todavia, o elemento chave aqui está exatamente na
impureza de sua adaptação – motivo pelo qual se prefere pensar na ideia de
apropriação. Pois, em sua apropriação, Bianchi toma a ironia de Machado de
Assis de forma impura 28 , já que o cineasta a retoma a partir de outro
pressuposto, aprofundando o seu efeito com o objetivo de criticar a
manutenção do poder por determinadas classes a partir de uma prática, o
voluntariado, à primeira vista bem intencionada. Nesse sentido, a ironia de
Bianchi remete, sim, ao recurso utilizado por Machado de Assis, mas de
maneira alguma trata-se da mesma crítica.
Isso porque a ironia, em “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, conforme
visto no capítulo anterior, tem endereço mais contundente, como sói ao
cinema de Sérgio Bianchi. Em outras palavras, o diretor mira no fundamento,
na ideia, no princípio elementar que sustenta as ONGs como prática legítima
na sociedade contemporânea. É contra esse consenso que a ironia do diretor
28
No livro “O Cinema – Ensaios”, o crítico francês Andre Bazin desenvolve uma análise acerca das adaptações,
defendendo o que seria um “cinema impuro”. A análise de Bazin sustenta que “quanto mais as qualidades da obra
são importantes e decisivas, mais a adaptação perturba seu equilíbrio, mais também ela exige um talento criador
para reconstruir de acordo com um novo equilíbrio, de modo algum idêntico, mas equivalente ao antigo”.
67
se faz mais evidente, ridicularizando, como escreveu Pedro Lapera em
“Brasis imaginados”:
(...) o diretor contesta uma imagem construída na imprensa
pela ação nas ONGs (na verdade, isso já foi iniciado em
“Cronicamente Inviável” ao ironizar a ONG Viva Rio e o uso de
entidades assistencialistas para obliterar o tráfico de bebês e
órgãos), objeto até então ausente na cinematografia brasileira
(o que poderia ser interpretado como uma patrimonialização,
na medida em que esta imagem se incorpora ao panorama do
cinema atual (...) (LAPERA, 2007, p.91)
Uma vez entendido o dado da apropriação, é importante demonstrar
como se dá o seu funcionamento. Se em “Cronicamente Inviável”, o concerto
do ressentimento se dá a partir de fragmentos do cotidiano das locações
visitadas pelo personagem que serve de fio condutor da história (e é a partir
desses excertos que a história se constitui), em “Quanto Vale ou É Por
Quilo?” são duas histórias que se desenvolvem em paralelo, sem conexão
temática aparente entre si (esse eixo é desenvolvido à medida que o filme se
desenrola, como veremos a seguir), sendo a primeira narrativa um conjunto
de cenas sobre a escravidão no Brasil, desenvolvidos como se fossem
pequenos documentários, e a segunda é a história que se passa em tempo
presente, com personagens cujas vidas são entrelaçadas pelo tema das
ONGs e sua ação junto à sociedade.
A título de organização, convém
desenvolver essas duas histórias em trechos distintos nesse capítulo.
3.2 Sobre a composição de “Quanto Vale ou É Por Quilo?”
A história que se passa no período histórico da escravidão, época do
Brasil Colônia, está sedimentada numa forma que efetivamente remete à
linguagem do documentário mais tradicional. Assim, ao mesmo tempo em
que existe a reconstituição de alguns eventos, uma voz over narra esses
68
eventos, como que construindo um sentido ao que aconteceu. É interessante
observar aqui, que, como consta no roteiro oficial do filme, a intenção era
exatamente traçar um paralelo entre as duas situações.
No roteiro oficial, existe um trecho explicativo dessa intenção: “O
roteiro faz um paralelo com fatos reais, tirados de arquivos, mostrando
também como no passado, durante a escravidão, no século 18, conseguia-se
também explorar de uma maneira ou outra os mais frágeis, no caso a
população negra, quando alforriada” (BIANCHI et al. 2006). Como se verá ao
longo do texto, mais parece uma estratégia para o desenvolvimento da
narrativa do que uma fonte a partir da qual essas histórias foram extraídas.
Nesse caso, uma hipótese possível é a de que o diretor se apropriou de
alguns documentos para conceber esses relatos protodocumentais. Cumpre
observar, ainda, que, logo após uma epígrafe, o filme se inicia com cenas
que remetem a outro documento, desta vez ficcional, que é o primeiro
parágrafo do conto “Pai contra Mãe”, de Machado de Assis. Abaixo, segue
esse fragmento:
A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como
terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito
alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um
deles era o ferro ao pescoço, outro, o ferro ao pé; havia
também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia
perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes
tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um
para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um
cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de
furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que
eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous
pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas.
Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana
nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o
cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na
porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.29
29
O conto “Pai contra Mãe” existe em diversas edições, sendo uma das mais recentes a que foi publicada pela
editora Companhia das Letras, em 2007, no livro “50 contos de Machado de Assis”, cuja organização e prefácio têm
69
A epígrafe em questão é exatamente da parte histórica do filme. A
narração dá conta de um caso de briga judicial por um escravo. Quem vai
levar o escravo de uma propriedade à outra são os Capitães-do-Mato, que
não falam durante as cenas, apenas agindo como autômatos. Quem se
manifesta é a proprietária de quem tinha sido tirado um escravo. Ao final
dessa primeira citação, aprendemos que ela havia sido condenada pela
justiça da época por causar distúrbios à ordem vigente. Ela não conseguiu
recuperar o escravo, mas enquanto a narração dá conta de sua desventura, a
cena mostra a personagem reunindo seus escravos para registrar numa
fotografia, como exibição de suas posses. No roteiro oficial de “Quanto Vale
ou É Por Quilo?”, os realizadores afirmam que muito do filme está sintetizado
nesta cena.
Na apropriação de Bianchi, mesmo esse trecho é apresentado de
forma pouco convencional. Isto é, o narrador (cuja voz no filme é do ator
Milton
Gonçalves) “enxuga” esse
fragmento
do
conto
machadiano,
apresentando outra versão, condensada e com incrementos originais. Com
base no roteiro, entende-se que desde o início a proposta do trabalho foi
escapar às regras tradicionais de concepção de roteiro. Nas palavras de
Newton Cannito, um dos autores, isso se justifica pelas seguintes
motivações:
Nem sempre é necessário dar as informações para que o
público entenda o filme. Quem se preocupa tanto com
isso costuma ser o roteirista, que está lendo o mesmo
roteiro há meses e fica sempre se perguntando: mas qual
a motivação desse personagem para fazer isso? O
autoria de John Gledson, especialista na obra do escritor brasileiro. Para a realização desse trabalho, foram
consultadas, ainda, outras edições, como a publicada pela editora Martins Fontes, com organização e prefácio de
Ivan Teixeira, que já assinou diversos ensaios sobre Machado de Assis. Para esta referência, utilizo o texto
organizado por Gledson, editado a partir de cotejo com a primeira edição.
70
público, ao contrário, vai ver o filme durante 2 horas e
ponto. (BIANCHI et al, 2008, p.22)
É dessa maneira que, numa das primeiras cenas do filme, a senzala
aparece como cenário, e os escravos estão ali em posição de punição. À
medida que essa cena se desenvolve, o espectador conhece os instrumentos
de tortura dos escravos, além de uma personagem que fará parte da outra
seção do filme, Arminda (interpretada pela atriz Ana Carbatti). Ela está no
tronco, e é quando o enquadramento da câmera a visualiza que esse relato
se dá por encerrado e a outra história aparece em cena. Da senzala para a
laje de uma casa de periferia, onde a mesma Arminda desperta de um
cochilo. Nesse momento, a música ambiente (“As Rosas Não Falam”, do
compositor Cartola) já serve de acompanhamento para os diálogos que ali
vão acontecer. A câmera passeia por toda a extensão da laje, dando conta
da festa que acontece ali, e Arminda se levanta, depois de ser despertada
por Lurdes (vivida pela atriz Lena Roque) , e segue até aquela que faz os
preparativos, a personagem de Tia Judite (vivida pela atriz Myriam Pires).
