FERNÃO LOPES E O OBSTINADO LABOR
0. FERNÃO LOPES: A VIDA E A ACÇÃO LITERÁRIA
Fernão Lopes nasceu em Lisboa, por volta de 1380, e na mesma cidade viria a
falecer, passados que eram dois lustros sobre meados do século XV.
Olhando o lapso temporal que se nos apresenta, de cerca de oito decénios, o que
valerá a pena aclarar nessa "noite" já distante que para a frente anunciou, como
superiormente o en-treviu um Vergílio Ferreira, que há "um entendimento secreto entre
o todo que nos define e a terra que o moldou"1 ?
De origem com toda a probabilidade humilde, Fernão Lopes, não obstante essa
condição, poderá ter frequentado o Estudo Geral, donde, aliás, lhe deverá ter advindo o
à vontade com que cita autores de renome (Aristóteles, Cícero, Ovídio, Eusébio, Santo
Agostinho, Petrarca...) e manuseia estilemas. Esta erudição, e dando-se o caso, não
desprezível, de ter somente cursado uma escola conventual ou catedral, chegar-lhe-ia de
modo directo pelo contacto com os livros da biblioteca régia. Antes da chegada à Corte,
é tabelião geral, sendo, a partir de 1418, guardador das escripturas da Torre do
Tombo; em 1419, é, primeiramente, "escrivão dos livros" de D. João I e, depois, de D.
Duarte; de seguida, é escrivam de puridade do Infante Santo, a quem lavrará o
testamento antes da aventura de Tânger; por incumbência de D. Duarte, corre o ano de
1434, tem conhecimento oficial da função de dever escrever, como "vassalo de el-rei",
com direito a tença de 14000 libras, as crónicas dos reis da primeira dinastia - e dizemos
oficial, porque o cronista já o saberia oficiosamente desde 1418, data em que tomou
conta do arquivo régio; posteriormente, a rainha regente D. Leonor subscreve a mesma
tença, a qual virá a ser aumentada em 500 réis por D. Afonso V; é substituído como
cronista, no ano de 1451, por Gomes Eanes Azurara; em 1454, deixa de ser "guardamor" da Torre do Tombo, em virtude de ser "tam velho e flaco que por si nom pode
1
Vergílio Ferreira, Espaço do Invisível-V , Venda Nova, Bertrand Editora, 1998, 223. Nesse passo, Vergílio Ferreira
refere-se a Fernão Lopes.
bem servir o dito oficio"2; e, por último, aí parecendo esgotar-se o estado da questão, é
sabido que ainda vivia em 1459 3.
Da sua acção literária, movida pela busca da verdade objectiva que faz com que
João Mendes, inspirado por Edward Spranger, veja nele um homem "teorético"4,
resultam, com existência física comprovada - que da presumida falaremos à frente -, a
Crónica de D. Pedro, a Crónica de D. Fernando e a Crónica de D. João I . Estas
crónicas, forjadas por uma heurística da revelação, transportam consigo, sempre sob o
signo da verdade que a tudo o custo importa trazer à tona, quadros vivos da sua época:
como esquecermos a luta contra a "afremosentada falsidade" do estilo que ele, de
facto, possuía, ou, então, e em jeito meramente exemplificativo, a presença
verdadeira e justa, emocionantíssima, daquela "arraia meúda", daquele "bom pôboo"
que tão bem soube emergir das trevas?
E depois, nessa gesta depós a VERDADE e a JUSTIÇA, nessa tendência
pretendida e nem sempre alcançada - mas o que contava era sempre o império teorético,
pronto a desvelar e exalçar das trevas, mesmo que sujeito àquele "entendimento secreto"
-, toda a obra lopiana ressuma visionalismo de verso e reverso, de luz e escuridão, de
heroísmo e precatamento, de defesa e desvinculação, de doçura e amargura ou de razão
e sentimento.
1. A CIRCUNSCRIÇÃO DO PROBLEMA DOS PRÓLOGOS
É indubitável que Fernão Lopes cria uma dialogismo com o leitor, parecendo,
muitas das vezes, que entrava com ele uma sociabilidade amiga, ela própria
enformadora da sua heurística desveladora. E assim, em abundância, o texto lopiano
vai-nos deixando exclamações e apóstrofes e emoções, coroação plena da alegria
incontida pela "verdade" difícil.
