POR QUE ESCREVER?
Marizabel Santos Almeida
“O que se fala se traça na areia, mas o que se escreve se grava na pedra.”1
Por que escrever?
“À medida que a educação se ramifica e o analfabetismo desaparece, vemos diminuir o
interesse das massas modernas pela leitura. Sob o rótulo mentiroso de cultura popular,
governo, televisão e multinacionais oferecem às massas espetáculos e distrações que são
equivalentes modernos do circo de Roma ou do hipódromo de Bizâncio.”
São estas as palavras que se utiliza Octavio Paz para abrir a Feira do Livro de Frankfurt no
ano de 1993. Outros, amantes da escrita e da leitura, dizem que os Estados Unidos da América
em toda a sua extensão tem apenas quinze mil leitores. Que um francês em cada dois, não lê.
Nesse cenário desolador, numa entrevista nos anos noventa, Milan Kundera chega a se
perguntar diante do entrevistador aturdido, se o romance enquanto gênero literário já não
esteja condenado à extinção. E nós aqui da América do Sul, especialmente no Brasil onde há
analfabetismo, sub-letramento e mesmo para muitos letrados livro é artigo de luxo, que
poderíamos dizer? Como a escrita ou a tradição de escrever poderá sobreviver nesses tempos
de culto ao espetáculo? Como ainda resiste esse ato, o de escrever? Por que escrever?
Essa pergunta é companheira de longa data... Algumas vezes ela se afunila, se torna específica
sobre determinado tema como a clínica psicanalítica; de outras vezes emerge em torno do
desejo de simplesmente, escrever... Receio que o que possa articular venha a se mostrar
inacabado, insuficiente, deficitário e pessoal; Trata-se de uma pergunta, penso, que irá me
acompanhar por toda a vida, o que vai me deixando mais à vontade para tentar transitar em
torno do tema, sabendo de antemão que as articulações que se materializarem aqui estarão
sujeitas a modificações e implicarão muito mais o exercício em torno da pergunta do que a
resposta. A pergunta é vasta, aberta... Escrevemos porque nos sentimos impulsionados a fazêlo, mais ainda, esse impulso nos vem de um lugar mais além da nossa vontade... Para pensar,
para rir, para guardar algo, para registrar algo, para nos distanciarmos de algo, para nos
1
Citado no texto: “Que discurso para a escrita em psicanálise?” – Ana Maria Fabrino Favato.
Fonte: http://www.cbp.org/artigo 5 print.htm
Por que Escrever?- Marizabel Santos Almeida
aproximarmos de algo ou de alguém, às vezes de nós mesmos. Para compreender algo, para
superar algo, para transpor obstáculos que por vezes nos parecem intransponíveis... Para
degustar o vivido mais de uma vez, retê-lo. Que razões, implícitas, explícitas ou mesmo
inconfessáveis podem estar por trás desse ato, o de escrever? Escrevemos porque é verão e os
dias estão indizivelmente belos, céu azul, mar deslumbrante dias cheios de vida... Escrevemos
porque é inverno os dias são tão parecidos; o céu está sempre cinza e chove muito nos
trópicos; Escrevemos porque estamos apaixonados e a escrita nos parece uma forma de fazer
contato com isso que nos toma, e, faz do outro único e essa sensação é tão singular, tão
diferente das outras vezes em que estivemos apaixonados que escrever nos parece um
imperativo. Escrevemos porque não estamos apaixonados, os dias estão monótonos, tudo tão
semelhante, nada há em volta que acenda aqueles círios que só Eros sabe acender.
Escrevemos porque nos separamos dos nossos amados, seja porque a vida os convocou em
diferente direção, seja porque a morte os levou. Escrevemos porque alguém nasceu; porque
alguém morreu. Porque viver parece uma festa; porque viver dói tanto. Porque estamos
felizes, porque estamos tristes. Porque não estamos felizes nem tampouco tristes, estamos
num daqueles dias de estado intermediário, onde a repetição se configura como tédio...
Acredito, são tantas as respostas possíveis quanto os sujeitos que habitam o planeta. Essa
primeira resposta que abre um campo de respostas do tamanho da população da terra só será
possível, se pudermos tomar além do significado, escrever como significante. E, fato
reconhecível, para este que escreve, a resposta, ou as respostas, pode haver mais de uma,
podem se modificar ao longo da vida.