Arminda: Deixa eu te ajudar, tia, se não você não acaba isso nunca. Tem de
se divertir um pouco, tia.
Tia Judite: Alguém tem que se mexer, né. Essas duas [referindo-se a duas
personagens, figurantes no filme, que estão sentadas à mesa] não tiram a
bunda da cadeira.
Nesse momento, Lurdes interrompe a todos e dá início à festa. Ela
anuncia a comemoração do aniversário de sua mãe (interpretada aqui por
uma figurante). Antes de cantar os parabéns, no entanto, nota-se que duas
mulheres, as duas que Judite (vivida pela atriz Myriam Pires) se referia, se
esbaldam com a comida disponível na mesa e, entrementes, ordenam à
criança que está ali, visivelmente deslocada, para que ela busque um
71
refrigerante. Esse excerto do filme não merece comentários especiais no
roteiro oficial, mas é importante destacar que esse trecho se insere como um
elemento mais delicado da obra, isto é, que revela a maneira como se
organizam as relações sociais na trama. Nesse sentido, é interessante
observar o comentário de Newton Cannito a propósito da confecção do
roteiro:
Na prática desse roteiro, nós não fazíamos fichas dos
personagens. Despreocupados com a continuidade
psicológica e com o jeito de falar de cada pessoa, nós
deixávamos que as boas falas criadas circulassem por
vários personagens até escolher qual daria o melhor
conflito dramático à cena criada (BIANCHI et al., 2008,
p.18)
O resultado disso foi o estabelecimento de certa independência na
elaboração das cenas, de maneira que cada passagem do filme pudesse ter
seu próprio conflito interno. Assim, mesmo no começo do filme, essa tensão
fica explicitada na relação de dominação e poder que está sugerida na fala
das personagens para com a criança deslocada e, como complemento, na
própria encenação disso, uma vez que a criança está no canto, como que de
castigo, e as moças à mesa se comportam como se fossem senhoras
daquele espaço, ainda que não tenham condições financeiras para tanto.
Afora isso, na fala de uma das personagens está claro uma relação de
condescendência30 para com a menina em questão: Queridinha, vai buscar o
refrigerante pra mamãe, vai?
Essa
condescendência,
na
verdade,
revela,
na
proposta
cinematográfica de Sérgio Bianchi, a fissura existente entre esses dois
30
A expressão condescendência talvez não seja a melhor tradução para o termo que resume de forma mais
definitiva essa situação. Isso porque o termo “patronizing” em inglês dá conta de forma mais consistente desse olhar
superior, mais sugestionado, que envolve a fala da mulher para a criança. O que o filme escancara é essa relação
de poder implícita de um determinado grupo para com outro.
72
grupos que, em tese, seriam apenas um só. Afinal, ao menos naquela cena,
todos se confraternizam, e não há espaço para disputas de qualquer tipo.
Ocorre que, como lembrou Newton Cannito, o objetivo era não só criar
independência nas cenas, mas estabelecer uma tensão. A tensão nesse caso
está na maneira como duas personagens, em condições sociais igualmente
frágeis do ponto de vista econômico, se identificam e se diferenciam daquela
garota, tendo esta que obedecer àquelas duas não necessariamente por uma
questão de hierarquia, mas essencialmente porque está ali de favor. O que
esta cena especificamente denuncia é a perversidade subjacente à prática do
favor, sempre acima de qualquer suspeita. Na cena, ao pedirem um favor, as
duas mulheres dão ordem à empregada.
É o que se pode ver na cena seguinte à da festa de aniversário.
Importante notar que, até aqui, não há na narrativa nada que estabeleça
conexão entre as cenas já exibidas. Ainda assim, na sequência da cena da
festa, a câmera focaliza o alto daquela laje e o tom em cores dá lugar ao
preto e branco, com planos realistas de crianças de ruas, miseráveis e
abandonadas, algumas com latas nas mãos e rosto. A música de fundo
reforça o impacto da cena, servindo como deixa para o discurso que está por
vir. É o que de fato acontece, com uma voz que anuncia o seguinte texto:
LOCUÇÃO (VOZ OVER)
São milhares de crianças abandonadas. Ajude a Sorriso de Criança a ajudar
quem necessita. Não dê esmolas nas ruas! Faça as suas doações em
dinheiro a entidades idôneas. Sorriso de Criança: Teledoação: 0800-143276.
A cena, que se assemelha a um dos muitos filmes de instituições de
caridade veiculados nas emissoras de TV aberta, logo sai de cena, e o que o
espectador visualiza na tela é outra encenação. Nela, em volta de uma mesa
de reunião, os presentes discutem sobre novas estratégias para angariar
73
fundos para as instituições de caridade. Logo, Marco Aurélio, personagem
vivido por Herson Capri, apresenta ao responsável da ONG seu diagnóstico
sobre o vídeo que acaba de ser exibido:
MARCO AURÉLIO: Pois é, a Sorriso de Criança está com sua estratégia...
um pouco ultrapassada. Neste vídeo, por exemplo, só tem criança sofrendo.
A nossa postura tem que ser outra, diante do investidor. Nós temos que ter
uma postura muito mais... positiva. Quem financia a solidariedade, hoje...
está preocupado com o retorno. Por isso, a imagem do seu produto deve
estar vinculada... ao êxito. Mas fique tranqüilo, Dom Elísio. Nós vamos
refazer seu vídeo. Vamos sair às ruas e vamos colher depoimentos...
otimistas, depoimentos emocionados.
Logo em seguida, o braço direito de Marco Aurélio, Ricardo
(personagem vivido pelo ator Caco Ciocler), passa um contrato a Dom Elísio.
Este, resignado, se limita a dizer:
DOM ELÍSIO: Eu imagino que vocês estejam bem atualizados nisso.
Nos comentários que acompanham o roteiro do filme, os autores
observam que, como referência para a concepção da cena, foram utilizados
diversos livros e conceitos oriundos do tema marketing social. Philip Kotler,
Marjorie Thompson e Hamish Pringle são alguns dos nomes citados.
Entende-se que deles foram tomadas emprestadas as palavras-chave para
forjar o vocabulário próprio desse tipo de reunião. Todavia, para além desses
comentários do roteiro, o que a cena ataca é a concepção falsa das ações do
Terceiro Setor. Isto é, se, para o senso comum são realizações que se
pautam tão somente pela livre-iniciativa de seus principais agentes, sem
buscar retorno de seus investimentos ou algo semelhante, o que a cena do
filme de Bianchi mostra é como existe a procura por um “retorno do
investimento”, utilizando as expressões e termos, compartilhados do jargão
do mundo dos negócios, que não deixam dúvida de que se trata de um
empreendimento com fins lucrativos, ainda que o discurso apregoado indique
74
o caminho contrário. Sérgio Bianchi utiliza, assim, uma tática inversa para
mostrar essa contradição, isto é, encena uma reunião de negócios para
apontar as melhores estratégias para captar fundos de investimento para o
Terceiro Setor. Em nenhum momento, as crianças desassistidas, que
deveriam ser o alvo principal dessa ação, aparecem na fala dos personagens
envolvidos, a não ser como peças que servem para compor um cenário que
ofereça retorno aos envolvidos. As crianças, sugere o gestor que preside
aquela reunião, não podem aparecer daquela forma, tristes e abatidas. É
preciso “depoimentos otimistas, depoimentos emocionados”.
A ironia na cena está exatamente no fato de que Bianchi decompõe o
discurso das ONGs, transformando-o em um diálogo cujo objetivo central é a
busca pelo retorno, a fim de que a instituição ali representada pelo
personagem Dom Elísio possa continuar a receber tais investimentos. Aos
poucos, as cenas do filme vão compondo o grande painel idealizado pelo
diretor. Para tanto, a cena seguinte é fundamental.