O que se nos pede agora é uma hermenêutica e um comentário aos prólogos da
Crónica de D. Fernando , da Crónica de D. Pedro e da Crónica de D. João I , visando
revelar também, no rasto do pensar-sentir do cronista, os argumentos, objectivos e
intencionalidades autorais que reposicionam o leitor perante os assuntos a tratar, bem
como indagar do cumprimento das suas proposições. Pede-se, pois, um labor heurístico
2
Apud Damião Peres, "Introdução" a Fernão Lopes, Crónica do Senhor Rei Dom Pedro Oitavo Rei destes Regnos ,
Porto, Livraria Civilização-Editora, 1965, p. XI. Ver também Aubrey F. G. Bell, Fernão lopes , Coimbra, Imprensa
da Universidade, 1931, p. 11.
3
Veja-se Damião Peres, loc. cit. , p. IX: "...tudo quanto com segurança se sabe é que em 1459 ainda era vivo, embora já bastante velho".
4
Cf. João Mendes, "Lopes (Fernão)" in Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura , vol. 12, Lisboa, Editorial
Verbo, s.d., col. 496. O mesmo João Mendes dirá que, pela verdade, Fernão Lopes "passou trabalhos e longas vigílias" ( Literatura Portuguesa I , Lisboa, Editorial Verbo, 21981, p. 96).
sobre a heurística do mais famoso "guarda-mor" da Torre do Tombo, o qual, de mão
dada com o leitor, cumpriu euforicamente essa grande demanda de "descida aos
Infernos" , qual Orfeu, deles emergindo num gozo continuado de privar com a verdade e
dela compartilhar connosco. Assim seja.
1.1. UMA DEFINIÇÃO DE PRÓLOGO
A palavra prólogo, com etimologia no grego pró (antes) e lógos (discurso),
consignifica, na sua inserção contextual, texto de extensão moderada, adjuvante do
discurso posterior, com iluminação propositiva e metodológica, sendo, obviamente, de
difícil delimitação conceptual, a começar, desde logo, na configuração multímoda da
responsabilidade: homoautoral, como é o caso, por exemplo, daquele que ocorre em La
Chartreuse de Parme de Stendhal; heteroautoral e editorial, como acontece com o
Adolphe de Benjamin Constant; do narrador, de que são exemplo O Delfim de José
Cardoso Pires ou A Relíquia de Eça de Queiroz; ou de figuras literárias, como
colhemos em Cartas a Sandra de Vergílio Ferreira.
Em termos funcionais e analógicos, o prólogo aproxima-se da noção aristotélica
consignada na Poética , precisamente no passo em que prescreve as partes da tragédia
- prólogo, episódio, êxodo, coral, este subdividido em párodo e estásimo -, logo
acrescentando Aristóteles que a primeira delas "é uma parte completa da tragédia, que
precede a entrada do coro"5. Albin Eduard Beau salienta que "os Prólogos representam
por si mesmos determinado género literário, que passou do Proémio do esquema
dispositivo da Retórica antiga para a historiografia medieval" e que "não podem ser
isolados das Crónicas "6 Essa constatação da precedência preparatória tem aplicação
clara no caso lopiano, como, aliás, o não poderá deixar de ter a proposição da epopeia
como manifesto de intenções. Deste modo, o prólogo lopiano é um clarificador da
leitura que cria horizontes e desperta estratégias de decodificação, permitindo uma
verificação prospectiva e o estabelecimento de unidade e equilíbrio nas Crónicas . Será
essa a nossa função nos capítulos subsequentes.
1.2. O "PRÓLOGO" DA CRÓNICA DE D. PEDRO
5
Aristóteles, Poética (Edição de Eudoro de Sousa), Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 21990, p. 119, 1452
b.
6
Albin Eduard Beau, Estudos , I, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1959, pp. 15-16. Esta obra é fundamental
ainda hoje para a notação da preocupação literária lopiana.
7
Fernão Lopes, Crónica do Senhor Rei Dom Pedro Oitavo Rei destes Regnos (Edição de Damião Peres), Porto,
Livraria Civilização-Editora, 1965, p. 3. Todas as citações posteriores aparecerão seguidas do número de página que
dirá sempre respeito a esta edição, eximindo-nos nós a um acúmulo de citações que tornaria o aparato fastidioso.