Vamos partir do princípio: aquilo que dividiu a história do homem em “pré-história e
história” foi o resultado do marco conferido pela escrita. Tornou-se possível que a história
atravessasse os séculos e que o homem pudesse contá-la, a partir da escrita. Não estamos aqui
a ignorar a tradição oral, menos ainda a lhe dar um papel insignificante, não se trata disso;
Entretanto, sabemos o quanto a tradição oral encontra-se fadada a se perder, correndo o risco
de ficar retida em certo tempo da história; a escrita ao contrário poderá sobreviver ao tempo,
transpor a morte preservando inclusive a existência do autor, inaugurando um mais-além do
transitório. Sem contar que a escrita favorecerá um trabalho de sublimação superior ao da
2
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fala, além de implicar o sujeito que escreve desde outro lugar. Falaremos sobre isso mais
adiante.
Até onde temos notícia nos nossos dias, houve grande espaço de tempo até chegar-se a um
ponto onde a busca de assentar um sistema de representação que pudesse se “universalizar” já
presente na escrita dos povos mais antigos, como é o caso dos sumérios, nos levasse até o
alfabeto grego; este, com as suas primeiras letras: alfa e beta, nomeia o conjunto de letras que
jogando entre si sustenta a nossa possibilidade de representação escrita. Tal premissa se
confirma no registro histórico ao nos depararmos com os desenhos feitos através de estiletes,
onde já se pode vislumbrar a necessidade de marcas próprias; estilete vai semanticamente dar
origem a estilo; No desenho rupestre, fica evidente a busca de comunicação e permanência do
registro, como claro está, ainda hoje podemos entrever na escrita através do ideograma.
Se pudermos adentrar na história da palavra desenhar voltando à sua origem, no grego
desenhar2 vinha a significar arranhar, traçar, escrever, redigir, inscrever. Com todas as
palavras paridas a partir daí, desenhar carregava o sentido de corrigir, transcrever, traduzir,
assinar. A palavra da qual se deriva o verbo desenhar posto no substantivo desenho, se
enunciava em grego do que se entendia também por pintura, escrito, catálogo, derivando
também em escriba, retratista, pintor, secretário, historiador. Desse modo, o desenho da
própria letra, a carta, as obras e leis escritas se escreviam a partir de um vernáculo que em si
trazia: funcionário arranha-papel, hoje em dia podendo ser traduzido por secretário,
professor, gramático, erudito e até mesmo, contrato.
Como pode nos revelar essa breve incursão, desenho e escrita encontram-se visivelmente
associados e designados originalmente pelo mesmo lexema. A história das línguas nos mostra,
no começo a escrita só é composta por desenhos em imediata relação com os objetos por ela
representados através dos referidos desenhos. Passando por vários períodos: o pictograma
como desenho da coisa ao ideograma o desenho da idéia (este ainda hoje presente na escrita
chinesa), as línguas que se organizam sobre o alfabeto atravessaram longo período na
passagem do desenho à letra.
2
BALBO, Gabriel. O desenho como passagem originária à escritura.
psychanalytique. N°18. 1986.
Paris: Revue Le discours
3
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Penso, deve ser do conhecimento de vocês um trabalho de Freud, intitulado: “A significação
antitética das palavras primitivas”3; Nesse texto, para esclarecer o mecanismo característico
dos sonhos e sua relação com o princípio afirmativo e inclusivo ele vai tocar num ponto muito
curioso: o fato de na antiguidade, na língua egípcia, uma mesma palavra estar a serviço de
significar não só coisas diferentes como às vezes até mesmo opostas; Ocorre-me agora de
lembrar de uma palavra em francês, parece que ficamos mais capazes de perceber esses
detalhes numa língua estrangeira, creio, em face da excessiva familiaridade que temos com a
nossa própria língua, trata-se da palavra “persone”, ela pode significar tanto pessoa como
também ninguém, isso me parece assombroso! Por outro lado, em grego, “persona” também
quer dizer máscara, e pensar que é dessa persona-máscara que vai ter origem a palavra tão
difundida pela psicologia que é personalidade, algo que busca traduzir algumas características
no modo de funcionamento de uma pessoa.