Marta Figueiredo, personagem vivida pela atriz Ariclê Perez, reúne
crianças no alto de um morro, na periferia de São Paulo31. De forma bastante
ágil, ela dá ordens para que os brinquedos sejam distribuídos e para que as
crianças se juntem para uma foto. Há um nítido contraste aqui: as crianças
estão resignadas e bestializadas 32 , sem entender muito bem o papel que
cumprem ali. Mesmo assim, Marta Figueiredo parece à vontade e se localiza
no centro da cena. Nesse momento, uma voz em over interpreta o significado
daquela imagem que está sendo registrada:
31
Supõe-se que seja a periferia de São Paulo porque o filme “Quanto Vale ou É Por Quilo” (2005) traz no seu
registro imagético elementos da capital paulista; poderia, no entanto, ser qualquer grande capital brasileira.
32
Tomo emprestado o termo “bestializado” do livro do historiador José Murilo de Carvalho (1988), “Os
Bestializados”, que, por sua vez, problematiza a expressão que teria sido usada pelo defensor do movimento
republicano no Brasil, Aristides Lobo. Para Lobo, a população brasileira assistiu “bestializada” à proclamação da
República, não tendo participação ativa nesse importante processo político em 15 de novembro de 1889.
75
LOCUÇÃO (VOZ OVER)
Doar é um instrumento de poder. A superexposição de seres humanos em
degradantes condições de vida... faz extravasar sentimentos e emoções.
Sente-se nojo, espanto, piedade, carinho, felicidade... e, por fim, alívio. E
ainda faz uma boa dieta na consciência.
Com efeito, o que se tem nesse trecho não é apenas o contraste entre o
o discurso e a imagem (a efetivação, portanto, da ironia do ponto de vista da
realização audiovisual), mas, também, a demonstração de uma das teses de
Sérgio Bianchi sobre o verdadeiro objetivo do voluntariado. Interessante
observar que essa voz over se distancia das ouvidas anteriormente. Logo,
existe essa preocupação em destacar outra voz para enunciar esta asserção
sobre o mundo. A tese aqui é apresentada como revelação resultante dos
fragmentos anteriores; nesse sentido, em vez de parecerem descolados,
esses trechos se articulam porque concorrem para o mesmo objetivo, a
saber: demonstrar o quão perverso pode ser a prática assistencialista. Do
ponto de vista da imagem, esse discurso se articula na maneira que o
realizador compõe a cena. Note-se que Marta Figueiredo ajusta as crianças
para a foto a fim de que elas sirvam ao propósito de figurar como elementos
de outra maquinação – numa cena que remete à passagem inicial de “Quanto
Vale ou É Por Quilo?”. Outro ponto interessante: quando a voz em off
assinala que “doar faz uma boa dieta na consciência”, Marta Figueiredo dá
um suspiro de alívio.
Em seguida, Marta Figueiredo aparece em outra cena, agora na
empresa de Marco Aurélio, a Stiner, onde é recepcionada pelo gestor que
anuncia boas notícias das campanhas sociais. Marta Figueiredo, então,
reafirma seu compromisso e seu engajamento para com a causa social. E
nesse momento ela observa:
76
MARTA FIGUEIREDO: Uma vez por semana, eu acordo às 5 horas da
manhã... pego meu motorista e recolho donativos para as crianças pobres.
Sim, porque se os que têm fizessem um pouco pelos que não tem... Não é
verdade?
É interessante atentar para o fato de que nessa breve conversa existe
um eco de uma fala que se tornou consenso por aqueles que advogam o
auxílio aos mais desassistidos (“se os que têm fizessem um pouco pelos que
não têm...”). E, com efeito, Marta Figueiredo não se sente incomodada com
essa ação e parece realmente acreditar na sua ação de boa vontade; a
concepção da cena por Bianchi, todavia, evidencia a perversidade subjacente
nesse discurso – e isso desde o fato de o motorista de Marta Figueiredo se
colocar atrás dela como um serviçal, carregando as doações até as
expressões de Marco Aurélio, que ouve aquele discurso “politicamente
correto” sem reagir à altura, ficando insensível à suposta profundidade
daquelas declarações. Para ele, trata-se de mais uma encenação; o trâmite
que realmente interessa é o que envolve a arrecadação de recursos ou a de
conquistas de novos clientes. Marta Figueiredo é interessante para ele e para
a Stiner não pelo que ela fala, mas, essencialmente, pela visibilidade que sua
participação – enquanto esposa de um empresário rico e importante – traz à
Stiner.
Marta Figueiredo ainda aparece em outra cena do filme, desta vez
lamentando a não-participação de seu marido, João Paulo (que é apenas
citado no filme), nas iniciativas do voluntariado. Mais uma vez, seu discurso é
ilustrativo acerca do que realmente significa, na lógica de Bianchi, o
instrumento de doar, uma vez que ela afirma que a prática eleva o espírito.
Nessa cena, a representante da ONG “Projeto Alegria”, personagem vivida
pela atriz Joana Fomm, reitera as vantagens desse projeto, cujo objetivo é
77
oferecer aos doentes de câncer a oportunidade de realizar seu último desejo
– hospedando-se em hotéis de luxo, com direitos a três refeições ao dia e a
passeio33. O que chama a atenção nesta cena é o fato de, mais uma vez, os
miseráveis,
que
são
alvos
dessa
iniciativa,
estarem
visivelmente
constrangidos, não sabendo sequer, como o filme indica, o momento ou a
maneira como devem pegar nos talheres naquele restaurante tão sofisticado.
Num local à parte daquele mesmo restaurante, um jornalista faz uma
denúncia grave: o dinheiro que Marta Figueiredo utiliza para as ações do
voluntariado, na verdade, têm como objetivo “lavar o dinheiro” e ainda servir
para isenção fiscal. Porque se trata de um discurso engajado, surge aqui um
resquício de embate ideológico à moda antiga na fala do amigo de Arminda,
vivida por Ana Carbatti: “é a direita faturando em cima da permanência da
miséria”.
3.3 O ressentimento como motor para o sucesso
Marta Figueiredo é uma das personagens que pertencem a esse
mosaico que se relaciona a partir do universo do voluntariado. Todavia, em
que pese o espaço dado a ela até aqui, sua participação não é tão destacada
assim na trama do filme. Pode-se mesmo afirmar que se trata de
personagem secundária. Mais em evidência do que ela está Mônica
(personagem de Cláudia Mello), mesmo nome da personagem de Machado
de Assis no conto “Pai contra Mãe”34. Mônica vai aparecer no filme numa
33
Menciono essa cena em especial porque de fato existe uma ONG, a Make-A-Wish, cuja “missão é a de realizar os
desejos de crianças que têm suas vidas ameaçadas por doenças graves”, conforme texto disponível no site da
instituição - http://makeawish.org.br/quem-somos/missao/, acesso em 15 de novembro de 2012 . A despeito da
semelhança entre as duas instituições, no roteiro oficial do filme “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, não existe qualquer
informação a respeito.
34
Como se verá adiante, Sérgio Bianchi utilizará os nomes dos personagens principais do conto em sua
apropriação. Assim, tal como na narrativa de Machado de Assis, em “Quanto Vale ou É Por Quilo?” o espectador vê,
além de Arminda e Mônica, Candinho e Clara.
78
cena em que as ações para o voluntariado estão acontecendo em alta
madrugada na cidade de São Paulo. Ela é comandada por Noêmia,
responsável por uma instituição cuja ação, empreendida naquele instante, é a
de oferecer comida aos moradores de rua35. Na sequência da cena, Mônica
avista Candinho, que será seu futuro genro. Candinho está trabalhando como
catador de lixo, mas não demonstra tanta habilidade assim com a ocupação,
pois, no momento em que o espectador o vê trabalhar, ele não consegue
lançar um saco de lixo no caminhão sem que todos os dejetos caiam na rua,
e o saco plástico fique em sua mão. A cena é ilustrativa e, em certa medida,
resume o caráter e a personalidade de Candinho, em outra apropriação do
conto de Machado de Assis36. Ao lado de Mônica, outra personagem chama
a atenção desta para o fato de Candinho não dispor de recursos para poder
sustentar a família, muito menos dar a festa de casamento. Mônica retruca,
áspera, lembrando que a interlocutora era doméstica. Esta, por sua vez, diz
que essa condição durará pouco tempo. Mônica, então, rebate a colega de
trabalho voluntário de forma enfática:
MÔNICA: Pois saiba que o Candinho é um cara muito do legal, viu? E vai ter
festa, sim. E vai ser uma festa alegre e bonita. Nós vamos ser uma família
alegre. Você vai ser convidada. E Dona Noêmia com os filhos.