Fernão Lopes inicia este prólogo sob o signo da rarefacção cultural ("Leixados os
mo-dos e diffinições da justiça, que per desvairadas guisas, muitos em seus livros escrevem..."7), o que revela simultaneamente, no consabido modo teorético, um lato conhecimento de leituras e uma técnica estilística de ocultação-desvelamento. Neste último
particular, o que parece contraditório resolve-se com simplicidade: o cronista utiliza
estilemas que, aparentando desinteresse e humildade ("nos naquelle stillo que o
simprezmente apanhamos", p. 3), mostram claramente, com jorros luminares, a
obsidência da verdade e do saber. Assim, ab initio , esta porta da crónica começa por
traçar a isotopia da nitidez.
Tal restrição informativa, que, afinal, não infirma mas afirma a vontade de
mostrar, precede uma outra limitação que é veiculadora da vontade do autor: "he nossa
emtençon neeste prollogo muito curtamente fallar, (...) come ajumtador em huum breve
moolho, dos ditos dalguuns que nos prouguerom.8" (p. 3). Ora, o que Fernão Lopes
agora revela é a intenção de falar, nesta parte propositiva, tão-só do essencial, com
"circunspecção" que, de facto, o não é - Tomaz de Figueiredo, devedor dessa estratégia,
diria confrontar o leitor com "umas poucas de palavras do autor" -, visando trazer como
apoio para a sua tese a palavra autoritária de uns quantos. Ou seja, para que a luz do seu
pensamento refulgisse mais, nas palavras contidas que se anunciavam, impunha-se, na
sua metodologia, a compresença de vozes que o reiterassem e que, a um tempo,
aumentassem o interesse pelo assunto que aí vinha.
E o tema que o prólogo começa a inscrever, no sentido do panegírico de D. Pedro,
é a necessidade da virtude chamada JUSTIÇA. Pensando bem, essa uirtus , pedra
angular da heurística lopiana em prol do verdadeiro, serve para provar que um Rei, se
imbuído dessa qualidade, reflecti-la-á nos seus súbditos, com lições de ponderação e de
verdade. A confiança instalada por esses laços perenes de justeza permitem que o poder
régio proceda, confiante, às emanações legislativas sempre necessárias, até "ca as leis
som regra do que os sogeitos am de fazer" (p. 4), letra morta da vontade viva do Rei
que, mais do que todos, obedece à justiça. Este elogio da justiça, louvor, afinal, de D.
Pedro, que no capítulo I conhecerá verdadeiramente o seu panegírico, aparece
coadjuvado pela alusão explícita a Cícero ("Tulio") e à sua sustentação da justiça como
"senhora das outras virtudes" (p. 5)
A revelação da justiça em Fernão Lopes, nesse labor de desobnubilar e desvelar,
aparece-nos desta forma como uma pretensão, uma ideia e uma emoção que o cronista
propulsa para a tona da verdade. Verdade que é laboriosa e justa. Como justas são as
8
Como informa Frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, prouguer significa "ter por bem, ser contente, agradar-se de
alguma cousa." (Elucidário das Palavras, Termos e Frases que em Portugal antigamente se usaram e que hoje
regularmente se ignoram: obra indispensável para entender sem erro os documentos mais raros e preciosos que
entre nós se conservam. (Edição de Mário Fiúza), II, Porto, Livraria Civilização, 1984, p. 499).
palavras de Teresa Amado quando diz que o cronista, neste prólogo, reactiva a aura de
justiça de D. Pedro para, desse pretexto, partir para uma "longa dissertação, baseada em
autoridades clássicas, acerca da superioridade da <<justiça>> sobre todas as outras
virtudes."9 Esta forma de louvar o rei, do abstracto para o concreto do capítulo I, não
deixa de ser interessante, como não despiciendo é o modo sensato e avisado, que
descobre o homem sem ocultar o artista, de, dessa tese, Fernão Lopes partir, em atitude
que se provará no corpo textual, para o esclarecimento do seu conceito de justiça, que,
face ao de D. Pedro, é bem mais proporcional ou, se assim quisermos, mais justo. Face
ao exposto, assoma nesta Crónica uma crítica implícita à desproporção da justeza régia
(visível, por exemplo, no capítulo IX: Como elRei mandou queimar a molher
Daffonsso Andre, e doutras justiças que mandou fazer ), que, para além do mais, era
exercida pelas próprias mãos. No entanto, o conjunto não embota, de forma alguma, o
principal escopo de Fernão Lopes que era deixar claro o espírito justiceiro do Rei e a
superioridade dessa qualidade, "por que o fruito principal da alma ... he a verdade" (p.