Não poderíamos ignorar aqui as possibilidades de equívocos que podem produzir
determinadas palavras: homofonias, como por exemplo, cinto, artigo do vestuário que se
dispõe a ser usado na cintura, e, sinto, primeira pessoa do presente do indicativo do verbo
sentir, eu sinto. Ou, mais curioso ainda, nas polissemias, como é o caso da palavra manga:
manga pode ser a fruta, pode se referir também a um pedaço de terra, pode querer dizer
também uma parte de certo artigo do nosso vestuário: a manga do vestido, da camisa. Ora, nos
casos que Freud trabalha o que vai se verificar não é homofonia, nem polissemia, mas, uma
antítese completa de significado. Em português, me ocorreu a expressão “de novo”, que de
acordo com o contexto pode querer dizer tanto novidade quanto mais uma vez, o antigo, o já
visto ou vivido, a repetição.
No referido texto, Freud vai trazer também uma característica da língua egípcia onde as
palavras podem inverter seu som como o seu sentido: “Suponhamos que a palavra alemã
“gut” (bom) fosse egípcia; ela poderia significar mau do mesmo modo que bom e ser
pronunciada “tug” do mesmo modo que “gut”. “4
3
FREUD, Sigmund. A significação antitética das palavras primitivas. RJ: Imago Editora. Obras completas. Vol
XI.1996.
4
FREUD, Sigmund. A significação antitética das palavras primitivas. RJ: Imago Editora. Obras completas. Vol
XI.1996.
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Em português, fenômenos interessantes guardam os seus resquícios desses observados por
Freud, como é o caso dos palíndromos, onde a palavra pode ser lida em sentido inverso e
permanecerá a mesma, como Ana. Ou dos anagramas, onde se observa que a leitura inversa
da palavra irá produzir outra com significado diferente: Amor vira Roma, Omar vira ramo
etc...
Poderíamos levar aqui muito tempo a nos debruçar sobre essas particularidades e a conclusão
a que chegaríamos é que não há sequer uma só palavra que não se encontre aberta a mais de
pelo menos uma possibilidade de significado, a depender, é claro do texto e/ou contexto em
que ela seja enunciada. Lembrei-me de uma expressão trazida por uma analisante, essa
expressão era arrogante; O simples trabalho de tomar arrogante como significante, levou-me
a fazer um corte, uma escansão: ar rogante(?) com uma entonação interrogativa, o que foi
capaz de fazer correr para ela o advento de um sentido não só novo, como diametralmente
oposto. Entre arrogante, adjetivo que caracteriza certa soberba, certo orgulho e, ar rogante,
esse ar de quem pede algo, vai uma distância grande e até certa oposição.
Retornemos à nossa pergunta inicial: por que escrever, e, a nossa primeira articulação de
resposta: devemos tomar escrever como significante essa será a única forma de abordar esse
ato: o da escrita, visto que, será uma pergunta a ser respondida por cada um destes que
escrevem. Essa condição nos coloca frente à alteridade, portanto frente à singularidade.
Essa pergunta sobre a escrita, também se fez Freud: “Nós leigos, sempre sentimos uma
intensa curiosidade... em saber de que fontes esse estranho ser, o escritor criativo, retira seu
material, e como consegue impressionar-nos com o mesmo e despertar-nos emoções das
quais talvez nem nos julgássemos capazes5.” Não deixa de ser surpreendente que um mestre
em sedução literária como o foi Freud, tenha sido capaz de escrever tal enunciado. Ele vai
abrir certas interrogações em torno da pergunta: Como alguém se torna um escritor criativo?
Volta-se então para a infância, a procurar as pistas que poderiam apontar nessa direção,
tentando encontrar nesse período da vida, os primeiros traços da atividade imaginativa que
iriam se materializar posteriormente no escritor. Ele vai relacionar a atividade criativa da
escrita com o brincar da criança, dizendo que se trata da mesma coisa; ou seja, que o escritor
5
FREUD, Sigmund. Escritores criativos e devaneios. RJ: Imago Editora. Obras completas. Vol IX. Obras
Completas. 1996.
