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Comentários sobre o texto
de Rodolfo Hofmann
Eduardo Pereira Nunes*
O autor faz uma profunda análise da conceituação de renda adotada
pelo IBGE em suas pesquisas domiciliares e nas Contas Nacionais. Tece,
com razão, algumas críticas à forma como esse Instituto agrega informações que refletem conceitos econômicos distintos. Todavia, em algumas
ocasiões, pretende que as informações divulgadas pelas pesquisas do IBGE
atendam às suas próprias necessidades de dados empíricos para construir
categorias econômicas teóricas que são, ao mesmo tempo, complexas e
conceitualmente incompatíveis.
Portanto, neste segundo caso, embora os anseios do autor por dados estatísticos apropriados às suas construções teóricas se justifiquem,
a ausência dessas informações nas pesquisas do IBGE não pode ser
entendida como uma falha conceitual do Instituto. De fato, essas discrepâncias representam o desafio que os pesquisadores devem enfrentar
para compatibilizar as metodologias e conceitos adotados nas pesquisas
do IBGE com as categorias teóricas pertencentes às diversas linhas de
pensamento econômico.
Nesse sentido, o trabalho de Rodolfo Hofmann presta um enorme
serviço à comunidade científica, ao revelar as lacunas e potencialidades
analíticas das pesquisas do IBGE sobre a renda da população brasileira.
A seguir, comentar-se-á os critérios de formulação do conceito de
renda nas pesquisas do IBGE, com o intuito de esclarecer algumas dúvidas
de Rodolfo Hofmann.
1. Referência metodológica: Nações Unidas
Os conceitos de renda adotados nas pesquisas domiciliares do IBGE
seguem as recomendações da Organização Internacional do Trabalho
*
Presidente do IBGE.
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(OIT).1 Esse mesmo conceito adotado nas Contas Nacionais obedece
às recomendações estabelecidas pela Organização das Nações Unidas,
pelo Banco Mundial, pela Comissão das Comunidades Européias,2 pelo
Fundo Monetário Internacional e pela Organização para a Cooperação
e Desenvolvimento Econômico (OCDE), reunidas no manual da ONU,
denominado System of National Accounts, de 1993.
Convém ressaltar que as próprias recomendações dos organismos
internacionais revelam as dificuldades inerentes à coleta da informação
sobre renda. Um documento editado em 2008 pela ONU, Principles and
Recommendations for Population and Housing Censuses, Revision 2 faz
as seguintes observações:
Collection of reliable data on income, especially income from self-employment and property income is
extremely difficult in general field inquiries, particularly population censuses. The inclusion of non-cash
income further compounds the difficulties. Collection
of income data in a population census, even when
confined to cash income, presents special problems
in terms of burden of work, response errors, and so
forth. Therefore, this topic is generally considered
more suitable in a sample survey of households.
Depending on the national requirements, countries
may nonetheless wish to obtain limited information
on cash income. As thus defined, the information
collected can provide some input into statistics that
have many important uses” (Principles and Recommendations for Population and Housing Censuses,
Revision 2, United Nations, 2008).
No caso brasileiro, o IBGE investiga a renda nos Censos, apesar de
conhecer as limitações apontadas pela ONU, e mesmo considerando que
as informações terão apenas um valor aproximado. Entretanto, como a
própria ONU reconhece, os resultados são extremamente úteis: para o
IBGE desenhar as suas amostras, para a sociedade conhecer o nível e a
distribuição da nossa renda, para os usuários realizarem seus estudos acadêmicos e empresariais sobre nível de renda e o tamanho do mercado.
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O Manual da ONU também enfatiza que a investigação sobre renda
é mais adequada em pesquisas por amostra de domicílios.
2. Pesquisas por Amostra de Domicílios no Brasil
2.1 Pesquisas de Orçamentos Familiares (POF)
Desde 1974, o IBGE realiza Pesquisas de Orçamentos Familiares.3
Estas pesquisas podem estimar com mais precisão a variável “renda”, pois
são realizadas ao longo de 12 meses. Este tempo de coleta de informações
torna possível a verificação das rendas afetadas por fatores sazonais. E,
como permanecem 9 dias em cada domicílio da amostra, os pesquisadores
também captam rendas eventuais.
Dessa forma, a metodologia adotada nestas pesquisas permite reduzir
a subdeclaração da renda familiar, ao confrontá-la, perante o próprio
informante, com os respectivos gastos. Esta característica da pesquisa
de orçamento familiar permite que o próprio informante se lembre de
rendas auferidas e eventualmente omitidas, e também oferece condições
propícias para estimar a renda não-monetária.
Conseqüentemente, as Pesquisas de Orçamentos Familiares fornecem informações sobre o total da renda (monetária e não-monetária)
auferida pelas famílias brasileiras.
2.2 Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios é realizada pelo
IBGE, desde 1967. Embora a PNAD seja uma pesquisa de múltiplos propósitos, seu principal objeto de investigação é o mercado de trabalho.
Além de investigar a renda de todos os empregados, a PNAD também
considera como renda do trabalho o ganho dos empregadores (retirada
do proprietário) e dos trabalhadores por conta própria (rendimento
bruto menos despesas efetuadas com empreendimento, como pagamento
de empregados, matéria-prima, energia elétrica, telefone etc.).