141). E assim se cumpriu o objectivo prolegoménico e, repita-se, a prenunciada isotopia da claridade, presente até naquelas palavras críticas relativamente a D. Pedro:
"ainda que outra mingoas per el passassem de que peendença podia fazer..." (p. 6) .
1.3. O "PRÓLOGO" DA CRÓNICA DE D. FERNANDO
Fernão Lopes abre este prólogo com a luz da alegria transportada na vivíssima e
glosada tirada, no tom panegírico que a parte impõe, respeitante à figura do Rei e aos
seus vinte e dois anos: "mancebo vallente, ledo e namorado, amador de molheres e
achegador a ellas." E logo continua: "Avia bem composto corpo e de rrazoada altura,
fremoso em parecer e muito vistoso, tall que estando acerca de muitos homees, posto
que conhecido nom fosse, logo o julgariam por rrei dos outros."10
Tal tópica laudatória une, a um tempo, os atributos físicos, bem visíveis na frase
ante-rior, e atléticos (u. g. : "Era cavallgante e torneador, grande justador e lançador a
tavollado; era muito braceiro, que nom achava homem que o mais fosse; cortava muito
com hûua espada e rremessava bem a cavallo.", p. 3), com importante espaço dedicado
às artes vena-tórias (pp. 3-4), bem como as qualidades morais ("criador de fidallgos e
9
Teresa Amado, "Crónica de D. Pedro" in Giulia Lanciani e Giuseppe Tavani (org. e coord.), Dicionário da
Literatura Medieval Galega e Portuguesa , Lisboa, Caminho, 1993, p. 183.
10
Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando (Edição de Giuliano Macchi), Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 1975, p. 3. Todas as citações deverão ser compulsadas por esta edição.
muito companheiro com elles", "amavioso de todollos", "amava el muito de voontade",
"amava justiça", ...).
Mas o que começa a ressumar de novo é a preocupação pela verdade e pela
justiça, afinal as qualidades que deverão enformar o Rei e que são as molas propulsoras
da "heurís-tica laboriosíssima" de Fernão Lopes, para usarmos as palavras esclarecidas
de João Men-des. Esse ressumbramento é visível neste prólogo a partir do momento em
que o cronista, pese a sua só confessada inaptidão estilística, lança ao papel um acúmulo
de expressões vali-dativas dessa leitura. E assim sintagmas como "bem rreger" (p. 3),
"boa rrazom" (p. 3) ou "justamente hordenadas" (p. 4) parecem evidenciá-lo.
Ainda no prólogo, o nosso "maior escritor medieval"11 não esconde, antes desvela,
sob aquela capa de simplicidade e de falta de desvelo estilístico, graciosas tiradas,
abundantes de calor da escrita e de oficina da palavra. Serve de exemplo o passo em que
Fernão Lopes alude à partida de D. Fernando para a caça - "A hordenança como el
partia o ano em taaes desenfadamentos, contado todo pello meudo, seria longo d'
ouvir..." (p. 4) -, criando, com a retirada do explícito "fardo" informativo das costas do
leitor, um evidente dialogismo que só atrai e aguça a curiosidade. No mesmo sentido se
entenda, dentro do espírito luminar da technê lopiana, aquele atractivo pedaço de
prosa: "E nom vos maravilhees d'esto e de seer muito mais..." (p. 5).
O presente prólogo, sem descurar o estilo laudatório que está omnipresente, é
ainda um notável documento sobre a ambiência lisboeta daquela época. O extracto
que a seguir apresentamos - tela viva do bulício de então nas ruas e nos portos - é um
prodigioso exemplum de Fernão Lopes artista, a começar no polissíndeto que enumera
e mostra e pinta: "Avia outrossi mais em Lixboa estantes de muitas terras, nom em hûua
soo casa, mas muitas casas de hûa naçom, assi como genoeses e prazentiis e lombardos,
e catallaães d' Aragom e de Maiorgua, e de Millam, que chamavom millaneses, e
corciins e bizcainhos e assi d' outras naçoões..." (p. 6). Esta Lisboa, "grande cidade de
muitas e desvairadas gentes" (p. 7), é também ela personagem de uma narrativa fílmica
- pense-se na forma como o cronista transita de um assunto para outro na Crónica de D.