5
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criativo cria um mundo que leva a sério e, ao mesmo tempo, mantém clara a distinção entre o
brincar e a realidade. Nessa perspectiva, toma a escrita de alguém que adentre com liberdade
nesse território, como capaz de devanear, onde tal devaneio será um substituto do brincar da
criança. O resultado poderia ser o mais animador, visto que, seria capaz de produzir certo
prazer estético nos seus leitores. Entretanto, permanece o enigma acerca da pergunta de como
alguém se torna um escritor criativo. “Como o escritor o consegue constitui seu segredo mais
íntimo”. 6
Vamos trazer para aclarar o que estamos a discorrer, o que dizem ou o que se pode ler na obra
de alguns escritores, acerca da nossa pergunta: por que escrever?
Anais Nin com a palavra: “Eu devo tudo à escrita. Devo-lhe o fato de estar aqui a falar... O
Diário mostra isso, mostra que, quanto mais eu escrevia, mais claros se tornavam os meus
pensamentos, que quanto mais me expressava, mais capaz era de exprimir aos homens ou aos
artistas à minha volta o que sentia ou qual era a minha posição... Foi pela escrita que me
ensinei a falar com os outros... Gostaria de afastar de todos o sentimento de que escrever é
algo que apenas umas quantas pessoas talentosas fazem... Não são só as pessoas com dons
invulgares que narram a sua vida de uma maneira interessante. Na realidade, não tem nada
a ver com o valor literário da obra.”7
Para Anais, a escrita vai lhe favorecer a possibilidade de simbolização daquilo que se
configurou para si como traumático, vai lhe possibilitar sair do mutismo. E isso vai se lhe
revelar com tamanha intensidade que ela vai passar a recomendar nas suas conferências que
as pessoas escrevam, que transponham essa preocupação com o valor literário.
Há hoje uma produção significativa de teses de estudiosos acerca da obra de Anais e, entre
estes há os que sustentem tratar-se de uma escrita “feminina”, citando outros nomes que aí
poderiam encaixar-se como Clarice Lispector, Katherine Mansfield, Jane Austen, Marguerite
Duras, Florbela Espanca entre outras. Fica para nós uma pergunta para aprofundarmos na
nossa discussão: O que caracteriza essa escrita que alguns se sentem à vontade de nomeá-la
escrita feminina? Que marcas, que caracteres levam a essa nomeação? Seria o tema tratado, o
modo de tratá-los, o que favoreceria essa legitimação? Se a palavra encontra-se dentro do
6
FREUD, Sigmund. Escritores criativos e devaneios. RJ: Imago Editora. Obras completas. Vol IX. Obras
Completas. 1996
7
NIN, Anais. Fala uma mulher. Lisboa: Editorial Presença. Conferências. 1995.
6
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território do significante, portanto do simbólico, poderia se falar rigorosamente em escrita
feminina, uma vez que estes que estão sexuados desse lado, o feminino, encontram-se numa
posição dita não-toda demarcada pelo gozo do significante? Ao que parece, os elementos que
constituem essa modalidade de escrita escapam e revelam-se (essa é a palavra mais adequada
para fazer alusão aos mesmos, por re- velar-se) tão inapreensíveis quanto a feminilidade;
Poderíamos aventar como possibilidade, que tal escrita poderia emergir quando o sujeito que
escreve, homem ou mulher pois não se trata de gênero, pode circular em torno do impossível
a dizer, o que afeta aquele que se defronta com tal tipo de texto, o leitor.
Voltemos a nossa pergunta inicial sobre por que escrever. Para Georges Bataille, que
começou a escrever por sugestão do seu analista, Adrien Borel, a escrita, a sua primeira
escrita a ser publicada sob o pseudônimo de Lord Auch, “A história do olho 8“, veio a
funcionar como uma saída. Nessa novela libertina e extravagante, sua história pessoal, seus
dramas familiares, e suas reminiscências mais dolorosas irão se misturar à ficção, e essa
escrita vai se constituir como o modo de fazer certos lutos, de falar de certas fantasias que o
atormentavam através de pensamentos obsessivos, libertando-o de ter que colocá-las em ato e,
abrindo espaço para o trabalho pulsional de sublimação. Controvertido, Bataille afirmava:
“Escrevo para apagar o meu nome”, o que torna compreensível que ele não pudesse se
assumir como autor dessa obra. Numa entrevista concedida pouco antes de morrer em 1961,
ele disse: “O primeiro livro que escrevi, só pude escrevê-lo depois da psicanálise, sim, ao sair
dela. E julgo poder dizer só liberto dessa maneira pude começar a escrever.” 9
Para este escritor, que teve seu processo de escrita mediado pela sua análise pessoal, a redação
do seu primeiro livro veio a lhe propiciar uma espécie de “cura”.