E nesse momento a cena dá lugar para outra cena, que se faz reparar
já pelos letreiros que ganham a tela: “Vencendo com o social”. Logo após o
aparecimento desse letreiro, uma locução
(voz
over) apresenta a
35
Nesta cena em particular, a personagem Noêmia disputa espaço com outros interessados em praticar o
voluntariado. Ao ver que outro automóvel encosta próximo de onde sua equipe pretende fazer a distribuição de
comida, ela rechaça a presença deles ali: “Ei, ei, ei, eu cheguei primeiro, esse pedaço é meu! Você quer fazer o
favor de ir embora? Embora?!” Ainda que soe exagerado, a cena em questão guarda relação com dados do nosso
tempo. Explica-se: reportagem publicada em setembro de 2010 pela “Revista São Paulo”, encartada no jornal Folha
de S.Paulo, noticiava que existem ONGs em São Paulo que promovem concorridos processos de seleção e
realizam, inclusive, treinamento para os interessados.
36
Em “Pai contra Mãe”, o narrador mostra que Candinho tinha um defeito grave: “não aguentava nem emprego, nem
ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava de caiporismo”.
79
personagem de Mônica em outro contexto. O trecho está reproduzido a
seguir:
LOCUÇÃO (VOZ OVER)
Mônica Silveira, paulista, 47 anos... Vivia angustiada. Trabalhava em dois
empregos e mesmo assim, ganhava pouco. Mas o drama de Mônica não era
apenas o bolso vazio. Era a dignidade esvaziada. O estalo de consciência
ocorreu... Quando a miséria gritante a encarou frente a frente. Nesse
momento, percebeu a missão que teria de cumprir. E ela seguiu, patrocinada
apenas por sua própria vontade. Mônica não desistiu. Tanto batalhou que
conseguiu fundar sua própria associação. Hoje, graças ao seu
trabalho...Muita gente que antes era desocupada... Agora tem razão para
viver. Os desempregados abandonam o ócio em prol da comunidade.
Mônica sempre ouviu dizer que a vingança... é um prato que se come frio.
Mas com o trabalho na associação... Descobriu que o altruísmo é um prato
muito mais saboroso. Enfim, Mônica conseguiu provar que com
energia e coragem... Tudo é possível. Para Mônica, viver de solidariedade...
é o maior aprendizado que a vida pode dar.
Importante frisar que a referida passagem acima é acrescida de alguns
depoimentos que Mônica concede olhando diretamente para a câmera, como
se tratasse de uma reconstituição em formato de reportagem institucional.
Além disso, o roteiro destaca que esse trecho é um tipo de sonho que Mônica
tem acerca de seu próprio futuro, uma espécie de epifania ou visão do que
está guardado para ela no futuro. Nesse cenário, ela aparece como uma
empreendedora de sucesso, que venceu com o social, superando não
somente a sua antiga patroa (Noêmia aparece nesse breve sonho
concedendo um depoimento abonador a respeito de Mônica), como a excolega que aparece sendo uma das auxiliadas pela associação comandada
por Mônica. Na cena em que essa ex-colega aparece, a voz do narrador
enfatiza, após uma pausa grave: “Mônica sempre ouviu dizer que a
vingança... é um prato que se come frio. Mas com o trabalho na associação...
Descobriu que o altruísmo é um prato muito mais saboroso”. O sabor do
prato em questão é a ex-colega sendo ajudada por Mônica a tomar sopa,
80
pois está com dificuldades motoras – talvez fruto de um derrame ou doença
mais grave – e não consegue fazer nada sozinha.
Entre os vários aspectos que poderiam ser comentados a respeito
dessa cena, dois são elementares a propósito do efeito de sentido provocado
pelo filme. De um lado, como o próprio texto da locução sugere, existe a ideia
de ressentimento atrelada ao sonho de ascensão social de Mônica. Isto é, a
personagem deseja, sim, melhorar de vida, mas acima de tudo anseia pelo
dia de sua redenção, que significa, em termos claros a partir do sonho, em
poder mostrar que também é capaz de subir na vida, exibir seu sucesso e
servir de exemplo para os demais membros da comunidade. Em síntese,
Mônica, como produto de um meio marcado pela imagem e pela sociedade
do espetáculo, quer parecer-ter. A propósito disso, em livro memorável,
porém pouco lembrado hoje em dia, o pensador Gilberto Dupas escreveu a
respeito da ansiedade provocada por essa necessidade de status. Publicado
em 2003 “Tensões Contemporâneas entre o Público e o Privado” reforça o
papel da sociedade do espetáculo no imaginário da sociedade global. Mais
recentemente, o escritor peruano Mario Vargas Llosa articula postulado
semelhante, ao comentar a presença do entretenimento e de certa histeria
em torno das celebridades no livro “La Civilización del espetáculo”, publicado
ainda em 2010 – e sem tradução no Brasil. Nesse sentido, seus gestos, seu
discurso e seu desejo de ascensão revelam o ressentimento inerente à sua
condição, algo que efetivamente só pode ser extravasado por um sonho37.
De outra parte, também é possível ressaltar o modo como o diretor
37
No material extra do DVD de “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, a psicanalista Maria Rita Kehl, autora de um livro
sobre o tema (“Ressentimento”, 2011), lança hipóteses para revelar o significado desse ressentimento. Segundo a
autora, trata-se de uma reação à condição social percebida como imutável pelas classes subalternas, de modo que
a única forma de superação passa a ser a exposição daqueles que estão aparentemente a salvo dessas condições
precárias a um contexto de igual ou pior perversidade. Adiante, voltarei a esse depoimento, que ainda tem algo a
dizer a respeito do filme.
81
estrutura essa epifania. Trata-se, nesse caso, de uma construção que atende
a um objetivo específico deste filme. Assim, como que para dar espaço à
imaginação fértil de Mônica para escapar de sua condição subalterna, o
realizador desenvolve um filme protodocumental dentro de um filme de
ficção. Para o espectador, é preciso salientar, esse trecho em que Mônica
aparece como protagonista lembra muito as narrativas triunfalistas que
destacavam as ações de empreendedores sociais, aos moldes do “Gente que
faz”, que durante anos esteve em cartaz na TV Globo antes do “Jornal
Nacional”, sempre aos sábados.
Sobre essa troca de gêneros no meio do filme, João Luiz Vieira,
estudioso da obra de Sérgio Bianchi, atenta para o fato de que o realizador
mostra para o público como esses gêneros são, conforme palavras do
pesquisador, “artificialmente divididos” (VIEIRA, 2010). Sendo assim,
sustenta Luiz Vieira, é possível ver o filme como documentário e ver esse
documentário como uma ficção. O pesquisador acrescenta, ademais, que
nesta cena em especial é possível ver os personagens olhando para a
câmera, reproduzindo a estética documental canônica, simbolizada, afinal,
pela voz over masculina, a voz de Deus. Em seu comentário, João Luiz Vieira
observa que o próprio cinema de Bianchi, nesse contexto, está sob a mira de
sua crítica, uma vez que o autor decompõe a encenação, evidenciando as
muitas formas do falso nesse protodocumentário.
Já no roteiro oficial do filme, os autores assinalam a singularidade da
cena a partir de sua explicação:
A apresentação do personagem de Mônica é reforçada
através de seu sonho de futuro, seu imaginário de ascensão
social. É um dos trechos do filme que incorpora outras
82
linguagens para, através da paródia, criar distanciamento e
despertar reflexão. No caso é a linguagem de um institucional
na linha ‘Gente que Faz’. (BIANCHI et al., 2008, p.73)
Ao mesclar gêneros e formas possíveis, destacando a epifania de
personagens como manifestações audiovisuais consagradas (no caso, de
documentários), Bianchi estabelece um formato sui generis que não somente
demarca seu estilo, como também ajuda a reforçar sua tese sobre o tema
retratado em seu filme. Essa mescla de formatos pode ser classificada como
tempestade de gêneros e, com efeito, não aparece apenas uma vez neste
filme de Sérgio Bianchi38.
