EDIÇÃO Nº 14
JUNHO 2013
INFORME SERIPA I
Periódico de Prevenção
Consciência Situacional
Caro Leitor,
Nesta edição do “Informe SERIPA I”, destacam-se como ferramenta de prevenção
as informações referentes a Consciência Situacional. Mantendo o propósito desse
periódico, de divulgar conteúdo voltado à segurança de voo para a comunidade aeronáutica
da região, apresentamos uma narrativa fictícia onde o personagem relata a sequência de
eventos ocorridos no seu voo, os quais culminaram em um acidente aeronáutico.
Vale ressaltar, que apesar do texto em questão apresentar fatos não reais, é
provável que um tripulante aéreo enfrente situação semelhante no seu dia a dia
operacional.
Nesses termos, a equipe do SERIPA I recomenda a todos os envolvidos na
atividade aérea que observem os equívocos relatados pelo personagem dessa obra de
ficção. Recomenda-se, ainda, que utilizem os ensinamentos adquiridos na melhoria da
percepção precisa dos fatores e condições que afetam a operação de aeronaves e o
desempenho das tripulações em voo.
Observa-se que, compreendendo e aplicando os conceitos da Consciência
Situacional no planejamento do seu voo, haverá um incremento no nível de segurança das
operações aéreas realizadas, quer seja no âmbito de sua empresa ou na operação
particular. Dessa forma, não surgirá espaço para que o acidente aeronáutico descrito saia
do imaginário e torne-se realidade.
EU ABRI MEUS OLHOS
O que houve? Que dor imensa é essa? Abro meus olhos e percebo uma dura realidade ao
meu redor. Uma cena terrível forma-se diante de mim e entendo que este é um momento que nunca
pensaria que pudesse passar.
O que aconteceu? Por que não consigo me
mexer e que dor é essa no meu peito? Tento gritar por
socorro, porém nenhum som sai de minha boca. Já é
noite e a escuridão só está quebrada por labaredas de
fogo e por relâmpagos que rasgam o céu. Minha
memória aos poucos vai retornando, enquanto uma
chuva leve cai sobre a mata. Chuva esta que não
molha mais minha aeronave, mas apenas uma
fuselagem retorcida, assentos rasgados, pedaços de
coisas, galhos quebrados e corpos. Agora, lembro-me
bem. Nós caímos.
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Consciência Situacional
Não sei ao certo onde estou, somente sei que não é um bom lugar. Sinto saudades de casa, do
meu sofá confortável em que eu assistia meu futebol. Lembro-me da minha família e sinto uma
vontade forte e até descontrolada de vê-los, de dizer algo bom, de dizer que os amo muito, de
pedir perdão pelas brigas e pelo meu mau humor. Quando voltar, será tudo diferente.
Agora, eu tinha que manter a calma, precisava sobreviver, precisava manter a mente
ocupada. Então, achei que remontar o que houve para chegarmos até aqui era uma ideia. Bom,
era bem cedo quando chegamos ao aeroporto
hoje pela manhã. Faltava mais de uma hora
para o nascer do sol de um sábado, porém meu
copiloto estava com uma feição de felicidade,
gabava-se de ter conhecido a mulher de seus
sonhos em um barzinho na noite anterior. Não
sei como ele conseguia sair todas as noites para
tomar umas cervejas nesse ritmo de voo que
estávamos vivendo. Talvez porque ele ainda era
jovem, 25 anos. Eu não me importava muito,
mesmo sabendo que ele apenas poderia voar 12
horas após o consumo de álcool, afinal ele era
jovem.
A agenda do dia era bem mais simples que nos dias anteriores, nos quais, como prelúdio da
minha fuselagem retorcida, tivemos diversos problemas de planejamento. Hoje, simplesmente
deveríamos levar um médico e um enfermeiro para o interior, 3 horas e 10 minutos de voo,
abastecer e retornar trazendo de volta os dois, mais um paciente e um acompanhante.
Tudo seguiu muito bem: os passageiros chegaram no horário e não tinham muita carga para
levar, a meteorologia esteve aceitável, o copiloto fez a externa na aeronave, a partida foi no
horário programado, taxiamos com o sol já nascendo, aguardamos uma aeronave de grande
porte pousar, ingressamos normalmente na pista e fomos autorizados a decolar.
