1
25
ªr
eu
niã
oa
nu
al
Reflexões sobre Imagens, Cultura Visual e Pesquisa Educacional
Gustavo E. Fischman*
Introdução
Durante a década de 1990-2000, o campo da pesquisa educacional viu a
emergência de vários trabalhos que indagavam criticamente sobre temas e aspectos
relacionados à cultura visual e à educação. Os trabalhos de Karen Anijar (2000), Mary
Dalton (1999), Eleanor Ellsworth (1997), Henry Giroux (1994; 2000), Bell Hooks
(1995), Gene Maeroff (1998), Antônio Novoa (2000) and Joseph Tobin (2000)
chamaram atenção para o impacto significante da cultura visual – por meio da análise
de filmes, da televisão, dos anúncios ou da cultura popular – nas escolas, nos alunos e
nos professores. Além disso, havia, também, pesquisadores que estavam fazendo
projetos nos quais os diferentes fenômenos associados à cultura visual eram não apenas
analisados, mas também incorporados na produção acadêmica, como é o caso de: Eric
Margolis (2000), que explorou o uso de fotografias na pesquisa educacional; Ian
Grosvenor et. al (2000) que refletiu sobre o uso da evidência fotográfica em pesquisa
histórica; Robert Coles e Nicholas Nixon (1998) que pesquisaram a análise textual e
fotográfica conjunta da vida escolar; Diamond and Mullen (1999) que investigaram as
possibilidades da pesquisa baseada nas artes; e Sandra Weber e Claudia Mitchell (1995,
1998) que analisaram os desenhos de professores e alunos com relação às influências da
cultura popular nas identidades dos professores.1
Apesar de notáveis esforços, a educação como campo de investigação tem
tendido a evitar um questionamento sobre a cultura visual, bem como, os debates
acerca do valor epistemológico das imagens na pesquisa educacional
an
pe
d
necessários
(Bogdan e Biklen, 1998; Paulston, 1996; 1999). Ao contrário, a crítica em algumas das
**
Professor Assistente, Universidade do Estado do Arizona
Outra série de trabalhos interessantes pode ser encontrada no volume sobre pesquisa baseada em
imagens, de Jon Prosser (1998) e no livro editado por Pamela Bolotin Joseph e Gail Burnaford (1994).
Este ressalta a importância de considerar as imagens como textos cruciais sobre o ensino. Apesar de não
se aprofundar nos aspectos metodológicos relacionados à utilização de imagens em sua pesquisa, também
é importante mencionar o trabalho de Larry Cuban (1993) com o uso que ele faz de fotografias e a grande
atenção que dispensa aos fenômenos arquitetônicos e espaciais nas salas de aula americanas por mais de
um século.
1
2
mais importantes revistas em pesquisas educacionais, tais como, Educational
Researcher, Harvard Educational Review, Teachers College Record, Review of
25
ªr
eu
niã
oa
nu
al
Educational Research, Journal of Educational Policy, and Comparative Education
Review, demonstra que são gastos mais esforços em encontrar um equilíbrio adequado
entre o uso de palavras e números.2
Enquanto os editores dessas revistas reconhecem a importância das imagens e da
cultura visual nas formas contemporâneas de comunicação - como demonstrado pelo
uso consistente de imagens gráficas e diferentes formatos de texto para fazer
propaganda de produtos e serviços – dificilmente, se dedica a mesma atenção à
produção acadêmica3. Além disso, de forma geral, os editores de revistas e os críticos de
conferências esperam e, algumas vezes, até exigem que os pesquisadores traduzam a
complexidade visual da questão tratada na pesquisa ou das pesquisas de campo em
palavras e números, que são reunidos em cadernos, os quais servirão como a base para
mais transformações em pesquisa, teorias pedagógicas ou métodos4.