O elemento-chave aqui é que essa tempestade de gêneros não é um
desdobramento da estética cinematográfica pós-moderna, como que uma
piscadela
do
diretor
para
a
suscetibilidade
das
formas
na
contemporaneidade. Serve, antes, ao propósito do autor para reafirmar seu
ponto de vista e sua tese do ponto de vista audiovisual. E isso fica tão ou
mais evidente no segmento histórico do filme “Quanto Vale ou É Por Quilo?”.
3.4 Relatos do Arquivo Nacional
Em paralelo à história sobre as ONGs, outra narrativa emerge em
“Quanto Vale ou É Por Quilo?”. Em verdade, uma definição possível para
esse segmento do filme é a de um conjunto de relatos baseados em
documentos oficiais extraídos do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro 39. Tudo
isso porque esse segmento não dispõe de uma história com desenvolvimento
38
A expressão “tempestade de gêneros” apareceu, pela primeira vez, em trabalho desenvolvido na exposição de um
seminário para a disciplina Tendências das Formas nos Meios de Comunicação Contemporâneos, ministrada pela
profa. Dra. Bernadette Lyra, no segundo semestre de 2011. Na ocasião, utilizei como referência essa mesma cena
comentada aqui nesse trabalho. Em outubro de 2011, apresentei, no VII Encontro Científico da Universidade
Anhembi Morumbi, um trabalho sobre essa ideia de “tempestade dos gêneros”.
39
Mas também esses documentos sofreram alguma adaptação, especialmente no tocante à sua extensão para que
coubessem nos filmes. No roteiro oficial do filme, os textos originais estão disponíveis na íntegra.
83
contínuo ou linear. Aprofundando um modo de composição já esboçado no
outro segmento do filme, nesse período histórico o espectador conhece
algumas histórias da escravidão em relatos pormenorizados que davam
conta, essencialmente, das negociações envolvendo escravos. Aqui, não há
máscaras ou mistérios: o objetivo é demonstrar como se dava o lucro com
esse tipo de comércio no século XVIII40. O dado curioso do ponto de vista da
concepção desses trechos é o fato de que Bianchi, de certa maneira, amarra
essas dois momentos do filme sem que haja conexão do enredo para tanto.
Ou, por outra, o enredo em questão ganha fôlego graças ao fato de que a
mesma atriz que atua como administradora de uma das associações
filantrópicas (Noêmia) é a mesma que, no século XVIII, será mercadora de
escravos. Sua atuação, no filme, conquista um lastro histórico, capaz de
forjar no imaginário do espectador um paralelo entre as ações de mercador
de escravos e de representante das Organizações Não-Governamentais.
Importante: nos dois períodos, ambas as funções estão dentro da
permissividade legal, ou seja, não há crime por essas atuações – são usos e
costumes de cada época, escreveria Machado de Assis –, todavia, o cineasta
organiza as encenações de modo a que elas tenham não somente conexão
histórica, mas que essa combinação seja fundada na amoralidade dessas
duas atuações. Em síntese, Noêmia e Lucrécia, ambas interpretadas pela
atriz Ana Lúcia Torre, simbolizam a tese que o autor defende ao longo do
filme – esse argumento será retomado na conclusão deste capítulo.
Desse modo, esses breves relatos históricos funcionam não apenas
como variações de estilo sobre o conto de Machado de Assis, uma vez que
40
Na apresentação do filme, disponível em um dos textos de divulgação da época de seu lançamento e na
contracapa do DVD da coleção Sérgio Bianchi, o texto anuncia que o objetivo central dos senhores para com os
escravos era um só: o lucro.
84
dão continuidade à abordagem do escritor brasileiro a propósito do tema da
escravidão, mas dão conta de um olhar mais tenaz acerca desse fenômeno
social, tentando ilustrar seus usos e costumes, assim como sua contradição
com os ideias políticos propagandeados naquele tempo.
A esse respeito, vale a pena citar a análise de um importante estudioso
da obra de Machado de Assis, o crítico literário e ensaísta Roberto Schwarz,
que assina uma das interpretações mais relevantes sobre o autor de “Pai
contra Mãe”. Exemplos destacáveis dessa contribuição crítica à interpretação
da literatura de Machado de Assis podem ser vistas em “Machado de Assis,
um mestre na periferia do capitalismo” e “Ao vencedor, as batatas”. Na
década de 1970, o ensaísta publicou na revista “Novos Estudos”, o texto “As
ideias fora do lugar”, no qual desenvolve uma análise que enxerga a
contradição gritante existente em meados do século XIX no Brasil, a saber: a
mesma elite que defendia o discurso liberal – e, portanto, rechaçava a
monarquia e a presença do Estado na vida econômica brasileira – silenciava
quando o assunto era falar do trabalho livre. Esse texto de Schwarz abre um
dos livros do autor sobre Machado de Assis, exatamente porque é com as
obras do romancista brasileiro que o crítico ilustra sua tese acerca das
contradições da sociedade brasileira do século XIX. Nesse sentido, já por
esse motivo, seria um autor relevante para observar no tocante às relações
do trabalho escravo na História do Brasil.
Todavia, não é (apenas) por esse motivo que a obra de Schwarz
merece olhar atento na análise de “Quanto Vale ou É Por Quilo?”. No roteiro
oficial do filme, Newton Cannito menciona Schwarz como leitura essencial
para a apropriação que seria feita da obra de Machado de Assis, como
85
consta no trecho a seguir:
Achei importante entrar no universo intelectual do diretor.
Compreender Machado de Assis era fundamental e para
isso muito me ajudou a leitura de Roberto Schwarz.
Também entender melhor a escravidão brasileira e a
continuidade do apartheid no Brasil de hoje era
fundamental. É esse o tema que unifica nosso filme: ver
como a escravidão permanece até hoje e é imposta pela
lógica da mercadoria e da reificação do homem.
(BIANCHI et al., 2008, p.27.)
Em outras palavras, os roteiristas tomam como base não apenas a obra
de Machado de Assis, mas certa leitura da obra de Machado de Assis,
exatamente aquela que analisa os mecanismos internos da escravidão, de
maniera que isso se torna uma referência conceitual a ser desenvolvida ao
longo de “Quanto Vale ou É Por Quilo?”. As pistas para a tese que seria
construída acerca do filme estavam, a um só tempo, já elaboradas e também
constavam como repertório oriundo de relevantes debates intelectuais.
Com isso, nas cenas subsquentes desse segmento histórico, observase a reconstituição dos relatos dos documentos do Arquivo Nacional, sempre
com narração em voz over, feita pela voz de Milton Gonçalves. Nessas
reconstituições, há poucos diálogos e a encenação, do ponto de vista fílmico,
pode ser considerada “conservadora”, sem qualquer elemento novo ou de
vanguarda no tocante à sua feitura. Ainda assim, cumpre destacar o quanto o
filme consegue aliar essas duas narrativas de modo que as histórias
caminhem em paralelo concorrendo para o mesmo fim, ou melhor,
funcionando em prol da tese a ser estabelecida pelo diretor, a de que ambas
as práticas, a da escravidão no século XVIII e a da filantropia/voluntariado no
século XXI, existem com o objetivo de auferir o lucro e, subjacente a isso, são
maneiras de manutenção do status quo.
86
3.5 Entendendo a tese de Bianchi
Para discorrer um pouco mais a esse respeito, vale a pena resgatar a
cena em que a personagem Arminda conversa com o amigo jornalista, e este
revela como se dá o funcionamento da ONG como “lavanderia de dinheiro”
da empresa do marido, que é um rico empresário. Quase no final de sua
explanação, o jornalista afirma que: É a direita faturando com a permanência
da miséria.