João I : "Leixemos o Page hir hu lhe mandarom, e vejamos em tanto que sse fez no
Paaço da Rainha", I, p. 22 - que não pode deixar de afirmar o alto conceito em que o
cronista tem o Rei D. Fernando, que era, aliás, o garante de todo este fulgor de riquezas
e de empório comercial ( "Este rrei dom Fernando começou de rreinar o mais rrico rrei
que em Purtugall foi ataa o seu tempo.", p. 5), que ele, afinal, geria com mestria
("Nenhûus senhores nem fidalgos nem crerigos nem outras pessoas poderosas consentia
que comprassem nemhûuas mercadarias pera rrevender, porquanto tiravom a vivenda
aos mercadores de sua terra...", p. 7) e pundonor.
11
António José Saraiva, Fernão Lopes , Lisboa, Publicações Europa-América, s.d., p. 5.
E depois, numa instância discursiva que se inscreve em rosácea, que do louvor
parece afastar-se e a ele regressa em fechamento, aparece-nos, no âmbito do
proteccionismo régio ao bem-estar das populações, aquela criteriosa aplicação da justiça
que engrandece o Rei e anima a forja do cronista-artista ( ou artista-cronista?). Sirvam
de exemplos os três casos subsequentes: "... e elles os mandavom prender per seus
homêes e entregavom aa justiça por se fazer d'elles comprimento de dereito; (...) e que,
pois elle era theudo de manteer seus poboos em dereito e justiça..." (p. 8); "...e desta
guisa eram todos aguçosos a poer em obra o que el-rrei mandava" (p. 9) e "Muitas
hordenaçoões outras fez e mandou comprir por boom rregimento e proll do seu poboo
este nobre rrei dom Fernando, que rrazoadas todas per meudo fariam tam grande
trautado quall aqui nom compre de seer scripto." (p. 9)
A última asserção lopiana é a última frase do prólogo. É o explicit que explica e
mostra, sem trair, as condições de legibilidade da própria Crónica de D. Fernando .
1.4. O "PRÓLOGO" DA I PARTE DA CRÓNICA DE D. JOÃO I
O texto que agora apresentamos é, para parafrasearmos António Josá Saraiva, um
"documento notável" que desvela uma heurística de labor beneditino, com incisivos
avisos de colação de fontes e informações, bem como com uma preocupação
investigativa fora de época, onde não deixa de perpassar o escrúpulo pela utilização de
materiais de fiabilidade incomprovada, nela se cifrando uma inovadora concepção de
história e uma grácil técnica narrativa.
O prólogo da crónica em apreço, em estado de depuração que os anteriores ainda
não conheciam, sem deixar de conter o obrigatório elogio do cronista da corte ao
biografado, é um fundamental paratexto teórico e descritivo do método de incansável
procura que Fernão Lopes perseguia desde há muito e que aqui refulge abundantemente.
Assim, desde o início textual, verificamos, através daquela necessidade "dordenar
estorias", que o método investigativo do cronista assenta num labor mental que procura
transformar o caos em cosmos, a desordem em ordem. E esse caminho de fazer história
pretende resguardar-se da "mumdanall afeiçom" que fomenta a "favoreza" (lembremos
aqui a nossa nota 1 e a tirada vergiliana no influxo lopiano) e tolhe a verdade: é de uma
lucidez avassaladora o consabido passo em que Fernão Lopes, logo no fim do primeiro
parágrafo, fala da "comformidade" do entendimento do homem com a sua terra, o que
impede que qualquer cena seja "dereitamente rrecomtada". Por isso, o relato de alguém
preso a essa conatural "mumdanall afeiçom" à terra de nascimento ou à Pátria sofre de
falta de objectividade, "porque louvandoa, dizem sempre mais daquello que he; e sse
doutro modo, nom escprevem suas perdas, tam mimguadamente como acomteçerom."12
O método histórico do cronista, nessa gesta de tudo mostrar e desocultar, não
prescinde da palavra autoritária de um "Tullio" (Cícero), que, por outras palavras, alude
à afeição mundana, corroborando-lhe a ideia : "Nos nom somos nados a nos mesmos,
porque huûa parte de nos tem a terra, e outra os paremtes. " (p. 2)
Esta construção teórica e geral do "çopegamento" humano aplica-a Fernão Lopes,
criticando-a, à maneira corrente de se ser historiador na época. De facto, o carácter
científico que o nosso cronista imprime ao seu processo de contar a história - um árduo
caminho de luz e trevas, de confirmações e refutações, de afirmações e infirmações -,
novo ao seu tempo, (pelo menos, na intenção), faz dele, nas bonitas e singularmente
justas palavras do lusófilo inglês Robert Shoutey, "o melhor cronista de todos os tempos
e nações"13. O próprio Autor se vai colocando no campo da excepcionalidade ("Nos
certamente levamdo outro modo, posta adeparte toda afeiçom...", p. 2), ciente que está não obstante a "boa autoridade" dos seus coevos, que claramente desviavam da "dereita
estrada" e corriam por "semideiros escusos" e não viam as "mimguas das terras" - de
perseguir um outro desejo nesta sua obra: "escprever verdade, sem outra mestura,
leixamdo nos boõs aqueeçimentos todo fimgido louvor, e nuamente mostrar ao poboo,
quaaes quer comtrairas cousas, da guisa que aveherõ." (p. 2). É interessante notar-se a
convocação do povo como destinatário - e tal é da responsabilidade de Fernão Lopes-,
afinal o mesmo "poboo" que à frente, em vários capítulos, participará decisivamente
no evoluir da situação político-social, legitimando pela vontade uma eleição régia que
não dimanava deterministicamente do direito de sangue.