Para Virgínia Woolf que teve um pai literato, chegando a fundar e trabalhar em uma editora
criada em parceria com o marido, a escrita depois de muito tempo vai lhe possibilitar fazer o
luto da mãe que perdera na infância. E, fato curioso, chega a dizer que por receio de ser
desaprovada pelo pai, só vai se permitir escrever com liberdade e ousadia se separando do
pai-literato após a sua morte. A escrita retida no poder paterno lhe será então autorizada e
servirá de anteparo para suas fantasias de aniquilamento.
8
9
BATAILLE, Georges. História do olho. SP: Cosac e Naify. 2003.
CHAPSAL, Madeleine. Os escritores e a literatura. Georges Bataille. Lisboa: Dom Quixote. 1986.
7
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Para Hans Christian Andersen, que se tornou conhecido por escrever literatura para crianças,
escrever vai lhe trazer a possibilidade de trazer beleza àquilo que possa produzir no leitor
repulsa, feiúra, desprazer. Ele chega a escrever sobre o seu nascimento como se estivesse
vendo-o como espectador, e, em meio à dureza e pobreza dos seus pais, ele injeta amor,
beleza, ternura: “Num quarto modesto vivia em 1805, em Odense, um casal de recém-casados
que se amavam ternamente. Ele, um sapateiro que mal chegara aos vinte e dois anos,
maravilhosamente talentoso e com alma de poeta, e, ela, alguns anos mais velha, uma mulher
de espírito simples e grande coração. Operário muito habilidoso, o homem havia construído
sua banca de sapateiro e retirado seu leito nupcial de um cadafalco que servira de suporte ao
caixão de um conde de Trampe; alguns pedaços de tecido negro nas ripas do estrado
lembravam sua origem. Nessa cama, em 2 de abril de 1805, nasceu um robusto bebê: eu
mesmo, Hans Christian Andersen, substituindo os despojos do conde.” 10
Para alguns que se dedicaram à escrita, além do próprio desejo, ela também implica certo
quantum de sofrimento. Mallarmé falou da agonia de enfrentar a página em branco, se fosse
hoje, falaria da tela em branco. Henry Miller do desespero que lhe povoou até ouvir uma voz
única, isolada, na qual se reconhecia. Betty Milan se interroga: “O que leva um escritor a
escrever, viver só com as palavras durante dias e noites, erguer-se do nada, como afirmava
Clarice Lispector? Por que se exercita ele anos a fio no seu ofício, independentemente de ser
editado, como Fernando Pessoa, que só viu algumas poucas de suas obras publicadas e
morreu ignorado pelo grande público? Que gozo haverá na escrita para que o sujeito suporte
a solidão, o anonimato e, em certos casos, a mais completa miséria?”11
Barthes dizia: “Como criatura de linguagem, o escritor fica sempre preso na guerra dos
falares, mas nunca é mais do que um joguete, porque a linguagem que o constitui (a escrita)
está sempre fora de lugar... O escritor está sempre sobre a mancha cega dos sistemas, como
deriva; é um joker, um maná, um grau zero, o morto do bridge: necessário ao sentido (ao
combate), mas ele mesmo privado de sentido fixo.... Sem desejo de ganhar nada, senão a
perversa fruição das palavras... Qualquer escritor dirá: louco não posso, são não me atrevo,
neurótico sou. O texto que escreve tem que me dar a prova de que me deseja. Essa prova
10
11
ANDERSEN, Hans Christian. Le conte de ma vie. Paris: Flammarion.1955.
MILAN, Betty. A força da palavra. RJ: Record.1996.
8
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existe: é a escrita.”12 Que significa essa “perversa fruição das palavras” de que fala Barthes
como ganho possível senão o gozo, o gozo estético? Ora, o gozo mesmo estético não é um
ganho, é o excedente e, como gozo, não serve para nada além de gozar...