Devido a importância, na academia, do famoso ditado : “publique ou pereça”, a
falta de interesse geral dos pesquisadores em relação à cultura visual deve-se, em parte,
não somente ao senso de competência que diz respeito à não mudança das formas de
transmissão acadêmica, mas também
ao custo do uso de imagens – o aumento
constante dos preços – em publicações5. Apesar da importância desses dois argumentos,
2
Veja-se, por exemplo, a discussão em andamento sobre pesquisa educacional e representação publicada
em números passados da revista Educational Researcher (Barone, 2001; Eisner, 1997, 1999; Knopp,
1999; Meyer, 2000).
3
Há exceções como o artigo de Elizabeth Vallance sobre as imagens do ensino, exibidas em museus norte
americanos, publicado em 1995, na revista Educational Researcher.
4
an
pe
d
Eu discutirei abaixo algumas das razões para esta situação. O que quero enfatizar aqui é que para
aqueles que querem incorporar os fenômenos visuais à pauta de pesquisa, essa limitação força-os a
submeter-se a processos de tradução “extraordinários”- pois são formas restritas de representação- que
podem ser mais apropriadas para o fenômeno estudado. Eu quero agradecer à Inés Dussel (Universidade
de Wiscosin, Madison/FLASCO, Argentina) por chamar atenção para o fato de que há sempre um
processo de tradução associado aos processos de representação e apresentação de resultados de um
projeto de pesquisa. Por isso é que uso aspas na palavra “extraordinário”.
5
O argumento econômico, aquele ouvido com mais freqüência pelo autor, precisa ser considerado de
acordo com dois aspectos distintos. Primeiro, como uma manifestação das restrições adicionais colocadas
para os pesquisadores com base em fatores de lucro, e não na lógica interna dos problemas que eles estão
analisando. Além disso, o uso de publicações baseadas na Internet também deve diminuir a importância
dada ao aspecto financeiro. O segundo aspecto, como explicado nestas páginas, se relaciona ao fato de
que a atenção dada à cultura visual não exige, necessariamente, o uso de imagens gráficas. Vários dos
3
afirmo que descartar e/ou ignorar os aspectos visuais na pesquisa educacional vai além
da economia e da pragmática do mundo editorial associadas ao domínio e à promoção.
25
ªr
eu
niã
oa
nu
al
Este artigo propõe que essas tendências poderiam ser comparadas a um ponto obscuro
no sentido de que representam “uma parte de um campo que não pode ser visto ou
inspecionado com o equipamento disponível” e, também, “uma área na qual não se
consegue fazer nenhum julgamento ou discriminação”.(The American Heritage®,
1996).
Felizmente, pontos obscuros podem ser temporários. As áreas do campo que não
se consegue ver agora poderão ser facilmente detectadas no futuro. Nesse sentido, é
possível argumentar que a indiferença em relação à cultura visual poderá vir a ser um
obstáculo fácil de se superar, mas como o filósofo espanhol Jorge Larrosa menciona: “é
sempre interessante saber porque um campo proíbe ou ignora algo”. De fato, “omissões
e proibições são as melhores formas de conhecer a estrutura de uma disciplina, as regras
que a estruturam e a sua gramática profunda” (1998, p.213). Dessa forma, o objetivo
deste artigo é refletir sobre os obstáculos, problemas e possibilidades de incorporar a
cultura visual à pesquisa educacional.
Resistindo às imagens
A dependência às palavras e aos números entre os pesquisadores educacionais e
a tendência geral de desconsiderar as imagens é generalizada e perpassa tradições
acadêmicas, orientações teóricas e métodos de pesquisa. Alguns estudiosos no campo
parecem ser tão receosos quanto Mark Twain que não pensava ser possível entender
uma fotografia sem a sua etiqueta, pois haveria sempre paradoxos e histórias
alternativas em qualquer imagem simples. Twain esmiuçou esta questão ao mencionar
an
pe
d
que:
uma boa e legível etiqueta vale, quanto à informação, muitas atitudes e expressões
significantes numa fotografia histórica. Em Roma, pessoas de natureza solidária
choram de pé diante do celebrado ‘Beatrice Cenci no dia anterior à sua execução’.