Não cessa aí a heurística da verdade: desejando a todo o custo ser verdadeiro
("mas mentira em este volume, he muito afastada da nossa voontade.", p. 2), não se
eximiu Fernão Lopes à árdua tarefa de, por "desvairados" caminhos e terras, confrontar
fontes e documentos, num parto cruciante de investigação e de inconfutável certeza,
pelo menos momentânea, se pensarmos na pontual reserva com que recebemos certos
episódios ( o da batalha de Aljubarrota, por exemplo), o que não embota nunca a
probidade do cronista : "Oo! com quamto cuidado e diligemçia vimos grandes vollumes
de livros, de desvairadas limguageês e terras; e isso meesmo pubricas escripturas de
muitos cartarios e outros logares nas quaaes depois de longas vegilias e gramdes
trabalhos, mais çertidom aver nom podemos da contheuda em esta obra." (p. 2)
12
Fernão Lopes, Crónica de D. João I (Edição de António Sérgio), I, Porto, Livraria Civilização-Editora, 1945,
p. 1. Todas as citações serão feitas segundo esta lição textual.
13
Apud António Sérgio in Fernão Lopes, Crónica de D. João I , I, Porto, Livraria Civilização-Editora, 1945, p. VII.
Não tendo ainda ficado claro nos prólogos anteriores o verdadeiro mérito artístico
que o cronista já por lá anunciava, aqui se cumpre também esse objectivo do homem-escritor: se o método de "fazer história" é nitidamente novo, a escrita esplendorosa de
Fernão Lopes, plena de figuras e recursos estilísticos, é a de um "mestre da língua", que
une, a um tempo, a "simprez verdade" à "afremosemtada" beleza literária, funcionando
como meros despistes funcionais, do foro da tradição historiográfica já desde Tucídides,
as tiradas de humildade que são ainda uma inteligente captatio beneuolentiae e a
afirmação do que explicitamente parece negar. Registamos, seguidamente, dois
exemplos: "Se outros per ventuira em esta cronica buscam fremosura e novidade de
pallavras, e nom a çertidom das estorias, desprazer lhe ha de nosso rrazoado, muito
ligeiro a elles douvir, e nom sem gram trabalho a nos de hordenar." (p. 3) e "Que logar
nos ficaria pera a fremosura e afeitamento das pallavras..." (p. 3).
Por último, uma breve reflexão ainda sobre os dois derradeiros parágrafos e para
repisar um assunto já tratado: o omnipresente rito da verdade. Rito que se levanta,
certificando "cousa, salvo de muitos aprovada, e per escprituras vestidas de fe", nessa
heurística laboriosíssima, que é sempre revelação, sobre documentos que urge desvestir
e apresentar na nudez crua da verdade que é preciso seguir, sempre. De resto, antes calar
que escrever falsidades. E o que não pode ser calado, por acção da oficina compositiva
cujos meandros procurámos conhecer, é a "nua verdade" que, encontrada submersa no
vórtice do tempo, agora se desvela e mostra naqueles "claros feitos, dignos de gramde
rrenembrança, do mui famoso Rei dom Joham seemdo Meestre" (p. 3). Asserto que se
cumpriu com a emoção que claramente se sabe.