No seminário do “Ato psicanalítico”, para falar sobre a lógica e a escrita, Lacan convida
Jacques Nassif a falar. De posse da palavra, Nassif vai partir do pressuposto freudiano de que
essa instância a que chamamos sujeito seja justamente a raiz da função da repetição. Desse
modo, vai considerar a escrita, a colocação em ato desta repetição que busca repetir o que
escapa: a marca primeira, que na sua impossibilidade de redobrar-se, desliza necessariamente
fora de alcance. Será que tal premissa seria capaz de lançar luzes sobre a nossa pergunta sobre
a escrita e o gozo? Será que nesse fora de alcance em que se redobra essa marca primeira,
poderíamos articular o real, aquele que não cessa de não se escrever?
O poeta alemão Rainer Maria Rilke, escreveu muito, no entanto, viveu num estado de
indigência tal que não podia comprar os seus livros. Em resposta a uma carta para um jovem
que desejava se tornar escritor e que buscava aconselhar-se sobre o assunto, ele responde: “O
senhor está olhando para fora e é justamente o que menos deveria fazer nesse momento.
Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar
em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos
recantos mais profundos de sua alma: confesse a si mesmo: morreria se lhe fosse vedado
escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite: “Sou
mesmo forçado a escrever?” escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se
puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples “sou”, então construa a sua
vida de acordo com esta necessidade.”13
Para Rilke, a resposta à pergunta encerra um compromisso de responder desse lugar: o de
escritor, o que delimita a escrita enquanto ato verdadeiro, fruto dessa instância a que
chamamos desejo. Poderíamos dizê-lo, faz da escrita o seu sinthoma.
Para Lacan, a escrita de James Joyce vai ter um papel essencial para o seu eu. Esse papel será
o de suturar o ponto onde os três registros: real, imaginário e simbólico, ficaram sujeitos a se
soltar por uma falha na função paterna; ele utilizará a escrita arcaica “sinthoma”, para dizer
12
13
BARTHES, Roland. O prazer do texto. Lisboa: Edições 70. 1997.
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. RJ: Editora Globo. 1983.
9
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que aí será feita através da escrita, uma nova versão do pai. Quando discorre sobre as
lembranças de infância de Joyce que aparecem na sua obra, e, em como tais lembranças na
passagem do imaginário para o simbólico funcionaram no caso da estrutura subjetiva de
Joyce, diz: “A psicanálise é outra coisa. Ela passa por um certo número de enunciados, e não
está dito que ela entre pela via de escrever. Isso merece ver bem, quando se acaba de
demandar, em nome de não sei qual inibição, por-se em posição de escrever. Não está de
todo esclarecido que com a psicanálise se chegará a isso. Isso supõe uma investigação do
que significa escrever.”14 Ainda assim, ele chega a falar que quando se escreve sobre as suas
lembranças de infância isso tem conseqüências pois implica a passagem de uma escrita a
outra. Do que estará falando? Só podemos pensar que fala da letra inconsciente.
Considerando o que nos traz Rilke, nos serviremos da contribuição deixada por Michel
Foucault frente à pergunta: “O que é um autor?”15. Esse trabalho que virou livro foi o
resultado de uma conferência na Sociedade Francesa de Filosofia no ano de 1969; Ele vai
mostrar que na nossa cultura, um discurso portador da função autor, é aquele que está
relacionado a um nome próprio, ou seja, aquele de cuja autoria se atribui um texto, um livro,
uma obra, a quem se pode atribuir com legitimidade a sua produção. Fazendo um recuo na
história, Foucault aponta um tempo onde não se colocava a questão da autoria, fazendo
comparecer como exemplo, “As histórias das mil e uma noites”. Nos nossos dias, tal
procedimento revela-se absolutamente impossível, não nos é possível tolerar o anonimato
ainda que haja espaço para essa misteriosa categoria que atende pelo nome de escritorfantasma. Ao citarmos algo que tenha um autor, devemos em paralelo citar também, o lugar
onde se encontra tal texto, livro, revista ou jornal, o nome do autor, a editora que o publicou, a
cidade, o ano de publicação e, até mesmo a página onde se encontra o que estamos a citar.
Adentrando nas perguntas, Foucault apresenta quatro critérios trazidos por São Jerônimo,
estes com vistas à legitimidade da função autor, conforme transponho a seguir: “Se entre
vários livros atribuídos a um autor, houver um inferior aos restantes, deve-se então retirá-lo
da lista das suas obras (o autor é definido como um certo nível constante de valor); do
mesmo modo, se alguns textos estiverem em contradição de doutrina com as outras obras do
14
15
LACAN, Jacques. O seminário Le sinthome. Livro 21. Inédito.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor?. Ed. Passagens. 1992.