Alguns anos antes de o filme “Quanto Vale ou É Por Quilo?” ser
produzido, o diretor Sérgio Bianchi concedeu um depoimento importante que,
como vimos, consta no livro “O Cinema da Retomada: Depoimentos de 90
cineastas dos anos 90”, de Lúcia Nagib, publicado em 2002. Nele, Bianchi
comenta sobre seu perfil intelectual e, nas entrelinhas, deixa escapar a
origem dessa crítica mordaz em relação à prática política (embora esteja
falando objetivamente de cinema), como consta no trecho a seguir:
Cada vez mais vejo as coisas como classe social
mesmo. Vejo gente de esquerda tendo atitudes que
seriam profundamente de direita. São classes sociais
defendendo seus interesses. (...) São leis que levam a
isso, que foram redigidas para liberar essa atitude. O
negócio é montar uma estrutura e superfaturar seu filme.
E daí vai-se aos diretores de marketing das empresas, às
classes altas, e procura-se limpar, lavar o dinheiro
dessas pessoas com dedução no imposto de renda.
(NAGIB, 2002, p.116.)
A partir desse depoimento, fica um tanto mais claro algumas escolhas
temáticas
por
parte
do
autor,
que
tem
como
alvo
certa
visão
condenscendente que a elite do País faz acerca dos pobres, algo que foi
elaborado de forma bastante aguda em “Cronicamente Inviável”. Já em
“Quanto Vale ou É Por Quilo?”, Bianchi direciona sua crítica ao fato de que
87
essas ações ajudam, de um lado, a perpetuar as condicões de vida
subalternas (os pobres e necessitados ajudados pelas ONGs jamais
conseguem superar seu estado de pobreza; e a elite que presta esse serviço
se encastela no poder de vez, como é o caso da personagem Noêmia, que,
assim como Lucrécia enxergava a escravidão como negócio, vê o
voluntariado como forma de expandir seus domínios e obter mais lucro).
A construção dessa tese, no entanto, não estaria completa se não
houvesse espaço para o desenvolvimento do núcleo da narrativa original de
Machado de Assis, o núcleo que envolve Candinho, Clara, Mônica e Arminda.
No segmento histórico da narrativa, esse núcleo é representado por Arminda,
a escrava grávida que fugiu de seu senhor. A sua passagem se desenvolve
durante a tentativa de fuga e captura pelo capitão do mato. No roteiro oficial
do filme, os autores observam que a narração over que acompanha a cena
tem, sim, o texto de Machado de Assis como base, porém com algumas
adaptações. Nessa reconstituição, Arminda é capturada e perde o filho,
enquanto o capitão do mato é gratificado pelo senhor de escravos pelo seus
serviços. Na narrativa que se passa no século XXI, o capitão-do-mato se
torna o matador de aluguel. Ele é o responsável por capturar aqueles que são
marcados seja por incomodarem a comunidade local com seus roubos, seja
por representarem um perigo à ordem das coisas vigente. Candinho, o
mesmo que se mostrara inapto para o trabalho manual, agora sente a
necessidade de sustentar a família que estava por aumentar41. Com efeito,
sua participação no filme ganha fôlego à medida que ele assume esse papel
41
De fato, existe uma cena em que Mônica alerta Candinho para a necessidade de procurar um trabalho para
sustentar o filho que está para nascer. A condição da família piorou depois que Mônica, ao contrário de sua epifania
inicial, foi afastada da Associação liderada por Noêmia e agora precisa preparar comida para fora para manter a
casa. O desfecho dessa tensão acontece quando Candinho assume a responsabilidade e se torna um matador de
aluguel, garantindo o futuro da família.
88
de matador de aluguel e, ao contrário das demais ocupações, não parece
hesitar na hora de matar.
Candinho representa a versão menos tensionada de outro personagem
do filme, Dido, interpretado pelo ator Lázaro Ramos. Dido vai aparecer, num
primeiro momento, na cadeia, sendo visitado pela Tia Judite. Ali, ela se
interessa em saber por suas condições de vida, sobre as quais ele
desconversa, dizendo estar bem 42. O interessante a ser observado aqui é
que Judite só consegue fazer visita ao presídio porque obtém autorização de
seus patrões – e esta, a propósito, é uma das mais formidáveis passagens de
ironia de “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, uma vez que Ricardo pergunta a
Marco Aurélio, de forma retórica e mordaz, se ele se incomoda em ver uma
velha visivelmente debilitada trabalhar como servente para a Stiner.
Mencionar a autorização é importante porque a relação entre a Stiner e
Dido logo se tornará mais estreita. Isso porque ele planeja e executa o
sequestro de Marco Aurélio, o gestor da Stiner. E a cena que mostra o
planejamento sinaliza, desde o seu início, a concepção de um crime também
como se fosse um negócio. Como observa Maria Rita Kehl, em sua análise
sobre o filme, o personagem de Lázaro Ramos utiliza do mesmo discurso e
léxico do ramo empresarial, e lida com a prática criminosa como se fosse
efetivamente um empreendimento43.
Assim, no filme, a preparação de um sequestro se transforma em uma
reunião de negócios, com o seu principal artífice (Dido) agindo como se fosse
um gestor. Na outra ponta do filme, os líderes de associações e de
42
Dido diz que está tudo bem, mas tia Judite o repreende. Ela, então, afirma que ele tem de cuidar de suas coisas.
Esse pequeno diálogo, assim como a segunda cena em que Dido aparece, é retomado por Maria Rita Kehl, nos
extras do DVD, como ilustração para análise do sentido do filme.
43
Maria Rita Kehl desenvolve essa análise no material Extra do DVD de “Quanto Vale ou É Por Quilo?”
89
instituições que trabalham em nome da filantropia são pessoas que atuam
como no mundo dos negócios. E na narrativa histórica os mercadores de
escravos são retratados como negociantes. Na percepção de Sérgio Bianchi
(tese que se consolida à medida que o filme avança), o interesse pelo lucro
associa-se aos interesses de manutenção de poder, a despeito do que dizem
os discursos – e aqui a referência à análise de Roberto Schwarz ajuda a
enfatizar a percepção entre a disparidade entre a prática e o discurso.
3.6 Como se faz uma tese
Sérgio Bianchi não é o único cineasta a desenvolver o que se pode
chamar de cinema de tese.
No caso do cinema norte-americano, por
exemplo, é possível lembrar do diretor Oliver Stone. Entre seus filmes,
marcados pela abordagem polêmica a temas sensíveis
44
, é possível
mencionar “JFK: a pergunta que não quer calar” (“JFK”), de 1991; “Nixon”
(“Nixon”), de 1995; e “Ao Sul da Fronteira” (“South of the border), de 2008. O
que esses filmes têm em comum, para além de contarem com a assinatura
do mesmo cineasta, é o fato de apresentarem retratos de lideranças políticas
e lançarem um novo olhar para as administrações dessas lideranças, assim
como para seus momentos mais controversos. Nesse sentido, chama a
atenção o fato de que Oliver Stone não busca construir um retrato
necessariamente histórico sobre esses políticos, baseados em documentos
ou textos vários. Antes, o diretor trabalha com uma visão de mundo préestabelecida sobre esses líderes, de maneira que seus filmes tão-somente
44
Pouco antes do fim da administração de George W. Bush à frente da Casa Branca, ainda em 2008, Oliver Stone
lançou o controverso “W”, filme que obteve pouca repercussão da crítica especializada e pouca aderência do
público. Pode-se dizer que o fato de ter lançado o filme sobre Bush mostra sua disposição de produzir obras sobre
temas espinhosos.
90
servem como manifestações dessas teses previamente já estabelecidas. O
cineasta norte-americano, com isso, traz nesses filmes políticos uma
concepção já acabada, ainda que essa visão soe como conspiratória ou, no
mínimo, bastante controversa. É o caso de “JFK: a pergunta que não quer
calar”, filme que apresenta um entendimento peculiar acerca das motivações
que levaram a cabo a execução do presidente John F. Kennedy em 1963. À
época do lançamento do filme, o crítico norte-americano Robert Hughes
escreveu um ensaio45 no qual se insurgia contra o fato de a obra de Oliver
Stone forjar tal consenso sobre aqueles acontecimentos históricos fazendo
com que muitas pessoas passassem a citar o filme como referência acerca
daquele acontecimento.