1.5. O "PRÓLOGO" DA II PARTE DA CRÓNICA DE D. JOÃO I
"Mostrando cada hûa cousa per ordem"14, o presente prólogo manifesta a
consabida
preocupação lopiana com a ordenação dos factos e estabelece a ligação com a
primeira parte da crónica ("hora ajudamdo nos Deus emtemdemos mostrar", p. 1),
referindo explicitamen- te que anteriormente se contara o percurso do Mestre de
Avis desde o começo até ao tem-po em que foi feito Rei, destinando-se este segundo
momento, com a ajuda de Deus, a mostrar - e de novo surge o constante complexo da
14
Fernão Lopes, Crónica de D. João I (Edição de M. Lopes de Almeida e A. de Magalhães Basto), II Parte, Porto,
Livraria Civilização-Editora, 1949, p. 1.
revelação - todos os seus bons feitos como Rei, desde que o foi até ao acabamento de
seus dias.
Realce-se ainda neste prólogo a compresença da tópica da modéstia ("E porque
nos nom somos abastamte pera compridamente louvar e dizer as bomdades deste
poderoso Rey...", p. 1; "por a pouquidade do noso emgenho naõ fomos ousados de falar
em elas", p. 4), já assinalada atrás, que permite novamente que privemos com a
humildade e a inaptidão lopianas para louvar condignamente o Rei ou aludir às suas
bondades, devendo tal tarefa ser entregue, segundo o seu modo de ver, a " um grande e
eloquente letrado", não fosse o reprovável risco de se quebrar a ordem, face ao que dele
falaria brevemente. E segue-se, de acordo com o preceituado genológico, o panegírico
real que exalça, por ordem, a honradez, a excelência, a bondade, a fidelidade católica, a
fé, a delicadeza, a justiça e a piedade - díptico que um Rei há-de ter -, e ainda a
fidelidade conjugal à "Rainha dona Felipa", a quem "homrou muito e amou... de onesto
e saõ amor" (p. 3) .
2. UMA CONCLUSÃO
Resta-nos concluir, perguntando se as proposições e os objectivos da heurística de
Fernão Lopes entrevistas nos prólogos tiveram integral cumprimento no corpo do texto.
A Crónica de D. Fernando detém nas palavras prologais, como era da praxe do
género, um explícito louvor a D. Fernando, seja nos predicados físicos - nunca mais, a
partir daí, o adjectivo "formoso" deixou de o designar -, seja na administração interna.
Tal panegírico, que se reflecte também na obra, não constitui nunca subserviência
profissional do historiador, até porque algumas vezes o cronista refere a sua indecisão e
inconstância: Fernão Lopes critica a política externa e militar de D. Fernando ou a
paixão deste por Leonor Teles, a qual lhe merece um elaborado retrato, ou, finalmente,
a oscilação entre dar a sua filha ao Duque de Cambridge ou ao Rei de Castela.
O prólogo da Crónica de D. Pedro , doutrinário e sentencioso, é um elogio da
justiça e da sua superioridade face a todas as outras qualidades. Assim se anunciava já
uma das molas propulsoras do método lopiano, como se fazia, ao mesmo tempo, o
panegírico de D. Pedro através da sua teoria de aplicação da justiça, aqui e ali julgada
desproporcional por Fernão Lopes. E o que ressuma na crónica, sem assuntos de grande
monta, as mais das vezes recobertos por laivos de lenda, é uma patologia da justiça que
o próprio cronista permitia entrever. Cruel, demasiado cruel é um capítulo VI. Ou um
capítulo IX. E aí talvez o historiador, por razões contextuais, não tenha sido
suficientemente incisivo. Mas... quem o seria?
Fernão Lopes, ao escrever o prólogo da I Parte da Crónica de D. João I ,
apologético-polémico, ciente que estava de ser essa a sua grande obra, criou um
"documento notável da sua probidade e da sua suficiência como historiador"15 que o faz
manter um contínuo labor metódico de investigação e confronto de fontes, optando
sempre pelas mais recorrentes, no caminho do banimento da falsidade. Tal posição, que
o afirma tautologicamente, está contido no seguinte passo programático: "escprever
verdade, sem outra mestura, leixando nos boõs aqueeçimentos todo fimgido louvor, e
nuamente mostrar ao poboo, quaaes quer comtrairas cousas, da guisa que aveherõ" (p.
