19-09-2014 | Ípsilon
SÉRGIO CADDAH
ID: 55781323
Um corpo
preto para
combater o
medo
do outro
O brasileiro
Marcelo Evelin
regressa a Portugal
com De repente
fica tudo preto de
gente, coreografia
para cinco
bailarinos e muitos
espectadores que
fará escala no
Festival Materiais
Diversos, em
Minde, em Lisboa
e no Porto.
Tiago
Bartolomeu
Costa
Tiragem: 37998
Pág: 18
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Semanal
Área: 27,52 x 31,97 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 4
ID: 55781323
19-09-2014 | Ípsilon
Tiragem: 37998
Pág: 19
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Semanal
Área: 26,67 x 31,26 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 2 de 4
D
e Teresina, no Nordeste
brasileiro, a Quioto, no
centro do Japão, vão 16.688
quilómetros. É uma distância mais pequena do que
aquela que pode existir entre os espectadores de De repente
fica tudo preto de gente, que começa
hoje, no Festival Materiais Diversos
(Minde, Fábrica de Cultura), uma
digressão nacional com escalas em
Lisboa (Teatro Maria Matos, dias 23
e 24) e Porto (Rivoli). É o regresso a
Portugal de Marcelo Evelin, coréografo que viveu durante 20 anos na
Europa e depois regressou ao Brasil
para repensar o que ainda valia a
pena dizer sobre o que é viver em
conjunto e olhar para aquele outro
de quem à partida temos medo.
As primeiras imagens de De repente fica tudo preto de gente surgiram
em 2012 em Quioto, onde Marcelo
foi apresentar Matadouro (que vimos um ano antes em Lisboa, também no Teatro Maria Matos). “Olhava para aquelas massas de 500 pessoas, uma afluência incrível.
Ninguém se tocava, ninguém tropeçava em ninguém.” Para o coreógrafo estava encontrada uma metáfora
para compreender o sentido de reserva e de pudor que conforma,
ainda hoje, a secular sociedade japonesa. “Há sempre uma distância
entre um corpo e outro, mesmo que
as distâncias sejam curtas”, diz. Assim, o trabalho começou por tentar
perceber como podia um corpo estar junto a outro e não se relacionar
com ele.
Da leitura do livro do Prémio Nobel da Literatura Elias Canetti Massa
e Poder (1960) apareceram outras
imagens que lhe permitiram criar
reflexões (e movimentos) sobre as
questões do poder, do corpo, da
massa, do mal, da hierarquia, do
abandono da identidade.
“Como é que as pessoas ficam juntas? Como é que se pode conseguir
uma densidade, uma massa que crie
o menor espaço possível entre as
pessoas?” Estas são perguntas que
atravessaram os vários meses de
As primeiras
imagens de De
repente fica tudo
preto de gente
surgiram a Marcelo
Evelin em Quioto:
“Olhava para
aquelas massas
de 500 pessoas.
Ninguém se
tocava, ninguém
tropeçava
em ninguém”
trabalho de Marcelo Evelin. Até já
não ser preciso esperar pelas respostas. “O movimento de massas
pode dar-se de diferentes formas,
mas a única possibilidade de lá chegarmos é [disponibilizar] o corpo
para estar com o outro, completamente ligado, no menor espaço possível. É preciso desfazer esse medo
que faz com que se criem relações
individualistas com o nosso próprio
corpo. Este meu corpo também é o
teu corpo.”
Cercados pelos espectadores, sem
se saber se são presas ou caçadores,
se são meros observadores de outros observadores, os bailarinos de
De repente fica tudo preto de gente,
nus e pintados de preto, vão reduzindo a pó as hierarquias de espaço,
de tempo e de presença que costumam construir as coreografias em
cima de um palco. “Queria tirar as
pessoas dos seus lugares”, diz ao
Ípsilon Marcelo, para quem o movimento desta peça é, em si mesmo,
uma “coisa indefinida”, que experimenta o encontro através do toque.
Semanas antes da estreia em
Quioto, a preocupação tomou conta do coreógrafo. Uma das bailarinas
que havia sido escolhida na audição
japonesa resumiu aquilo que o espectáculo era: “Gente nua, gente
suja e gente que se toca, tudo coisas
de que os japoneses têm medo.” A
reacção foi o oposto daquilo que
Marcelo Evelin poderia temer. Houve beijos na boca dos intérpretes,
houve abraços, houve aquilo que o
coreógrafo chama de “verdadeiro
encontro” que é, afinal, a entrega
do corpo ao outro.
Se Elias Canetti descrevia a massa
como “fenómeno enigmático e universal”, os corpos que constituem
a massa de De repente fica tudo preto de gente são o acumular das tentativas de resposta ao vazio que, por
vezes, a presença do outro pode
criar. Marcelo chama-lhe “pretume”, como se a cor no corpo criasse
um enorme buraco negro no qual
se entra. No programa escreve-se
que “o espectáculo investiga a massa como o pressuposto do comum
numa multidão de singularidades.