Isso mostra o que uma etiqueta pode fazer. Se elas não conhecessem a fotografia, iriam
observá-la indiferentes e dizer: ‘Uma jovem menina com alergia à pólen’ ou ‘Uma
jovem menina com a cabeça em uma bolsa’. (Miller, 1992: 65)
livros mais influentes sobre cultura visual (Mitchell, 1987; Jay; 1994; Sontag, 1977) não contêm imagens
gráficas.
4
A desconfiança de Twain com relação ao uso das imagens sem etiquetas
parece se repetir, hoje, com as preocupações mostradas por alguns cientistas sociais,
25
ªr
eu
niã
oa
nu
al
acerca da maior presença das imagens como uma expressão da influência
contraproducente dos enfoques pós-estruturalistas e pós-modernistas (Harper, 1998).
Essas preocupações com o uso das imagens profundamente responsabilizadas pelas
manifestações ideológicas (seja do capitalismo, do pós-modernismo, da sociedade
burguesa, da sociedade do espetáculo ou dos simulacros) concebem o papel das
imagens como um sintoma maligno (Welch, 1999). Uma outra linha de suspeita sobre
a cultura visual é desenvolvida pelos estudiosos e intelectuais que duvidam do valor
das imagens – especialmente das fotografias (Tagg, 1993) – como ferramentas para
produzir um conhecimento mais preciso acerca da sociedade, pois, segundo eles,
fotografias produzem realidades distorcidas. Ainda, em alguns outros casos, a
associação entre imagens e cultura popular é o principal fator que contribui para a
criação de um ponto obscuro na pesquisa educacional (Giroux, 1994).
Essas preocupações críticas formam inúmeros discursos que apontam na direção
de que as imagens gráficas são, nas palavras de W. J. T. Mitchell, “inevitavelmente
convencionais e contaminadas pela linguagem” e, por essa razão, “a dialética da palavra
e da imagem parece ser uma constante na estrutura dos signos que uma cultura reúne a
sua volta.. O que varia é a natureza precisa da tecelagem, a relação da urdidura e da
trama” (1987: 43).
O grande ceticismo sobre a relação entre palavras e imagens poderia traduzir-se
no abandono não apenas das imagens gráficas como ferramentas válidas na pesquisa
educacional, mas também da cultura visual em geral. No campo específico da pesquisa
educacional, a falta de interesse pelas imagens gráficas tem importantes implicações, e
é até, de forma surpreendente, um fenômeno que W. J. T. Mitchell (1987; 1992) define
an
pe
d
como a “virada pictórica” na pesquisa em ciências sociais. Fenômeno esse que se deve
à saturação e ao bombardeio de sociedades contemporâneas com imagens, e à crescente
atenção dada pelos cientistas sociais à influência dos usos, cada vez mais sofisticados,
da cultura visual. A virada pictórica nas ciências sociais foi manifestada, de forma
heterogênea, nas análises fenomenológicas da visualidade e da imaginação (Vattimo,
1997; Mirzoeff, 1998); na investigação de Foucalt sobre os “regimes escópicos” (1986;
1993); na proeminência das articulações entre visualidade e cultura de massa na pauta
5
de pesquisa de estudiosos associados à Escola de Frankfurt (Kellner, 1994); na análise
de Donna Haraway sobre as imagens que cruzam fatores como raça, classe social e
25
ªr
eu
niã
oa
nu
al
gênero no debate acerca da primatologia (1989); nos estudos de McLuhan sobre a mídia
(1964); na investigação de Martin Jay sobre a descrença em relação à visualidade
presente nas obras filosóficas mais importantes do século vinte (1994); nas obras de
Paul Virilio que interrogam a logística da percepção e do impacto de novas tecnologias
de representação e informação; no olhar de Slavoj Sizek sobre a psicanálise e a cultura
popular (1991); na análise de Jay Ruby sobre as limitações e possibilidades das
etnografias visuais; e, por fim, no status acadêmico da cultura popular e dos estudos
sobre a mídia (Kellner,1994).