Foi então que, na corrida de decolagem, percebi que tinha algo estranho com o velocímetro,
mas como ele continuou indicando, prossegui na decolagem. Imediatamente após sair do solo,
ficou evidenciado que algo mais não ocorreu bem, pois não houve indicação de altitude. Mesmo
com meu copiloto batendo no instrumento para ver se ele não travou, curvei em condições
visuais para a perna do vento e retornei ao aeroporto, pousando com segurança.
Com os motores cortados no pátio, acionei a manutenção. Porém, como era fim de semana, o
mecânico demorou bastante, vindo a chegar ao local já próximo do horário do almoço, o que me
deixou profundamente irritado. Piorando meu humor, o mecânico identificou logo de cara o
problema: a tomada de pressão estática estava obstruída. Na noite anterior, houve a lavagem e,
sendo já avançada a hora e com a equipe cansada, esqueceram de retirar a proteção das
tomadas estáticas.
Neste momento, sequer me lembrei de quem realizou o pré-voo no
equipamento, então, voltei toda a minha irritação para meu copiloto, pois o
garoto realizou a externa e não identificou o problema. Fiquei muito ansioso
por não ter parado para pensar no problema, visto que se tivesse me lembrado
da tomada estática já a teria desobstruído e decolado logo em seguida. Mas
realmente deixei minha raiva aflorar para o irresponsável que virou a noite na
esbórnia e não teve a capacidade de fazer uma inspeção externa corretamente.
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Agora aqui, nesta mata fria e úmida,
sentindo muita dor e sem poder me mexer,
lembro-me dos fatos todos e me cai o semblante
quando lembro: poderia ter evitado tudo isso.
Lembro-me de uma palestra que assisti há
alguns meses, o tema apresentado era
“Consciência Situacional” e foi ministrada por
um oficial da Força Aérea, formado em
Segurança de Voo. Dentre o que foi dito, foi
ressaltado que 80% dos acidentes aéreos têm o
erro humano com fator contribuinte e destes,
88% têm a perda da consciência situacional
como uma das causas.
No entendimento de que a Consciência
Situacional é, basicamente, saber o que está
acontecendo ao seu redor, foram transmitidas naquela palestra 11 pistas de como perceber
quando estamos perdendo essa capacidade de entender os fatos como eles realmente são. E eu
aqui, acompanhado de corpos mutilados e sons estranhos na mata, tentando manter minha mente
ocupada para evitar o desespero, posso ver que deixamos de lado este conhecimento.
A primeira pista, dentre todas as que passaram despercebidas, foi a ambiguidade sobre o que
deveria ser seguido, a legislação que diz serem necessárias 12 horas de intervalo entre o
consumo de bebida alcóolica e o voo ou a forte cultura organizacional de nós, aeronavegantes,
não nos importarmos com isso, de achar que está tudo sempre tranquilo. Como segunda pista
ignorada por nós está o não cumprimento de procedimento padrão que culminou em uma
externa mal feita, não seguindo o check list previsto, acabando em um incidente, que deveríamos
ter reportado ao CENIPA, e em um grande atraso na operação do dia. Este último, com ligação
direta com meu atual estado.
O atraso nos gerou a importante terceira pista, a falha em atingir metas, que
consequentemente me deixou irritado, fazendo com que a quarta pista surgisse na discrepância
não resolvida entre mim e meu copiloto, pois, após a discussão, não houve mais dialogo.
Após todo o evento, mesmo sem ter almoçado, no adiantado da hora, realizamos
apressadamente nova partida, efetuando a decolagem às 13 horas local. O voo seguiu tranquilo,
apesar do clima pesado dentro da aeronave, onde houve total silêncio durante todo o trajeto,
tanto por parte nossa, pilotos, quanto dos dois passageiros, pois estes estavam muito apreensivos
com o susto desta manhã.
À tarde, a condição da meteorologia começou a piorar, sendo necessários alguns desvios na
rota para evitar formações. Nada muito crítico, mas que findou por atrasar mais nosso pouso,
que ocorreu depois de 3 horas e 20 minutos de voo. Pelo menos o paciente já estava esperando
no aeroporto, era um senhor de idade avançada, bastante simpático, e sua acompanhante, uma
senhora de cinquenta e poucos anos, que estava irritada com a demora. Daqui onde estou
consigo ver os corpos deles, estão próximos de onde estão as chamas.
Preparamo-nos para decolar e agora percebo que a quinta pista estava no problema de
comunicação com meu copiloto, pois ele sempre me alertava sobre as condições de segurança
durante o voo, principalmente quando íamos ultrapassar a jornada de voo, porém na tarde de
hoje ele estava calado.