Ao analisar o conceito de renda na PNAD, Hofmann comenta: “No
caso de um empregador, certamente os economistas clássicos e Marx
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chamariam isso de lucro, e não de rendimento de trabalho”. Por outro
lado, como o lucro distribuído sob a forma de dividendo encontra-se
registrado como “rendimento de outras fontes”, não se tem uma noção
coerente do conceito de lucro.
De fato, é muito difícil obter informações precisas sobre as rendas do
capital consideradas em separado da renda do trabalho. Ademais, para
um grande contingente de empregadores, esta distinção não existe na
realidade. Para os empregadores de “unidades de produção familiares”,
segundo a denominação das Contas Nacionais, ou do “setor informal”,
segundo a OIT, não há como distinguir o que é renda do capital (lucro)
e o que é renda do trabalho, quando os empreendimentos têm com o
principal objetivo gerar emprego e rendimento para as pessoas envolvidas. Em geral, essas unidades produtivas caracterizam-se pela produção
em pequena escala, pelo baixo nível de organização empresarial e pela
quase inexistência de separação entre capital e trabalho, compreendidos
como fatores de produção.
Para demonstrar a dificuldade de conciliação entre o dado empírico
e o conceito teórico, podemos citar pelo menos dois exemplos:
a) Transportador autônomo de carga rodoviária. Neste caso, o caminhoneiro é, ao mesmo tempo, proprietário do meio de produção
(capital) e fornecedor da força de trabalho. É praticamente impossível separar em renda (marxista) do capital e renda do trabalho
o valor do frete recebido pelo transporte de uma carga. No Brasil,
há muitas atividades econômicas organizadas de forma semelhante à do transportador autônomo de carga rodoviária, como, por
exemplo, o comércio ambulante de mercadorias, o transporte de
passageiros por táxis e vans, a construção civil, o serviço de reparação de automóveis, o serviço de alimentação etc.
b) Produção agrícola familiar. Neste caso, o produtor pode ser
proprietário da terra, dos demais meios de produção (capital) e
somente utilizar a força de trabalho dos membros da própria família. Conseqüentemente, a renda resultante da atividade é produto
da utilização combinada dos 3 fatores (neoclássicos) de produção:
terra, capital e trabalho. Também neste caso, é impossível distinguir
renda da terra, renda do capital e renda do trabalho.
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É importante observar que esta dificuldade teórica e metodológica
não é encontrada apenas nas estatísticas brasileiras.
Os comentários anteriores revelam também a dificuldade empírica
para a construção das categorias econômicas necessárias ao estudo da
distribuição funcional da renda. Neste caso, a fonte básica de informação
deve ser o Sistema de Contas Nacionais. Nesse Sistema, os rendimentos
recebidos pelos titulares de unidades econômicas familiares (isto é, empreendimentos não-organizados sob forma de sociedades com personalidade jurídica), com ou sem empregados remunerados,4 são denominados
de rendimento misto, devido à natureza do ganho do trabalhador, que
não pode ser classificada exclusivamente como rendimento do trabalho
ou renda do capital.
3. Conclusões
As observações feitas por Hofmann são fundamentais para que o
usuário das estatísticas relativas à renda compreenda as virtudes e as limitações do segmento do sistema estatístico nacional dedicado à produção
de informações sobre o nível e a distribuição da renda nacional.
Espero que os comentários aqui efetuados sirvam para esclarecer
as dúvidas apontadas por Hofmann e sirvam também para demonstrar a
coerência conceitual das estatísticas sobre renda produzidas pelo IBGE.
Para confirmar a consistência destas informações, cito os coeficientes de
Gini, calculados com base nos dados da PNAD e da POF, referentes aos
anos de 2002 e 2003, quando foi publicada a última POF pelo IBGE.
Segundo a PNAD, em 2002, o Índice de Gini foi de 0,573 e, em
2003, o coeficiente foi de 0,566. Já a POF do período 2002-2003 chegou
ao índice de 0,558. Observa-se portanto que, independentemente das
eventuais diferenças do conceito de renda nestas duas pesquisas domiciliares do IBGE, os coeficientes encontrados permitem extrair duas
conclusões importantes:
1ª Os coeficientes são muito próximos, revelando a convergência
do conceito de renda entre as duas pesquisas; e,
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2ª Estes coeficientes revelam, entretanto, a enorme desigualdade
da distribuição da renda no Brasil, independentemente da fonte
utilizada para calcular a renda e para verificar o padrão existente
para a sua repartição entre os cidadãos.
Espero que o texto de Hofmann e os comentários aqui efetuados
ajudem a sociedade brasileira a encontrar os mecanismos necessários para
resolver o grave problema da repartição da renda no Brasil. E espero que
as informações estatísticas do IBGE contribuam para alcançar o inadiável
objetivo de redução da desigualdade social no Brasil.
Notas
1
Current International Recommendations on Labour Statistics (Geneva,
2000).
2
Statistical Office of the European Communities – Eurostat.
3
Estudo Nacional de Despesas Familiares (1974-1975) e Pesquisas de Orçamentos
Familiares (1985-1986, 1995-1996, 2002-2003 e 2008-2009).
4
United Nations. System of national accounts, 1993 (7.31).
Econômica, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 47-52, junho 2008
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