O crescente interesse dos estudiosos em investigar as experiências visuais e os
estudos sobre os observadores (aqueles que observam as imagens) e o observado (as
imagens) se pauta em uma realidade social e cultural inconfundível: as imagens se
tornaram onipresentes e meios esmagadores de difundir signos, símbolos e informação.
Muitos dos eventos que já fazem parte do cotidiano das pessoas, tais como ver filmes,
observar vitrines de shopping e assistir televisão se tornaram experiências culturais
centrais na modernidade urbana, na segunda metade do século vinte, e estão
intrinsecamente ligadas à contínua expansão do capitalismo. Como aponta Susan Sontag
(1977) em seu importante estudo sobre fotografia:
an
pe
d
A sociedade capitalista requer uma cultura baseada nas imagens. Ela necessita
fornecer uma ampla quantidade de entretenimento, de forma a estimular o consumo e
anestesiar os danos causados a determinadas classes sociais, raças e sexo. Além disso,
ela também necessita reunir uma ilimitada quantidade de informações para melhor
explorar os recursos naturais, aumentar a produtividade, manter a ordem, fazer guerra
e dar empregos para os burocratas. As duas funções de uma câmera, tornar a realidade
subjetiva e objetiva, servem, perfeitamente, a essas necessidades e as fortalecem. As
câmeras definem a realidade por meio de duas formas essenciais para o funcionamento
de uma sociedade industrial avançada: como um espetáculo (para as massas) e como
um objeto de vigilância (para os governantes). A produção de imagens também fornece
uma ideologia dominante. A mudança social é substituída por uma mudança nas
imagens. A liberdade para consumir inúmeras imagens e produtos é equiparada à
liberdade em si. O estreitamento entre liberdade de escolha política e liberdade de
consumo econômico exige um consumo e uma produção de imagens ilimitados. (Sontag,
1977, p.57).
Nas sociedades contemporâneas ocidentais a coexistência entre as formas
industriais capitalistas e tradicionais e as estruturas de produção, distribuição e consumo
pós-fordistas exige que os cidadãos-consumidores-espectadores sejam capazes de seguir
e entender regras visuais implícitas, desenvolvidas por meio da rápida troca de imagens.
6
No entanto, o ato físico de observar a aparentemente finita multiplicação de imagens e
os seus efeitos saturantes são apenas uma parte das nossas experiências visuais diárias.
25
ªr
eu
niã
oa
nu
al
Na matriz do visual também está inscrito o que esta contém e não pode ser visto, através
de que lentes o visível e o invisível se tornam inteligíveis, e a localização espacial e
temporal do observável e do observador. Tudo isso, limitando o que é possível ou não
ver.
Incorporar a cultura visual ao campo da pesquisa educacional vai além da mera
utilização de fotos, desenhos e outras imagens como acessórios decorativos - simples
ilustrações - com uma função passiva em relação ao texto onipotente. Tal incorporação
crítica, tanto por meio da utilização e inclusão de tecnologias visuais para registrar
informações, do engajamento no estudo dos aspectos visuais de situações educacionais
e culturais, ou do uso de imagens gráficas (um ensaio com fotos, cartoons e filmes) no
processo de apresentação dos resultados de uma investigação, requer atenção e não se
limita aos fenômenos da visão e das imagens.
Apesar da centralidade das imagens em relação ao conceito de cultura visual, o
campo da visão tem uma relação indispensável com vetores verbais, de audição,
emocionais, físicos, intelectuais, espaciais e históricos (Rogoff, 1998). Portanto, para se
entender a visualidade é preciso investigar tanto a percepção e a recepção de imagens,
quanto as condições culturais, sociais e econômicas que envolvem os produtores e os
usuários da cultura visual. Da mesma forma, os processos de percepção e recepção não
são atos passivos, nem muito menos são determinados por convenções sociais e
an
pe
d
culturais.
Na descrição positivista padrão (na qual ninguém, nem mesmo os positivistas,
acreditou por muito tempo) o olho é um órgão passivo que recebe informações
e, honrosamente, as transmite. O ponto de vista contrastante é que a visão é
formada cultural e linguisticamente, e que há muito mais para se ver do que
alcança os olhos. Há algumas pessoas que sustentam a crença insensata de
que ambos pontos de vista são verdadeiros. (Brennan, 1996, p. 219).