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Então eu, tomado pela gana de completar uma missão considerada simples, não atentei que a
decolagem foi com a jornada extrapolada e, ainda neste contexto de problema de comunicação,
não raciocinei quando o enfermeiro me perguntou se a chuva poderia atrapalhar o voo, afinal eu
sou o comandante da aeronave. Excepcionalmente agora, eu sou somente o comandante desse
ferro retorcido e em chamas no meio da mata.
Talvez se eu tivesse dado mais importância para as normas de Segurança de Voo, eu teria
percebido melhor as pistas que vinham aparecendo.
Minha pressa em decolar estava
fundamentada em evitar a decolagem na
chuva, principalmente porque, conforme o
NOTAM, os auxílios de
navegação do
aeroporto estavam inoperantes.
Infelizmente, já com os motores acionados
e taxiando, sobreveio-nos uma forte chuva.
Mesmo alertado pela Rádio que o aeroporto
estava fechado devido à meteorologia, sem
que houvesse objeções a bordo, decolamos em
condições de instrumentos para o voo
fatídico, buscando uma referência para o
procedimento de decolagem com o
balizamento do GPS da aeronave em uma
saída IFR que não existia. Isso me remonta também a palestra de Segurança de Voo, na qual a
sexta e a sétima pistas mostravam que a violação de mínimos e o uso de procedimento não
documentado eram indícios de que havia perda de consciência situacional.
Logo após a decolagem e a entrada na camada de nuvens, percebi que havia algo errado com
o GPS. Ele estava mostrando que seria necessária uma curva para a esquerda, muito fora da
rota planejada para o voo. Eu não tinha certeza se era um problema no GPS ou nas bússolas,
logo, cheguei a iniciar a curva a esquerda, mas com muita dúvida, pedi para meu copiloto
checar se ele havia inserido corretamente o ponto da rota no aparelho. A confusão e sentimento
de vazio que estávamos sentindo foram a oitava pista que ignoramos.
A demora em corrigir a inserção no GPS, fez-me tentar ajudá-lo. Na verdade, o que eu queria
era me livrar daquele sentimento e prosseguir no voo. Esta minha atitude me deu a nona e a
décima pistas com nossa fixação e preocupação com um item do voo e não deixando ninguém
pilotando a aeronave ou voando atrás dela. Agora que sinto minha vida se esvaindo, meu
lamento está no silêncio a bordo, alguém poderia ter dito uma simples frase como “continue
pilotando comandante!” ou mesmo um “olha pra frente meu camarada!”. Possivelmente eu nem
lhe agradeceria, talvez ainda ficasse irritado pela ousadia, mas possivelmente também não
estaria em sofrimento nesta mata fria e úmida, onde paira uma névoa mórbida entre os corpos
mutilados e imóveis.
Muito curioso isso, uma simples inserção no GPS gerar tamanha carga de trabalho.
Realmente os estudiosos sabem das coisas quando definiram o tempo para fadiga, pois, se não
estivéssemos com a jornada de voo vencida, poderíamos ter realizado esta tarefa corretamente
desde a primeira vez e, quem sabe, teríamos quebrado essa cadeia de erros. A fadiga veio e nós
não a percebemos.
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Enquanto eu, aos olhos do meu copiloto, inseria os
dados corretos no aparelho de localização, iniciei uma
curva a direita na tentativa de voltar à rota correta,
porém findei por exagerar bastante na inclinação, não
olhei adequadamente para o horizonte artificial.
Prontamente a aeronave começou a perder altitude e,
visto que, como relata a décima primeira pista, a última
da lista, não havia ninguém olhando para fora da
aeronave, ultrapassamos a camada de nuvens e eu
somente tive a percepção da gravidade do fato quando já
era irreversível. Tentei recuperar altitude, mas a asa
direita tocou a copa das árvores, gerando solavancos que nos fizeram perder completamente o
controle da aeronave. Ao abrir os meus olhos, eu me vi aqui, sem poder me mexer, sem poder
gritar, sem poder me ajudar e sem ajudar mais ninguém. Se ao menos pudéssemos ter
recuperado a consciência situacional.
Já não sinto mais dor. O frio também se foi. O fogo da aeronave se apagou. A chuva cessou.
Está tudo tão calmo, tão quieto nesta mata. Mesmo ao redor ficando cada vez mais escuro, o que
era sombrio já não assusta mais. Ao longe ouço um som como de um helicóptero. Pena que eu
abri meus olhos tão tarde. Que saudades de casa.
Texto de ficção escrito por
Cap Av Fábio Luís Ridão Valentim
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