10
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autor (o autor assim é definido como um certo campo de coerência conceitual ou teórica);
deve-se igualmente excluir as obras que são escritas num estilo diferente, com palavras e
maneiras que não se encontram habitualmente nas obras de um autor (trata-se aqui do autor
como unidade estilística); finalmente, devem ser considerados como interpolados os textos
que se referem a acontecimentos ou que citam personagens posteriores à morte do autor
(aqui, o autor é encarado como momento histórico definido e ponto de encontro de certo
número de acontecimentos)”.16 Para Foucault, os quatro critérios de autenticidade segundo
São Jerônimo, embora pareçam insuficientes para os exegetas, definem as modalidades sobre
as quais a chamada crítica moderna reconhece ou não essa instância chamada autor. Nesse
trabalho tão valioso que nos deixou, Foucault chega a falar:”Na escrita, não se trata da
manifestação ou da exaltação do gesto de escrever, nem da fixação de um sujeito numa
linguagem; é uma questão de abertura de um espaço onde o sujeito da escrita está sempre a
desaparecer.”17 Ora, aqui nesse sujeito evanescente, que some e aparece, poderíamos
imediatamente inferir que trata-se da emergência do sujeito do inconsciente. Ele fala também
em certa condição de exílio para aquele que se entrega à escrita e, relaciona um grau de
parentesco da escrita com a morte. Tais pontos podem ser observáveis através da distância
que se estabelece entre aquele que se senta para escrever e aquele que advém do texto escrito,
como o expressou Lacan: “Jamais me releio sem um pouco de surpresa. Jamais imagino que
seja eu que pude dizer isso e sou certamente fraco na forma de receber a carga do que eu
mesmo escrevi. Não que isso me pareça sempre a coisa mais sem inspiração, mas está
sempre um pouco ao revés e é isso que me surpreende.”18 Acredito, todos que aqui estão que
escrevem, devem ter experimentado em algum momento da sua vida certa sensação de
estranheza ao relerem algo que tenham escrito. Para nós, tal fato coloca em ato, aquilo que
Freud evoca no texto: “O estranho” e que Lacan vai chamar de “extimidade”, o mais íntimo
fora, no exterior.
Se essa pergunta: “por que escrever?”, fosse endereçada a uma criança que está a construir
suas hipóteses sobre esse sistema de representação: a escrita, sua resposta não seria a mesma
16
FOUCAULT, Michel.O que é um autor? Ed. Passagens. 1992.
FOUCAULT, Michel.O que é um autor? Ed. Passagens. 1992.
18
LACAN, Jacques. O seminário L’insu qui sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Livro XXIV. Inédito. Aula do
dia 11/01/1977.
11
17
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de um colega. A entrada no mundo das letras não será jamais igual para todos como querem
nos fazer acreditar certas áreas do saber; será inclusive diferente para cada um, como nos
coloca a psicanálise e, estão a nos mostrar as pesquisas no campo da psicogênese da língua
escrita.
Cabe aqui nos perguntarmos: será que a escrita da criança, essa que inaugura a sua entrada no
mundo letrado, nessa ordem a que nos encontramos submetidos da norma culta, produz um
autor? Será que este pode ser tomado com a mesma legitimidade de um adulto que senta e
escreve por se ver tomado pela letra?Ou mais ainda, daquele que escreve por uma imposição
do seu ofício? Será que essa categoria autor de um texto escrito pode ser reconhecida da
mesma maneira? Rigorosamente falando, poderíamos responder com uma afirmativa; em
relação ao texto produzido por uma criança, ainda que, o que a criança produza não
necessariamente vá se configurar como uma obra literária, e que provavelmente o que
conseguirá produzir como escrita terá valor individual podendo se estender até o seu pequeno
universo da família e da escola. Por outro lado, ainda que não queiramos mergulhar nesse
território, sabemos que para que a criança entre no mundo letrado será necessário que um
lugar de falta tenha se instaurado; Dito de outra maneira, que ela tenha podido jogar com os
termos presença-ausência, até porque a letra nada mais é do que o desejo recalcado. A escrita
surgirá como vestígio, evocando a marca de uma passagem, orientando o olhar para um Outro
lugar, uma ausência, tal vestígio vai fazer presente uma ausência. Retornando ao que
falávamos, a escrita se configurará de forma diferente para aquele adulto que de posse desse
código, o da escrita, movido pelo desejo inconsciente se veja impelido a produzir algo.