O argumento de Brennan indica que na dialética do observador (Buck-Morss,
1989) as imagens visuais não devem ser vistas como simples ilustrações. Elas não são
ocorrências sem importância, mostradas acidentalmente (ou até mesmo, de forma
maliciosa) e distribuídas eletronicamente, ou impressas, para tranqüilizar e agradar o
leitor-observador (apesar do possível valor de tais ações). Por motivos semelhantes, é
importante reexaminar a suposição tradicional
de que textos, palavras e imagens
7
reforçam uns aos outros
por meio
de conexões
fixas ou transparentes. Vários
pesquisadores (Berger,1972, 1980; Sontag, 1977; Tagg, 1993; Chaplin, 1994) têm
25
ªr
eu
niã
oa
nu
al
desafiado essa noção e propõem, em contrapartida, que as relações entre palavras,
textos e imagens sejam vistas como interações dinâmicas. O dinamismo da interação
reside na ausência de um significado fixo – entendido como uma relação necessária que
é auto-explicativa (Mitchell, 1992).
O que é uma foto?
Nos últimos anos, tenho analisado diferentes aspectos relacionados às imagens, à
cultura visual e ao processo de instrução. Esses aspectos incluem a representação da
instrução nos cartoons (Fischman, 1998), as representações dos professores reais e
ideais por parte dos alunos (1999, 2000) e um estudo comparativo sobre a
representação do ensino e do aprendizado em Hollywood e em filmes estrangeiros
(Fischman, 2001). Em seguida, apresento um exemplo de análise sobre como
an
pe
d
incorporar elementos visuais à pesquisa educacional.
an
pe
d
25
ªr
eu
niã
oa
nu
al
8
9
O que vemos nesta imagem? Trata-se de uma fotografia de um menino da
25
ªr
eu
niã
oa
nu
al
segunda série, vestindo o uniforme branco característico das escolas públicas na
Argentina. Ele está sentado em uma carteira, com um caderno aberto e uma caneta na
mão direita. Além disso, ele também está dando um largo sorriso (talvez para o
fotógrafo, para a câmera ou para o seu professor). O contexto parece ser o de uma sala
de aula ou da biblioteca da escola, com livros arrumados de forma organizada (livros
semelhantes em tamanho e forma estão juntos). Contudo, se olharmos mais de perto,
podemos perceber que não são livros de verdade – são livros pintados na parede. É
provável que todo o cenário tenha sido especialmente montado para o ritual anual da
foto na sala de aula, tirada ao final do ano letivo. Os detalhes dessa foto, se inseridos no
seu contexto histórico, adquirem uma significação particular6.
É possível que, para um observador norte-americano, os livros pintados ao fundo
não signifiquem nada em especial, porque muitas das fotos escolares tiradas nos Estados
Unidos têm contextos artificiais. Algumas vezes, pode ser uma floresta, a linha do
horizonte ou somente um céu azul com nuvens fornecendo um contexto supostamente
agradável e natural, que possa realçar o rosto sempre sorridente de um aluno. Mas, para
a maioria das pessoas na Argentina, que (quando essa foto foi tirada) não estavam
acostumadas a simular contextos, os livros pintados eram uma característica evidente
da foto, um indício de ruptura com uma tradição. A fotografia foi tirada numa escola de
educação especial para crianças com “leve retardo”, mas os alunos de escolas públicas
regulares também eram fotografados em contextos não-reais.