Indiretamente, Hughes contestava a “verdade” apresentada por Stone
nesse filme por considerá-la insuficiente como relato que efetivamente
informa o público sobre o que realmente houve em 22 de novembro de 1963.
Com outras palavras, o crítico atenta para o fato de o cineasta norteamericano condicionar os acontecimentos daquele dia à sua própria
interpretação. Pode-se afirmar que isso não se dá apenas neste filme e, mais
do que isso, o estratagema é semelhante nas outras obras de Oliver Stone
citadas acima46. O cineasta utiliza todo seu repertório audiovisual para fazer
valer sua tese a respeito desses temas.
Guardadas as diferenças entre os cineastas, é possível afirmar que
Sérgio Bianchi, em especial no filme “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, faz uso
de estratégia semelhante com o propósito de fazer valer sua leitura acerca do
45
Publicado no Brasil em 1993, o ensaio fez parte da coletânea de textos “A Cultura da Reclamação” (HUGHES,
1993); Robert Hughes morreu em agosto de 2012.
46
A propósito dessa discussão, escrevi o artigo “Algumas teses à procura de um autor, ou: certo cinema de Oliver
Stone” como trabalho de conclusão da disciplina Estética dos Meios Audiovisuais, ministrada pelo Prof. Doutor Luiz
Vadico, no primeiro semestre de 2011.
91
fenômeno da emergência do voluntariado na contemporaneidade. Para tanto,
não basta a intenção; o discurso cinematográfico a ser forjado embaralha
formas e gêneros: o documentário e a ficção, aqui, se misturam, operando
com o objetivo de levar ao espectador um discurso a um só tempo verossímil
e convincente. Afinal, pode-se perguntar o espectador, onde é que termina a
ficção e começa o documentário.
Bianchi constroi sua tese a partir de uma percepção política
desencantada, o que talvez não seja original, mas, como cineasta concebe
uma obra que percorre um caminho singular, uma vez que articula dois
gêneros no mesmo filme, gerando uma obra que, embora soe como
fragmentada, possui uma unidade interna capaz de se autoexplicar,
obedecendo a um princípio pré-estabelecido.
Se, inicialmente, o filme se apresenta como uma obra livremente
adaptada a partir de um conto de Machado de Assis, torna-se, ao fim, uma
obra mais complexa, tendo em vista que articula uma visão peculiar a
respeito da escravidão à interpretação a respeito da (verdadeira, segundo
Bianchi) intenção do Terceiro Setor nos dias de hoje. Em “Quanto Vale ou É
Por Quilo?”, seja nos momentos em que a narrativa se passa no século XVIII,
seja nos momentos em que o filme se passa no século XXI, Sérgio Bianchi
manobra os recursos à sua disposição para construir um filme que, desde o
início, enuncia sua tese – e é a respeito de seu desenvolvimento que a
narrativa gira em torno ao longo da sua exposição.
Já no encerramento deste capítulo, vale a pena mencionar a cena final
de “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, em que o o destino de Candinho, o
mesmo personagem que não era capaz de exercer outra atividade a não ser
92
a de matador de aluguel, é incumbido de ir atrás de Arminda, que agora faz
denúncias contra o esquema feito pela Stiner. Na cena em que esse
desfecho é sugerido, Ricardo é aconselhado por um colaborador a silenciar a
voz que tenta denunciar os esquemas de superfaturamento da Stiner sob o
escudo de auxiliar os mais pobres. Candinho aparece, ao fim, escondido,
aguardando Arminda entrar em casa. Assim que isso acontece, ele invade o
local e atira duas vezes. E a cena final mostra a redenção de Candinho,
finalmente com dinheiro para sustentar a família
47
. Logo após essa
comemoração, a imagem congela com uma foto e a voz over do narrador
aparece, com os dizeres que ecoam o texto do conto de Machado de Assis:
LOCUÇÃO (VOZ OVER)
Como recompensa pela escrava fugida o capitão do mato pode agora criar
seu filho. Alimentá-lo e educá-lo com dignidade e liberdade.
Há, todavia, uma versão alternativa para o desfecho do filme – cena que
consta no DVD e que também existia na versão para o cinema. O trecho traz
o mesmo Candinho invadindo a casa de Arminda, com o objetivo de
assassiná-la, até que ela o desafia e questiona o que ele deseja. O diálogo é
ilustrativo dessa visão desencantada sobre o ambiente que serve como tema
para o filme. De acordo com o roteiro oficial, a cena seria a seguinte:
ARMINDA
O que é que você quer? Grana? Por que se é grana, eu sei como conseguir.
O dinheiro do Ricardo eu sei como conseguir. Eu posso conseguir os códigos
das contas dele. A gente divide. Eu sei como pegar ou é só violência? Porque
se é só violência, tudo bem também. Você mata, arrebenta a cara aquele
filho da puta. Arranca uma orelha, arranca um dedo também.
Candinho abaixa a arma, e Arminda prossegue:
ARMINDA
47
Na continuidade dessa cena, enquanto Mônica celebra o dinheiro recebido por Candinho, Clara se regojiza e
assevera: “Aí, sim, Candinho, agora, sim, você é o homem que eu queria!”
93
A gente pega o dinheiro do Ricardo e só pra começar monta uma central de
sequestro, assim, tipo filme americano. Não é só pelo dinheiro, não. Não. A
gente acaba com tudo que é filho da puta que rouba do Estado.
O trecho em questão não guarda qualquer relação direta, a não ser pelo
nome dos personagens, com o conto de Machado de Assis. Todavia, é justo
estabelecer um diálogo possível entre esse desfecho e o encerramento de
outro texto sobre violência, o conto “O Cobrador”, de Rubem Fonseca.
Publicado em 1979, a obra de Fonseca guarda para o final um desfecho onde
o ressentimento surge como espécie de alternativa ideal para os que têm
sede de justiça e acusam o outro como culpado de suas mazelas. No caso de
“Quanto Vale ou É Por Quilo?”, o fato de o autor conceber um final
alternativo 48 mostra, de um lado, que a outra saída pode ser mais ainda
desastrosa do ponto de vista social e, de outro, que a versão oficial corrobora
a tese política – pessimista – do autor.
Desse modo, o projeto cinematográfico de Sérgio Bianchi – por vezes
fragmentado, mas esteticamente bem elaborado – se articula à visão de
mundo proposta em seus filmes.
A tese, assim, consegue sobressair
exatamente porque o autor concilia esse argumento a um formato envolve
seus filmes de maneira consistente.
48
No roteiro oficial, os autores informam que um terceiro final, ainda mais “irônico”, foi pensado, no qual os
responsáveis pelas ONGs e associações eram premiados; Judite, a funcionaria da Stiner, aparecia sacando uma
quantia de 500 mil reais em seu nome durante a passeata do Fórum Social Mundial; a socialite Marta Figueiredo
aparecia sangrando, sob a mira de armas. De acordo com os autores, esse final não foi produzido por falta de
recursos.
94
4. Considerações finais
Quando, há dois anos, este trabalho começou a ser elaborado, ainda
nos trâmites de um esboço de projeto de pesquisa, o objetivo era tão
somente buscar interpretação que fosse coerente no tocante à crítica
produzida pelo cinema de Sérgio Bianchi, enfrentando, especificamente, a
obra “Quanto Vale ou É Por Quilo?”. Havia, ali, o interesse genuíno em
observar mais de perto a maneira como Bianchi estabelecia uma crítica à
sociedade ao atacar o consenso poderoso das Organizações NãoGovernamentais, que, com o auxílio do governo, operavam em áreas que o
Estado havia deixado de atuar. Naquele primeiro momento, portanto, meu
objeto de pesquisa – a obra de Bianchi – servia apenas como um escape
para o que me parecia a grande questão a ser tratada, a crítica social pelo
viés que acusava os agentes do bem de atuar em benefício próprio, sem
verdadeiramente se importar em melhorar as condições de vida daqueles
necessitados. Na desesperança audiovisual de Sérgio Bianchi, eu observava
uma crítica legítima ao status quo e ao establishment politicamente correto.
