Por que alguns livros, ou textos, mexem com a nossa cabeça?
Por Antonio Gil Neto
Pesquisador do Cenpec
Sinto que os livros, antes, durante e depois de saborosamente lidos, não mexem só com a nossa cabeça.
Mexem com tudo de nós, com a nossa existência. Como uma sinfonia, um turbilhão, uma maratona, uma revoada.
Nunca ficamos sendo o mesmo no decorrer de uma leitura que se preze. Acho que é porque, quando lemos,
somos simultaneamente únicos e muitos. Temos muitas vidas para viver durante um simples ato de ler, ao
mesmo tempo reais e imaginárias. Afinadas e sincronizadas. Talvez seja esse o segredo. O mundo real acaba
não saindo ileso do nosso ato de leituras. Ele vai se modificando paulatinamente naquilo que é incorporado no
olhar do seu morador e leitor que o investiga e o redescobre à luz dos textos lidos. O nosso coração se exercita nos músculos e nas emoções das personagens que acolhemos. Em tempos, espaços e situações adversos. Visitamos, do nosso canto doméstico, preferido ou particular, lugares e sonhos nunca imaginados.
Quantas vezes, em plena tarde ensolarada, armados não só de uma limonada geladinha ou de um cheiro
de bolo assando, mas sobretudo de todo o nosso patrimônio de leituras, nos colocamos de frente a um problema insolúvel ou a um dilema que nos retorce por inteiro e nos envolve deliciosamente? Movidos pelo simples prazer, ficamos a imaginar. Somos amalgamados, vivendo a vida que desabrocha das entrelinhas das páginas como frutos maduros e a vida real que seguimos vivendo, por vezes crua, sem graça, previsível, corrida
e real demais.
Como ficaria a vida sem os livros? Nem pensar. Acho que tudo ficaria mofo, sem graça, sem beleza...O livro
é uma espécie de academia bem aparelhada capaz de exercitar o nosso comando maior, a cabeça, e todo o
maquinário natural que dentro dela está e nos faz pulsantes, singularmente concretos e sobreviventes vibrantes. Presenteamos o cérebro com as leituras e ele fica em boa forma. Então dá de sonhar fácil, de inventar de
tudo, de amar o essencial, de optar e decidir com autoria, de aprender mais, de perdoar com leveza, de lavar
águas e alma, de perceber minúcias de azuis e verdes, nuances da alvorada, de comprar com outros olhos e
mãos, de comparar valores implícitos, de se encantar, de olhar o quase não visto, de usufruir aromas e movimentos, de observar, imaginar e fazer acontecer pela pura intenção de existir o desejado, de investir e investigar como quem respira leve, de refazer, repensar, tomar partido, se expor, potencializar, estar presente... E mais
uma infinita modalidade de atitudes que nos qualifica e nos identifica como humanos e inteligentes.
Acho que cada vez que um livro, um poema, um texto mexe e remexe com a nossa cabeça, essa metáfora
do humano em nós, nos tornamos gente, genuinamente pessoas.
Você já se pegou num atormentado prazer de ler e reler algum conto ou poema e sentir-se completamente
envolvido em uma situação inusitada, perplexa, maravilhosa, intrigante ou coisa assim?
Você já devorou algum romance rapidamente, quase num fôlego só, se entregando plenamente a uma trama
interessante, envolvente e original a ponto de no “acabou-se o que era doce” ficar nadando no ar um gosto bom
de quero, queria mais?
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Você nunca teve uma leve sensação de suspeita e fantasiosa lucidez em meio a uma leitura de estudos de
que o autor escreve exclusivamente para você, como se adivinha a sua necessidade especial de saber algo
mais? Ou que no fundo teria chegado às mesmas conclusões implícitas no texto? Parece até que em nós se
instala o esboço, a primeira versão. O autor só teria o mérito de organizar tudo, nos dando de presente o que
já tínhamos desenhado em nós, intuitivamente.
Você já experimentou reler algum livro esquecido, abandonado ou perdido no emaranhado da sua história?
Quantas descobertas vêm à tona nas releituras...
Essas são algumas das situações que a gente vive em torno do convívio com o livro. Ele sempre é e será
inusitado, sutil, imprescindível, surpreendente e laborioso. E a nossa cabeça, o nosso corpo e o nosso viver precisa dele. Como precisa do amor. São coisas de leitor e leituras que criam e iluminam dinâmicas inteligentes
em nossa cabeça, em nosso pensar, em nosso existir.
Depois de tudo isso, guardo a sensação de que poderia responder à pergunta título expondo infinitas e plausíveis imagens que fluem do encontro leitor e livro, como dinâmicas fotografias. Mas, simplificando, me arriscaria a dizer sem sobressaltos que, para mim, o livro mexe com a nossa cabeça porque dá sentido à vida. Nos
humaniza. Faz emergir da gente o primordial e genuíno que há em nós e nos faz humanos. A inteligência, os
sentimentos. O gosto pelo viver, pelo outro, pelo convívio. Pelos mistérios que nos inundam. E sobretudo porque nos coloca diante de uma gama infinda de possibilidades de aprendizagens, revigora nossas experiências,
nos faz atravessar as paredes do tempo, imaginar, brincar, intuir, sonhar, fortificar as sensibilidades, mergulhar
em novas águas ou nos jogar novamente em águas de outrora, nos faz encantar, renovar, fugir da mesmice, do
monótono, refletir, ver as coisas com outros olhos, lúcidos e lúdicos, mudar, aprimorar-se... Criar e, em um diapasão de alegria íntima, descobrir essas sutis engenhosidades do cérebro humano, que são a maior bênção
para quem está vivo!
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