O aluno na foto (que atualmente estuda sociologia em uma universidade pública)
an
pe
d
recordou claramente que, de fato, durante todo a sua segunda série, ele não leu nenhum
6
A análise isolada desta fotografia poderia ser um exercício interessante, mas não nos ajudaria muito a
desenvolver o nosso conhecimento sobre educação. Da mesma forma, ler as palavras da pessoa da
fotografia sem ver a imagem real dele não seria suficiente, porque, nesse caso, a foto em si é parte do
contexto de criar significado. Eric Margolis comenta: “Retiradas do contexto, as fotografias se tornam
signicantes livres e flutuantes, que parecem ser pequenos pedaços da realidade, e podem ser usados para
sustentar ou ‘provar’ uma variedade de teses contraditórias” (2000, p. 5). Apesar da importância do
reconhecimento do contexto das imagens, observada por Margolis e muitos estudiosos da cultura visual
(Elkins, 2000; Chaplin, 1994; Miller, 1992), há outras questões que precisam ser consideradas em relação
a este: O que constitui o contexto de uma fotografia? Por meio de quais processos “contextuais” as
pessoas aprendem a ler e interpretar imagens? Que tipos de interações ocorrem entre a imagem e o seu
contexto?
10
livro. Os livros eram lidos para ele, e a prática da escrita consistia em completar
intermináveis folhas de exercícios. Ele deu mais detalhes sobre essa imagem dizendo:
25
ªr
eu
niã
oa
nu
al
A minha professora era uma boa pessoa - ela se preocupava com a gente – mas
estava realmente muito errada. Ela pensava que ler e escrever eram atividades muito
difíceis para nós. O que se dizia é que eu estava lendo gibis e criando a minha própria
história em quadrinhos. Essa foto foi muito importante porque quando meus pais a
viram , eles entenderam que eu estava num lugar onde os livros reais estavam
guardados em um lugar seguro – isto é o que a minha professora nos disse, mas eu
nunca entendi. De qualquer forma, quando meus pais viram a foto, eles decidiram que,
no ano seguinte, eu iria para uma escola regular. Eu perdi um ano inteiro da minha
vida, mas fui sortudo ... outros perderam a vida inteira7.
Teriam os pais do aluno sido muito perspicazes ao interpretar a foto? Teriam
eles, simplesmente, observado o contexto desta relacionando-o com as reclamações da
criança? Em todo caso, se a criança disse ou não para seus pais que nunca lia livros
reais, em sua recordação, a fotografia foi uma evidência que representou (ou
apresentou) o seu incômodo para seus pais, e, talvez, encorajou e justificou a iniciativa
de mudança por parte deles.
Essa imagem também fornece pistas sobre as práticas educacionais da educação
na Argentina em meados dos anos 60. Ela sugere, por exemplo, como a leitura era
concebida numa aula de segunda série de educação especial; a circulação do
conhecimento em uma escola (quem tem acesso aos livros e quem não tem); e o poder
de uma foto como um documento público (os pais “vêem” os livros falsos e podem
rever as suas decisões). Portanto, a fotografia é uma evidência de parte do processo de
criação de subjetividades para todos os atores envolvidos. Afinal, é importante enfatizar
que as fotografias são vistas como um tipo especial de evidência, como indica Annette
Khun (1996):
an
pe
d
Não é que as fotografias devam ter um valor central, nem que elas reflitam o real, nem
mesmo que forneçam qualquer relação auto-evidente entre elas e o que elas mostram.
Simplesmente, uma fotografia pode ser material para interpretação – uma evidência,
nesse sentido, seria solucionada, como um enigma; e lida e decifrada, como pistas
deixadas na cena de um crime (Annette Khun apud Weiler, 1997, p. 18).
Finalmente, é importante enfatizar que ao utilizar imagens, tais como
fotografias, não devemos considerá-las como artefatos neutros – simples documentos
capturados por uma lente (ou por um artista). Ao fazer isso, as limitaríamos a objetos
7
Essa entrevista foi conduzida pelo autor durante o período de junho a agosto de 1996 como parte de um
projeto de pesquisa relacionado às dinâmicas de gênero nos programas de formação de professores em
Buenos Aires, Argentina.