Sabemos, o texto que seja o resultado desse que se deixou ser tomado pela letra será diferente
daquele que o escreveu por uma imposição. Mais ainda, isso será sensível para o leitor que
poderá ou não ser afetado pelo que lê. A escrita que brota do desejo, esta convoca o que lê a
entrar na aventura, captura-o. Entretanto, a função autor poderá emergir também neste que
escreve por imposição, não uma imposição interna como a que fala Nietszche, do seu desejo,
mas do Outro, o chefe, o trabalho...
Há ainda um outro fato que gostaríamos de salientar, que seja referente à possibilidade de um
autor ser lido por muitos, e, não só lido como capaz de influenciar a escrita e a vida destes,
essa é mais uma diferença entre o texto produzido por um adulto e aquele produzido pelo
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escolar nas suas primeiras incursões na escrita. Foucault fala de Freud e Marx como autores
“fundadores de discursividade”, ou seja, que eles produziram algo a mais do que o simples
trabalho de autoria, que seja a possibilidade e a regra de formação de outros textos, que
tenham estabelecido uma possibilidade indefinida de discursos, que eles abriram espaço para
outra coisa diferente deles e que, no entanto, é da pertença disso que fundaram.
Considerando o ponto dessa possibilidade indefinida de discursos nos voltemos para o ponto
em que escrever irá resultar em uma escrita ou numa escritura. Comecemos citando Barthes:
“A escritura é isto: a ciência dos gozos da linguagem, seu Kamasutra”.19 Não nos dispomos
aqui a discutir todas as implicações que se fazem presentes na abordagem da noção de
escritura em Barthes. Fiquemos apenas com o que de primordial aqui se coloca de que “a
escritura é a escrita do escritor”. Ora, mas, isso é lógico e essa frase poderia parecer-lhes
uma tolice. Entretanto, para Barthes: “nem toda escrita é uma escritura”, no entanto “toda
escritura é uma escrita”.
Voltemo-nos para o termo escritura. Nos nossos dias, no Brasil, escrita e escritura são usadas
freqüentemente para dizer a mesma coisa, ficando a critério de cada um o seu uso. A palavra
escritura vem do latim “SCRIPTURA”, e, considerando o outro sentido de documento de
tabelião (escritura de imóvel: casa, barco...) ou texto religioso (sagrada escritura), para
alguns lexicólogos como Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, escritura pode ser
considerada como um sinônimo de escrita. O fato de nós analistas usarmos muito o termo
escritura, para alguns parece ato condenável, visto que, lhes parece francesia. O certo é que
esse emprego é antigo, ele vai fazer sua aparição em autores reconhecidos como o padre
Antonio Vieira ao introduzir os seus Sermões: “Nunca me persuadi a sair à luz com
semelhante gênero de escritura, de que o mundo está cheio”. Claro está trata-se aí de designar
escritura como obra literária.
Vamos partir então do pressuposto de que escrita e escritura podem ser tomados como
sinônimos e, que será legítimo o termo escritura para este que escreve, no momento em que
ele puder fazer cargo dos significantes que o sobredeterminam, transitando nesse território, o
da linguagem, observando os códigos inerentes à língua. Esse que assim proceder nós vamos
chamá-lo: autor. Se considerarmos o próprio emprego de escritura como documento autêntico
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BARTHES, Roland. Aula. SP:Cultrix:1996.
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feito por oficial, ou seja, reconhecido por outro digno, como da pertença desse ou daquele que
o carrega ao qual está referendado o seu nome, a escrita do escritor será a sua escritura, o
lugar onde estará lavrado (para usar o termo jurídico) o seu modo de gozar da “alíngua”.
Para mim, escrever comporta um sentido de aventura, de contato sobretudo com o inesperado,
como aquele evocado por Ali Babá com as palavras mágicas: Abre-te sésamo, como se a
escrita sempre estivesse a me apontar uma saída possível.
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