Uma massa que quer crescer e investe na descarga como modo temporário de indistinção, num corpoa-corpo sem violência e sem trégua”.
O que isto significa é que os corpos
constroem, a partir de um desejo de
abandono, uma nova ordem social
que já não é nem hierárquica nem
finita, como se a coreografia se recusasse a impor-se.
“O preto permite a invisibilidade
e é essa invisibilidade que determina o tempo e o modo da coreografia”, explica Marcelo Evelin. Pintados, os intérpretes são despojados
da sua identidade e forçam a recusa
de um discurso sobre o multiculturalismo. Mas não são só as diferenças entre os bailarinos que são apagadas, uma vez que os espectadores
são também eles convidados a abandonar a sua posição de observadores. Em cima do palco, bailarinos e
espectadores definem em conjunto
o tempo da coreografia, quando não
mesmo a própria coreografia
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19-09-2014 | Ípsilon
— Marcelo Evelin propõe assim, como já havíamos visto em Ai, Ai, Ai,
de 1995 (apresentado pela Fundação
de Serralves no início deste ano), e
Matadouro, uma relação de cumplicidade entre o corpo do bailarino e
o corpo do espectador. Mas agora,
e porque é um espectáculo onde
praticamente não se vê nada, o perigo — que é também aquilo que De
repente fica tudo preto de gente tem
de mais fascinante — está no modo
como nos deixamos levar para um
estado de transe colectivo.
O corpo de quem faz, o
corpo de quem vê
SÉRGIO CADDAH
São apenas cinco os corpos nus que
provocam — ou promovem — alterações nos cem corpos que podem
estar em palco. Ao longo dos ensaios, Marcelo Evelin e os seus bailarinos foram descrevendo esses
cinco corpos como “os primeiros
primitivos expulsos do ventre da
terra” que, numa dança tribal, fazem com que os espectadores mergulhem no desconhecido e enfrentem o medo que terão do outro. São
movimentos de impulso, gritados,
rasgados, confundindo os corpos,
definindo o espaço, perguntando se
é diferente, percebendo que é
igual.
“As vezes parece irresponsável
pensar nas possibilidade de intimidade e de movimento dos corpos
sem prever a reacção do público”,
começa por reflectir Marcelo. “Esta
massa heterogénea, que não se conhece, que está a negociar a sua
presença apesar de estar no mesmo
espaço, demora o seu tempo a encontrar o seu espaço.” Aquilo que
Tiragem: 37998
Pág: 20
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Semanal
Área: 15,95 x 31,05 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 3 de 4
“A única
possibilidade
de chegarmos
ao movimento
de massas é
[disponibilizar]
o corpo para estar
com o outro,
completamente
ligado, no menor
espaço possível.
É preciso desfazer
esse medo que faz
com que se criem
relações
individualistas
com o nosso
próprio corpo.
Este meu corpo
também é o teu
corpo”
Nus e pintados
de preto, os
cinco bailarinos
convidam os
espectadores a
mergulharem no
desconhecido
ID: 55781323
19-09-2014 | Ípsilon
Tiragem: 37998
Pág: 21
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Semanal
Área: 5,71 x 31,16 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 4 de 4
comove o coreógrafo a cada apresentação é “a paisagem que se vai
criando com o público”, que vai percebendo a autonomia que pode ter
relativamente ao movimento criado
pelos bailarinos.
Num processo semelhante à terceira parte de Piracema, de Lia Rodrigues (que passou pelo Alkantara
Festival e pelo Serralves em Festa
em Junho), De repente fica tudo preto de gente experimenta outros modos de pensar o corpo em colectivo
num mundo saturado de imagens,
ao colocar espectadores e bailarinos
frente a frente. Marcelo queria fazer
um “cut-off”, uma ruptura que sujeitasse o corpo de quem faz ao corpo de quem vê, como se procurasse
perceber se existem, efectivamente,
diferenças entre um corpo e outro.
O resultado é uma obra que revela a sua singularidade a partir do
modo como vai convocando modos
de percepção que são mais intuitivos e primários do que nos damos
conta. Durante os ensaios, por
exemplo, os vários bailarinos não
falavam a mesma língua e, recorda
Marcelo Evelin, “o dia era passado
nessa ideia de massa e de corpo como um só”. Agora que se mostram
a uma massa de indivíduos, o desejo é começar outra vez.
Ao longo dos dois anos que a peça
já tem de circulação, as reacções
têm sido as mais diversas. Da delicadeza dos ingleses à estranheza dos
polacos, o que Marcelo tem aprendido é a deixar de pensar esse encontro como um fim em si mesmo.
“Não é sobre ver, é sobre estar
ali.”
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Marcelo Evelin - Materiais Diversos