11
“naturais”, quando, de fato, essas imagens são socialmente construídas dentro de
regimes específicos de verdade (Foucault, 1986) que sugerem relações de poder8. No
necessitam:
25
ªr
eu
niã
oa
nu
al
trecho a seguir, Thomas Popkewitz sugere que os pesquisadores educacionais
entender que o olho não apenas vê, mas é socialmente disciplinado pela ordem, divisão
e “criação” das possibilidades do mundo e do indivíduo. Ao questionar como os olhos
vêem, é possível questionar também como os sistemas de idéias “tornam” realidade o
que é visto, pensado e sentido. Tais perguntas sobre a razão – ou seja, a construção
social da razão (e as relações de poder embutidas nesta) – são os princípios pelos
quais o agente “vê” e age para efetuar uma mudança (Popkewitz, 1999, p. 22).
A incorporação das culturas visuais requer que os pesquisadores educacionais
incorporem, criticamente, a noção de investigação e reflexão sobre o que vemos, e como
essas imagens são construídas e reconstruídas por todos os participantes de qualquer
projeto de pesquisa. Essa reflexão crítica não é uma mera extensão do velho ditado:
Uma foto vale mais do que mil palavras. Certamente, tal ditado não é desatualizado,
pois, ainda serve como explicação para uma experiência imediata para a maioria das
pessoas em todo o mundo. No entanto, deve-se notar que se uma foto vale mais do que
mil palavras, para entendê-la, refletir sobre ela ou explicá-la, precisamos usar mil e uma
palavras. Ainda assim, não há nada transparente ou inerentemente verdadeiro.
Progredindo
an
pe
d
As preocupações com comprovação, verdade e precisão nos desviou de uma concepção
empirista do conhecimento e nos levou a uma concepção de comprovação do
conhecimento – algo que pode ser testado, empacotado, conferido e enviado como
tijolos por todo o país para construir estruturas de conhecimento que se diz serem
acumuláveis. De fato, nós falamos sobre o conhecimento como se ele consistisse de
unidades mensuráveis, como por exemplo, a afirmação freqüente de que o
conhecimento se duplica a cada 20 anos. Nós concretizamos – para misturar metáforas
– a nossa visão sobre o que isto significa. Preferimos nosso conhecimento sólido e
dados rígidos. Isso contribui para um fundamento sólido, um lugar seguro em que se
fixar. O conhecimento como processo, um estado temporário, é assustador para muitos.
(Eisner, 1997, p.7)
As palavras de Elliot podem ser vistas como uma antecipação das principais
objeções às idéias apresentadas nesse artigo. De fato, não considero os argumentos
apresentados nessas páginas um “fundamento sólido”, mas uma tentativa inicial de
8
Michel Foucault descreve os regimes de verdade como “um conjunto de regras de acordo com as quais
o verdadeiro e o falso são efeitos separados e específicos de poder ligados ao verdadeiro” (1980: 132). A
12
refletir sobre as tarefas desafiadoras relacionadas à incorporação da cultura visual na
pauta da pesquisa educacional.
25
ªr
eu
niã
oa
nu
al
Eu não estou afirmando que a experiência de leitura de textos carece da
complexidade das imagens visuais, nem que os pesquisadores educacionais devem
“ilustrar” seus textos de forma a torná-los mais acessíveis, agradáveis e bonitos para o
público e, muito menos, que devemos abandonar as estratégias textuais tradicionais. De
fato, a escrita e a leitura de textos são e devem permanecer como aspectos chave da
nossa profissão. No entanto, dar uma atenção especial aos conceitos e artefatos da
cultura visual possibilita, aos pesquisadores, efetuar trocas imbuídas de uma
comunicabilidade e de uma
empatia necessárias à produção e à distribuição do
conhecimento científico. Além disso, um levantamento superficial sobre os meios de
comunicação nos permite perceber que os debates sobre as mudanças no sistema
educacional – desde a modificação do currículo e as formas de avaliação, até o aumento
dos salários – são, com bastante freqüência, muito mais apresentados por meio de
metáforas e imagens, do que pelo uso de argumentos lógicos9. Ainda, num momento em
que prestar uma atenção especial àquelas batalhas culturais e educacionais, nas quais as
imagens e a cultura visual exercem um importante papel, é de maior importância a
análise dessas imagens populares que, raramente, são vistas pelos educadores como uma
área relevante para um exame minucioso.