2). Simultaneamente, lembra as dificuldades que há em permanecer indemne, como ele
o conseguiu, a razões afectivas na narração de assuntos pátrios. Sabe-se, no entanto, que
alguns episódios enfermam da vituperada "mumdanall afeiçom". Humano, demasiado
humano, para um historiador probo, que trouxe para o palco da história o povo, que tão
bem criticou, positiva e negativamente.
Por último, no prólogo convencionalmente panegírico da II Parte da Crónica de D.
João I , que é uma charneira entre o período de D. João, Mestre de Avis, e a época de D.
João entronizado, assistimos a um franco louvor do biografado pelo influxo, por várias
vezes citado, da técnica da insufiência de engenho. Segue-se, depois, a enumeração das
inúmeras qualidades que enformam "ho muy nobre primçipe, froll e excçelemcia dos
Reis que em Portuguall reynaraõ" (p. 3).
E, afinal, como negar provimento à perfeição lopiana , que, até nos momentos,
escassos, em que a emoção ou o entusiasmo ardente - a melhor forma de inteligência,
hoje se sabe - invadem o relato ou a opinião denega as fontes, mais perfeita se torna
nessa humanidade? Com tal emoção consentida, e pense-se no retrato de Nuno Álvares,
o leitor está no texto, em constante cordialidade ("Ouvi" ou "Ora esguardai como se
fosseis presente", pedirá Fernão Lopes), preso ao relato vivo, verdadeiro (porque
sentido), apelativo, assim se cumprindo intenções e objectivos, com a sábia
convocação do leitor ("Leixemos o Mestre em Alenquer e a Rainha em Santarem, e
vamos ver como fez el-rei de Castela em seu regno.") e com a ajuda das múltiplas vozes
autoritárias que habitam as suas crónicas ("A nós é per força, sôbre certas coisas,
historiarmos um pouco comprido, pois temos costume rezar as opiniões e parte dos
ditos de alguns que já sobre esto primeiro que nós falaram...".
É uma heurística laboriosa, das trevas à luz, a que dimana da arte de Fernão
Lopes. E também um sopro de fogo que inquire e pergunta: "Quem cuidaaes que sse
nom emffade a rrevolver cartairos de podres scripturas, cuja velhiçe e desfazimento
nega o que homem queria saber?"16. Logo, um sopro divino... como um entendimento
secreto. Zurara "provou-o", quando, no capítulo III da Crónica da tomada de Ceuta ,
15
M. Rodrigues Lapa, Miscelânea de Língua e Literatura Portuguesa Medieval , Coimbra, Universidade de
Coimbra, 1982, p. 369.
16
Fernão Lopes,Crónica de D. João I (Edição de António Sérgio), I Parte, Porto, Livraria Civilização-Editora,
1945, p. 339.
disse para todo o sempre que Fernão Lopes, nessa devoção, calcorreava "per moesteiros
e igrejas, buscando os cartórios e os letreiros dellas pera veer sua informaçam." Em
busca, buscando sempre...
3. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA E, DE FACTO, USADA
3.1. BIBLIOGRAFIA ACTIVA
Fernão Lopes, Crónica do Senhor Rei Dom Pedro Oitavo Rei destes Regnos (Edição de Damião Peres), Porto, Livraria
Civilização-Editora, 1965.
---------------- , Crónica de D. Fernando (Edição de Giuliano Macchi), Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
1975.
---------------- , Fernão Lopes,Crónica de D. João I (Edição de António Sérgio), I Parte, Porto, Livraria CivilizaçãoEditora, 1945.
---------------- , Crónica de D. João I (Edição de M. Lopes de Almeida e A. de Magalhães Basto), II Parte, Porto,
Livraria Civilização-Editora, 1949.
3.2. BIBLIOGRAFIA PASSIVA
Teresa Amado, "Crónica de D. Fernando", "Crónica de D. João I ", "Crónica de D. Pedro" e "Fernão Lopes" in
Giulia Lanciani e Giuseppe Tavani (org. e coord.), Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa , Lisboa,
Caminho, 1993.
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Aubrey F. G. Bell, A Literatura Portuguesa (História e Crítica) , Coimbra, Imprensa da Universidade, 1931.
--------------------- , Fernão lopes , Coimbra, Imprensa da Universidade, 1931.
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1931.
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Portugal , IV, Barcelos, Portucalense Editora, 1932.
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Fernão Lopes nasceu em Lisboa, por volta de 1380, e