Ao longo da pesquisa, no entanto, fui envolvido por outra discussão.
Na verdade, à medida que pude pesquisar acerca da obra de Sérgio Bianchi,
percebi que a questão que se apresentava como primeira – no caso, a crítica
política – ficou em segundo plano, perdendo espaço para o discurso
cinematográfico desse diretor. Pude, com isso, perceber o quanto os
elementos centrais do filme de Bianchi já estavam, de certa maneira,
ensaiados em suas outras obras – tanto do ponto de vista formal (da mistura
dos vários fragmentos e alguma experimentação dos primeiros filmes à
95
estruturação mais consciente dos efeitos de sentido que o diretor pretendia
causar, passando, amiúde, pelas adaptações, como em “A Causa Secreta” e
“Quanto Vale ou É Por Quilo?”, ambos os filmes livremente inspirados na
obra de Machado de Assis) quanto do ponto de vista do conteúdo dos filmes
(nesse caso, vale a pena mencionar que, em filmes como “Maldita
Coincidência”, a indignação por vezes atinge o extremo de o personagem
sugerir que a saída é o terrorismo49).
Aos poucos, a questão da crítica social perdeu espaço, assim, para a
ideia de um cinema de tese. Tal concepção ganhou força à medida que as
leituras a propósito da obra de Bianchi foram sendo realizadas. As pesquisas
citadas ao longo dessa dissertação contribuíram não somente porque
serviram como referência de trabalhos já elaborados sobre o diretor, mas,
essencialmente, porque efetivamente agregaram um entendimento mais
complexo da obra de Bianchi50. Ao contrário do que imaginava incialmente,
foi a partir da discussão desse discurso cinematográfico que se tornou
possível entender a tese de Sérgio Bianchi.
E aqui chegamos ao ponto-chave: o discurso cinematográfico de
Sérgio Bianchi articula uma tese que serve como leitura às avessas do
sentido de Brasil.
Essa interpretação é possível porque o autor organiza “Quanto Vale ou
É Por Quilo?” não com o propósito de buscar acomodação ou apaziguamento
entre as diferentes classes sociais; em vez disso, retomando elementos ou
mesmo tópicos desenvolvidos em outros filmes – como a crítica ao
49
Em “Maldita Coincidência”, o personagem interpretado por Sérgio Mamberti sugere uma espécie de solução final;
assim, o personagem ensina a produzir coquetel molotov.
50
A propósito, vale a pena ressaltar, e lamentar, o fato de não ter conseguido acesso à dissertação de Cezar
Migliorin, “Cronicamente Inviável, um cinema terrorista” (2001). Quando contatado, o autor do trabalho afirmou não
contar com uma cópia eletrônica da dissertação, de maneira que ela só estava disponível, impressa, na UFRJ.
Infelizmente, não foi possível realizar, em tempo hábil, a visita in loco à UFRJ para conseguir acesso ao texto.
96
assistencialismo, o discurso dominante da esquerda e a falta de sensibilidade
e de solidariedade da elite para com as classes sociais mais baixas –,
Bianchi investe num contraponto ao comentário pré-fabricado acerca dos
problemas brasileiros. Seu alvo não se restringe apenas à classe média
burguesa, à elite econômica e aos donos de poder. Em seus filmes, também
as classes subalternas são golpeadas pelo seu “cinema-faca”, para utilizar a
expressão de João Luiz Vieira (2004), uma vez que o cineasta disseca os
instintos primitivos do ressentimento dessa classe subalterna, que muitas
vezes se sujeita aos desmandos de uma elite sem consciência e
aproveitadora para, quem sabe um dia, poder aproveitar das possibilidades
de ela mesma pertencer a essa classe dominante.
Bianchi observa os mecanismos internos dessas formas de dominação
de maneira mais consistente nos filmes “Cronicamente Inviável” e em
“Quanto Vale ou É Por Quilo?”. É interessante observar o quanto do segundo
já existe no primeiro: desde a fragmentação das histórias, acontecendo
quase de maneira independente de uma história linear, com começo-meio-efim, até o uso acentuado do recurso da ironia. Sobre isso, em “Quanto Vale
ou É Por Quilo?”, a ironia é parte integrante do discurso que critica as ONGs.
Num cenário em que a premissa é a do auxílio ao próximo, na percepção de
Bianchi os pobres servem como inocentes úteis, como mercadoria de troca
possível para a manutenção da ordem política e, principalmente, da condição
econômica daqueles que prometem auxiliá-los. Essa classe subalterna, por
sua vez, tenta escapar a essa condição pelo uso da violência – e no filme
isso fica claro pelo personagem de Lázaro Ramos, Dido, que planeja e
executa um sequestro, utilizando a mesma linguagem de um empresário ao
97
prospectar um novo negócio. É aqui que a chave da ironia como instrumento
de crítica ganha força, uma vez que, na percepção de Bianchi, existe
equivalência entre o comércio de escravos, a ação do Terceiro Setor e, no
limite, a ação criminal, cuja abordagem no filme é a do sequestrador e a do
matador de aluguel.
Em “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, Sérgio Bianchi não apenas
corrobora sua tese num sofisticado mosaico de gêneros – ora remetendo ao
documental, ora pendendo para a narrativa histórica, ora na encenação, ora
na narrativa de bastidores de um filme publicitário 51 . Ao mesclar essas
formas, em uma espécie de tempestade de gêneros, Bianchi concebe a tese,
a um só tempo iconoclasta, crítica e distópica, sobre o Brasil. Uma
interpretação que atinge a visão idílica e supostamente cordial da sociedade
brasileira, contrastando com o discurso do senso comum sobre o clima de
apaziguamento e de ausência de conflitos da população.
Bianchi procura demonstrar, assim, que o “concerto do ressentimento”,
conforme observou Ismail Xavier (2002) em artigo sobre “Cronicamente
Inviável”, resultou numa sinfonia cujo final feliz não é possível, haja vista que
os desfechos aparecem como alternativas que referendam esse futuro sem
utopia, um não-lugar para as narrativas redentoras da modernidade. Nesse
sentido, a pós-modernidade a princípio seria o esteio teórico fundamental da
obra do diretor; todavia, para além dessa referência conceitual, existe a
manifestação desse discurso cinematográfico. Em outras palavras, tão ou
mais importante do que Sérgio Bianchi tem a dizer, interessa do ponto de
51
Vale a pena mencionar, aqui, o comentário de João Luiz Vieira, nos extras do DVD de “Quanto Vale ou É Por
Quilo?”, quando o autor observa que Bianchi estabelece um tipo de filme que desmonta a própria encenação,
quando apresenta os bastidores de uma filmagem. Esta cena em questão mostra uma espécie de sonho acordado
da personagem de Mônica, interpretada por Cláudia Mello, que imagina o dia em que será rica e alcançará sucesso.
98
vista autoral a forma da qual ele se utiliza para enunciar seu discurso. E mais:
tal discurso não teria a mesma contundência não fosse o recurso sistemático
da ironia e a tempestade de gêneros utilizados pelo autor para manifestá-lo.
Um cinema de tese, enfim, mas cuja mensagem se confunde com a
forma: não há certezas no discurso do prodocumentário; desconfia-se dos
reais motivos daqueles que agem em nome dos necessitados; o relato
histórico mostra a perversidade da relação do comércio de escravos; num
mundo em que o grande projeto é a busca pelo status, matador de aluguel e
sequestrador se transformam em ocupações do seu tempo, assim como o
capitão do mato era o ofício do período da escravidão. Os tempos são outros,
e o que mudou foram os instrumentos de dominação. Disso trata o cinema de
tese de Sérgio Bianchi.
99
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QUANTO Vale Ou É Por Quilo. Direção: Sérgio Bianchi. Versátil: 2005. (108
min.)
103
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