A incorporação dos temas e imagens da cultura visual ao campo da pesquisa
educacional poderia trazer ferramentas úteis para este. Tal incorporação, no entanto, não
deve se restringir à apresentação da cultura visual como meras ilustrações que endossam
as estratégias de marketing ao apresentarem imagens “bonitas e chocantes”, com o
único propósito de promover o consumo da pesquisa. Fontes visuais de informação
an
pe
d
(filmes, cartoons, desenhos, quadros, outdoors e fotografias), tanto quanto outras
ligação entre o que é aceito como “verdadeiro” e o poder social que proporciona ao falante da “verdade”
se opor ao falante das “falsidades”, ou de verdades inaceitáveis, é estabelecida por esse processo.
9
A esse respeito vale citar Eric S.Lander, diretor do Instituto Núcleo para Pesquisa do Genoma
Whitehead e professor de biologia no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, em Cambridge, que é um
dos principais contribuidores do projeto o qual completou o primeiro esboço do mapeamento do genoma
humano. A reflexão de Dr. Lander sobre uma exibição artística com relação ao significado social da
genética fornece um argumento convincente sobre o papel das imagens nos esforços científicos
“Revoluções científicas podem se iniciar com dados objetivos, mas o seu impacto final depende da
interpretação humana em um contexto social. Marcos científicos ocasionam buscas, freqüentemente
lutas, pelas metáforas e imagens que serão usadas para relacionar as descobertas ao nosso dia-a-dia”
(New York Times, 12 de setembro, 2000, p. D5).
13
formas de representação não-tradicionais (Eisner, 1997; 1999), devem ser utilizadas
para desenvolver o nosso conhecimento sobre temas antigos e recentes na pesquisa
25
ªr
eu
niã
oa
nu
al
educacional. Essas fontes têm o potencial para tornar o nosso trabalho não apenas mais
abrangente e claro, mas também mais relevante politicamente, porque as imagens tanto
transmitem informações na batalha constante sobre o significado, quanto mediam
relações de poder:
Quem vemos e quem não vemos; quem é privilegiado pelo regime da especulação; que
aspectos do passado histórico realmente difundiram ou não representações visuais; que
fantasias sobre o que foi alimentado por imagens visuais ?. Essas são algumas questões
que colocamos com relação às imagens e à sua circulação. Muito da prática do
trabalho intelectual dentro da estrutura da problemática cultural tem a ver com ser
capaz de fazer perguntas novas e alternativas, mais do que reproduzir o antigo
conhecimento ao fazer velhas perguntas (Rogoff, 1998, p. 15).
Para concluir, gostaria de argumentar que reconhecer e incluir a cultura visual e
as imagens na pauta dominante da pesquisa educacional só seria significante se elas não
fossem reduzidas à mera repetição das mesmas questões e enfoques que ostentam
ilustrações as quais têm como único objetivo colaborar com o marketing de um projeto
de pesquisa. O que se precisa é tentar incorporar à pesquisa educacional os problemas e
métodos de coleta de dados; a interpretação e representação (ou apresentação) das
imagens e da visualidade; a inclusão de novas questões e novos atores; a revisão de
velhos argumentos; e a criação de projetos abrangentes e socialmente relevantes.
Incorporar a cultura visual à pesquisa educacional não é uma tarefa fácil, pois
implica em problemas epistemológicos e metodológicos (Nóvoa, 2000). Tal
incorporação constitui-se em um desafio para o ponto obscuro criado pelas formas mais
tradicionais de observar e fazer uma pesquisa em educação. No entanto, vale a pena
correr esse risco. Se nos atrevermos a nos envolvermos no processo dinâmico de olhar
para esse campo utilizando novas ferramentas e investigando aquelas áreas que ainda
an
pe
d
são inexploradas e incertas, podemos entrar num território inseguro, mas não há outra
maneira de investigarmos áreas que possuem tantas camadas de significado.
Download

anped 25ª reunião anual